sábado, 26 de outubro de 2019

Descrédito como resposta

Bolsonaro é muito parecido com um europeu populista branco de direita, que se dirige a quem se sente desrespeitado. Ele fala sobre raça muito abertamente, sobre o Bolsa Família, que seria usado para beneficiar pessoas que não merecem, e daí por diante. Então, nesse sentido, está muito em linha com os novos populistas europeus. Todos eles têm em comum um estilo de liderança que rejeita as instituições. Bolsonaro também ataca as instituições para tentar deslegitimá-las, ataca a imprensa. Isso é muito ruim para a democracia. 


O problema para os políticos anti-establishment é que eles frequentemente não sabem como governar de maneira eficiente. As pessoas descobrem isso e rapidamente perdem o interesse neles 

O ciclo da frustração

Não é difícil encontrar um denominador comum para as sucessivas e paralelas crises que tomaram conta (por ordem alfabética) de Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela, para ficar apenas com a América do Sul. O “ciclo” atual desses países é o da “era do descontentamento”. Ou da era da frustração, como preferir.

Em seu conjunto, os países desta região só se comparam aos do Oriente Médio quanto ao número de seus habitantes que declaram ter vontade de seguir a vida em outro lugar (no Brasil, alcança a faixa dos 30%; fonte é o Gallup). São os países nos quais existe a mais aguda percepção no planeta de que seus regimes políticos são tomados pela corrupção. E os de mais baixo desempenho econômico na comparação com todas as outras regiões.

Tomados individualmente, cada um desses países teria razões próprias, locais, culturais e históricas para os períodos de crise econômica, turbulência e instabilidade políticas. Mas há algo comum a todos: um sentimento difuso de frustração trazido pela demora em romper a perceptível estagnação que caracteriza um conjunto de nações preso à armadilha da renda média, e cuja distância em relação aos países mais avançados continua praticamente a mesma de uma geração atrás.


A punição a quem está no poder é quase imediata, não importa se de esquerda ou direita. Na Argentina, no Chile ou no Brasil, recentes resultados eleitorais dividem um mesmo pano de fundo: um acentuado desejo de mudança trazido menos pela esperança num futuro melhor e muito mais pela indignação com a corrupção, medo com a criminalidade e profunda desconfiança na capacidade do “sistema” de resolver problemas agudos – “sistema” passa a ser tudo, da administração pública à imprensa, passando (claro) pelo Judiciário. Ganha quem prometer derrotar o “sistema”.

Acabam sendo literalmente catapultados para o centro de decisões figuras de políticos de personalidades e biografias bastante diversas (como são Bolsonaro, Macri e Piñera, para ficar apenas nos casos de Brasil, Argentina e Chile), mas todos herdeiros de contextos políticos caracterizados, de um lado, por ausência de claras maiorias parlamentares. E pela presença, por outro lado, de bem constituídos grupos de interesses e corporações dentro da máquina do Estado (Brasil e Argentina), por delicadas situações fiscais que obrigam os governos a reduzir ou acabar com subsídios em setores como combustíveis ou transporte (Chile), no que acaba sendo entendido como afronta a uma população já atravessando graves dificuldades.

Todos apresentam um quadro muito semelhante de desequilíbrio, concentração e desigualdade de renda. É consideravelmente distinto o apego de faixas da população a postulados ideológicos quando se compara o Chile (onde há um espectro clássico de “social-democracia” versus “democracia cristã”), Argentina (e seu peronismo, que dificilmente encontra comparações) e o Brasil (no qual impera uma maçaroca ideológica).

Em geral, porém, parcelas significativas da população, embora não detenham conhecimento exato das respectivas taxas de crescimento de suas economias, têm uma noção clara do fato do prometido futuro tardar tanto a chegar.

