quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Brasil em seu labirinto

 


As cousas do mundo

Neste mundo é mais rico o que mais rapa:
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
O velhaco maior sempre tem capa.

Mostra o patife da nobreza o mapa:
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

A flor baixa se inculca por tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa,
Mais isento se mostra o que mais chupa.

Para a tropa do trapo vazo a tripa
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.

Gregório de Mattos

Privilégios de classe e casta na educação

Educação não é privilégio é o título da obra mais importante do fundador do conceito de escola pública em tempo integral no Brasil, o baiano de Caetité Anísio Teixeira, que, não por homenagem vazia, mas por mérito incontestável, completa o nome do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Ou seja, a repartição pública que administra o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), no centro das atenções no momento. Aliás, Enem e Inep são os dois piores exemplos de como a teoria no nome é invertida: entre os privilégios de classe e de casta no País destaca-se o elitista vezo histórico, oposto à intenção benemérita do formulador dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), no Rio, e dos Centros Educacionais Unificados (Ceus), em São Paulo.

Não se trata de imposição da direita ou da esquerda, mas de uma tradição arraigada, que deforma todas as tentativas de corrigir seu rumo. Inspirada em Ruth Cardoso, mulher do então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, a pesquisadora de políticas públicas Ana Fonseca criou o programa de Renda Mínima na gestão do tucano José Roberto Magalhães Teixeira, o Grama, em Campinas. À época, o ex-reitor da Universidade de Brasília (UNB) Cristovam Buarque implantou no governo do Distrito Federal o programa Bolsa Escola. A denominação condicionava o desembolso de dinheiro público ao incentivo para lares pobres matricularem a prole. No primeiro governo Lula, do qual Buarque foi ministro da Educação, a ideia original alterou o enfoque educativo para assistencialista com o Bolsa Família, que manteve, mas não priorizou, a necessidade da matrícula para o recebimento do dinheiro. O desgoverno Bolsonaro deixou o programa social finar por inanição e promete substituí-lo por outro, assumido como apenas assistencialista, o tal Auxílio Brasil.

Essa inversão da prioridade educacional para a assistencial direciona, evidentemente, o objetivo social para o político, assumindo a mendicância militante. Seja à esquerda, seja à direita, como sequência natural dos antigos programas paternalistas das obras contra as secas e condicionando a emergência à compra indireta dos votos num populismo contra o povo, como o pratica o atual desgoverno. A história contemporânea produziu a adulteração da denominação dos planos de incentivo à educação básica em muletas sociais para a distância abissal entre as migalhas para a instrução pública inicial e o dispêndio insustentável no nível superior. O exemplo de Inep/enem é de uma clareza absoluta. Criado para avaliar e, em seguida, qualificar o ensino médio, que seria a prioridade evidente de qualquer gestor público bem intencionado, é usado como via de acesso para instituições superiores, substituindo o método tradicional do vestibular. A perenidade dos privilégios de classe e casta é óbvia, cega, muda e surda.

A pretexto de extinguir o inexistente risco da ditadura comunista, o golpe militar de 1964 paralisou as instituições democráticas por 20 anos, mas perdeu, por evidentes limitações intelectuais, a guerra pelo controle ideológico dos câmpus. Quando o regime ruiu sobre os próprios pés de barro, o domínio intelectual do marxismo-leninismo mostrou seu fascínio de corações e mentes e exibiu sua adesão ao elitismo dominante das origens de classe de seus devotos e prosélitos. O Inep deixou de honrar o nome do pedagogo que o batizara. E o Enem sobreviveu à invasão solitária do policial federal na elaboração secreta da prova. Como a intelligentsia socialista manteve as superstições de cátedras intactas após a invasão do câmpus da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo pelos meganhas comandados pelo coronel reformado do Exército Erasmo Dias, em 1977.

Marx, o papa do “socialismo científico”, não compareceu na prova a que o menor número de inscritos desde 2005 foi submetido. Mas seu arrimo de família e sócio minoritário, Friedrich Engels, manteve acesa a luta de classes num quesito esquisito retirado de sua insignificante obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Esse texto, obsoleto há 176 anos, desde a publicação, desmoraliza os autores da prova, que podiam ter tratado do desemprego do operariado brasileiro a olho nu na calçada de casa. E também os fracassados interventores Jair Bolsonaro, Milton Ribeiro e Danilo Dupas, vítimas da própria ignorância. Eles na certa conhecem Chico Buarque e Henfil, mas dificilmente terão lido Admirável Mundo Novo, do britânico Aldous Huxley, parodiado em canção pelo sertanejo Zé Ramalho, sucesso na trilha sonora de O Rei do Gado, telenovela de Benedito Ruy Barbosa. Dificilmente terão compreendido que o título da canção, que troca mundo por gado, ironiza a alcunha pejorativa de fanáticos bolsonaristas.

