sexta-feira, 17 de abril de 2020

Irresponsabilidade criminosa

Espero que ele seja responsabilizado por todo mundo que vai morrer por causa da fala irresponsável dele. Porque na hora em que ele fala "olha, é só uma gripezinha", tem muita gente que vai ouvir, é o presidente da República. Essas pessoas não vão entender a gravidade da situação
Tabata Amaral (PDT)

(Im)postura presidencial

Acostumado a falar só para sua galera nas redes sociais, Jair Bolsonaro descobriu agora as maravilhas dos pronunciamentos em cadeia nacional obrigatória de rádio e TV, instrumento garantido em lei para o presidente da República, ministros e chefes de outros poderes, mas que, em última instância, é controlado pelo Executivo, a quem cabe requisitar os horários às emissoras. Desde que começou a pandemia, talvez por perceber que seu Ibope na Internet já não é o mesmo, já falou cinco vezes.

Mas o que é mesmo que um chefe de Estado diz quando ocupa os meios de comunicação para dar um recado à nação? Supostamente, alguma coisa importante. Temos visto pronunciamentos dos mais variados, no Brasil e em outros países: anúncio de medidas, discursos laudatórios elogiando a própria atuação, defesa diante de acusações, solidariedade ao povo em momento de tragédias, apelos políticos ao Congresso e outras instituições, comemoração de datas festivas, etc. Até a Rainha Elizabeth, da Inglaterra, fez uma raríssima aparição na TV inglesa – a quinta em 68 anos de reinado – conclamando o povo a manter o ânimo e se unir no combate à Covid-19.

Não chega a ser anormal que o governante aproveite politicamente a oportunidade desses pronunciamentos para reforçar sua imagem – a maioria faz isso, mundo afora. O que nunca vimos é um presidente da República se comportar como um chefe de torcida, um comentarista, um vendedor, ou mesmo um candidato que nunca venceu uma eleição numa ocasião solene dessas.


É o que tem feito Bolsonaro em seus discursos na TV, onde tem se despido da autoridade presidencial para defender pontos de vista controversos, como a suposta necessidade de suspensão do isolamento social que fechou comércio e escolas nos estados. "Devemos, sim, voltar à normalidade. Algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa", disse ele. Mas estava anunciando a “volta à normalidade”? Não. Tinha alguma ideia de quando isso irá acontecer? Também não. Até porque confessou candidamente que não fora consultado pelos governadores, em cima de quem, também em cadeia nacional de rádio e TV, jogou a responsabilidade pelo eventual impacto na economia.

Muito cidadão deve ter se perguntado por que cargas d’água o presidente da República terá ido à TV falar de uma medida que não tomou e, pelo que diz, não pode tomar? Não é postura de chefe de estado e de governo, que tem autoridade para anunciar, determinar, comandar. Qualquer um tem autoridade para chutar. Mas o chefe do Executivo sofre irremediável rebaixamento na hora em que faz um pronunciamento à nação “pedindo” alguma coisa aos chefes estaduais. Que presidencialismo é esse?

Da mesma forma, Bolsonaro tem feito altos elogios à hidrocloroxiquina em suas mensagens à nação. Mas não anunciou qualquer decisão sobre o uso do remédio ou alguma medida efetiva para facilitar sua adoção na rede de saúde do país. Isso, sim, seria papel do presidente da República – concordando-se ou não com o mérito da medida. Em vez disso, Bolsonaro usou o nome de um sério e renomado cardiologista recém-recuperado da Covid-19, o dr. Roberto Khalil, para fazer proselitismo sobre o tratamento.

Contrário a medidas tomadas por seu próprio governo e pelos estados no combate à pandemia, Bolsonaro não assume a postura de presidente da República. Parece mais um crítico, ou um candidato adversário, que vai à TV falar e jogar para a plateia. Falta-lhe coragem – e, claramente, capacidade – para exercer suas atribuições constitucionais, trabalhar e mudar as coisas. No reino das fakenews, é um fakepresidente. Só que o coronavírus, lamentavelmente, não é fake.

Não adianta rezar, Brasil


Estado bolsonarista decide sobre a vida e a morte

Não têm sido consideradas as causas e consequências desta epidemia, o seu antes e o seu depois, na desorganização de uma sociedade subdesenvolvida como esta. A preocupação tem sido com os aspectos médicos da doença, o que é urgente, e com os lucros cessantes da economia, o que não o é.

