terça-feira, 21 de maio de 2024

Pensamento do Dia

 


Palestinos detidos sob tortura em hospitais de srael

Médicos e funcionários de hospitais em Israel disseram à BBC que presos palestinos de Gaza estão sendo mantidos algemados a camas de hospital, vendados, por vezes nus, e forçados a usar fraldas — prática que um médico classificou como tortura.

Um delator detalhou como os procedimentos em um hospital militar são "rotineiramente" realizados sem analgésicos, provocando "uma dor inaceitável" aos detidos.

Outro delator disse que analgésicos foram usados "seletivamente" e "de forma muito limitada" durante um procedimento médico invasivo em um detido de Gaza em um hospital público.

Ele também disse que pacientes gravemente doentes mantidos em instalações militares improvisadas não estavam recebendo tratamento adequado devido à relutância dos hospitais públicos em recebê-los e tratá-los.

Um palestino preso, que foi retirado de Gaza para interrogatório pelo exército israelense e posteriormente libertado, disse à BBC que a sua perna teve de ser amputada porque lhe foi negado tratamento para uma ferida que infeccionou.

Um médico que trabalha no hospital militar de onde partiram as denúncias negou que tenha havido amputações devido às condições ali existentes, mas descreveu o uso de algemas e outras restrições usadas pelos guardas como "desumanas".

O exército israelense disse que os presos nas instalações foram tratados "de forma adequada e cuidadosa".

Os dois delatores com quem a BBC conversou estavam em posição de poder avaliar o tratamento médico dado aos detidos. Ambos pediram para permanecer anônimos.

Seus relatos são apoiados por um relatório publicado em fevereiro pela organização Médicos pelos Direitos Humanos em Israel, que afirmava que as prisões civis e militares de Israel haviam se tornado "um aparato de retribuição e vingança" e que os direitos humanos dos detidos estavam sendo violados — em particular os seus direitos à saúde.

As denúncias sobre o tratamento de presos doentes e feridos estão partindo de um hospital militar de campanha, na base militar de Sde Teiman, no sul de Israel.

O hospital de campanha foi criado pelo Ministério da Saúde de Israel após os ataques do Hamas, especificamente para tratar os detidos de Gaza, depois de alguns hospitais públicos e funcionários terem expressado relutância em tratar os combatentes capturados no dia dos ataques do Hamas.

Desde então, as forças israelenses prenderam um grande número de pessoas de Gaza e as levaram para bases como Sde Teiman para interrogatório. Os suspeitos de lutar pelo Hamas são enviados para centros de detenção israelenses; muitos outros são libertados sem acusação e retornam para Gaza.

O exército não publica detalhes dos detidos que mantém.


Os pacientes do hospital Sde Teiman são mantidos vendados e permanentemente algemados com mãos e pés às suas camas, de acordo com vários médicos responsáveis pelo tratamento dos pacientes no hospital.

Os pacientes também são obrigados a usar fraldas, em vez de usar o banheiro.

O exército de Israel disse em resposta que o algemamento de detidos no hospital Sde Teiman era "examinado individual e diariamente, e realizado nos casos em que o risco de segurança assim o exigisse".

O exército afirmou que as fraldas eram usadas "apenas por detidos que foram submetidos a procedimentos médicos para os quais os seus movimentos são limitados".

Mas testemunhas, incluindo o principal anestesista do centro, Yoel Donchin, afirmam que tanto o uso de fraldas como de algemas são universais na enfermaria do hospital.

"O exército cuida do paciente para ele ser 100% dependente, como um bebê", disse ele. “Você fica algemado, fica de fralda, precisa de ajuda para água, precisa de tudo – é desumano”.

Donchin disse que não houve avaliação individual da necessidade de restrições e que mesmo os pacientes que não conseguiam andar – por exemplo, aqueles com amputações de pernas – foram algemados à cama. Ele disse que essa prática é "estúpida".

Duas testemunhas presentes nas instalações, nas primeiras semanas da guerra em Gaza, disseram à BBC que os pacientes eram mantidos nus debaixo dos cobertores.

Um médico com conhecimento das condições do local disse que ficar algemado por períodos prolongados nas camas causaria "sofrimento enorme e horrível", e classificou o ato como "tortura". Ele disse que os pacientes começariam a sentir dor depois de algumas horas.

Outros falaram do risco de danos nos nervos a longo prazo.

Imagens de detidos de Gaza libertados após interrogatório mostram ferimentos e cicatrizes nos pulsos e nas pernas.

No mês passado, o jornal israelense Haaretz publicou acusações feitas por um médico de Sde Teiman de que teriam sido realizadas amputações de pernas em dois prisioneiros devido a lesões das algemas.

As acusações foram feitas, segundo o jornal, em uma carta privada enviada pelo médico aos ministros do governo e ao procurador-geral, na qual tais amputações foram descritas como "infelizmente um acontecimento rotineiro".

A BBC não conseguiu verificar esta alegação de forma independente.

Donchin disse que as amputações não foram resultado direto do uso de algemas e envolveram outros fatores — como infecção, diabetes ou problemas nos vasos sanguíneos.

