terça-feira, 21 de maio de 2024

Palestinos detidos sob tortura em hospitais de srael

Médicos e funcionários de hospitais em Israel disseram à BBC que presos palestinos de Gaza estão sendo mantidos algemados a camas de hospital, vendados, por vezes nus, e forçados a usar fraldas — prática que um médico classificou como tortura.

Um delator detalhou como os procedimentos em um hospital militar são "rotineiramente" realizados sem analgésicos, provocando "uma dor inaceitável" aos detidos.

Outro delator disse que analgésicos foram usados "seletivamente" e "de forma muito limitada" durante um procedimento médico invasivo em um detido de Gaza em um hospital público.

Ele também disse que pacientes gravemente doentes mantidos em instalações militares improvisadas não estavam recebendo tratamento adequado devido à relutância dos hospitais públicos em recebê-los e tratá-los.

Um palestino preso, que foi retirado de Gaza para interrogatório pelo exército israelense e posteriormente libertado, disse à BBC que a sua perna teve de ser amputada porque lhe foi negado tratamento para uma ferida que infeccionou.

Um médico que trabalha no hospital militar de onde partiram as denúncias negou que tenha havido amputações devido às condições ali existentes, mas descreveu o uso de algemas e outras restrições usadas pelos guardas como "desumanas".

O exército israelense disse que os presos nas instalações foram tratados "de forma adequada e cuidadosa".

Os dois delatores com quem a BBC conversou estavam em posição de poder avaliar o tratamento médico dado aos detidos. Ambos pediram para permanecer anônimos.

Seus relatos são apoiados por um relatório publicado em fevereiro pela organização Médicos pelos Direitos Humanos em Israel, que afirmava que as prisões civis e militares de Israel haviam se tornado "um aparato de retribuição e vingança" e que os direitos humanos dos detidos estavam sendo violados — em particular os seus direitos à saúde.

As denúncias sobre o tratamento de presos doentes e feridos estão partindo de um hospital militar de campanha, na base militar de Sde Teiman, no sul de Israel.

O hospital de campanha foi criado pelo Ministério da Saúde de Israel após os ataques do Hamas, especificamente para tratar os detidos de Gaza, depois de alguns hospitais públicos e funcionários terem expressado relutância em tratar os combatentes capturados no dia dos ataques do Hamas.

Desde então, as forças israelenses prenderam um grande número de pessoas de Gaza e as levaram para bases como Sde Teiman para interrogatório. Os suspeitos de lutar pelo Hamas são enviados para centros de detenção israelenses; muitos outros são libertados sem acusação e retornam para Gaza.

O exército não publica detalhes dos detidos que mantém.


Os pacientes do hospital Sde Teiman são mantidos vendados e permanentemente algemados com mãos e pés às suas camas, de acordo com vários médicos responsáveis pelo tratamento dos pacientes no hospital.

Os pacientes também são obrigados a usar fraldas, em vez de usar o banheiro.

O exército de Israel disse em resposta que o algemamento de detidos no hospital Sde Teiman era "examinado individual e diariamente, e realizado nos casos em que o risco de segurança assim o exigisse".

O exército afirmou que as fraldas eram usadas "apenas por detidos que foram submetidos a procedimentos médicos para os quais os seus movimentos são limitados".

Mas testemunhas, incluindo o principal anestesista do centro, Yoel Donchin, afirmam que tanto o uso de fraldas como de algemas são universais na enfermaria do hospital.

"O exército cuida do paciente para ele ser 100% dependente, como um bebê", disse ele. “Você fica algemado, fica de fralda, precisa de ajuda para água, precisa de tudo – é desumano”.

Donchin disse que não houve avaliação individual da necessidade de restrições e que mesmo os pacientes que não conseguiam andar – por exemplo, aqueles com amputações de pernas – foram algemados à cama. Ele disse que essa prática é "estúpida".

Duas testemunhas presentes nas instalações, nas primeiras semanas da guerra em Gaza, disseram à BBC que os pacientes eram mantidos nus debaixo dos cobertores.