Epidemia é imprevisível. Economia que subestima as carências da sociedade, não. É inútil pensar no primado do lucro quando o país se desindustrializa e a diversidade produtiva e o emprego encolhem. A exclusão social decorrente, econômica e politicamente produzida, é a condição da difusão da pobreza e, com ela, de doenças que podem ser fatais.

A epidemia não se encaixa no modelo econômico adotado no mundo sob influência do neoliberalismo. Nem no presente nem no futuro. Antes do vírus começar a matar, as carências e imprevidências desse modelo já haviam começado a preparar-lhe o caminho.

O capitalismo que conhecemos terá que passar por ampla, urgente e criativa reforma e transformação para o que provavelmente será uma nova era histórica. A teoria econômica socialmente excludente que o conforma terá que ser substituída por outra, em que, sem o reconhecimento de que a sociedade é a protagonista e destinatária de suas conquistas e resultados, o capitalismo continuará a ser jogatina irresponsável.


Todos sabemos, e a maioria não diz, que no centro de tudo o que vem ocorrendo está a morte. Morte conformada por esse modelo de economia, que se baseia no pressuposto de que uma certa proporção de mortes, em ocorrências como a pandemia, é o preço a pagar pela opção econômica.

O país que mais expressa esse modelo, os Estados Unidos da América, é o mais atingido pela peste. Mortos sendo sepultados aos montes em vala comum. O sistema econômico falsamente lucrativo afunda porque socialmente imprevidente.

Nunca estivemos coletivamente tão perto da morte, nem ela tão perto de nós. É inevitável considerar que nós mesmos poderemos ser, ou os que amamos, um daqueles números da estatística sinistra dos contaminados e dos mortos, que um servidor do Ministério da Saúde lerá no boletim desta tarde.

O Brasil e o mundo são hoje uma fila de espera do dia e da hora de cada um. Dos sensatos, que se protegem em silêncio no isolamento para proteger a vida dos outros. E dos néscios, confinados no egoísmo em que foram educados, o da cultura individualista do neoliberalismo coisificante.

A epidemia expõe o que é de fato esta realidade social, tanto no silêncio que fala quanto na fala que esconde. O país se divide entre os que mencionam irresponsavelmente a morte e os que não lhe pronunciam o nome, recolhidos ao silêncio litúrgico com que a reconhecem como a força que inverte e revela o sentido do mundo.

A travessia socialmente proposta pela morte abre o mundo do avesso que nos revela que avesso é o mundo de carências criado pela obsessão autoritária do ganho sem limite e do ganhador sem consciência social. É no outro lado que está a chave do segredo do lado de cá.

As causas ocultas e distantes de um ontem que nos aflige hoje são explicáveis. As condições sociais para a disseminação do vírus mortal tem em cada país sua história. Infiltrou-se entre nós trazido pelos abonados de sociabilidade internacional intensa. Mas a saliva mortífera é cuspida na cara de todas as classes. E vem espalhando o vírus na escala inteira das desigualdades sociais.

Consequência do neoliberalismo que, desde 1964, tem sido aqui a opção doutrinária que preside a política econômica do Estado mínimo e da minimização dos custos do trabalho na reprodução ampliada do capital.

O apogeu dessa alucinação antissocial, pretensamente teórica e científica, é justamente este governo e sua política de supressão de direitos sociais, de sua incapacidade para definir uma política de economia que coloque a pátria antes do PIB, voltada também para o mercado interno e a multiplicação da renda e do emprego.

Eles não dizem, mas a lógica do sistema econômico diz, essa foi uma opção fácil e barata de enriquecimento porque a taxa de desemprego no país é muito alta e a oferta de trabalho é insuficiente. Até aqui, essa economia criou uma grande massa de mão de obra sobrante, à procura de trabalho e disposta a aceitar a redução de salários e de direitos que a catástrofe propicia.

Por ela, mortes são irrelevantes porque mortes dos descartáveis, no limite dos sem funeral, sem ritos de passagem para o além, o que fere as tradições religiosas do povo brasileiro.

Irresponsável, o Estado bolsonarista decide não só sobre a vida, mas também sobre a morte, reduto poderoso das crenças e dos liames de família. Não há dinheiro que cure os males desse desrespeito materialista e ateu à condição humana.
José de Souza Martins

A vida anormal

E agora? Esta é a pergunta que mais me tenho feito ultimamente. Agora, não sei. Eu não saber não seria grave, acontece-me quase sempre e em relação a quase tudo. Mas assusta-me pensar que ninguém sabe. E agora?