As diretrizes médicas de Israel estipulam que nenhum paciente deve ser contido, a menos que haja uma razão de segurança específica para isso, e que deve ser utilizado o nível mínimo de contenção.

O chefe do Conselho de Ética Médica do país, Yossi Walfisch, após uma visita ao local, disse que todos os pacientes têm o direito de serem tratados sem serem algemados, mas que a segurança do pessoal prevalece sobre outras considerações éticas.

"Os terroristas recebem tratamento médico adequado", disse ele em uma carta publicada, "com o objetivo de manter as restrições ao mínimo e ao mesmo tempo manter a segurança do pessoal responsável pelo tratamento".

Muitos habitantes de Gaza detidos pelo exército de Israel são libertados sem acusação após interrogatório.

Donchin disse que as reclamações da equipe médica do hospital militar Sde Teiman provocaram mudanças, incluindo o uso de algemas mais frouxas. Ele disse que insistiu que os guardas removessem as restrições antes de qualquer procedimento cirúrgico.

"Não é agradável trabalhar lá", disse ele. "Eu sei que é contra o código de ética tratar alguém algemado na cama. Mas qual é a alternativa? É melhor deixá-los morrer? Eu acho que não."

Relatos sugerem que as atitudes do pessoal médico em relação aos detidos variam muito, tanto nos hospitais militares como nos civis.

Um delator que trabalhou no hospital de campanha Sde Teiman em outubro, pouco depois dos ataques do Hamas a Israel, descreveu casos de pacientes que receberam quantidades inadequadas de analgésicos, incluindo anestésicos.

Ele disse que uma vez um médico recusou seu pedido para que um paciente idoso recebesse analgésicos enquanto eles estavam abrindo uma ferida recente de uma amputação que infeccionou.

"[O paciente] começou a tremer de dor, então eu parei e disse 'não podemos continuar, você precisa dar algum analgésico a ele'”, disse o delator.

O médico respondeu que era tarde demais para isso.

A testemunha disse que tais procedimentos eram "realizados rotineiramente sem analgésico", provocando “uma quantidade inaceitável de dor”.

Em outra ocasião, um suposto combatente do Hamas pediu ao delator que intercedesse junto da equipe cirúrgica para aumentar os níveis de morfina e anestésico durante repetidas cirurgias.

A mensagem foi repassada, mas o suspeito recuperou a consciência durante a operação seguinte e sentiu muitas dores. A testemunha disse que tanto ele como outros colegas sentiram que parecia um ato deliberado de vingança.

O exército afirmou, em resposta a estas acusações, que a violência contra os detentos é "absolutamente proibida" e que informa regularmente as suas forças sobre a conduta exigida. Quaisquer detalhes concretos de violência ou humilhação seriam examinados, afirmou.

Um segundo delator disse que a situação em Sde Teiman é apenas parte do problema, que se estende aos hospitais públicos. A BBC chama esse delator de "Yoni" para proteger sua identidade.

Nos dias que se seguiram aos ataques de 7 de outubro, disse Yoni, os hospitais no sul de Israel enfrentaram o desafio de tratar tanto os combatentes feridos como as vítimas feridas, muitas vezes nos mesmos serviços de emergência.

Homens armados do Hamas tinham acabado de atacar comunidades israelenses ao longo da fronteira com Gaza, matando cerca de 1,2 mil pessoas e sequestrando cerca de 250 outras.

"O clima era extremamente emocional", disse Yoni. "Os hospitais ficaram completamente sobrecarregados, tanto psicologicamente quanto em termos de capacidade."

"Houve casos em que ouvi funcionários discutirem se os detidos de Gaza deveriam receber analgésicos. Ou formas de realizar determinados procedimentos que pudessem transformar o tratamento em punição."

Conversas como essa não eram incomuns, disse ele, mesmo que os casos reais parecessem muito raros.

"Tenho conhecimento de um caso em que analgésicos foram usados seletivamente, de forma muito limitada, durante um procedimento", disse ele à BBC.

"O paciente não recebeu nenhuma explicação sobre o que estava acontecendo. Então, se você pensar que alguém está passando por um procedimento invasivo, que envolve até incisões, e não sabe disso, e está vendado, então a linha entre o tratamento e a agressão fica mais tênue.”

Pedimos ao Ministério da Saúde que respondesse a estas alegações, mas eles nos encaminharam para as Forças de Defesa de Israel.

Yoni também disse que o hospital de campanha de Sde Teiman não estava equipado para tratar pacientes gravemente feridos, mas que alguns dos detidos nos primeiros meses da guerra tinham ferimentos recentes de bala no peito e no abdômen.

Ele disse que pelo menos um homem gravemente doente foi mantido lá devido à relutância dos hospitais públicos em aceitar a sua transferência para tratamento, acrescentando que os médicos da base estavam "frustrados" com a situação.

Sufian Abu Salah, um motorista de táxi de 43 anos de Khan Youis, foi um das dezenas de homens detidos durante ataques do exército israelense e levados a uma base militar para interrogatório.

Ele disse que os soldados o espancaram durante a viagem e também na chegada à base, onde lhe foi negado tratamento devido a um pequeno ferimento no pé, que depois infeccionou.

"Minha perna infeccionou e ficou azul e macia como uma esponja", disse ele à BBC.

