segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

As vítimas inocentes

Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio Oriente, é o horror pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas não foi sempre assim? Veja-se Auschwitz. A gente vai lá e fica estarrecido. Bento XVI foi lá também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Por que te calaste? Por que quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Por que se calou?”

Ele deixou uma encíclica sobre a esperança - Spe salvi -, e nela debruça-se sobre uma pergunta decisiva, “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer) : o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito ensurdecedor percorre a História.


E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História . “Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder, não pode ser obra de um Deus bom.” Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus.

Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a Justiça no mundo. Mas não será esta uma pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o Homem”. Tem, pois, razão Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua Justiça por si mesmo é um mundo sem esperança. Ninguém, nem nada responde pelo sofrimento dos séculos.”

Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, nomeadamente Max Horkheimer e Theodor Adorno, que viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por elas e então não era humana, porque insolidária.

Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”.

Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra”. E Adorno também escreveu que, frente às aporias da razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas como aparecem à luz da redenção”.

Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da História dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela Justiça universal.

Anselmo Borges

Os generais e o Estado de Direito

Há uma enorme diferença entre Estado de Direito (Rule of Law) e legalismo (rule by law). O Estado de Direito implica a ideia de que todos são iguais perante a lei e de que o poder público será limitado por ela. É o governo da lei, sendo a Constituição a lei fundamental. O legalismo refere-se à ideia de que os governos agem por meio de leis, decretos e portarias. O Estado de Direito diz respeito ao conteúdo das normas, e o legalismo está relacionado a sua forma.

Nem sempre as leis propostas pelos governantes estão de acordo com o Estado de Direito e a Constituição. Cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) avaliar os casos de conflito entre as leis propostas e a Carta.

Esses dois conceitos nos ajudam a entender a postura de alguns militares envolvidos na tentativa de golpe de Estado. A revelação das conversas dos conspiradores mostra que os generais Mário Fernandes, Estevam Theophilo e Freire Gomes tinham visões distintas sobre o tema.


Com o fim do regime militar, os militares passaram a cultivar a imagem de legalistas. Fazia sentido, pois o golpe de 1964 foi feito à revelia da lei. A declaração do general Mário Fernandes de que os conspiradores deviam agir fora das “quatro linhas” é elucidativa. Afinal, segundo ele, não foi preciso nenhuma lei para derrubar o governo João Goulart. Fernandes claramente não é um legalista.

A postura do general Theophilo revela outra posição. Segundo as conversas relevadas pela Polícia Federal, ele disse que executaria as ações para Garantia da Lei e da Ordem e executaria o Estado de Sítio, desde que Jair Bolsonaro assinasse um decreto. Se a norma tivesse sido assinada, ele teria desencadeado o golpe. Seria um golpe legalista.

Finalmente, a posição de Freire Gomes mostrou que alguns generais entenderam a diferença entre Rule of Law e rule by law. Mesmo que tivesse formato legal, a minuta era claramente inconstitucional. Caberia, portanto, ao STF analisar a constitucionalidade da medida.

Jogar dentro das “quatro linhas”, como repetia exaustivamente Bolsonaro, não quer dizer agir de acordo com o Estado de Direito. Não basta que o formato pareça legal. É necessário que o conteúdo da norma seja constitucional. A Constituição tem muito mais que quatro linhas. E essas linhas são interpretadas pelo Poder Judiciário.

Embora distintas, as posições de Fernandes e Theophilo revelam a relutância de alguns militares em aceitar os princípios do Estado de Direito, que pressupõe a submissão da espada à toga. Cabe ao Judiciário, e não às Forças Armadas, decidir a legalidade das normas. É preciso que todos os militares entendam isso. Não precisamos de militares legalistas. Precisamos de militares submetidos à força da lei, ao poder da toga e ao controle civil.

O golpe para abolir a democracia e o silêncio cúmplice da direita

Conta a lenda que um escafandrista, nos anos 1970, vestido com sua pesada roupa de mergulho, entrou no bar e restaurante Antonio’s, reduto da boemia carioca, no Leblon, sentou-se a uma mesa de canto, tirou a máscara e pediu um chope.