O dia amanheceu chuvoso e frio e assim se vai deixando ficar.

Vou à varanda da frente, a que dá para a avenida. Os donos das lojas correram um lençol metálico sobre as montras e os dos cafés fizeram pequenos montes com as cadeiras das esplanadas e prenderam-nos com correntes de ferro. Uns e outros puseram letreiros a dizer, Estimados clientes, devido à situação existente… A minha varanda é pequenina, uma laje de pedra e uma grade de ferro, uma varanda de procissão.


A colcha das procissões da avó Marquinhas era de cetim vermelho. Uma semana antes de cada festa religiosa íamos ao riacho lavá-la. Esfregávamos a colcha com sabão numa das fragas amaciadas pelas gerações de mulheres que nos haviam precedido e torcíamo-la fazendo uma corda que lembrava as de saltar. Ficava estendida em cima das ervas, à mercê do sol áspero de Trás-os-Montes, e recolhíamo–la depois da horta regada, quase ao fim do dia. Na procissão do domingo de Páscoa de 1976, ainda o Padre abençoava as casas lá para os lados do Cabeço e já nós nos afadigávamos a colocar a colcha na varanda. Fazia tanto vento que nem o expediente de prender as pontas com pedras conseguia sossegá-la no lugar devido. Parece que o diabo anda à solta, disse a avó Marquinhas aflita, filho de um cão e de sete mulas. Meio ano depois, a avó Marquinhas morreu.

Do quarto ao lado, o Pedro envia-me um email com mais um link de um tutorial de ioga para principiantes. Há semanas que não faço as minhas caminhadas, sei que devia exercitar-me para que o corpo não me castigue com dores. Levanto a cabeça para o céu engrossado de nuvens. Continuo a inventar pretextos para ir à rua e logo os deixo cair. É tão difícil fazer a coisa certa. Mesmo sabendo que o meu sacrifício de ficar em casa nada é comparado com o daqueles que não o podem fazer, a verdade é que sinto o meu sacrifício e apenas sei do sacrifício dos outros. Escrevo num post-it, Desconfiar de quem só leva a sério o que sente. Tenho o computador ainda aberto numa página que atualiza as notícias da Covid-19, oferecendo estatísticas, análises, comentários, previsões. Continuamos a falar como se não nos faltassem palavras, como se as metáforas nos pudessem valer, esta guerra, um tsunami, o inimigo.

O Paulo, o irmão que a vida teve a generosidade de me dar, telefona a dizer que o pai, o Fernando, está febril e com ligeira falta de ar. A Teresa, mulher do Fernando, mãe do Paulo, da Zi e da Joana morreu há cinco anos. Todos os dias faço chá no bule castanho que a Teresa e o Fernando me deram num Natal. Conhecemo-nos todos há mais de trinta anos e depressa nos tornámos uma família. Daí a pouco é a Zi que liga. Quer saber se tenho máscaras cirúrgicas que lhes possa dar, a Saúde 24 referenciou o Fernando para o Hospital Curry Cabral e têm de o levar lá. Sabemos o que poderá estar em causa, mas não falamos sobre isso.

Tiro as folhas secas das plantas da marquise. O vizinho do prédio ao lado assoma à sua varanda. Tem um pijama aos quadrados. Pouco depois, acende um cigarro, Voltaste a fumar?, pergunta uma voz feminina de dentro de casa. Ele dá um piparote no cigarro com o polegar e o indicador para o deitar fora, sigo a trajetória da beata até lá a baixo, uma altura de quatro andares, o vizinho diz, Um gajo já não sabe o que faz. Recebo por WhatsApp uma animação em que vários pinguins se salvam de um tubarão ao se manterem unidos. Não sei quantos dos meus contactos já ma mandaram nos últimos dias.

Da secretária em que trabalho, continuo a olhar para o céu pardacento, um girassol avariado. Há três anos mudei as janelas da casa toda. O barulho da rua desconcentra-me, explicava às empresas que vinham fazer o orçamento, Não consigo trabalhar. O Sr. Américo prometeu-me, Vai ficar sem ouvir nada. Era um homem baixo, de bigode farfalhudo, unhas maltratadas, uma imagem que destoava dos tempos modernos, mas que oferecia as garantias que até há pouco todos exigíamos. O Sr. Américo mudou as janelas num fim de semana e eu nunca mais ouvi o bulício da cidade. Não consigo perceber como é que agora ouço este silêncio todo lá fora.