Depois de uma semana, disse ele, os guardas o levaram ao hospital, espancando-o na perna machucada no trajeto. Duas operações para limpar seu ferimento não funcionaram, disse ele à BBC.

"Depois me levaram para um hospital público, onde o médico me deu duas opções: minha perna ou minha vida."

Ele escolheu sua vida. Depois de lhe amputarem a perna, ele foi enviado de volta à base militar e mais tarde libertado para voltar a Gaza.

"Este período foi uma tortura mental e física", disse ele. "Não consigo descrever. Fui detido com duas pernas e agora só tenho uma. De vez em quando, choro."

As FDI (forças de defesa israelenses) não responderam às alegações específicas sobre o tratamento de Sufian, mas disseram que as acusações de violência contra ele durante a sua prisão ou detenção eram "desconhecidas e serão examinadas".

Nos dias que se seguiram ao ataque de 7 de outubro, o Ministério da Saúde de Israel emitiu uma diretiva segundo a qual todos os detidos de Gaza deveriam ser tratados em hospitais militares ou prisionais, tendo o hospital de campanha Sde Teiman sido criado especificamente para desempenhar esta função.

A decisão ganhou o apoio de muitos membros do sistema médico de Israel. Yossi Walfisch elogiou a decisão como a solução para "um dilema ético", que retiraria a responsabilidade pelo tratamento de "terroristas do Hamas" do sistema de saúde pública.

Outros pediram o fechamento de Sde Teiman, descrevendo a situação como "um ponto baixo sem precedentes para a profissão médica e para a ética médica".

"Meu medo é que o que estamos fazendo em Sde Teiman não permita voltar a ser como era antes", disse um médico à BBC. "Porque as coisas que antes nos pareciam irracionais, parecerão razoáveis quando esta crise acabar."

Yoel Donchin, o anestesista, disse que a equipe médica do hospital de campanha às vezes se reunia para chorar por causa situação ali.

"No momento em que nosso hospital fechar", disse ele, "vamos comemorar".

O dilúvio às vésperas das eleições

Na quarta semana de dilúvio no Rio Grande do Sul, que deixou 461 dos 497 municípios gaúchos debaixo d’água, um mar de lama e montanhas de entulhos tomam conta das cidades gaúchas onde as águas já baixaram. Não se sabe ainda quanto será o custo total nem o tempo necessário para reconstrução do estado. Enquanto as águas do Guaíba, acima da cota de inundação, descem muito lentamente, a Lagoa dos Patos ainda sobe e ameaça cidades vizinhas, entre as quais, Pelotas.

A imagem faz todo sentido. O Dilúvio é o nome do evento bíblico (Gênesis 7 e 8), que começou no ano de 2516 a.C. e continuou por 12 meses lunares e 10 dias, ou exatamente um ano solar. Segundo a Bíblia, foi um castigo divino provocado pela corrupção e pela violência, na nona geração de Adão. Deus, então, decidiu purificar a Terra. Havia apenas uma família fiel a Deus, a de Noé, “um homem justo e íntegro”.

Ao comando divino, Noé fez uma arca de 133 metros de comprimento, 23 de largura e 14 de altura. Deus ordenaria a Noé que entrasse na arca, levando com ele sua esposa e três filhos, com suas respectivas esposas, e os animais que pudesse. A chuva começa no 17º dia do segundo mês; quando para, as águas predominam, 15 metros acima, por meses. A arca só repousa em uma das montanhas de Ararate, 150 dias depois do início do Dilúvio. O solo só fica seco no primeiro dia do novo ano (Gênesis 8:13).

Segundo a narrativa bíblica, o Dilúvio foi universal e eliminou todos os homens, exceto Noé e sua família, que foram preservados na arca; ou seja, seríamos seus descendentes. Toda religião busca uma explicação para os fenômenos que fogem à constatação empírica. Desde os tempos mais primitivos, os seres humanos têm necessidade de explicar fenômenos naturais como chuva, vento, eclipses etc. Buscam respostas metafísicas, ou seja, além daquilo que se consegue ver e tocar.

O drama do Rio Grande do Sul tem dimensões bíblicas, porém as explicações são científicas. A subjetividade não está nos fenômenos climáticos, que já estavam sendo previstos, mas na política e no comportamento em relação à natureza. As chuvas agora se estendem a Santa Catarina, com oito municípios, onde a tragédia se repete, em estado de emergência: Passo de Torres, Sombrio, São João do Sul, Balneário Gaivota, Jacinto Machado, Maracajá, Araranguá, Rio do Sul.

Nunca o Sul do país viveu tamanha tragédia. Mais chuvas estão previstas. A economia gaúcha entrou em colapso, com lavouras destruídas e indústrias paralisadas, com perda de grande parte dos equipamentos; o comércio foi igualmente arrasado, com a destruição de grande estoque de mercadorias. Em muitos lugares, é impossível reconstruir moradias e/ou imprudente voltar às que restaram.