Um médico com conhecimento das condições do local disse que ficar algemado por períodos prolongados nas camas causaria "sofrimento enorme e horrível", e classificou o ato como "tortura". Ele disse que os pacientes começariam a sentir dor depois de algumas horas.

Outros falaram do risco de danos nos nervos a longo prazo.

Imagens de detidos de Gaza libertados após interrogatório mostram ferimentos e cicatrizes nos pulsos e nas pernas.

No mês passado, o jornal israelense Haaretz publicou acusações feitas por um médico de Sde Teiman de que teriam sido realizadas amputações de pernas em dois prisioneiros devido a lesões das algemas.

As acusações foram feitas, segundo o jornal, em uma carta privada enviada pelo médico aos ministros do governo e ao procurador-geral, na qual tais amputações foram descritas como "infelizmente um acontecimento rotineiro".

A BBC não conseguiu verificar esta alegação de forma independente.

Donchin disse que as amputações não foram resultado direto do uso de algemas e envolveram outros fatores — como infecção, diabetes ou problemas nos vasos sanguíneos.

As diretrizes médicas de Israel estipulam que nenhum paciente deve ser contido, a menos que haja uma razão de segurança específica para isso, e que deve ser utilizado o nível mínimo de contenção.

O chefe do Conselho de Ética Médica do país, Yossi Walfisch, após uma visita ao local, disse que todos os pacientes têm o direito de serem tratados sem serem algemados, mas que a segurança do pessoal prevalece sobre outras considerações éticas.

"Os terroristas recebem tratamento médico adequado", disse ele em uma carta publicada, "com o objetivo de manter as restrições ao mínimo e ao mesmo tempo manter a segurança do pessoal responsável pelo tratamento".

Muitos habitantes de Gaza detidos pelo exército de Israel são libertados sem acusação após interrogatório.

Donchin disse que as reclamações da equipe médica do hospital militar Sde Teiman provocaram mudanças, incluindo o uso de algemas mais frouxas. Ele disse que insistiu que os guardas removessem as restrições antes de qualquer procedimento cirúrgico.

"Não é agradável trabalhar lá", disse ele. "Eu sei que é contra o código de ética tratar alguém algemado na cama. Mas qual é a alternativa? É melhor deixá-los morrer? Eu acho que não."

Relatos sugerem que as atitudes do pessoal médico em relação aos detidos variam muito, tanto nos hospitais militares como nos civis.

Um delator que trabalhou no hospital de campanha Sde Teiman em outubro, pouco depois dos ataques do Hamas a Israel, descreveu casos de pacientes que receberam quantidades inadequadas de analgésicos, incluindo anestésicos.

Ele disse que uma vez um médico recusou seu pedido para que um paciente idoso recebesse analgésicos enquanto eles estavam abrindo uma ferida recente de uma amputação que infeccionou.

"[O paciente] começou a tremer de dor, então eu parei e disse 'não podemos continuar, você precisa dar algum analgésico a ele'”, disse o delator.

O médico respondeu que era tarde demais para isso.

A testemunha disse que tais procedimentos eram "realizados rotineiramente sem analgésico", provocando “uma quantidade inaceitável de dor”.

Em outra ocasião, um suposto combatente do Hamas pediu ao delator que intercedesse junto da equipe cirúrgica para aumentar os níveis de morfina e anestésico durante repetidas cirurgias.

A mensagem foi repassada, mas o suspeito recuperou a consciência durante a operação seguinte e sentiu muitas dores. A testemunha disse que tanto ele como outros colegas sentiram que parecia um ato deliberado de vingança.

O exército afirmou, em resposta a estas acusações, que a violência contra os detentos é "absolutamente proibida" e que informa regularmente as suas forças sobre a conduta exigida. Quaisquer detalhes concretos de violência ou humilhação seriam examinados, afirmou.

Um segundo delator disse que a situação em Sde Teiman é apenas parte do problema, que se estende aos hospitais públicos. A BBC chama esse delator de "Yoni" para proteger sua identidade.

Nos dias que se seguiram aos ataques de 7 de outubro, disse Yoni, os hospitais no sul de Israel enfrentaram o desafio de tratar tanto os combatentes feridos como as vítimas feridas, muitas vezes nos mesmos serviços de emergência.