Neste momento em que crianças desmaiam de fome nas classes, desafiando sua exclusão da instrução pela desnutrição, a esquerda resistente e a direita demolidora associam-se na manutenção desumana do elitismo impiedoso que expulsa os pobres da escola e a pandemia do exame escolar. São cúmplices da inanição letal e da repartição da ignorância, único bem repartido na república dos desiguais.

O Bicentenário do blá-blá-blá

O capitão não quer que se trate o 31 de março de 1964 como golpe militar. Prefere falar em revolução. O senador Paulo Paim (PT-RS) quer colocar o nome do marinheiro João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria pelo seu papel na Revolta da Chibata, de 1910, mas os comandantes da Marinha objetam. Argumentam que nada justifica uma insurreição.

Os intolerantes de 2021 militam em conflitos do passado, expondo a má qualidade do debate em torno da bela História do Brasil. Até aí, tudo não passaria de um exercício de autoritarismo em torno da memória, mas vai-se aos fatos e se vê que, só na semana passada, a Secretaria de Cultura anunciou a criação de uma linha de crédito de R$ 600 milhões para as comemorações do Bicentenário da Independência. Desde julho, o cineasta Josias Teófilo vinha reclamando dessa inação. Afinal, sabia-se há 199 anos que, no dia 7 de setembro do ano que vem, o Brasil comemoraria seus dois séculos de existência.


Quem quiser chamar o 31 de março de 1964 de golpe, que chame. Quem quiser homenagear João Cândido, que o homenageie. A objeção dos comandantes da Marinha pode ser legítima, mas falta explicar por que se deu o nome do almirante Saldanha da Gama ao lindo navio-escola da Força. Saldanha insurgiu-se contra o governo de Floriano Peixoto, aderiu à Revolta Federalista do Rio Grande do Sul e foi degolado num combate, em 1895. Se os almirantes não tivessem se rebelado contra Floriano, talvez ele não tivesse convocado eleições. Se os marujos de João Cândido não tivessem se rebelado, a chibata não teria sido abolida em 1910.

O Brasil já viveu tempos de tolerância. Em 1860, quando Dom Pedro II viajava pelo Nordeste, os fofoqueiros do Paço contaram-lhe que o almirante Marques Lisboa, comandante do barco que o conduzia, descera na localidade de Tamandaré para visitar o túmulo de seu irmão que morrera combatendo o governo de Pedro I. Pior, queria transladar seus restos para o Rio. O imperador tratou do caso e decidiu dar-lhe o título de barão de Tamandaré. Vinte e nove anos depois, quando um golpe militar destronou e desterrou Dom Pedro II, o então marquês de Tamandaré, que ficara no Paço durante todo o dia 15 de novembro, ajudou a claudicante imperatriz a embarcar.

O que diferencia a intolerância de hoje das outras, passadas, é a laborfobia. O radical quer radicalizar, mas trabalhar que é bom, nada. O Bicentenário vem aí e, pelo que se vê, o governo nada fez. Em 1922, o presidente Epitácio Pessoa celebrou a data com muitas iniciativas, inclusive uma exposição internacional. Em 1972, o general Emílio Médici patrocinou uma patriotada com os restos de Dom Pedro I, mas tomou algumas iniciativas culturalmente relevantes. Agora, de Brasília, só vem silêncio.

Pena, porque o governador João Doria há tempo prepara a reinauguração, em grande estilo, do Museu do Ipiranga. Em setembro de 2022, em plena campanha eleitoral, Doria terá o que mostrar, e Brasília ficará chupando o dedo, repetindo que em 31 de março de 1964 houve uma revolução. Ela cassou o mandato de deputado do pai do governador, que havia batalhado na CPI com seu colega Rubens Paiva, que investigava a corrupção eleitoral do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, cujo guru deixou o Brasil e morreu muito tempo depois, nos Estados Unidos. Rubens Paiva foi assassinado no DOI do Rio de Janeiro.