quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A primeira coisa é entender o Trumpismo

Para entender o nosso presente, marcado pela onipresença do capitalismo de plataforma e avanços reacionários, 1979 é um ano essencial. Foi então que Margaret Thatcher venceu sua primeira eleição. Em 1979, também foi criada a primeira rede colaborativa de Internet. São dois fatos aparentemente não relacionados, mas extremamente úteis para abordar duas questões essenciais hoje, em meio ao advento do Trumpismo 2.0: diagnóstico e alternativas; reação e digitalização. Ou seja: a necessidade de caracterizar adequadamente nossos tempos e a tarefa igualmente necessária de imaginar alternativas.

Em 1979, o thatcherismo chegou ao poder, um marco eleitoral que abriu as portas para um mundo cujos vestígios agonizantes ainda habitamos. Em um ensaio publicado na época, intitulado O Grande Espetáculo da Direita , Stuart Hall abordou o estado de desorientação em que a esquerda britânica se encontrava diante da primeira tempestade neoliberal. Esse texto continha duas frases que, embora talvez óbvias, se colocam como guias estratégicos de enorme relevância: “se quisermos ser eficazes, isso só poderá ser feito com base numa análise rigorosa das coisas como elas são, não como gostaríamos que fossem”. Além disso, Hall observou, “devemos denunciar as satisfações obtidas pela aplicação de esquemas analíticos simplificadores a eventos complexos”. O fenômeno Thatcher foi além das coordenadas políticas até então vigentes: para enfrentá-lo, era necessário, antes de tudo, entender as razões mais profundas do seu sucesso.


Algo semelhante está acontecendo hoje com o trumpismo, a herança bastarda da Dama de Ferro. Durante seu surgimento, houve muitas análises focadas em notícias falsas e desinformação. Lutar contra Trump era, então, desmascarar a “pós-verdade” que ele trazia consigo . Pouco depois, analogias históricas comparando o movimento MAGA ao fascismo entre guerras começaram a ressurgir. Esses discursos retoricamente evocativos mostraram-se politicamente estéreis: os apelos ao combate ao fascismo não impediram o seu regresso; A proliferação da verificação de fatos e sua contrapartida — “os dados matam a narrativa”, gritavam em todos os lugares — dificilmente contribuíram para a resistência. Ninguém disse que seria fácil: em meados do século passado, Theodor Adorno já alertava para a natureza “intrinsecamente antiteórica” e ilusória da reação.

Agora, no início de um segundo governo Trump, o novo fetiche por análise está se mudando para o Vale do Silício. Hoje, entender os pontos fortes e as novidades do Trumpismo significa falar em “tecnocasta”, “broligarquia”, “tribunal tecnológico”. Não é uma mudança trivial, claro: a imagem dos grandes chefões da tecnologia na primeira fila da coroação de Trump constitui um salto qualitativo com consequências inegáveis. Agora, o desafio, como Hall estipulou, é focar em diagnósticos complexos que permitam estratégias eficazes, e nunca o contrário.

Na dimensão estritamente teórica, há muitas objeções à abordagem da tecnocasta e sua tese subjacente: a suposição de que já vivemos em uma realidade “tecno-feudal”, na qual grandes empresas de tecnologia, agindo como senhores feudais, acumulam poder e riqueza controlando informações e dados. Como Evgeny Morozov aponta, rotular essas corporações como rentistas ignora a dimensão produtiva e criativa de seus modelos de negócios. Além de simplista, essa visão nos concebe como “servos digitais”, desprovidos de agência ou capacidade de ação. Por outro lado, é essencial reconhecer o papel do Estado na ascensão dessas empresas: o iPhone ou o mecanismo de busca Google não existiriam sem o investimento estatal.

Mas não estou preocupado com a falta de rigor em si, com a auto referencialidade da teoria. Minha obsessão pelo diagnóstico, assim como a de Hall, é fundamental: entender bem Trump e seus acólitos não é um bem em si; é uma condição para a possibilidade de uma estratégia política que possa enfrentá-los. Se a abordagem das notícias falsas tivesse ajudado a diluir o fenômeno dos magnatas de Nova York, isso teria sido bem-vindo. Meu medo, então, é que encontremos subterfúgios estilísticos para ignorar o fato de que o trumpismo politiza e dá sentido a um mal-estar real. Ernst Bloch cunhou a ideia de “fraude de execução” para descrever o fascismo: era sua maneira de levar muito a sério os desejos e anseios que ele explorava, mesmo que não conseguisse fornecer uma solução. Não é muito diferente do que vemos hoje.

