quinta-feira, 20 de junho de 2024

A mentira é mais interessante

"O que é a verdade"? Perguntava Pilatos gracejando, talvez que não esperasse pela resposta. Há quem se delicie com a inconstância, e considere servidão o fixar-se numa crença; há quem se afeiçoe ao livre-arbítrio tanto no pensar como no agir. E se bem que as seitas de filósofos desta espécie hajam desaparecido, sobrevivem alguns representantes da mesma família, apesar de nas veias não lhes correr tanto sangue como nas dos antigos. Não é somente a dificuldade e a canseira que o homem experimenta ao perseguir a verdade, nem sequer o facto de, uma vez encontrada, se impor aos pensamentos humanos, o que leva a conceder às mentiras os maiores favores; é sim, um natural mas corrompido amor da própria mentira. Uma das últimas escolas dos Gregos examinou esta questão, mas deteve-se a pensar no que leva o homem a armar as mentiras, quando não o faz por prazer, como os poetas, ou por utilidade, como os mercadores, mas pelo próprio mentir.


Não sei como dizê-lo, mas a verdade é uma luz nua e crua que não mostra as máscaras, as cegadas e os cortejos do mundo com metade da altivez e da graciosidade com que aparecem iluminados pelos candelabros. A verdade pode, talvez, atingir o preço da pérola que mais brilha durante o dia, mas não alcança o preço do diamante ou do carbúnculo que tanto mais brilham quanto mais variadas forem as luzes. Com a mistura da mentira mais se acresce o prazer. Haverá alguém para duvidar que, tirando ao espírito humano as opiniões vãs, as esperanças lisonjeiras, as falsas valorações, as imaginações pessoais, etc., para a maior parte da gente tudo o mais não seria senão uma espécie de pobres coisas contraídas, cheias de melancolia e de indisposição, enfim, desagradáveis?
Francis Bacon, "Ensaios"

Dia do Refugiado

 


O adolescente Lenz conhece a crueldade

O pai agarrou nele e levou-o ao quarto de uma empregada, a mais nova e a mais bonita da casa.

- Agora vais fazê-la, aqui, à minha frente.

A criadita estava assustada, claro, mas o estranho é que parecia que ela estava assustada com ele, e não com o pai: era o facto de Lenz ser um adolescente que assustava a criadita e não a violência com que o pai a disponibilizava ao filho, sem qualquer pudor, sem sequer ter o cuidado de sair. O pai queria ver.

- Vais fazê-la à minha frente - repetia.

Estas palavras do pai marcaram Lenz durante anos. Vais fazê-la.

O acto de fornicar a criadita era reduzido ao mais simples: a um fazer. Vais fazê-la, era a expressão, como se a criadita ainda não estivesse feita, como se fosse ainda uma matéria informe, que esperasse o acto dele, Lenz, para ser acabada. Esta mulher ainda não está feita antes de tu a fazeres, pensou o adolescente Lenz, de uma forma clara, e os gestos seguintes foram os gestos de um trabalhador, de um empregado que obedece às indicações de um encarregado mais experiente, neste caso o seu pai: vais fazê-la.

- Despe as calças - foi a segunda frase do pai. - Despe as calças.

O adolescente Lenz despiu as calças. E todas as ordens que se seguiram foram dirigidas exclusivamente a si; ou seja: o pai não dirigiu uma única frase à criadita - ela sabia o que havia a fazer e fez o que tinha de fazer, máquina que não tem alternativa. Ao contrário do adolescente Lenz que, apesar de tudo, poderia dizer ao pai: não quero.

- Despe as calças - ordenou o pai.

Lenz é conduzido, depois, quase empurrado, pelo pai até à criadita, que está deitada e espera.

- Avança - disse o pai, com rudeza.

E o adolescente Lenz, determinado, avançou sobre a criadita.

Gonçalo M. Tavares, "Aprender a rezar na Era da Técnica"

O debate abortado

Em 2009, o arcebispo de Olinda e Recife excomungou os médicos que fizeram o aborto de uma menina de 9 anos (9!) que havia sido estuprada pelo padrasto. O arcebispo não só não excomungou o padrasto, como ainda fez questão de dizer que o aborto era um crime pior do que o estupro. Houve uma enxurrada de artigos horrorizados na imprensa, e eu, otimista que era, achei que alguma coisa poderia mudar no país.

“Minha esperança é que esse tiro funesto saia pela culatra”, escrevi. “A discussão sobre o aborto, que a Igreja insiste em abafar sempre que vem à tona, voltou reforçada. Já não era sem tempo. A criminalização do aborto é uma das maiores violências institucionais contra as mulheres, especialmente as menos favorecidas, que por vezes se veem vítimas de procedimentos tão primitivos quanto a mente do arcebispo de Olinda e Recife.”