Homens armados do Hamas tinham acabado de atacar comunidades israelenses ao longo da fronteira com Gaza, matando cerca de 1,2 mil pessoas e sequestrando cerca de 250 outras.

"O clima era extremamente emocional", disse Yoni. "Os hospitais ficaram completamente sobrecarregados, tanto psicologicamente quanto em termos de capacidade."

"Houve casos em que ouvi funcionários discutirem se os detidos de Gaza deveriam receber analgésicos. Ou formas de realizar determinados procedimentos que pudessem transformar o tratamento em punição."

Conversas como essa não eram incomuns, disse ele, mesmo que os casos reais parecessem muito raros.

"Tenho conhecimento de um caso em que analgésicos foram usados seletivamente, de forma muito limitada, durante um procedimento", disse ele à BBC.

"O paciente não recebeu nenhuma explicação sobre o que estava acontecendo. Então, se você pensar que alguém está passando por um procedimento invasivo, que envolve até incisões, e não sabe disso, e está vendado, então a linha entre o tratamento e a agressão fica mais tênue.”

Pedimos ao Ministério da Saúde que respondesse a estas alegações, mas eles nos encaminharam para as Forças de Defesa de Israel.

Yoni também disse que o hospital de campanha de Sde Teiman não estava equipado para tratar pacientes gravemente feridos, mas que alguns dos detidos nos primeiros meses da guerra tinham ferimentos recentes de bala no peito e no abdômen.

Ele disse que pelo menos um homem gravemente doente foi mantido lá devido à relutância dos hospitais públicos em aceitar a sua transferência para tratamento, acrescentando que os médicos da base estavam "frustrados" com a situação.

Sufian Abu Salah, um motorista de táxi de 43 anos de Khan Youis, foi um das dezenas de homens detidos durante ataques do exército israelense e levados a uma base militar para interrogatório.

Ele disse que os soldados o espancaram durante a viagem e também na chegada à base, onde lhe foi negado tratamento devido a um pequeno ferimento no pé, que depois infeccionou.

"Minha perna infeccionou e ficou azul e macia como uma esponja", disse ele à BBC.

Depois de uma semana, disse ele, os guardas o levaram ao hospital, espancando-o na perna machucada no trajeto. Duas operações para limpar seu ferimento não funcionaram, disse ele à BBC.

"Depois me levaram para um hospital público, onde o médico me deu duas opções: minha perna ou minha vida."

Ele escolheu sua vida. Depois de lhe amputarem a perna, ele foi enviado de volta à base militar e mais tarde libertado para voltar a Gaza.

"Este período foi uma tortura mental e física", disse ele. "Não consigo descrever. Fui detido com duas pernas e agora só tenho uma. De vez em quando, choro."

As FDI (forças de defesa israelenses) não responderam às alegações específicas sobre o tratamento de Sufian, mas disseram que as acusações de violência contra ele durante a sua prisão ou detenção eram "desconhecidas e serão examinadas".

Nos dias que se seguiram ao ataque de 7 de outubro, o Ministério da Saúde de Israel emitiu uma diretiva segundo a qual todos os detidos de Gaza deveriam ser tratados em hospitais militares ou prisionais, tendo o hospital de campanha Sde Teiman sido criado especificamente para desempenhar esta função.

A decisão ganhou o apoio de muitos membros do sistema médico de Israel. Yossi Walfisch elogiou a decisão como a solução para "um dilema ético", que retiraria a responsabilidade pelo tratamento de "terroristas do Hamas" do sistema de saúde pública.

Outros pediram o fechamento de Sde Teiman, descrevendo a situação como "um ponto baixo sem precedentes para a profissão médica e para a ética médica".

"Meu medo é que o que estamos fazendo em Sde Teiman não permita voltar a ser como era antes", disse um médico à BBC. "Porque as coisas que antes nos pareciam irracionais, parecerão razoáveis quando esta crise acabar."

Yoel Donchin, o anestesista, disse que a equipe médica do hospital de campanha às vezes se reunia para chorar por causa situação ali.

"No momento em que nosso hospital fechar", disse ele, "vamos comemorar".

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