Na verdade, minhas dúvidas sobre a designação de “tecnocasta” são suspeitas sobre sua eficácia: concentrar o debate na figura de Elon Musk desativa a possibilidade de questionar o sistema que o gerou? Será que isso torna invisíveis outras características essenciais do novo trumpismo, como o retorno ao expansionismo territorial de outrora, a subordinação da Groenlândia, do Panamá, do Canadá e até de Gaza? Estamos diante de uma sucessão de falsas dicotomias? Acredito que essas são as perguntas que devemos nos fazer antes de confiar no discurso da “tecnocasta” como antídoto para Trump.

Também em 1979, a milhares de quilômetros de distância, dois estudantes da Duke University criaram a Usenet, a “Arpanet para os pobres”: uma estrutura descentralizada baseada em servidores distribuídos, que facilitava discussões temáticas abertas, promovia a livre troca de ideias, com acessibilidade e horizontalidade, sem algoritmos ou hierarquias empresariais. Este exemplo é relevante porque hoje, em meio à privatização e à captura oligárquica das redes sociais, carecemos de comunidades de software livre como a Usenet.

Assim, nosso contexto, além do necessário antagonismo com a oligarquia tecnológica, exige novas ideias, propostas e criatividade. Em um de seus últimos artigos, Marta Peirano destacou três palavras que deveríamos ouvir com mais frequência: infraestrutura pública digital. Promover uma arquitetura tecnológica à escala europeia permitiria colocar a inteligência artificial ao serviço do bem comum, melhorar os serviços públicos, garantir a transparência algorítmica e ter voz própria num quadro geopolítico turbulento. Também deveríamos falar mais sobre como tornar redes horizontais como Bluesky ou Mastodon, as melhores alternativas ao X, mais parecidas com a Usenet; para evitar a sua ensitificação —a sua deterioração gradual, a sua conquista pelos trolls— .

Essas conversas já estão acontecendo. Em uma entrevista recente, Sam Altman, criador do ChatGPT, afirmou que “toda a estrutura social estará aberta ao debate e à reconfiguração”, prescrevendo “mudanças no contrato social”. Altman está certo. Este é o cerne da questão: reconstruir o contrato social diante da transformação digital e climática. A questão é, naturalmente, que direção essa remodelação toma: se ela aprofunda o desmantelamento oligárquico da nossa vida em comum; ou se a expande para democratizar todas as esferas da vida cotidiana, incluindo as redes sociais.

1979 marcou o início do mundo contemporâneo, com suas luzes —a promessa emancipatória da Internet— e suas muitas sombras —o primeiro triunfo do neoliberalismo—; um mundo que, em 2025, testemunhará seus últimos e agonizantes sofrimentos. Tenho plena consciência de que este texto suscita mais perguntas do que respostas, numa época em que a certeza é um desejo coletivo; Entretanto, como Hall demonstrou, a dúvida é a chave que abre a porta para todo o resto. Nossa tarefa agora é resistir às tentações retóricas, fazer as perguntas certas, construir ferramentas políticas eficazes e delinear horizontes desejáveis de transformação.
'

Cabeças no Congresso

Tem se fortalecido a ideia de que política é comunicação sem necessidade de conteúdo. O governo federal mudou o encarregado de sua comunicação sem qualquer reflexão sobre a falta de propostas novas e de alianças amplas. Outro exemplo de mudar a imagem sem mudar a substância foi cobrir os parlamentares com bonés para mostrar que cada um deles tem cabeça. Não houve esforço para que o sentimento de que faltam cabeças no Congresso fosse mudado graças a debates de ideias sobre os graves problemas que o país enfrenta.