O Paulo telefona novamente, o Fernando ficou internado. Fizeram o teste à Covid-19, mas o resultado vai demorar, É muita gente, sabes? Ligo de seguida à minha mãe, que me conta que o Tomás, o meu sobrinho-neto de quatro anos, ao ouvir na televisão a notícia de mais mortos, disse, Como é que cabem tantos mortos no céu? O Tomás gosta deste isolamento social porque não tem de ir à escola e brinca todo o dia com os pais e o irmão. Digo ao Pedro que hoje estou sem cabeça para aprender a fazer ioga. Culpo a chuva. E isto tudo, acrescento.

Levanto-me a meio da noite, insone. Passo pelas séries que estou a seguir, sem me deter em nenhuma. Fico a ver um programa de culinária até amanhecer.

O dia começa com sol.
Adormeço finalmente.
Tenho vários registos de chamadas quando acordo.
O meu pai morreu no dia 12 de dezembro de 2001. Dois dias depois, o corpo foi cremado no Alto de S. João na presença de todos os que o amavam. A seguir fomos almoçar ao café Império. Lembro-me de olhar para a mesa e pensar, Que bom estar acompanhada. No fim do almoço, levantei-me para pagar a despesa, copiando o gesto que o meu pai fazia em circunstâncias semelhantes. Aquele senhor já pagou, disse o empregado. O senhor era o Fernando. Se a família não serve para estes momentos, serve para quê?, disse-me quando lhe agradeci.

O Fernando não terá velório nem cerimónia de cremação

Recebo mais uma vez a animação dos pinguins e do tubarão.

Combino com o Paulo e com as irmãs que faremos uma festa que celebre o Fernando, quando isto acabar.

Quando isto acabar.

Para o meu querido Fernando
28 de outubro de 1934 – 2 de abril de 2020

Aposta no genocídio

Entre a saúde dos brasileiros e a política, o presidente Jair Bolsonaro preferiu a política. Que Deus nos ajude
Wilson Witzel (PSC), governador do Rio de Janeiro 

Bolsonaro, de mensageiro da morte à Rainha da Inglaterra

A demissão do ex-ministro Henrique Mandetta, da Saúde, veio no melhor momento para ele, às vésperas de uma torrente de mortes a serem provocadas pelo coronavírus. E, para o presidente Jair Bolsonaro que o despachou, no pior.

Embora frustrado, Mandetta vai para casa com o prêmio de consolação de ter tido seu comportamento aprovado por mais de 60% dos brasileiros, e a demissão rejeitada por mais de 80%. Bolsonaro fica com uma bomba prestes a explodir no seu colo.


Chega de intermediários, Bolsonaro para ministro da Saúde! O novo ministro escolhido por ele, e avalizado pelo filho Flávio, fará, ali, o que Bolsonaro mandar. Ou trabalhará alinhado com o presidente e suas ideias ou também será mandado embora.

Mandetta concluiu sua missão. A de Bolsonaro mal começa. A missão que Bolsonaro se deu nas últimas semanas foi a de destruir Mandetta politicamente para que em 2022 ele não ouse disputar as eleições, seja como candidato a presidente ou a vice. Vale tudo.

Orientados do alto, da tarefa se encarregarão os devotos do presidente. Missão dada, missão cumprida. Nas redes sociais, Mandetta é o alvo da vez dos bolsonaristas ensandecidos. Fora delas, também. Há dossiês sendo montados para emporcalhá-lo.

Bolsonaro, que em campanha prometeu que jamais seria candidato à reeleição, só pensa nisso. Todos os seus passos e ações têm como meta a obtenção de um segundo mandato. Pode não ter nascido para ser presidente, como diz. Uma vez que é, quer ser outra vez.

Nada de anormal haveria se as decisões que toma para se reeleger não prejudicassem o país, mas muitas prejudicam, sim. O que ganha o Brasil com a saída forçada de Mandetta do governo? Nada. Só perde. Bolsonaro ganha, ou pensa que ganhou.

Em plena epidemia que assola o mundo, o que ganha o país com os mais recentes ataques de Bolsonaro ao presidente da Câmara dos Deputados, a quem acusou de querer derrubá-lo? Os ataques são para desviar a atenção coletiva da demissão de Mandetta.