Nunca se viu tamanha destruição simultânea, embora tragédias provocadas por deslizamentos e enchentes, além de incúria e intervenções humanas desastrosas, sejam frequentes. Em todas as regiões, eventos climáticos e ocupação inadequada de várzeas e encostas registram ocorrências que devem servir de alerta para os governantes e a sociedade. Com o aquecimento global, todo o clima mudou, os oceanos subiram, as chuvas e as secas serão mais severas.

No caso do Rio Grande do Sul, há evidência de que os gaúchos não têm os recursos materiais, econômicos e físicos para enfrentar o problema, embora lhes sobrem energia e vontade política. O governador Eduardo Leite (PSDB) propõe adiar as eleições municipais para não perder o foco na reconstrução. Não é uma ideia sem sentido, embora favoreça prefeitos que não seriam reeleitos e prejudiquem os candidatos mais competitivos. O debate eleitoral passa necessariamente pela reconstrução do estado. Cabe à Justiça Eleitoral decidir o que fazer diante da realidade.

Quando as águas baixarem, uma eternidade bíblica para 540 mil desabrigados, será a vez de União, estado e municípios, que se desdobraram no socorro aos flagelados e abastecimento da população (água, comida e roupas secas), se organizarem para um planejamento racional, que leve em conta a experiência vivida por todos, as limitações dos recursos disponíveis e a necessidade de repensar o modo de reconstruir as cidades.

Cerca de 28% do investimento produtivo anual do Rio Grande do Sul (construção residencial, máquinas e equipamentos e infraestrutura), estimado em R$ 28,6 bilhões, foram perdidos. Quase metade (48%) das escolas estaduais foram destruídas ou estavam inundadas. Muitos hospitais e postos de saúde foram inutilizados. Mais de 90 trechos em 51 rodovias estaduais foram bloqueados. O principal aeroporto do país, o Salgado Filho, em Porto Alegre, dificilmente entrará em operação novamente antes de setembro.

Estima-se que a arrecadação do governo gaúcho cairá R$ 14 bilhões. Não há dinheiro suficiente para voltar à vida normal a curto prazo, mesmo com toda a ajuda da União. Os gaúchos passam mesmo por uma tragédia diluviana.

Dá-lhes sermão!

Não são só ladrões, diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que vão se banhar para lhes colher a roupa; os ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis encomendam os exércitos, ou o governo das províncias, ou a administração das cidades, os quais, já com manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam cidades e reinos; os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor nem perigo; os outros, se furtam, são enforcados; estes furtam e enforcam.
Pe. Antonio Vieira, Sermão do Bom Ladrão

No fundo, poucos se importam com a mudança climática

"Estudos alertaram, mas o governo também vive outras agendas", respondeu Eduardo Leite quando indagado sobre a falta de investimentos para o combate de enchentes no Rio Grande do Sul, cuja necessidade já era apontada por estudos. A sinceridade brutal que ele mostrou ali cobra seu preço, mas seria verdadeira em diversos estados brasileiros. Estamos mal adaptados à mudança climática.

No discurso, ela é prioridade para variados lados do espectro ideológico. A real divisão atual entre liberais e a esquerda é se o Estado, ao incorporar essa agenda ambiental, tem que fazer escolhas e priorizar o que é mais importante ou se pode simplesmente gastar mais sem nenhum limite a cada nova necessidade que se apresenta. Mas isso é uma discussão teórica.


Na prática a coisa é bem diferente. A insuficiência de investimentos é geral. Bahia e Minas em 2021 e 2022, Pernambuco em 2023, Rio Grande do Sul em 2024. Isso vale tanto para investimentos que mitiguem o impacto de eventos climáticos extremos quanto para tecnologias que deixem de contribuir com (ou até revertam) os processos destrutivos que tornam esses eventos cada vez mais frequentes.

Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa e com passagem pelo governo federal, narrou, em sua conta no X, como o Programa Brasil 2040 —que previu o aumento de chuvas no Sul e propunha adaptações às mudanças climáticas no governo Dilma— foi simplesmente cortado em 2015, entre outros motivos por apontar a burrice de projetos como Belo Monte. Parece que pouca coisa mudou. O novo PAC do governo Lula destina 1,5% do seu R$ 1 trilhão à prevenção de desastres.

A agenda ambiental mais ampla também parece alheia às grandes discussões de política econômica, que passam pelo estímulo à compra de automóvel e pelo subsídio da Petrobras ao preço da gasolina. A boa notícia é que temos, depois de longa sabotagem (do governo Dilma até Bolsonaro) um Ministério do Meio Ambiente comprometido com a redução do desmatamento na Amazônia. Se o resto do governo não cooperar, contudo, será insuficiente.

A real cara da emergência climática não são os eventos apocalípticos de Hollywood que destroem o mundo inteiro de uma vez. É a frequência cada vez maior de enchentes que alagam cidades, secas que destroem plantações, incêndios florestais que se prolongam, desertificação de solos, picos de calor e frio que prejudicam a saúde etc. A vida humana não será extinta, mas ficará gradualmente mais cara, mais precária e mais brutal, especialmente para quem vive na base da pirâmide social e não tem como se proteger.

É quase inacreditável que esse tema não tenha mais centralidade no Brasil. Temos em nosso território 60% da selva amazônica, a maior biodiversidade do mundo, o maior volume de água doce do mundo. Nosso agro depende diretamente do clima e do regime de chuvas que essas condições propiciam. Nossa matriz elétrica é relativamente limpa, e só de manter as florestas de pé já ajudamos o esforço global.

