domingo, 22 de março de 2020

Brasil entregue ao Demo


Coronavírus põe Bolsonaro na contramão do país

Jair Bolsonaro só costuma se preocupar com o julgamento do próprio espelho ou da sua bolha nas redes sociais que muitos suspeitam ser a mesma coisa. O espelho e os devotos virtuais têm sempre uma atenuante e uma justificativa para qualquer disparate. Na crise do coronavírus, porém, o presidente flerta com o suicídio político, indica o Datafolha.

Bolsonaro já se referiu à pandemia como "uma pequena crise". Disse enxergar "muito mais fantasia" do que fatos na encrenca que produz cadáveres e recessão em escala planetária. Insinuou que a "grande mídia" potencializa a doença para provocar "pânico" e "histeria".


Cotejando-se os comentários de Bolsonaro com a opinião da maioria dos brasileiros, o atual inquilino do Planalto ganha a incômoda aparência de um anti-presidente. Ele está na contramão do país que deveria liderar. Para 88% dos entrevistados do Datafolha, o Brasil está diante de um problema sério.

Neste sábado, Bolsonaro chamou o governador tucano João Doria de "lunático" por ter decretado quarentena por 15 dias no Estado de São Paulo. A pesquisa revela que 73% dos brasileiros aprovam o isolamento forçado em casa.

O presidente já havia torpedeado Doria e outros governadores por ordenar o fechamento de restaurantes e lojas comerciais —medida que, em São Paulo, foi estendida aos shoppings. De acordo com a pesquisa, a suspensão das atividades do comércio é apoiada por uma maioria (67%), que se divide entre a defesa do fechamento integral (46%) ou parcial (21%).

Há um apoio maciço a medidas restritivas. Coisas como a suspensão de aulas (92%), a proibição de viagens internacionais (94%), a interrupção dos campeonatos de futebol (91%) e até das cerimônias religiosas (82%).

Auxiliares de Bolsonaro - civis e militares - já tentaram convencê-lo a interromper o comportamento de alto risco, com tendência à auto-desmoralização. Mas o presidente dá de ombros. Chegou mesmo a convocar apoiadores às ruas num instante em que o Ministério da Saúde desaconselhava aglomerações.

Cercado por ministros e auxiliares infectados, Bolsonaro escapuliu de um monitoramento médico para cumprimentar e posar para selfies ao lado de apoiadores, na quina do meio-fio.

Até Donald Trump, ídolo do capitão, já tomou jeito. Depois de passar semanas desdenhando do "vírus chinês", o presidente dos Estados Unidos deu uma guinada no seu discurso. E decretou emergência nacional no país. Com atraso e a contragosto, Bolsonaro já decretou a calamidade pública. Mas não conseguiu impor uma quarentena à sua língua

O suicídio, mesmo em sua modalidade política, é coisa íntima. Difícil avisar a um personagem como Bolsonaro que seu comportamento é suicida. Ele costuma desautorizar com rispidez quem tenta se meter na sua vida - ou, no caso específico - no seu autoextermínio.

Na sexta-feira, o capitão disse que não está preocupado com os panelaços que soam nas janelas há cinco dias. O Datafolha indica que talvez devesse abrir os olhos e, sobretudo, os ouvidos. O coronavírus pode transformar a perda de apoio do presidente junto à classe média num fenômeno hemorrágico.

Governo tresloucado

Formulado de maneira correta, o problema mais difícil do mundo um dia será resolvido. Formulado de maneira incorreta, o problema mais fácil do mundo jamais será resolvido
Mário Henrique Simonsen, ex-ministro da Fazenda (governo de Ernesto Geisel) e do Planejamento (governo Figueiredo)

O presidente no parquinho

Jair Bolsonaro completou ontem 65 anos de idade. Diante da epidemia que ameaça os brasileiros, comporta-se como uma criança de 5. Em vez de liderar o país, o presidente faz birra contra as medidas de isolamento. É como se a quarentena, necessária no combate à doença, fosse uma grande conspiração para impedi-lo de brincar no parquinho.