Bolsonaro está empenhado em enfraquecer no Senado o pacote de socorro financeiro aos Estados aprovado pela Câmara. Alega que o governo não dispõe de tanto dinheiro. Pode até ser verdade, mas o que ele de fato não pretende é ajudar certos governadores.

Assim como Mandetta, é preciso destruir também os governadores João Doria, de São Paulo, e Wilson Witzel, do Rio de Janeiro. Doria aspira a suceder Bolsonaro. Witzel é tratado como inimigo por se recusar a salvar Flávio dos rolos em que se meteu.

Falta peito a Bolsonaro para confrontar o Supremo Tribunal Federal que reconheceu o direito de governadores e prefeitos baixarem medidas de isolamento. Mas ele continuará investindo contra elas para apressar a recuperação da Economia.

Por que procede assim? Por que alimenta o falso dilema entre Economia e Vidas? Porque apostou todas as suas fichas na Economia para reeleger-se. Ao mensageiro da morte, vidas pouco importam. Importam votos. Portanto, passe livre para o vírus.

Bolsonaro cava sua própria sepultura. Tanto ou mais que o coronavírus, ele virou uma grave ameaça sanitária ao país. Em breve, segundo ouvi, ontem, de um ministro do Supremo Tribunal Federal, poderá virar uma espécie de Rainha da Inglaterra.

Viva a globalização!

Caros brasileiros,

parece que a época da globalização acabou. Fronteiras fechadas, aviões e navios parados e muitas cadeias de produção interrompidas. Não faltam pessoas pregando que o mundo pós-coronavírus não será mais o mesmo, que o Estado nacional ganhará mais importância enquanto a cooperação internacional diminuirá.

Acredito que não vai ser bem assim e, por isso, quero compartilhar com vocês alguns pensamentos do grande historiador e autor israelense Yuval Noah Harari. Num artigo para a revista Time que foi reproduzido pela edição brasileira do El País, ele defendeu a tese, de que "o antídoto contra a epidemia não é a segregação, e sim a cooperação".

Não é mera coincidência que essa tese seja debatida justamente no momento em que o presidente americano, Donald Trump, acusa a Organização Mundial de Saúde (OMS) de ter agido em função dos interesses do regime chinês e de ter respondido tarde demais e mal à ameaça representada pelo novo coronavírus.

Na terça-feira, Trump anunciou o congelamento dos recursos dos EUA para a OMS. Segundo dados reunidos pela agência de notícias AP, a contribuição americana de 900 milhões de dólares representa um quinto do orçamento da agência da ONU de 2018-2019, que gira em torno de 4,4 bilhões de dólares.

Pois é. Foi justamente a Organização Mundial de Saúde que conseguiu derrotar o vírus da varíola com uma campanha mundial de vacinação na década de 1970. Enquanto em 1967, 15 milhões de pessoas foram contagiadas pela doença, das quais 2 milhões morreram, em 1979, a OMS declarou que a humanidade tinha erradicado a doença.

Dessa vitória pode-se tirar várias lições. Uma conclusão fundamental para Harari é que é impossível vencer uma pandemia sem cooperação internacional. Pois a erradicação da varíola foi possível porque todos países participaram da campanha de vacinação.

"Se um só país não tivesse vacinado a sua população, poderia ter posto em perigo a toda a humanidade", diz Harari. "Porque, enquanto o vírus da varíola existisse e evoluísse em algum lugar, sempre poderia se propagar por todo lado."

Outra lição é que a velocidade das descobertas científicas vem crescendo junto com a cooperação internacional. Enquanto na Idade Média nunca se descobriu o que causava a peste negra, os cientistas atuais não levaram mais de duas semanas para identificar o coronavírus, sequenciar seu genoma e desenvolver um exame confiável para identificar pessoas infectadas.

Em terceiro lugar, a globalização não serve como bode expiratório. Pois epidemias já matavam milhões de pessoas bem antes da integração econômica global. A peste negra se propagou do leste da Ásia até a Europa Ocidental no século 14. Naquele tempo, não havia aviões nem grandes navios.

Até na época da colonização havia pragas fora de controle. No México, em março de 1520, bastou um único portador da varíola, Francisco de Eguía, para infectar um continente inteiro. Apesar da ausência de meios de transporte, como trem o ônibus, a epidemia assolou toda a região e matou, segundo algumas estimativas, um terço de sua população.