O Brasil, sozinho, não tem como combater as mudanças climáticas. Por isso deveria tomar o protagonismo no tema e deixar de se perder em ruídos sobre guerras com as quais não estamos envolvidos (e nas quais temos ficado do lado errado). Se o mundo pagar o que deve pelo esforço brasileiro de preservar nossa Amazônia, poderemos inclusive investir mais na adaptação para desastres futuros.

Enquanto isso, aqui dentro, liberais, desenvolvimentistas, esquerdistas, direitistas, deveriam todos se unir em torno de um novo consenso de que a agenda ambiental é não só uma prioridade global como uma oportunidade para o Brasil.

Hora de relaxar

Sons de Carrilhões - Yamandu Costa 

A Mata Atlântica, o desastre no Sul e as velhinhas suíças

Ao menos 70% da população brasileira vive na Mata Atlântica. Metade da comida que se come no Brasil é produzida no bioma. Um quarto do rebanho bovino do país está ali. Um quarto da produção de soja brasileira, também. A Mata Atlântica permite a produção de brócolis, couve, tomate, bananas, além de commodities como café e açúcar. Uma grande parte do PIB do agro está na região. É ali que o país vai alcançar o desmatamento zero primeiro -porque é o bioma que os brasileiros mais destruíram, onde os serviços ecossistêmicos mais fazem falta, onde as tragédias ambientais estão acontecendo com maior intensidade e onde a restauração só trará ganhos.


“A Mata Atlântica é importante para a agricultura, para ter energia elétrica na tomada, para ter água na torneira”, diz o engenheiro agrônomo Luís Fernando Guedes Pinto. “A natureza é importante em muitas dimensões”, continua o diretor-executivo da Fundação SOS Mata Atlântica.

O Brasil tem tudo isso: um bioma que já preencheu boa parte da costa brasileira, é um “hotspot” de biodiversidade (uma região prioritária para a conservação global), onde estão as unidades de conservação mais visitadas do Brasil - o Parque da Tijuca e Foz de Iguaçu. E o que se faz com tal tesouro? Desmata-se a um ritmo de 200 campos de futebol por dia.

Sobrou pouco da floresta vista pelos portugueses quando chegaram aqui. A Fundação SOS Mata Atlântica, que divulga o dado anual de desmatamento do bioma, sugere que o divulgado hoje parece uma boa notícia, mas não é muito. O Atlas da Mata Atlântica, feito pela entidade com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, mostra que o desmatamento no bioma caiu de 20.075 hectares para 14.697 hectares (redução de 27%) em 2023. Mas com outra lente, a do SAD Mata Atlântica - que também enxerga florestas em regeneração -, o desmatamento saltou de 74.556 para 81.356 hectares. Isso acontece na transição com Cerrado e Caatinga e na Bahia, Piauí e Mato Grosso do Sul. A perda ocorre onde há expansão agrícola. É um paradoxo, para não chamar de imbecilidade.

“A Mata Atlântica é o bioma da biodiversidade. Mas temos que juntar as coisas: a crise da biodiversidade ameaça a humanidade tanto quanto a crise do clima”, alerta. “Elas se somam e se retroalimentam. Qual o efeito de uma epidemia de dengue e de uma covid, que vêm da crise da biodiversidade? São tão devastadoras quanto a crise do clima”. Continua: “Crise do clima e da biodiversidade são as maiores ameaças à humanidade. E para a economia. Os negócios dependem de serviços ecossistêmicos que vêm da natureza”.

É preciso um olhar integrado para todos os biomas, defende ele, no que se refere a zerar o desmatamento e priorizar a restauração -ou as crises do clima e da biodiversidade continuarão a se intensificar.

O Rio Grande do Sul é metade Mata Atlântica e metade Pampa. É um Estado que, ao longo de sua história, desmatou muito a Mata Atlântica que tinha. Sobrou 9%, abaixo da média nacional de 12%. “É um processo cumulativo e, no caso da Mata Atlântica, um processo de 500 anos”, diz o engenheiro florestal. “O desmatamento da Mata Atlântica no Estado explica o evento climático extremo? Claro que não. O evento vem de um processo global, resultado da mudança climática que é proveniente de uma série de fatores, da queima global de combustíveis fósseis, do desmatamento global. Não é o Rio Grande do Sul que é responsável por aquela chuva, evidentemente”. Mas, ele segue, se tivéssemos mais natureza, os efeitos da chuvas teriam sido, provavelmente, menos intensos. “Se tivéssemos mais florestas protegendo nascentes, nas cabeceiras, nas beiras dos rios, os efeitos poderiam ser minimizados. A resiliência seria maior, nos recuperaríamos, provavelmente, mais rápido.”

O Rio Grande do Sul tem uma oportunidade que surge do drama: reconstruir a natureza e as cidades seguindo um planejamento ambiental, que sejam mais saudáveis, mais resilientes. “Cidades com áreas verdes que diminuam enchentes, que sejam mais saudáveis, que diminuam o risco, que coloquem a questão ambiental de maneira central, reconhecendo a crise do clima”, diz Guedes Pinto.