Na contramão de autoridades responsáveis, o capitão teima em deseducar o povo. Na sexta, chamou o coronavírus de “gripezinha”. No mesmo dia, o número de mortos pela infecção ultrapassou os dez mil em todo o mundo.

Mais tarde, ele incentivou o rebanho a continuar se aglomerando em shoppings e igrejas. “A chuva tá vindo aí, você vai se molhar. Agora, se você botar uma capinha aqui, tudo bem. Passa”, desdenhou. A declaração foi ao ar no programa do Ratinho, famoso por promover espetáculos bizarros na TV.


Não há guarda-chuva contra Bolsonaro. Obcecado com a reeleição em 2022, o presidente sabota o próprio ministro da Saúde e ataca governadores que tentam retardar o contágio em seus estados. Parece maluquice, mas é só despotismo. Na mente do capitão, quem não lambe botas deve ser tratado como inimigo de guerra.

A perspectiva de uma crise longa tem turbinado a paranoia presidencial. Na segunda-feira, Bolsonaro descreveu as medidas de distanciamento social como parte de uma trama para derrubá-lo. “Se afundar a economia, acaba com o meu governo. É uma luta de poder”, afirmou, como se todos os países que adotaram essas restrições integrassem o mesmo complô imaginário.

Fora da redoma bolsonarista, a assombração é outra. Políticos de diferentes partidos temem que o presidente use o agravamento da epidemia como pretexto para tentar concentrar poderes. É o quem têm feito outros líderes de extrema direita, como o húngaro Viktor Orbán.

A preocupação já levou o Congresso a mudar o decreto que reconheceu o estado de calamidade pública no país. Na nova redação, proposta pelo deputado Alessandro Molon, o texto passou a deixar claro que o Planalto só está autorizado a descumprir as metas fiscais. Isso significa que o presidente não poderá tomar outras medidas excepcionais por causa da pandemia.

Em outubro passado, o clã Bolsonaro usou o fantasma das manifestações em Santiago para sonhar alto com uma escalada autoritária. O tumulto chileno não chegou ao Brasil, mas agora existem razões para projetar um quadro de colapso na saúde, depressão econômica e desagregação social.

No playground ideológico do bolsonarismo, o fetiche de um “novo AI-5” convive com a ideia de decretar estado de sítio. Ontem a Ordem dos Advogados do Brasil julgou necessário emitir um parecer sobre o assunto. “Não há dúvida de que a situação atual produz sensações de pânico e terror na população. Esses sentimentos não podem, no entanto, ser explorados para autorizar medidas repressivas e abusivas que fragilizem direitos e garantias constitucionais”, afirmou a entidade.

Na véspera, Bolsonaro disse que seria “relativamente fácil” decretar estado de sítio, mas informou que a ideia “ainda” não está em seu radar.

Porque ontem foi sábado, e Bolsonaro é assim todo dia

À falta das obrigações que o cargo lhe impõe em dias úteis, confinado no Palácio da Alvorada onde comemorou 65 anos de idade na companhia da mulher e dos filhos, o presidente Jair Bolsonaro dedicou-se, ontem, a fazer o que melhor sabe: fustigar adversários, cutucar aliados e dissertar sobre o que não entende.

Logo na semana em que os profissionais da saúde começaram uma campanha onde pedem: “Nós estamos aqui por vocês, por favor fiquem em casa por nós”; Bolsonaro disse não ver razão para que se impeça a livre circulação de pessoas sadias que possam trabalhar. Reclamou do fechamento de shoppings e de templos.

A Constituição garante a realização de cultos, citou. “Tem gente que quer fechar as igrejas, o último refúgio das pessoas”, irritou-se. “Lógico que o pastor vai saber conduzir seu trabalho, vai ter consciência, vai decidir lá”. O Conselho Mundial das Igrejas sugeriu o fechamento dos templos neste fim de semana.