Concordo com Harari: a globalização, o crescimento da população mundial e a facilidade de viajar, tudo isso cria condições favoráveis para pandemias. No mundo atual, um vírus pode viajar de Paris a Tóquio e ao México em menos de 24 horas. Sendo assim, existe o perigo de enfrentar uma praga mortal depois da outra.

Mesmo que o coronavírus sugira o contrário, isso não acontece. Harari chama atenção para o fato de que "tanto a incidência como as repercussões das epidemias diminuíram de forma espetacular". "Apesar de surtos horríveis, como o de aids e o de ebola, as epidemias matam muito menos gente que em qualquer outra etapa da história", observou.

A conclusão do historiador é: "A melhor defesa dos seres humanos frente a epidemias não é o isolamento, e sim a informação. A história indica que a autêntica proteção se obtém com o intercâmbio de informações científicas confiáveis e a solidariedade mundial."

É o sonho da globalização da solidariedade. O sonho que faz a humanidade andar. O sonho que, infelizmente, alguns governos atuais abandonaram, pois resolveram colocar os interesses do próprio país "acima de tudo". Se deram mal.
Astrid Prange de Oliveira

Paisagem brasileira

Enterros simultâneos, aglomeração e coveiro sem proteção em Manaus

Socorro, o piloto pirou

O rei Jorge III (1738-1820) foi um dos monarcas mais queridos da Inglaterra, fez muitas conquistas, embora tivesse perdido a sua maior colônia na América, os Estados Unidos, mas teve um problema na velhice: enlouqueceu.

Maluco beleza, saía pelos corredores do Castelo de Windsor enrolado em lençóis, uma vez falou 58 horas sem parar, num passeio pelo campo saiu cantando completamente nu, dizia coisas desconexas. Embora na época os médicos pouco soubessem sobre doenças mentais, era claro que o rei estava incapacitado para governar, e seu filho foi nomeado regente. Como no filme “A loucura do rei”.

Se já é difícil dizer que o rei está nu, muito mais é convencê-lo de que está louco. Como o presidente Delfim Moreira (1918-1919).

Como convencer um insano de que ele está doente? E se for o rei da Inglaterra?

E se for o presidente do Brasil?


Com todo o respeito e compaixão pela dor e o sofrimento dos doentes mentais, cada dia mais Bolsonaro diz e faz coisas que não podem ser só burrice, ignorância, maldade, narcisismo ou paranoia. Qualquer profissional de doenças mentais vê traços preocupantes no seu comportamento. Afinal, o cara não é normal, tem corpo fechado, desafia o vírus, o Congresso e o Supremo, se acha um mito invencível.

Demência não é vergonha, não é castigo divino nem culpa do doente. Mas se, para obter uma carteira de caminhoneiro o cara tem que fazer exames de sanidade mental, se grandes empresas o exigem antes de contratar, por que não o presidente da República?

Quem poderia obrigar o presidente a um exame de sanidade mental por uma junta médica, o Congresso? Os generais? Várias ações já correm na Justiça. O que diz a Constituição?

Na gíria das favelas, os malucos são chamados de “22”, artigo do antigo Código Penal sobre insanidade mental, como “Paulinho 22”, “Telma 22” e, por que não,“Jair 22”? O bom da insanidade é que ela apaga tudo de ruim que foi feito, até crimes, porque o cara é inimputável. É melhor que impeachment.

Só não podem nomear Carluxo como regente.
Nelson Motta

Estadista x líder de manada

Que nós nos unamos para cumprir nosso dever, e desta forma nos elevemos de tal forma que, se o Império Britânico e sua comunidade britânica durarem mil anos, as pessoas ainda digam: “Aquele foi seu melhor momento!"
Winston Churchill, primeiro ministro conclamando os ingleses na guerra contra Adolf Hitler

O socorro

Ele foi cavando, cavando, pois sua profissão – coveiro – era cavar. Mas, de repente, na distração do ofício que amava, percebeu que cavara demais. Tentou sair da cova e não conseguiu. Levantou o olhar para cima e viu que sozinho não conseguiria sair. Gritou. Ninguém atendeu. Gritou mais forte. Ninguém veio. Enrouqueceu de gritar, cansou de esbravejar, desistiu com a noite. Sentou-se no fundo da cova, desesperado. A noite chegou, subiu, fez-se o silêncio das horas tardias. Bateu o frio da madrugada e, na noite escura, não se ouvia um som humano, embora o cemitério estivesse cheio de pipilos e coaxares naturais do mato. Só pouco depois da meia-noite é que lá vieram uns passos. Deitado no fundo da cova o coveiro gritou. Os passos se aproximaram. Uma cabeça ébria apareceu lá em cima, perguntou o que havia: “O que é que há?”