Há um mês, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos deu ganho de causa a um grupo de 2.000 senhoras com média de idade de 73 anos contra o governo suíço. As “Seniors for Climate” reclamavam que o governo suíço tem políticas climáticas fracas e que não as protege das ondas de calor mais frequentes e intensas. A corte reconheceu o direito fundamental por um clima saudável, em decisão histórica.

Há poucos dias, a Sociedade Brasileira de Pediatria publicou uma nota em que faz um alerta sobre os efeitos devastadores da mudança do clima na saúde de crianças e adolescentes. “A saúde das crianças é extremamente vulnerável às mudanças do clima e aos eventos extremos, principalmente aquelas que vivem em condição de pobreza, em habitações precárias em áreas de risco para inundações e deslizamentos”, diz a carta.

Velhos e jovens, crianças e adultos, ninguém se salva na crise do clima provocada pela queima de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) e desmatamento. É questão de tempo para que as petroleiras sejam acusadas de causar um mal global e não investir, como dizem, na transição energética. Nem ajudar (com cifras à altura das tragédias), como deveriam, a reconstruir o que sobrou.

Malditos os bem-afortunados

Há quem trate bem os mais afortunados e mal os menos afortunados. Explicam-se dizendo que estão apenas a ser interesseiros: os primeiros podem melhorar-lhe a vida, mas os outros, não.

E há quem não ligue a isso de ser mais ou menos afortunado e trate toda a gente da mesma maneira – o que, além de recomendável, é garantia de canonização.

Outros fazem questão de tratar mal tanto os mais afortunados como os menos afortunados.

E depois há a maioria – Deus queira que seja a maioria –, que trata melhor os menos afortunados e um bocadinho pior os mais. São praticantes da compensação: “Ah, tiveste azar na vida? Então, vou tratar-te um bocadinho melhor.”

Seja como for, há nestes comportamentos duas considerações. A primeira é que a sorte e o azar existem mesmo. A pessoa que nasceu rica, bonita, inteligente, saudável, bondosa e bem humorada teve muita sorte: uma sorte que não fez nada por merecer.


Existe, por isso, uma escala, muito concreta e irrefutável, de sortes e azares.

O pior é que essa escala é relativa: há sempre muita gente menos afortunada do que a menos afortunada que conhecemos.

Isto é, se tratarmos mal as pessoas com mais sorte do que nós, temos de estar dispostos a ser maltratados pelas pessoas que acham que tivemos mais sorte do que elas.

Faz-me lembrar um velho conselho do mundo do teatro: trata bem as pessoas que fores encontrando enquanto vais subindo na profissão, porque vais reencontrá-las todas quando começares a descer.

Não se fala disto porque fica mal recomendar que se trate bem os mais afortunados. A reacção natural, compensadora, equilibrante, é “os mais afortunados que se lixem!”.

Mas se a sorte e o azar são absolutamente uma questão de sorte e azar, faz tanto sentido tratar mal quem teve sorte, como tratar bem quem teve azar.

O melhor será aceitar o totoloto da vida e dizer, não só quando se vê um mendigo, mas também quando se vê um bilionário: “Aquele que ali vai, não fosse a graça de Deus, sou eu.

A “multipolaridade” – uma disputa violenta e indefinida

É muito comum ouvir políticos e analistas internacionais afirmarem que o sistema internacional está transitando de uma “ordem mundial unipolar e globalizada” para uma nova “ordem mundial multipolar e desglobalizada”.

Mas esta equação aparentemente simples esconde uma enorme complexidade, porque a palavra “transição” sugere linearidade, direção e conhecimento do lugar de onde se está partindo e do lugar para onde se está indo, e hoje não está claro nem o ponto em que se encontra a transformação do sistema mundial, nem muito menos o que viria a ser uma nova ordem mundial multipolar.

Com relação ao ponto de partida dessa “transição”, o que se pode dizer é que estamos assistindo a um processo de implosão, fragmentação e decomposição de uma ordem estabelecida, e esse processo está se dando de forma desordenada e conflitiva. O mundo não está no fim de uma guerra com ganhadores claros; pelo contrário, está no meio de duas guerras, sem perspectiva de acabar, envolvendo múltiplos atores, em pleno combate, e sem nenhuma disposição de negociar a paz.

Em termos muito amplos, pode-se dizer que, de um lado, se encontram várias potências regionais em “ascensão”, e de outro, o bloco das “potências ocidentais” que resistem a dar passagem a essas novas potências regionais ou globais, e não se dispõem a abrir mão da supremacia mundial que conquistaram e exerceram nos últimos 300 anos, pelo menos. Esse enfrentamento está se dando de forma cada vez mais direta e violenta, sem regras ou grandes preocupações com a ética internacional, e sem respeito às “regras” da “economia de mercado”, através da guerra, ou através da manipulação política da moeda, das finanças e da concorrência econômica.