A questão, portanto, não é a do “contágio” ao qual vozes do governo brasileiro se referiram quando, finalmente, perceberam a gravidade do que acontece em vizinhos como Argentina e Chile. Muito menos se trata de alguma “conspiração” (o “esquerdista” Evo Morales está sendo contestado, assim como os “direitistas” no Chile e Argentina). A questão é levar adiante reformas amplas e profundas que rompam um ciclo de estagnação. Que, ao se transformar em ciclo de frustração, cobra altíssimo preço político.

Brasil de ratos


Da revolução à revolta

Vladimir Putin atribuiu a revolução ucraniana de 2014 a um complô americano. O governo chinês menciona a “mão negra” da Casa Branca quando fala das manifestações em Hong Kong. Segundo Filipe Martins, o sábio assessor internacional do Planalto, “os recentes movimentos de desestabilização de países sul-americanos” derivam de “uma estratégia definida pela ditadura cubana, por sua proxy venezuelana e pela rede de solidariedade que as sustenta”. Quando o temível Foro de São Paulo estala os dedos, milhares erguem barricadas em Quito e Santiago...

A razão conspiratória é o lar compartilhado por regimes ditatoriais e ideólogos primitivos. A agitação social não se restringe à América do Sul. No Líbano e no Iraque, protestos de massa coincidiram com as mobilizações chilenas. Bem antes do Equador, os “coletes amarelos” conflagraram as cidades francesas, motivados também por aumentos nos combustíveis. Há algo aí, além da coincidência temporal.

São histórias singulares, países diferentes, modelos distintos. Numa ponta, a França social-democrata, com desigualdades moderadas e taxas letárgicas de crescimento econômico. Na outra, o Chile liberal, com rápida expansão econômica e fortes contrastes sociais. Porém, em todos os casos, a centelha da revolta são cortes de subsídios de transportes, elevações de preços da gasolina, tributos sobre produtos ou serviços de consumo geral. No Líbano, a faísca foi uma taxa sobre ligações por WhatsApp.


A primeira década do século, um longo ciclo de expansão mundial, deixou um rastro de gastos públicos insustentáveis. Os ajustes em curso, que refletem a redução do crescimento global e se destinam a reequilibrar as contas públicas, são os alvos das manifestações. Não é pelos 20 centavos: o conflito organiza-se em torno de contratos sociais em mutação. Como repartir a conta da austeridade? A pergunta, cedo ou tarde, chegará ao Brasil, como uma mancha de óleo. Tomem nota, Bolsonaro e Guedes.

Os governos nascem das urnas, sob a lógica da dinâmica político-partidária. As revoltas nascem das ruas, na moldura da desintermediação política generalizada. Os partidos declinam, as redes sociais tomam o lugar que foi deles. Nas margens, minorias radicalizadas explodem coquetéis molotov, enfrentam a polícia, desafiam até mesmo soldados. O quebra-quebra carece de respaldo majoritário. Contudo, que ninguém se iluda: os manifestantes contam com extenso apoio popular.

Não são levantes “espontâneos”, algo inexistente no planeta da política. Nas ruas, destacam-se as bandeiras de sindicatos, entidades estudantis, grupos organizados. Mas a desintermediação tem um preço, expresso pela ausência de lideranças definidas e de agendas nítidas de reivindicações.

As redes sociais operam como máquinas de replicação. O recuo de Emmanuel Macron, que anulou o tributo sobre a gasolina, animou mobilizações em terras distantes. A retirada do equatoriano Lenin Moreno ajudou a acender o pavio em Santiago. No fim, sitiado, o chileno Sebastián Piñera desistiu do discurso da “guerra”, ofereceu desculpas ao povo e improvisou um pacote social. Sem um Pinochet (ou um Xi Jinping), o programa ultraliberal converte-se em utopia: uma ideia fora do tempo.

Derrubar o governo —a meta extrema emergiu em todos os lugares, logo depois da conquista inicial. Os “coletes amarelos” pedem nada menos que a renúncia de Macron. A mesma exigência surgiu no Equador e, nesses dias, ecoa no Chile. A revolução, venerável senhora, o maior dos mitos modernos, levantou-se da cadeira de balanço?