As outras 12 mesas estavam ocupadas, a algazarra era grande, mas todos fingiram não ver o escafandrista. Depois de algum tempo, o jornalista João Saldanha, irritado com a indiferença coletiva diante do que acontecia, subiu numa cadeira e falou em voz alta:

– Pessoal, tem um homem aqui, um escafandrista, com capacete e tudo, tomando cerveja, e isso não é normal, não pode ser normal.



Ninguém deu bola para o que disse Saldanha, nem mesmo o pacato escafandrista que, depois de tomar três cervejas e servir-se de petiscos, pediu a conta, pagou, repôs o capacete de metal que escondia todo o seu rosto e foi embora se arrastando.

A normalização do absurdo não é coisa dos cariocas da Zona Sul nem de zona alguma – é dos brasileiros em muitas partes. Antigamente, podíamos dizer que ela mostrava o quanto éramos um povo tolerante, acolhedor e capaz de conviver em relativa paz.

Hoje, não mais. E desconfio que amanhã será muito menos. Tudo fruto da normalização do absurdo na política que avançou a galope nos últimos seis anos, despertando nossos instintos mais rudes e primitivos. Não há sinais de que isso irá arrefecer tão cedo.

Bolsonaro e seus comparsas são os maiores responsáveis, mas não só; também os que os apoiaram com entusiasmo e principalmente os que assistiram em silêncio a escalada da adoção de medidas extremas para abolir nosso modo de vida.


Não podia ser normal um presidente que acusou fraude no pleito que o elegeu com grande folga de votos. Não podia ser normal um presidente que, indiferente ao sofrimento coletivo, sabotou todos os meios de enfrentar a maior pandemia deste início de século

Não se pode dizer apenas conservadora e ainda por cima civilizada uma direita que finge desconhecer a gravidade do conteúdo explosivo do relatório da Polícia Federal sobre os golpes abortados de dezembro de 2022 e de 8 de janeiro de 2023.

O que disseram até aqui as vozes mais representativas e ouvidas dessa direita? O ex-presidente Michel Temer (MDB) limitou-se a dizer que não vê riscos para a democracia e que não há clima para golpe. Houve riscos e houve clima? Ele não comenta.

Quanto à participação de militares no plano de matar Lula, Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes, Temer a minimizou, dizendo que somente uns poucos se envolveram. Os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado nada disseram.

Os presidentes dos maiores partidos da direita (MDB, União Brasil, PP, PSD, Republicanos, PR), tampouco. Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo, sugeriu que a investigação da Polícia Federal “carece de provas”, mas saiu em defesa de Bolsonaro.

Tarcísio é o nome mais cotado da direita que se diz democrática para disputar a eleição presidencial daqui a dois anos. Ronaldo Caiado, governador de Goiás, que já se lançou candidato, disse sobre o indiciamento de Bolsonaro:

– E daí? A vida continua. Se eu fosse ficar preocupado com as pequenas coisas, eu não governaria.

Não é uma pequena coisa o indiciamento de um ex-presidente pelos crimes de golpe de Estado, abolição violenta da democracia, roubo de joias e organização criminosa. O Brasil nunca viu nada sequer parecido. Bolsonaro deverá ser condenado e preso.

O governador Cláudio Castro, do Rio, disse não acreditar em tentativa de golpe, mas sim “em baderna”. O governador Ratinho Jr., do Paraná, afirmou que indiciamento “não é sinônimo de condenação”. De fato não é, mas ninguém disse que era.

Calado estava, calado (não Caiado) permanece Romeu Zema, governador de Minas Gerais. O único nome de peso da direita a condenar o golpe foi Eduardo Leite, do Rio Grande do Sul. Essa é a gente que se oferece para suceder Lula e fazer melhor do que ele?

Os chefes militares não disseram uma só palavra para reafirmar seu compromisso com a democracia. Mesmo os que se opuseram ao golpe e os que ficaram em sua “zona de conforto”, nada viram de suspeito nos acampamentos de golpistas à porta de quarteis.

Se viram, foram cúmplices com o que por um triz não deu certo.