Não estamos vivendo um momento de vitória e submissão, nem de negociação e acordo entre países que competem entre si e que se dispõem a negociar uma nova ordenação hierárquica do poder mundial. Pelo contrário, o mundo está em plena conflagração e nenhum país ou conjunto de países tem hoje capacidade de impor sua vontade sobre o resto do mundo, e não existe o menor consenso sobre eventuais caminhos de negociação, por mais que os líderes das grandes potências mundiais falem da necessidade de uma nova ordem mundial.


O que existe de fato é guerra, militarização, decomposição econômica e crise social, e uma perda generalizada das referências éticas construídas pelo Ocidente nos últimos séculos. Sobretudo depois que os Estados Unidos e seus aliados europeus caíram prisioneiros da armadilha que eles mesmos montaram na Palestina, sendo obrigados a armar e sustentar o Estado de Israel, mesmo sabendo do genocídio que está sendo praticado contra o povo palestino na Faixa de Gaza. Uma armadilha que vem corroendo a ideia da “excepcionalidade moral” do Ocidente, e erodindo os fundamentos éticos de sua hegemonia cultural dentro do sistema internacional.

No entanto, com relação ao “ponto de chegada” dessa “transição”, não existe o menor consenso nem a menor ideia do que seja ou do que poderá vir a ser exatamente uma nova “ordem mundial multipolar”. O único que sabemos do ponto de vista puramente formal é que uma ordem multipolar não deverá ser igual à uma ordem “bipolar” como a que vigorou durante a Guerra Fria, entre 1945 e 1991; nem deverá ser igual à ordem “unipolar”, que vigorou depois do fim da União Soviética, e da vitória norte americana na Guerra do Golfo, em 1991/92.

Mas não dá para ir muito além desta especulação formal sem conhecer o resultado das guerras que estão em curso, e sem poder definir quais serão os membros do “clube das grandes potências” dessa nova ordem multipolar. Ninguém duvida de que este clube incluirá, pelo menos, EUA, China, Rússia, Índia e, talvez, uma União Europeia modificada, militarizada e recentralizada a partir da Alemanha. Ainda assim, não se sabe se haverá hierarquia e qual será, entre esses países? Se haverá alguma hegemonia interna, ou se todos aceitariam uma configuração horizontal entre poderes considerados equivalentes e equipotentes?

É bem possível que esta nova ordenação mundial fosse “mais democrática” do que a ordem unipolar que está sendo destruída, mas não há garantia de que não se transforme rapidamente numa “ordem oligopólica”, monopolizada por um grupo de no máximo seis ou sete grandes potências. Assim mesmo, não é impossível imaginar que pudesse haver também um pacto ou entente entre os Estados Unidos e a China, as duas maiores potências do grupo, desde que elas conseguissem administrar suas divergências e competição à morte, no campo tecnológico.

Neste caso, o mundo poderia estar se aproximando da hipótese clássica de Karl Kautsky sobre a possibilidade de um “superimperialismo”, como aconteceu com os deuses pacificados por Júpiter após serem reincluídos no Olimpo. De qualquer maneira, mesmo no plano puramente hipotético, é muito pouco provável que isto pudesse acontecer, considerando o grau e a intensidade da competição atual entre as duas superpotências.

Tudo isto são especulações, obviamente, porque é impossível prever o que acontecerá. Mas uma coisa é absolutamente certa: é impossível que o mundo transite de forma pacífica e harmoniosa na direção desta multipolaridade. Pelo contrário, o que se vê pela frente é uma disputa sem fronteiras e sem limites de nenhum tipo entre potências em ascensão e um grupo de outras potências que dominaram o mundo nos últimos três séculos e que não querem abrir mão de seu poder mundial.

Neste quadro, não há a menor possibilidade que ocorra algo do tipo que algumas teorias chamam de “transição hegemônica”, com substituição regular e periódica de uma potência líder por outra que assumiria o comando econômico e militar do mundo, em lugar de sua predecessora. A China não tem pretensão nem deve assumir um lugar igual ao que é ocupado hoje pelos Estados Unidos dentro do sistema mundial. A Rússia e a Índia não têm esta pretensão, nem dispõem dos recursos para exercer a função de “polícia militar” do mundo. Mas com certeza, nenhum desses países, e vários outros, como Irã, Turquia, Indonésia, Brasil e África do Sul, não estão dispostos a seguir aceitando o arbítrio das antigas potências ocidentais.

Balanço feito, o certo é que não há o menor espaço e disposição de negociação entre as grandes potências, muito pelo contrário. Por outro lado, não há o menor espaço para uma “guerra mundial” que não venha a ser atômica, e por isso o mais provável é que ela siga sendo transferida ou protelada. O mundo está mudando numa velocidade muito grande, e a ordem mundial do pós-Guerra Fria chegou ao fim. Mas o “Ocidente” deve resistir, e tem poder para tanto; e seja como for, permanecerá dentro do sistema mundial como um dos seus polos mais poderosos do ponto de vista econômico, tecnológico e militar.

Nesta hora, olhando para o futuro, o que o se consegue ver, para além dos conflitos imediatos, é um mundo atravessando um período muito longo de turbulência, instabilidade e imprevisibilidade, com uma sucessão de conflitos e guerras locais. E se for isto que se está chamando de “transição para a multipolaridade”, então é melhor “apertar os cintos”, porque a trepidação vai ser intensa, e deve se prolongar por muitos anos ou décadas.