“A chuva tá vindo aí, você vai se molhar. Agora,
se você botar uma capinha aqui, tudo bem. Passa.”
De bermuda, camiseta da Seleção e chinelos, dirigido por seus três filhos mais velhos (Flávio, Carlos e Eduardo) que se encarregaram da tarefa, Bolsonaro gravou um vídeo postado nas redes sociais para anunciar que o Exército fabricará o Reuquinol, remédio que “poderá evitar um contágio mais rápido do coronavírus”.

Perdeu mais uma oportunidade de ficar calado. Obrigou o número dois do Ministério da Saúde a repetir na televisão que não existe ainda nenhum fundamento científico de que o Reuquinol impeça o contágio da doença. O remédio desapareceu de muitas farmácias brasileiras desde que Donald Trump falou a seu respeito.

Apenas pessoas com receita para tratamento de enfermidades como malária, lúpus e artrite reumatoide podem comprar o Reuquinol. “Ninguém vai poder guardar esse remédio pensando no coronavírus”, apressou-se a explicar João Gabbardo dos Reis, secretário-executivo do Ministério da Saúde.

Bolsonaro fechou o dia atacando os governadores de São Paulo e do Rio em entrevista à CNN Brasil. Para ele, os governadores que decretaram quarentena extrapolam dando “dose excessiva do remédio e que o remédio em excesso se torna um veneno.” Bem, essa é a sua opinião, mas não a dos especialistas no assunto.

Empenhado em politizar a discussão sobre o coronavírus, aproveitou para chamar de “lunático” o governador João Dória (PSDB-SP). Queixou-se de que Dória usou o nome dele para se eleger “e está se aproveitando para crescer politicamente”. Sobrou, naturalmente, para Wilson Witezel (PSC), governador do Rio.

Bolsonaro não se arrependeu de ter chamado o coronavírus de “gripezinha. Garantiu que sobre 60% dos brasileiros a COVID-19 “não terá efeito algum”. Negou que exista uma crise entre ele e o ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde. E assim contou o que de fato estaria se passando: "Não existe atrito, mas uma conversa entre nós. Mandetta sabe que uma população em depressão perde imunidade e fica mais propensa a doenças".

Quanto ao impacto da doença na economia, foi vago. Recusou-se a comentar sobre o mini pibinho previsto para este ano de 0,02%, embora “alguns economistas falem de crescimento negativo”. E arrematou: “Minha preocupação é com a vida das pessoas e com o desemprego criado por esses governadores irresponsáveis”.

Aviso de utilidade pública: Na próxima eleição presidencial, antes de digitar na urna o número do seu candidato, passe álcool gel nas mãos. E vote melhor.

Pensamento do Dia


O que diz o vento

Para o Brasil chegar afinal ao Primeiro Mundo, só falta vulcão. Uns abalozinhos já tem havido por aí, e cada vez mais frequentes. Agora passa por Itu esse vendaval, com tantas vítimas e tantos prejuízos a lastimar. Alguns jornais não tiveram dúvida: ciclone. Ou tornado, quem sabe. Deve ser coisa do El Niño, um fenômeno que vem pelo mar lá do Pacífico, bate nos Andes, provoca o degelo e uma sequela de cataclismos que passam pelo Brasil.

Não sei o que é pior, se furacão ou vulcão. Pior mesmo, porque conheço, é tremor de terra. Estava em Lisboa com o Vinicius de Moraes quando aconteceu o terremoto de 1968. Palavra que achei que era contra mim pessoalmente. Veio até com dois "tt". Assim: t-e-rremOtto. Quando estive no Japão com o Cláudio Mello e Souza fomos perseguidos por um tufão. Mas japonês dá jeito em tudo. O voo atrasou e voltamos a Tóquio numa boa.