Daqui a um mês, estaremos completando quatro décadas de democracia, resultado das cabeças de centenas de parlamentares liderados por Ulysses Guimarães. Na época, não havia necessidade de usar bonés para passar o sentimento de que os parlamentares pensavam, articulavam, convergiam e mudavam o país. Graças àquelas cabeças no Congresso, o Brasil saiu pacificamente de 21 anos de ditadura, libertou os presos políticos, trouxe os exilados, acabou a censura, fez uma nova Constituição. Os atuais parlamentares precisam lembrar o que foi feito para transformar ditadura em democracia, e criar rede de proteção social com o SUS, o Bolsa-Escola/Bolsa Família/Auxílio Brasil/Bolsa Família, realizar dois impeachments, vencer o vício de inflação.

No lugar de bonés, as atuais cabeças que substituíram aquela geração precisam debater com o povo brasileiro quais foram as conquistas do país nestas quatro décadas e o que não fizemos neste período para construir um Brasil eficiente, justo, democrático, sustentável. Pensar no que ainda não fizemos e no que fazer nos próximos anos. Debater por que o Brasil continua preso à armadilha da renda média baixa, estagnada há décadas. Formular caminhos para aumentar nossa produtividade e colocar a renda per capita no padrão de países que nestes 40 anos nos ultrapassaram.

Enfrentar a guerra civil que conflagra nossas ruas, especialmente nas grandes metrópoles. Equacionar a questão militar para incorporar os militares no corpo das instituições democráticas, no lugar de deixá-los como um poder separado que faz tremer todos os oito presidentes civis. Parar a banalização da corrupção que a democracia aumentou, trazer ética à política e, com isso, dar credibilidade e respeito aos representantes eleitos. Quebrar a promiscuidade entre políticos, juízes, sindicalistas, empresários com seus interesses misturados.

Eliminar a vergonha de privilégios e vantagens que fazem a República democrática dar mais benefícios aos seus dirigentes do que o Império oferecia a sua nobreza. Abolir a apartação social que nos divide em condomínios e favelas, escolas senzala e escolas casa grande. Adotar uma estratégia de distribuição que nos tire a vergonha do título de campeões em concentração de renda. Entender o esgotamento do Estado e buscar formas de compor os setores público e estatal, o planejamento e o empreendedorismo, com responsabilidade fiscal.

Erradicar o analfabetismo que se mantém no mesmo nível de 1985, acima de 10 milhões de adultos, por causa do fracasso da democracia para promover a educação de nossas crianças com excelência e equidade. Formular estratégia para implantar sistema educacional com máxima qualidade e total equidade, independentemente da renda e do endereço da criança. Definir estratégias para a abolição da pobreza, determinando um prazo para que nossa população não mais dependa do assistencialismo por transferências de renda sob a forma de bolsas. Assegurar estabilidade jurídica, livrando o país do caos legislativo e judicial.

Em novembro, o Brasil vai sediar a COP30 em um momento crítico para a humanidade. As cabeças do Congresso precisam mostrar que, além de bonés por fora, usam o cérebro para retomar no Senado a Comissão do Futuro, manter a Comissão do Meio Ambiente ativa e concentrada na formulação de propostas do Brasil para o mundo. Pelos próximos nove meses, o parlamento deve estar presente no debate sobre sugestões e exemplos do Brasil para enfrentar os problemas mundiais. Debater o que devemos levar ao mundo para evitar as mudanças climáticas que ocorrem e serão agravadas. Tomar posição sobre a perda de credibilidade do Brasil no caso de decidirmos explorar petróleo na margem equatorial da Amazônia.

O Congresso precisa debater como, no atual cenário geopolítico-ecológico, devemos assumir a posição de pedaço do mundo com seus êxitos e fracassos e com uma democracia de parlamentares ativos. O Brasil precisa comemorar sua democracia fazendo-a avançar social e economicamente com sustentabilidade, sem ilusões marqueteiras.

Ultradireita 'pauta' debate político na Alemanha

O clima político na Alemanha anda tudo, menos ameno. O país enfrenta uma crise econômica, e a ascensão da ultradireita, representada no país pelo partido Alternativa para a Alemanha (AfD), assusta quem preza a democracia. A onze dias das eleições federais, manifestações com milhares de pessoas acontecem no país inteiro contra a extrema direita, mas também contra o candidato que ocupa com larga vantagem o primeiro lugar nas pesquisas, o conservador Friedrich Merz, da União Democrata Cristã (CDU), que tem cerca de 30% das intenções de voto.