Revolução, só com intermediação política. Não basta clamar pela queda do governo: é preciso definir os contornos de um poder alternativo e o desenho de um novo contrato social. A era das redes sociais, esse outono dos partidos, assinala um retrocesso. A revolução política cede à revolta social.
Demétrio Magnoli

Terrorismo oficial

Se o presidente Jair Bolsonaro, sem prova ou indício algum, pode afirmar que foi ato terrorista a derrama de petróleo que empesteia as praias nordestinas, por que o ministro Ricardo Salles, do Meio ambiente, não pode insinuar que o petróleo foi derramado por um navio da organização internacional Greenpeace?

Pau que bate em Chico deveria também bater em Francisco. O deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, criticou Salles, mas esqueceu de criticar Bolsonaro. Os males que vêm do alto costumam contaminar os que estão em baixo. Se Salles foi irresponsável e leviano, Bolsonaro foi o quê?

Lá atrás, quem primeiro falou em terrorismo? Bolsonaro falou quando lhe perguntaram sobre os incêndios na Amazônia. Tentou culpar as Ongs. Voltou a falar quando lhe perguntaram sobre o petróleo derramado. Repetiu a dose ontem. Salles é apenas um pau mandado do presidente. Um serviçal que quer manter o emprego.



Bolsonaro liga para a preservação do meio ambiente? Salles tampouco. Bolsonaro está mais preocupado com os garimpeiros que votaram nele. É candidato à reeleição. No passado, ainda cadete no Exército, meteu-se com garimpo e foi censurado por seus superiores que o consideraram ambicioso demais.

Se o chefe e seus influentes filhos são conhecidos por gostarem de notícias falsas e as disseminarem nas redes sociais, por que Salles não pode gostar e fazer a mesma coisa? Ele postou a foto de um navio do Greenpeace de onde o petróleo poderia ter saído. A foto é de 2016. O navio não transporta petróleo, só gente.

A verdade é que o governo não faz a mínima ideia sobre o que aconteceu há mais de dois meses. Primeiro porque não se interessou de início. Depois porque não conseguiu saber nada até agora – salvo que o petróleo, provavelmente, é venezuelano. Ou uma fração dele. A Marinha não se arrisca a ir além disso.

>Mais de mil toneladas de óleo foi recolhida, parte por voluntários. Só há poucos dias militares entraram em cena para recolher. Onde todo esse óleo foi armazenado? A Marinha não sabe. O governo não sabe. É tudo feito de improviso. E quando voluntários aparecerem doentes, vítimas dos efeitos do óleo?

Governo de morte, este.
Ricardo Noblat

Governo cara de pau

Quem deveria estar olhando pelos voluntários está no Twitter brincando de caluniar os outros. O que precisa de resposta no Brasil vai ficar sem resposta
Marcio Astrini, coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace

Chile tornou-se um aviso incômodo para o Brasil

Jair Bolsonaro percorre a Ásia e o Oriente Médio. Mas não desgruda os olhos do noticiário sobre o Chile. Receia que a algaravia chilena acorde as ruas brasileiras. No meio da semana, telefonou para o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. "A gente se prepara para usar o artigo 142 da Constituição, que é pela manutenção da lei e da ordem", explicou.

O telefonema indica que Bolsonaro não compreendeu o que se passa. Do contrário, teria conversado com outro ministro: Paulo Guedes, da Economia. Antes de organizar a repressão é preciso ao menos tentar evitar a confusão. O Chile pode não ser o bom exemplo que o Posto Ipiranga exaltava até outro dia. Mas revelou-se um fabuloso aviso. Lembra que é preciso incluir sensibilidade social na mistura.