Shelley que me desculpe, mas vento me dá nos nervos. Desarruma a gente por dentro. Mas em matéria de vento, poeta tem imunidades. Manuel Bandeira associou à canção do vento a canção da sua vida. O vento varria as luzes, as músicas, os aromas. E a sua vida ficava cada vez mais cheia de aromas, de estrelas, de cânticos. O contrário do ventinho ladrão. Sabe como é que se chama vento? Com três assobios. Ou soprando num búzio. Também funciona se você invocar São Lourenço, que é o dono do vento.

Fúria dos elementos, símbolo da instabilidade, o vento é ao mesmo tempo sopro de vida. Uma aragem acompanha sempre os anjos. E foi o vento que fez descer sobre os apóstolos as línguas de fogo do Espírito Santo. Destruidor e salvador, com o vento renasce a vida, diz a "Ode to the West Wind", de Shelley. No inverno só um poeta romântico entrevê o anúncio da primavera. Divindade para os gregos, o vento inquieta porque sacode a apatia e a estagnação.

Com esse poder de levar embora, suponhamos que uma lufada varresse o Brasil, como na canção do Manuel Bandeira. Que é que esse vento benfazejo devia levar embora? Todo mundo sabe o mundo de males que nos oprime nesta hora. Deviam ser varridos para sempre. Se vento leva e traz, se vento é mudança, não custa acreditar que, passada a tempestade, vem a bonança. E com ela, o sopro renovador – garante o poeta. A casa destelhada, a destruição já começou. Vem aí a reconstrução.

Brasil: os limites e perigos de um presidente polarizador

As imagens triunfantes do presidente Bolsonaro apertando as mãos de seus seguidores em frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, durante as manifestações de rua do dia 15, em meio ao clima de alarme global pelo coronavírus e em aberto desafio às recomendações médicas, foram divulgadas pelo próprio presidente através de seus canais nas mídias sociais. No entanto, sua atitude não teve o efeito que ele esperava. O feitiço virou contra o feiticeiro. Queria parecer forte e popular, mas em vez disso contribuiu para abrir uma profunda crise em seu já conturbado governo.

Naquela ocasião, o coronavírus já tinha afetado vários membros da equipe presidencial, e o próprio presidente também teve de passar pelo exame, que acabou dando resultado negativo. Mas sua situação pessoal não o impediu de insistir em que não se deveria “exagerar” nem “entrar numa neurose”. Tampouco deixou de justificar seu papel nas manifestações, afirmando que “de qualquer forma, muitas pessoas vão se contagiar”. Enquanto os líderes políticos de todo o mundo enfrentavam duras críticas sobre as respostas dadas à pandemia do coronavírus e tentavam recuperar o precioso tempo perdido, Bolsonaro se destacou por uma atitude negacionista da crise, compartilhada por poucos, como Andrés Manuel López Obrador no México, ironicamente oposto a ele no espectro ideológico.

As polêmicas declarações de Bolsonaro suscitaram críticas não só dos habituais opositores, mas também de um público mais amplo de observadores, tanto em nível nacional como internacional. Assim, as manifestações do dia 15 tiveram algumas consequências inesperadas para o presidente. Seus apoiadores começaram a mostrar fissuras que não exibiam desde que ele assumiu a Presidência, em janeiro de 2019. Tornaram-se visíveis tanto nas ruas e nas mídias sociais como na relação com o Congresso, âmbitos que no passado foram cruciais como gestores de mudança política no Brasil.

Os motivos que levaram às manifestações de 15 de março não estiveram relacionados originalmente com a crise do coronavírus. Realizadas em mais de 200 cidades do país, tiveram o propósito de apoiar o presidente em um contexto de conflito de poderes entre este e o Congresso sobre o controle de uma parte do orçamento executivo. O objetivo do protesto já tinha sido seriamente questionado por seu aspecto autoritário. Acusando o Congresso de obstruir sua agenda de Governo, o presidente avalizou o ataque frontal e explícito aos outros Poderes do Estado, o Legislativo e o Judiciário, provocando a reação crítica de representantes de todo o arco político. A partir do dia 15, somou-se ao seu discurso anti-institucional sua atitude de negação da gravidade da crise da pandemia. Essa atitude foi demais para o cidadão que enfrenta, com medo e incerteza, a pandemia do coronavírus.