O horror a Merz, que levou manifestantes a trocarem o já tradicional grito "todos odeiam a AfD" por "todos odeiam a CDU", aconteceu porque o parlamentar aceitou, no mês passado, o apoio da AfD para tentar aprovar um pesado pacote anti-imigração. E falhou. Isso causou escândalo no país, já que o chamado "cordão sanitário", um pacto que significa que os partidos do centro democrático não fazem qualquer tipo de acordo com a ultradireita, teria sido "quebrado" com esse ato do conservador.

Entre os críticos a Merz estava também seu principal adversário político no momento: o chanceler federal Olaf Scholz, cujo partido ocupa o terceiro lugar nas pesquisas, com entre 15% a 17% das intenções de voto. Ele, inclusive, agradeceu nas redes sociais aos manifestantes que foram para as ruas "defender nossos valores e a democracia".

Os dois nunca se deram bem e já trocaram acusações pesadas no parlamento alemão.

Foi nesse clima nada ameno que os candidatos se encontraram para um debate eleitoral considerado um duelo e transmitido ao vivo no horário nobre do domingo  pelos dois principais canais públicos de TV do país, a ARD e a ZDF. O debate tinha tudo para "pegar fogo". Mas, seguindo a tradição alemã, o clima foi ameno diante de tanta discordância. Quase chato, para quem gosta de debates eleitorais passionais.

Mas em tempos de tanto ódio político, chega a ser surpreendente ver que os dois, após o debate, ao invés de trocarem ofensas, se comportaram como políticos profissionais, se disseram satisfeitos com o debate "democrático" e afirmaram que as discordâncias "fazem parte". Os tempos estão tão malucos, que não deixa de ser um alívio ver dois candidatos falando coisas que você pode discordar (e eu discordo de várias) se comportando como o que são: adultos.

Não estou exagerando. É só lembrar do jeito como Donald Trump tratava Kamala Harris na campanha e de uma certa cidade (oi, São Paulo) onde um debate acabou com um candidato dando uma cadeirada em outro.

Scholz e Merz, apesar de educados e polidos, deixaram o debate descer de nível ao passarem parte do tempo falando sobre uma das pautas mais queridas da extrema direita global, as medidas anti-imigração, enquanto poderiam falar mais de questões urgentes para o país, como a economia.

Problemas na Alemanha não faltam no momento: o país atravessa uma crise com baixo crescimento da economia, enfrenta problemas com o preço da energia, há uma guerra no continente (entre Rússia e Ucrânia)…

Ou seja, assuntos urgentes não faltam, mas os dois, apesar da educação, acabaram sendo "pautados" pela ultradireita e passaram parte do debate falando sobre imigração, uma das principais bandeiras da AfD.

Para os extremistas de direita (e também para muitos outros cidadãos da Alemanha), tudo é culpa dos imigrantes. Faltam escolas? "Culpa dos refugiados". Existe violência? "Culpa dos refugiados". Não concordo com isso de jeito algum, e os números também não comprovam essas teses. Mas é espalhando essa histeria anti-imigração e a xenofobia que a extrema direita cresce.

Assim como acontece em muitos países, inclusive no Brasil, os partidos do centro democrático vão na onda. Em busca de eleitores e querendo responder a uma opinião pública contaminada pelas ideias anti-imigração (um vírus que atinge, inclusive, imigrantes, por mais estranho que isso pareça), os dois candidatos passaram parte do debate discutindo esse tema.

E, claro, assim como toda a terra, a Alemanha precisa discutir com seriedade medidas para tentar frear as mudanças climáticas. O assunto passou em branco, o que também pode ser visto como um "ganho" da AfD, formada por negacionistas climáticos. "É relevante para os eleitores, um tema vital para o futuro governo para a Alemanha. E eles não fazem uma única pergunta sobre o clima. É inacreditável", reclamou a ativista do movimento Fridays for Future, Luisa Neubauer no X. É mesmo.´