Não se trata de abandonar o rigor fiscal, mas de perseguir o equilíbrio das contas sem perder de vista que o objetivo final é atender às pessoas, sobretudo as mais pobres. O Chile registra nos últimos anos invejáveis taxas de crescimento. Entretanto, distribuiu mal os resultados do seu êxito. No Brasil, o crescimento é miúdo. E a desigualdade é muito maior.


Em 2013, antes que os black blocs estragassem a festa, os brasileiros pareciam ter descoberto na ocupação do asfalto uma saída para obter menos roubalheira, mais seriedade e serviços públicos decentes. Sobreveio a reeleição de Dilma Rousseff, escorada numa campanha cujo signo principal era a mentira. Aquecido pela Lava Jato, o asfalto ferveu até o impeachment.

De repente, os brasileiros que foram ao meio-fio se deram conta de que Dilma, além de ser uma das piores presidentes da história, deixara duas heranças macabras: os efeitos de um governo empregocida e Michel Temer, um substituto constitucional cercado de culpados e cúmplices. O tucano Aécio Neves, que emergira das urnas de 2014 como alternativa, chafurdou junto com Temer na lama da Odebrecht e da JBS. Seguiu-se o desalento. O asfalto voltou para casa.

Em 2018, Lula, o número um das pesquisas, foi para a cadeia. E o antipetismo, maior força eleitoral daquela temporada, elegeu Jair Bolsonaro. Tratava-se de uma novidade com cheiro de naftalina. Parlamentar de cinco mandatos, o capitão é pós-graduado nas mumunhas da política. Como jamais tivera acesso à chave do cofre, jactava-se de não frequentar inquéritos.

Hoje, sabe-se que os Bolsonaro lambuzaram-se com rachadinhas e outras miudezas. O apoio ao esforço anticorrupção deu lugar a uma aliança tácita com a ala do Supremo que abre as celas e o pedaço do Legislativo que arromba cofres. Tudo isso e mais a inesgotável capacidade do capitão de produzir crises que roem a confiança, desestimulam os investimentos e prolongam o drama de 12 milhões de desempregados e mais de 20 milhões de sub-ocupados.

O Chile foi ao asfalto por muito menos. Lá, empregados queixam-se dos baixos salários. Aposentados reclamam das pensões graúdas dos militares e da aposentadoria miúda do modelo de capitalização —menina dos olhos de Paulo Guedes. A corrupção que tira o chileno do sério seria caso para juizado de pequenas causas se comparada com escândalos como mensalão e petrolão.

Bolsonaro atribui as manifestações observadas no Chile e em países como Equador, Bolívia e Argentina a movimentos de esquerda com assento no Foro de São Paulo. "A intenção deles é atacar os EUA e se auto-ajudarem, para que seus partidos à esquerda tenham ascensão", disse o presidente. "Dinheiro nosso, brasileiro, do BNDES, irrigou essa forma de fazer política".

O presidente do Chile, Sebastián Piñera, percebeu da pior maneira que raciocínios binários como o de Bolsonaro não passam de tolices. O problema não é a direita nem a esquerda, mas a meia dúzia que fica por cima. Há uma semana, Piñera declarara guerra contra "um inimigo poderoso". Descobriu que a irritação do asfalto, por generalizada, não tem dono.

Ao se dar conta de que elegera o povo como "inimigo", Piñhera pediu desculpas. E pôs-se a anunciar por pressão providências que se abstivera de adotar por opção: reajuste nas aposentadorias, benefícios nas áreas de saúde e educação, contenção de tarifas de energia. O presidente chileno passou a mimar as ruas, enxergando nelas o futuro.

O receio de Bolsonaro é que o brasileiro decida imitar o chileno, redescobrindo os caminhos que levam ao meio-fio. Por enquanto, a repressão às manifestações no Chile resultaram em 18 mortes e cerca de 6 mil prisões. São números que deveriam estimular Bolsonaro a telefonar dez vezes para o ministro da Economia antes de pensar em fazer uma ligação para o general que comanda a pasta da Defesa.