De fato, as manifestações de domingo passado a seu favor foram seguidas por panelaços críticos ao Governo nas principais cidades de todo o país, acompanhados por projeções em edifícios. As ruas continuaram ocupadas, não com pessoas, mas com som e imagens. Em uma das imagens projetadas em um edifício na cidade de São Paulo, apareceu a frase “nosso problema é a Venezuela” sob a foto de Bolsonaro, uma referência irônica às críticas feitas por Bolsonaro às políticas do presidente Maduro contra a pandemia e à decisão de limitar a passagem pela fronteira com aquele país (mas não com outros países). Em outras, apareceu simplesmente a imagem do presidente e a hashtag “#ForaBolsonaro”. O isolamento social da pandemia não se traduziu em isolamento político, nem em apatia. Essas iniciativas se somaram e reforçaram as manifestações nas redes sociais da Internet, apagando a fronteira entre o ativismo presencial e o virtual.

Nas mídias sociais, arena dominada pelo bolsonarismo desde antes das eleições presidenciais de 2018, o 15 de março prometia ser outro dia de vitória virtual. A hashtag de apoio ao presidente, #BolsonaroDay, chegou a mais de um milhão de menções e foi um dos principais assuntos do dia. No entanto, diferentemente de outros momentos, a reação também foi forte. As hashtags #CoronaDay e #CoronaFest vincularam criticamente as ações do presidente com sua atitude descuidada em relação à pandemia. Nos dias seguintes, os dois grupos − anti e pró-Bolsonaro – subiram o tom. O bolsonarismo apostou na radicalização, convocando uma nova manifestação de rua para 31 de março, e embarcou na estratégia de culpar a China pelo vírus com a hashtag #VirusChines. A oposição, por sua vez, subiu a hashtag #ForaBolsonaros, utilizando o sobrenome no plural, para incluir tanto Jair Bolsonaro como seus três filhos, todos ativos na política (e nas mídias sociais).

Para entender como se chegou a esta situação no Brasil, é fundamental analisar também as relações do presidente com o Congresso Nacional, já que o confronto de poderes foi o detonador das manifestações do dia 15. Esse confronto é uma consequência previsível se o presidente evita o caminho da persuasão e do acordo. Bolsonaro conquistou a presidência como porta-voz de discursos anti-Brasília e antissistema, aos quais acrescentou sua agenda social de ultradireita, que por si só o afasta dos políticos do centro que dominam a arena parlamentar. No contexto de 2018, com a crise das lideranças e dos partidos tradicionais, Jair Bolsonaro se beneficiou eleitoralmente, na campanha para a presidência, ao se apresentar como um outsider da política brasileira (apesar de ter sido deputado durante três décadas). Mas ganhar a presidência não é o mesmo que governar, e o Brasil tem um sistema institucional de separação de poderes, com uma altíssima fragmentação partidária e múltiplos pontos de veto. Seus antecessores na presidência viabilizaram coalizões majoritárias de partidos no Congresso distribuindo cargos ministeriais entre os aliados políticos. Em vez disso, Bolsonaro optou por não construir uma maioria parlamentar e até abandonou seu partido, apesar de contar com uma representação partidária mínima no Congresso. Seu gabinete presidencial, composto por militares, técnicos e políticos de ideologia extrema, também não foi uma solução livre de conflitos.

O confronto do dia 15 contra o Congresso, personalizado nos ataques diretos ao presidente da Câmara dos Deputados, foi alvo de críticas até de antigos seguidores. A deputada Janaina Paschoal, por exemplo, referiu-se à aparição pública de Bolsonaro como “crime contra a saúde pública”, o que se somou ao fato de que a conclamação de manifestações contra as instituições democráticas já tinha sido considerada por muitos como “crime de responsabilidade”, em outras palavras, como causa suficiente para iniciar um processo de destituição do presidente. De fato, nos últimos dias alguns deputados apresentaram pedidos de impeachment contra o presidente, outro sinal de fissuras que se aprofundam. A presidência é uma instituição poderosa no Brasil, mas os casos não tão longínquos de presidentes (Dilma Rousseff e Fernando Collor de Mello) destituídos pelo Congresso recomendam cautela.

