Jair Bolsonaro percorre a Ásia e o Oriente Médio. Mas não desgruda os olhos do noticiário sobre o Chile. Receia que a algaravia chilena acorde as ruas brasileiras. No meio da semana, telefonou para o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. "A gente se prepara para usar o artigo 142 da Constituição, que é pela manutenção da lei e da ordem", explicou.
O telefonema indica que Bolsonaro não compreendeu o que se passa. Do contrário, teria conversado com outro ministro: Paulo Guedes, da Economia. Antes de organizar a repressão é preciso ao menos tentar evitar a confusão. O Chile pode não ser o bom exemplo que o Posto Ipiranga exaltava até outro dia. Mas revelou-se um fabuloso aviso. Lembra que é preciso incluir sensibilidade social na mistura.
Não se trata de abandonar o rigor fiscal, mas de perseguir o equilíbrio das contas sem perder de vista que o objetivo final é atender às pessoas, sobretudo as mais pobres. O Chile registra nos últimos anos invejáveis taxas de crescimento. Entretanto, distribuiu mal os resultados do seu êxito. No Brasil, o crescimento é miúdo. E a desigualdade é muito maior.
Em 2013, antes que os black blocs estragassem a festa, os brasileiros pareciam ter descoberto na ocupação do asfalto uma saída para obter menos roubalheira, mais seriedade e serviços públicos decentes. Sobreveio a reeleição de Dilma Rousseff, escorada numa campanha cujo signo principal era a mentira. Aquecido pela Lava Jato, o asfalto ferveu até o impeachment.
De repente, os brasileiros que foram ao meio-fio se deram conta de que Dilma, além de ser uma das piores presidentes da história, deixara duas heranças macabras: os efeitos de um governo empregocida e Michel Temer, um substituto constitucional cercado de culpados e cúmplices. O tucano Aécio Neves, que emergira das urnas de 2014 como alternativa, chafurdou junto com Temer na lama da Odebrecht e da JBS. Seguiu-se o desalento. O asfalto voltou para casa.
Em 2018, Lula, o número um das pesquisas, foi para a cadeia. E o antipetismo, maior força eleitoral daquela temporada, elegeu Jair Bolsonaro. Tratava-se de uma novidade com cheiro de naftalina. Parlamentar de cinco mandatos, o capitão é pós-graduado nas mumunhas da política. Como jamais tivera acesso à chave do cofre, jactava-se de não frequentar inquéritos.
Hoje, sabe-se que os Bolsonaro lambuzaram-se com rachadinhas e outras miudezas. O apoio ao esforço anticorrupção deu lugar a uma aliança tácita com a ala do Supremo que abre as celas e o pedaço do Legislativo que arromba cofres. Tudo isso e mais a inesgotável capacidade do capitão de produzir crises que roem a confiança, desestimulam os investimentos e prolongam o drama de 12 milhões de desempregados e mais de 20 milhões de sub-ocupados.
O Chile foi ao asfalto por muito menos. Lá, empregados queixam-se dos baixos salários. Aposentados reclamam das pensões graúdas dos militares e da aposentadoria miúda do modelo de capitalização —menina dos olhos de Paulo Guedes. A corrupção que tira o chileno do sério seria caso para juizado de pequenas causas se comparada com escândalos como mensalão e petrolão.
Bolsonaro atribui as manifestações observadas no Chile e em países como Equador, Bolívia e Argentina a movimentos de esquerda com assento no Foro de São Paulo. "A intenção deles é atacar os EUA e se auto-ajudarem, para que seus partidos à esquerda tenham ascensão", disse o presidente. "Dinheiro nosso, brasileiro, do BNDES, irrigou essa forma de fazer política".
O presidente do Chile, Sebastián Piñera, percebeu da pior maneira que raciocínios binários como o de Bolsonaro não passam de tolices. O problema não é a direita nem a esquerda, mas a meia dúzia que fica por cima. Há uma semana, Piñera declarara guerra contra "um inimigo poderoso". Descobriu que a irritação do asfalto, por generalizada, não tem dono.
Ao se dar conta de que elegera o povo como "inimigo", Piñhera pediu desculpas. E pôs-se a anunciar por pressão providências que se abstivera de adotar por opção: reajuste nas aposentadorias, benefícios nas áreas de saúde e educação, contenção de tarifas de energia. O presidente chileno passou a mimar as ruas, enxergando nelas o futuro.
O receio de Bolsonaro é que o brasileiro decida imitar o chileno, redescobrindo os caminhos que levam ao meio-fio. Por enquanto, a repressão às manifestações no Chile resultaram em 18 mortes e cerca de 6 mil prisões. São números que deveriam estimular Bolsonaro a telefonar dez vezes para o ministro da Economia antes de pensar em fazer uma ligação para o general que comanda a pasta da Defesa.