O coveiro então gritou desesperado: “Tire-me daqui, por favor. Estou com um frio terrível!” – “Mas, coitado!” – condoeu-se o bêbado. – “Tem toda a razão de estar com frio. Alguém tirou a terra de cima de você, meu pobre mortinho!” E, pegando a pá, encheu-a de terra e pôs-se a cobri-lo cuidadosamente.

Moral: Nos momentos graves é preciso verificar muito bem para quem apela
Millôr Fernandes

Bolsonaro não é louco

Vamos chamar a coisa pelo nome. O presidente eleito por milhões de brasileiros não é louco. Psicóticos e neuróticos podem ser classificados assim. Eles sofrem e enxergam o sofrimento do outro. Eles não têm método. Bolsonaro é diferente. Pelos estudos da psiquiatria inglesa no século XIX, Bolsonaro se encaixaria em outra categoria: a dos psicopatas.

Conversei com o psicanalista Joel Birman para entender essas fronteiras entre transtornos mentais. “A psicopatia não é uma loucura no sentido clássico, mas uma insanidade moral, um desvio de caráter de quem não tem como se retificar porque não sente culpa ou remorso”. Os psicopatas são “autocentrados, agem com frieza e método”. “Não têm empatia em relação ao outro, o que lhes interessa é o que lhes convém”. A palavra psicopatia vem do grego psyché, alma, e pathos, enfermidade.


A pandemia só tornou esses traços de Bolsonaro mais gritantes. Desde os primeiros grandes gestos do presidente, ficou claro, disse Birman, que seus atos “são marcados por crueldade e violência”. Proposição de liberar fuzis para civis. Proposição de acabar com os radares nas estradas. Proposição de não multar a falta de cadeirinha para crianças. Proposição de acabar com os exames toxicológicos para motoristas de caminhão e ônibus. Proposição de legalizar o garimpo predatório nas florestas e terras indígenas. Tudo isso é um atentado à vida. 

Eu poderia lembrar o que muitos teimam em esquecer. Que Bolsonaro já era assim antes de ser eleito. Quem defende torturador e condena as vítimas, publicamente, no Congresso, não é uma pessoa que preza a vida. Não surpreende, portanto, que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, denuncie, sem meias palavras, a “política genocida” de Bolsonaro. O presidente trocou seu ministro da Saúde, era sua prerrogativa, mas será barrado pelo STF se insistir em condenar o isolamento social e ameaçar a saúde pública.

Ao criar uma realidade paralela, Bolsonaro desfruta sua liberdade de ir e vir sem se importar com as consequências de seu exemplo. Ele refuta a ciência, ignora as normas sanitárias nacionais e internacionais, receita remédios polêmicos sem autoridade para isso, ironiza quem se isola, chamando a mim e a você de “moleques”. Coloca em maior risco os pobres. O presidente é uma temeridade ambulante. Troca um ministro da Saúde competente e popular em plena batalha.

Ao se recusar a divulgar o resultado de seu exame, Bolsonaro despreza a população, se acovarda e age diferente dos homens públicos que honram seus cargos. Pode até ser que esteja imune após uma versão branda da Covid-19 e por isso se sinta apto a saracotear pelas ruas e padarias, mexendo em dinheiro e comida, enxugando o nariz e apertando as mãos do povo aglomerado. Bolsonaro não é burro nem louco. É perverso, ao estimular um comportamento de altíssimo risco.

A OMS classifica a psicopatia como um transtorno de personalidade caracterizado por um desprezo das obrigações sociais. A psiquiatra Ana Beatriz Barbosa, autora do livro "Mentes perigosas", diz que a “psicopatia não é uma doença, é uma maneira de ser”. O psicopata, segundo ela, sempre vai buscar poder, status e diversão. Enxerga o outro apenas como um objeto útil para conseguir seus objetivos.

Mandetta tinha deixado de ser útil. Por brilhar demais, por ter trânsito com o Congresso e por não se curvar a suas teses temerárias. Um ministro como esse, generoso e articulado, enlouquece um presidente transtornado. A ciência é a luz. O resto é escuridão.