A estratégia de polarização e radicalização de Jair Bolsonaro foi, sem dúvida, bem-sucedida no contexto de crise de representação em que foi eleito em 2018. Bolsonaro conseguiu inspirar os milhões de cidadãos que votaram nele, vendo nele a oportunidade de fazer mudanças radicais na política brasileira. Em seu primeiro ano de mandato, manteve um estilo de governo marcado pelo confronto com seus inimigos políticos, sempre com base na comunicação direta com seus seguidores nas mídias sociais. No entanto, diante de uma crise de saúde de natureza global que coloca todos em risco, a abertura e a cooperação aparecem como elementos essenciais de liderança para enfrentá-la.

Com mais confronto e radicalização, desta vez o presidente pode ficar sozinho.
Marisa Von Bülow (German Institute of Global and Area Studies) / Mariana Llanos (Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília)

Discurso com maiúscula

Caros compatriotas, precisamos amanhã tirar lições do momento que atravessamos, questionar o modelo de desenvolvimento que nosso mundo escolheu há décadas e que mostra suas falhas à luz do dia, questionar as fraquezas de nossas democracias. O que revela esta pandemia é que a saúde gratuita sem condições de renda, de história pessoal ou profissão, e nosso Estado-de Bem-Estar social ("État-providence") não são custos ou encargos mas bens preciosos, vantagens indispensáveis quando o destino bate à porta. O que esta pandemia revela é que existem bens e serviços que devem ficar fora das leis do mercado. Delegar a outros nossa alimentação, nossa proteção, nossa capacidade de cuidar de nosso modelo de vida é uma loucura. Devemos retomar o controle, construir mais do que já fazemos, uma França, uma Europa soberana que controlem firmemente seu destino nas mãos. As próximas semanas e os próximos meses necessitarão de decisões de ruptura neste sentido. Eu as assumirei
Emmanuel Macron, presidente da França

A família Bolsonaro precisa aprender a respeitar o trabalho dos jornalistas

O maior erro da família Bolsonaro é julgar que as redes sociais já se tornaram mais importantes do que a imprensa tradicional, que estaria destinada à extinção. Diversas vezes o próprio Bolsonaro já fez afirmações nesse sentido aos jornalistas que aguardam suas performances diárias diante dos fanáticos que se aglomeram na portaria do Palácio da Alvorada.

“A profissão de vocês vai acabar”, diz o presidente da República, ao repetir antigas previsões que jamais se concretizaram, e são feitas sempre que surgem novidades na área da mídia, que desde seu surgimento com os arautos dos reis vem incorporando novas tecnologias, para que o serviço básico – a informação – seja cada vez acessível.

Depois que o alemão Johannes Gutenberg criou no Século XV a tipologia, invenção que possibilitaria o surgimento de jornais, revistas e livros, causando desemprego de copistas, a imprensa floresceu embelezada pelas fotografias, cuja técnica era desenvolvida simultaneamente em vários países, mas a primeira foto conhecida foi exibida em 1826 pelo francês Joseph Nicéphore Niépce.

Pouco depois, em 1844, o norte-americano Samuel Morse criou o telégrafo com fio e levou à informação à distância, inclusive com cabos submarinos, mudando os rumos da comunicação.

Em seguida, os irmãos franceses Auguste e Louis Lumiére criaram o cinema em 1895 e depois a foto colorida. Com a popularização do cinema mudo e falado, logo apareceu que dissesse que o teatro ia se acabar…

Simultaneamente, o italiano Guglielmo Marconi inventou a telegrafia sem fio e fez a informação cruzar o Canal da Mancha em 1899, e ninguém sabia que dali logo se derivaria o rádio, que até o advento do celular era o mais popular meio de comunicação.

