sexta-feira, 17 de abril de 2020

A vida anormal

E agora? Esta é a pergunta que mais me tenho feito ultimamente. Agora, não sei. Eu não saber não seria grave, acontece-me quase sempre e em relação a quase tudo. Mas assusta-me pensar que ninguém sabe. E agora?

O dia amanheceu chuvoso e frio e assim se vai deixando ficar.

Vou à varanda da frente, a que dá para a avenida. Os donos das lojas correram um lençol metálico sobre as montras e os dos cafés fizeram pequenos montes com as cadeiras das esplanadas e prenderam-nos com correntes de ferro. Uns e outros puseram letreiros a dizer, Estimados clientes, devido à situação existente… A minha varanda é pequenina, uma laje de pedra e uma grade de ferro, uma varanda de procissão.


A colcha das procissões da avó Marquinhas era de cetim vermelho. Uma semana antes de cada festa religiosa íamos ao riacho lavá-la. Esfregávamos a colcha com sabão numa das fragas amaciadas pelas gerações de mulheres que nos haviam precedido e torcíamo-la fazendo uma corda que lembrava as de saltar. Ficava estendida em cima das ervas, à mercê do sol áspero de Trás-os-Montes, e recolhíamo–la depois da horta regada, quase ao fim do dia. Na procissão do domingo de Páscoa de 1976, ainda o Padre abençoava as casas lá para os lados do Cabeço e já nós nos afadigávamos a colocar a colcha na varanda. Fazia tanto vento que nem o expediente de prender as pontas com pedras conseguia sossegá-la no lugar devido. Parece que o diabo anda à solta, disse a avó Marquinhas aflita, filho de um cão e de sete mulas. Meio ano depois, a avó Marquinhas morreu.

Do quarto ao lado, o Pedro envia-me um email com mais um link de um tutorial de ioga para principiantes. Há semanas que não faço as minhas caminhadas, sei que devia exercitar-me para que o corpo não me castigue com dores. Levanto a cabeça para o céu engrossado de nuvens. Continuo a inventar pretextos para ir à rua e logo os deixo cair. É tão difícil fazer a coisa certa. Mesmo sabendo que o meu sacrifício de ficar em casa nada é comparado com o daqueles que não o podem fazer, a verdade é que sinto o meu sacrifício e apenas sei do sacrifício dos outros. Escrevo num post-it, Desconfiar de quem só leva a sério o que sente. Tenho o computador ainda aberto numa página que atualiza as notícias da Covid-19, oferecendo estatísticas, análises, comentários, previsões. Continuamos a falar como se não nos faltassem palavras, como se as metáforas nos pudessem valer, esta guerra, um tsunami, o inimigo.

O Paulo, o irmão que a vida teve a generosidade de me dar, telefona a dizer que o pai, o Fernando, está febril e com ligeira falta de ar. A Teresa, mulher do Fernando, mãe do Paulo, da Zi e da Joana morreu há cinco anos. Todos os dias faço chá no bule castanho que a Teresa e o Fernando me deram num Natal. Conhecemo-nos todos há mais de trinta anos e depressa nos tornámos uma família. Daí a pouco é a Zi que liga. Quer saber se tenho máscaras cirúrgicas que lhes possa dar, a Saúde 24 referenciou o Fernando para o Hospital Curry Cabral e têm de o levar lá. Sabemos o que poderá estar em causa, mas não falamos sobre isso.

Tiro as folhas secas das plantas da marquise. O vizinho do prédio ao lado assoma à sua varanda. Tem um pijama aos quadrados. Pouco depois, acende um cigarro, Voltaste a fumar?, pergunta uma voz feminina de dentro de casa. Ele dá um piparote no cigarro com o polegar e o indicador para o deitar fora, sigo a trajetória da beata até lá a baixo, uma altura de quatro andares, o vizinho diz, Um gajo já não sabe o que faz. Recebo por WhatsApp uma animação em que vários pinguins se salvam de um tubarão ao se manterem unidos. Não sei quantos dos meus contactos já ma mandaram nos últimos dias.

Da secretária em que trabalho, continuo a olhar para o céu pardacento, um girassol avariado. Há três anos mudei as janelas da casa toda. O barulho da rua desconcentra-me, explicava às empresas que vinham fazer o orçamento, Não consigo trabalhar. O Sr. Américo prometeu-me, Vai ficar sem ouvir nada. Era um homem baixo, de bigode farfalhudo, unhas maltratadas, uma imagem que destoava dos tempos modernos, mas que oferecia as garantias que até há pouco todos exigíamos. O Sr. Américo mudou as janelas num fim de semana e eu nunca mais ouvi o bulício da cidade. Não consigo perceber como é que agora ouço este silêncio todo lá fora.

O Paulo telefona novamente, o Fernando ficou internado. Fizeram o teste à Covid-19, mas o resultado vai demorar, É muita gente, sabes? Ligo de seguida à minha mãe, que me conta que o Tomás, o meu sobrinho-neto de quatro anos, ao ouvir na televisão a notícia de mais mortos, disse, Como é que cabem tantos mortos no céu? O Tomás gosta deste isolamento social porque não tem de ir à escola e brinca todo o dia com os pais e o irmão. Digo ao Pedro que hoje estou sem cabeça para aprender a fazer ioga. Culpo a chuva. E isto tudo, acrescento.

Levanto-me a meio da noite, insone. Passo pelas séries que estou a seguir, sem me deter em nenhuma. Fico a ver um programa de culinária até amanhecer.

O dia começa com sol.
Adormeço finalmente.
Tenho vários registos de chamadas quando acordo.
O meu pai morreu no dia 12 de dezembro de 2001. Dois dias depois, o corpo foi cremado no Alto de S. João na presença de todos os que o amavam. A seguir fomos almoçar ao café Império. Lembro-me de olhar para a mesa e pensar, Que bom estar acompanhada. No fim do almoço, levantei-me para pagar a despesa, copiando o gesto que o meu pai fazia em circunstâncias semelhantes. Aquele senhor já pagou, disse o empregado. O senhor era o Fernando. Se a família não serve para estes momentos, serve para quê?, disse-me quando lhe agradeci.

O Fernando não terá velório nem cerimónia de cremação

Recebo mais uma vez a animação dos pinguins e do tubarão.

Combino com o Paulo e com as irmãs que faremos uma festa que celebre o Fernando, quando isto acabar.

Quando isto acabar.

Para o meu querido Fernando
28 de outubro de 1934 – 2 de abril de 2020

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