Bolsonaro em dia de múltiplos erros

O presidente Jair Bolsonaro dobrou ontem a aposta na estratégia de jogar a culpa da crise econômica e do desemprego nos governadores. Ele acredita que dores econômicas serão mais fortes que as da pandemia e derrubarão o apoio aos seus possíveis adversários em 2022. Bolsonaro não tem um minuto sequer de grandeza, um traço mínimo de estadista. Ele governa por picuinhas, joga sempre no conflito, e mesmo no doloroso ano de 2020 sua única obsessão é 2022. Ontem foi um dia emblemático da exibição dos muitos defeitos de Jair Bolsonaro.



Ele tirou Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde porque teve ciúmes do seu desempenho. Escolheu outro que fosse capaz de dizer que está completamente alinhado com ele. É espantoso, porque o presidente tem defendido ideias temerárias e sem qualquer apoio da comunidade científica. Bolsonaro acusou governadores e prefeitos de atacarem as liberdades democráticas. E lembrou que é o único que tem poderes de decretar estado de sítio e estado de defesa. No fim do dia, atacou fortemente o presidente da Câmara, Rodrigo Maia. O deputado reagiu dizendo que era um truque de Bolsonaro “para mudar a pauta negativa”. Na economia, fez as confusões de sempre.

– E agora tem esse problema aí do ICMS. Quem vai pagar a conta? O Jair Bolsonaro ou a população como um todo? Já está em mais de R$ 600 bilhões o custo até agora. Pode chegar a R$ 1 trilhão. O Brasil suporta? –disse.

Se ele fala de ICMS, o que a sua equipe econômica se recusa a aceitar é transferir R$ 80 bilhões aos estados. Sua visão econômica sempre foi tosca e displicente. Subitamente ele quer fazer crer que é um estrategista econômico. E o faz por isso. Para jogar antecipadamente a conta das inevitáveis amarguras sobre seus supostos adversários políticos.

– Em nenhum momento eu fui consultado sobre medidas adotadas por grande parte dos governadores e prefeitos. Eles sabiam o que estavam fazendo. O preço vai ser alto. Se porventura exageraram, não botem essa conta, não no governo federal, mais essa conta no sofrido povo brasileiro.

O tom populista apareceu em suas várias falas, a oficial em que pareceu acuado, a improvisada, na porta do Palácio, e na transmissão pela internet:

– As pessoas mais humildes sentiram primeiro o problema, essas não podem ficar em casa por muito tempo. O governo federal não abandonou em momento algum os mais necessitados.

A verdade é que o auxílio emergencial foi aceito com relutância pelo governo e foi elevado pelo Congresso. A implementação está sendo um desastre. Filas enormes se formam na Receita Federal ou na Caixa. São os pobres, sob o risco de se infectarem, se aglomerando para lutar para superar a burocracia e ineficiência do governo para receber o que têm direito.

O governo Bolsonaro tem tentado dividir Câmara e Senado, mas ontem os uniu. Os presidentes das duas Casas, Davi Alcolumbre e Rodrigo Maia, assinaram uma nota conjunta em que chamam o ex-ministro Mandetta de “guerreiro” e dizem que esperam que ele não tenha sido demitido “com o intuito de insistir numa postura que prejudica a necessidade do distanciamento social e estimula um falso conflito entre saúde e economia”.

Bolsonaro falou ontem diversas vezes que é preciso encerrar o distanciamento social. Contou inclusive que desistiu do decreto porque haveria oposição, mas que prepara um projeto para definir o que são as profissões essenciais. É ele tentando contornar a decisão do STF de que os estados têm o direito de tomar as decisões que tomaram.

E o novo ministro? Ele teve uma primeira fala confusa. Defendeu uma coisa e o seu contrário, e depois coisa nenhuma. “Como a gente tem pouca informação, como é tudo muito confuso, a gente começa a tratar a ideia como se fosse fato e começa a trabalhar cada decisão como se fosse um tudo ou nada e não é nada disso.”

Essa confusão do novo ministro era para tentar conciliar a sua fala de que é preciso ser científico e técnico e ao mesmo tempo dizer-se em “alinhamento completo” com o presidente. O primeiro passo para esse alinhamento é o presidente aprender que ele se chama Nelson e não Rubens. Bolsonaro trocou o nome duas vezes. Esse foi o menor dos erros de Bolsonaro ontem.