Naquela época, a bancada evangélica tinha 63 deputados e três senadores. Parecia muito, e era mesmo, mas hoje são 202 deputados e 26 senadores. Lula e o PT estavam no segundo mandato, com altos índices de aprovação — e zero interesse na pauta.

Em 2014, ano eleitoral, o assunto voltou aos jornais: Jandira Magdalena dos Santos Cruz, de 27 anos, desapareceu depois de fazer um aborto clandestino. Seu corpo foi encontrado carbonizado, dias depois. Escrevi novamente.

“Não sei o que acho pior: uma candidata que é abertamente contra o aborto, uma candidata que não tem coragem de dizer que não é ou um candidato que se diz satisfeito com a nossa legislação obscurantista. As três posições se equivalem. Estamos em pleno ano de 2024, Constantinopla caiu em 1453 e, não obstante, continuamos gastando tempo e energia com essa discussão bizantina. Fazer ou não fazer aborto é questão de foro íntimo. Quem for contra aborto que não aborte, mas não queira impor as suas convicções ao resto da sociedade. Sabemos onde isso vai dar: aí está essa pobre moça, obrigada pela excelente legislação em vigor a procurar criminosos para se livrar da gravidez indesejada.”

Em 2016, eu ainda não tinha aprendido:

“A epidemia de zika e o aumento explosivo do número de casos de microcefalia puseram na ordem do dia o debate sobre a descriminalização do aborto. Da escuridão, às vezes, nasce a luz: tenho a impressão de que, em menos de um mês, foram publicados mais artigos e entrevistas sobre o assunto do que nos dez anos anteriores. Amaldiçoado com uma das classes políticas mais cínicas e calhordas do mundo, que foge de qualquer tema que possa desagradar aos religiosos, o Brasil está se devendo essa discussão há tempos — mas a simples menção da palavra ‘aborto’ basta para que os nossos legisladores, salvo raras e heroicas exceções, virem para o lado e façam cara de paisagem. Pouco importam, para eles, as vítimas da sua covardia. Quem sabe agora, diante do desastre e da gritaria, tomem vergonha e tenência.”

Que tonta, eu.

Mas me curei. Hoje nem acho mais que o problema esteja só em Brasília: parlamentar não surge do nada. O Congresso é apenas espelho da sociedade. Somos um país retrógrado, perverso e hipócrita, misógino do Oiapoque ao Chuí.

O Brasil é um desgosto que não passa nunca.
Cora Rónai 

Lugares de sonho ou de pesadelo

Quem não sonhou, um dia, com um lugar perfeito? Como a ilha dos Prazeres, perto da Toscânia, em que as crianças não precisam estudar nem lavar atrás das orelhas. Foi aonde levaram Pinóquio. Ou a ilha do Tesouro, na costa do México, onde, em 1754, o corsário inglês Flint enterrou uma arca com 700 mil libras. Ou a Terra do Nunca, onde os garotos, como Peter Pan, não crescem e não se tornam adultos. Pena que esses lugares só existam na fantasia de seus criadores, respectivamente Carlo Collodi, Robert Louis Stevenson e James M. Barrie. Aqui, no nosso quintal, os equivalentes seriam a Pasárgada de Manuel Bandeira, a Maracangalha de Dorival Caymmi ou a Platiplanto de José J. Veiga.

 


E há lugares imaginários que, paradoxalmente, existem, embora de difícil localização no mapa, por suas fronteiras difusas. O mais célebre deles foi detectado em 1974, pelo economista Edmar Bacha: o reino de Belíndia, um mix da Bélgica com a Índia, onde o lado indiano dava duro para o crescimento econômico, mas este só beneficiava o lado belga. Como, aliás, o PIB brasileiro durante a ditadura militar.

Na esteira de Bacha, Mario Henrique Simonsen detectou Banglabânia, misto de Bangladesh com Albânia, onde o já péssimo sempre podia piorar. Delfim Netto, por sua vez, descobriu a Ingana, mistura de Inglaterra com Gana, com seus impostos de país europeu e serviços públicos de Terceiro Mundo. E Bacha também localizou Rumala, uma combinação de Rússia com Guatemala —uma elite corrupta associada a uma alta taxa de criminalidade.

Há pouco, sob as trevas de Bolsonaro, Bacha descobriu também que o Brasil, com suas florestas em chamas e o garimpo ilegal nos territórios indígenas, estava sendo reduzido a um lugar chamado Brasa.

Os lugares imaginários costumam ser territórios do sonho. Mas estes são do pesadelo. O perigo é, ao acordar do pesadelo, descobrir que não estávamos dormindo.