Naquela época, com as rádios fornecendo informações de graça e em tempo real, disseram que a imprensa ia se exaurir, mas a profecia era uma bobagem.

Mais adiante, em 1918, o escocês John Logie Baird começou a transmitir imagens e surgiu o milagre da televisão, repetindo-se as velhas profecias de que o teatro iria se acabar…

E agora, no novo milênio, a internet traz a informação em tempo real, com textos, fotos, filmagens e tudo mais, e logo surgem as velhas visões apocalípticas de que desta vez a grande mídia não vai conseguir escapar.

Deslumbrada com o sucesso das redes sociais nas eleições, a família Bolsonaro embarcou nessa canoa furada e abriu uma guerra contra a imprensa, com apoio de milhões de fanáticos que também acreditam nessa bobajada.

Acontece que não mais que de repente, como diria Vinicius de Moraes, surgiu do nada a primeira pandemia deste milênio, assustando para valer a população mundial, que literalmente está se vendo pela famosa hora da morte.

E onde as pessoas foram buscar as informações sobre o coronavírus? Nas redes sociais? Ora, ora, isso “non ecziste”, diria padre Quevedo, enfrentando as bruxas da comunicação. As redes sociais são coisas de amadores. Nos momentos cruciais, é preciso consultar os profissionais, que mantêm na grande mídia o comando das informações concretas e confiáveis.

Pouca gente entende que a imprensa é como a medicina e sempre funcionará como uma espécie de “clínica geral” da sociedade, apontando seus males e tratamentos.

É sabido que não se deve falar mal dos médicos, porque a qualquer momento você pode precisar deles. Da mesma forma, é bom respeitar os jornalistas, porque a gente continua precisando desesperadamente deles.

Coronavírus e a crise com a China

Menos de 24 horas depois de o presidente Jair Bolsonaro comprometer-se com uma trégua política em nome da união contra o coronavírus, o deputado Eduardo Bolsonaro, seu filho, construiu uma crise diplomática com a China, acusando-a de negligenciar a pandemia.

O deputado Eduardo Bolsonaro fala pela casa real, ainda que na sua longa explicação, muitas horas depois da reclamação do embaixador chinês, tenha se amparado na liberdade de opinião parlamentar.

Até que se encontre explicação mais plausível, vigora a leitura de que buscou desviar para a China as críticas ao presidente Bolsonaro pelo desdém com que se comportou desde que a pandemia alcançou o Brasil. Só anteontem o presidente mudou a prosa.


O tom da reclamação chinesa, por meio de seu embaixador em Brasília, é incomum no contexto diplomático. E preocupou imediatamente os parceiros comerciais brasileiros, entre os quais se insere o agronegócio, que sustenta o PIB nacional e tem na China sua maior parceira comercial.

A dupla identidade que ora o faz diplomata, ora parlamentar – fez com que Eduardo Bolsonaro utilizasse a verdadeira para rebater a reclamação chinesa e receber a aprovação do chanceler Ernesto Araújo. A China, porém, não aceitou o truque.

Na noite de ontem, em nome do governo chinês, a embaixada em Brasília não reconheceu a manifestação do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e disse continuar esperando desculpas formais. Considera que Eduardo falou pelo governo.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, não perdeu tempo: muitas horas antes do governo brasileiro se manifestar, pediu desculpas ao governo chinês em nome do parlamento brasileiro. Maia respondeu porque Eduardo disse ter se manifestado como parlamentar.

Extrai-se do episódio que o governo continua politizando o coronavírus. Ao fazê-lo distancia-se daquilo que a população mais requer em momentos dramáticos como o da epidemia atual: quem demonstre cuidados com ela.

Os cuidados formais já começaram, mas aqueles que distinguem os líderes, o da palavra que conforta, da mensagem que transmite esperança, da demonstração de importância exclusiva à saúde de todos, está em falta.