De qualquer maneira, durante este tempo de trepidação, que pode se prolongar até a segunda metade do século XXI, a defesa da multipolaridade será cada vez mais a bandeira dos países e dos povos que se insurgem neste momento contra o imperium militar global exercido pelo Ocidente, durante os últimos 300 anos da história da Humanidade, mesmo que não saibam exatamente, neste momento, o que virá a ser esta ordem multipolar do futuro.

Eleitor é cúmplice das mentiras

O que veio primeiro: o político mentiroso ou o eleitor que inventa mentiras? Melhor seria perguntar: por que deixamos de acreditar na verdade?

Não é correto dizer que Bolsonaro, na extrema direita, tampouco Lula, na esquerda, sejam os primeiros a se valer de inverdades como instrumento político. No Brasil, o recurso à traquinagem tem tradição, régua e compasso.

Não indo muito longe, podemos ficar na eleição de Artur Bernardes no problemático 1922. Ano do centenário da Independência, da Semana de Arte Moderna e da revolta dos 18 do Forte de Copacabana, quando alguns tenentes quiseram derrubar o governo à bala (a coisa vem de longe). No meio da campanha, surgiram várias cartas creditadas a Bernardes, recheadas de ataques ao marechal Hermes da Fonseca, chamado de “sargentão sem compostura”. Eram apócrifas, inventadas pelos partidários de Nilo Peçanha, que seria derrotado nas urnas. Mesmo desmascaradas, as mentiras serviram para azedar a relação de Bernardes, obrigado a governar sob estado de sítio, com os militares.

(Vale lembrar que também Bernardes era um tipo desarrazoado. Entre outras bobajadas, mandou prender o grande Sinhô, autor da marchinha carnavalesca “Fala baixo”, cujos versos denunciavam a censura do governo e a maldosa alcunha do presidente: “Vem cá, Rolinha, vem cá”. Não se sabe o motivo, mas Bernardes não gostava de ser chamado de rolinha.)


É possível que os políticos tenham começado a mentir porque nem sempre os eleitores gostassem da verdade dita na cara. Um exemplo eu presenciei. Em 1985, no debate pela prefeitura de São Paulo, o jornalista Boris Casoy perguntou a Fernando Henrique Cardoso se ele acreditava em Deus. O candidato se enrolou na resposta, não disse nem sim nem não. Os eleitores não gostaram da disfarçada sinceridade e não elegeram um notório ateu, preferindo Jânio Quadros. No mesmo debate — num exemplo de como a política mudou —, fizeram um quiz com Eduardo Suplicy, candidato do PT: quanto custa um pãozinho francês? Ele mandou lá um valor bem alto. Comentaram: “Isso é preço de croissant, Eduardo!”.

A maioria dos eleitores parece não gostar da verdade, mesmo porque ela não tem muito valor no cotidiano brasileiro. O filósofo Tim Maia resumiu a peleja e alma da nossa gente:

— Eu não bebo, eu não cheiro, mas minto um pouco às vezes.

Aí chegamos a outra equação, assim resumida: o político mente para agradar ao público ou o eleitor não dá voto a quem se mostra cru e sincero? Difícil questão, porque em muitos momentos sabemos que estamos sendo enganados.

Vamos mais perto na História. Na eleição de 2022, Lula da Silva se apoiou numa aliança da centro-direita à esquerda para derrotar Bolsonaro. Disse que faria um governo de reconstrução e harmonia. Tá bom. Tebet e outros tantos brasileiros sabiam que daquele mato não sairia nada. De fato, só saiu nota oficial da Janja. A razão do faz de conta — expulsar Bolsonaro do poder — parecia ser um atenuante tolerável para engolir a mentira eleitoral. Então o jogo político se resume a estratégia e, portanto, o blefe é recurso válido. Ou a mentira, em alguns casos. Como quando se elogia Nicolás Maduro por representar uma invejável democracia sul-americana. (O improviso de Lula provavelmente envergonhou até a Gleisi.)

Parte do eleitorado petista sabe que a Venezuela vive sob um regime autoritário e sanguinário, assim como os comunistas brasileiros tinham informações dos crimes cometidos por Stálin. Em nome da causa, se escondem os fatos, e são criadas inverdades. Quantas mortes teriam sido evitadas se a esquerda mundial houvesse protestado contra Stálin? Milhões, por certo. Ou quantos venezuelanos deixariam de ser presos políticos se Lula ousasse dizer o que o mundo denuncia? Milhares, com certeza.

Talvez seja o caso de o eleitor se olhar no espelho e saber que sua postura legitima a mentira do governante. No caso, talvez o político seja mesmo apenas um servidor público, aquele que cumpre ordens. Um pau-mandado? Não dá para dizer que é um pobre de um coitado agindo contra seus princípios, dando a vida por uma causa perdida e violentando-se em nome do bem comum — bem, isso já seria demais. Mas, pensando melhor, não se pode esquecer que a maioria dos bolsonaristas desmente que o 8 de Janeiro tenha sido uma malsucedida tentativa de golpe.

Se no Brasil até o passado é incerto, como se diz por aí, é porque o país do futuro talvez seja de fato outra mentira.