quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Se vira, Brasil


Decreto das armas é um vexatório atestado de incompetência do Estado

Em solenidade com ministros e a fina flor da bancada da bala, o presidente Jair Bolsonaro deve assinar nesta terça-feira  o decreto que afrouxa as regras para a posse de armas, sua primeira canetada com capacidade de afetar de forma relevante e concreta o dia a dia das pessoas.

Estudiosos não apostam um tostão furado no sucesso da medida. Ao contrário, alertam para a probabilidade do aumento da violência e para um cipoal de situações potencialmente desastrosas, como indicam a racionalidade e o bom senso.

Detalhes do texto ainda serão conhecidos, o que mantém a esperança de que Sergio Moro possa, talvez, ter freado um pouco o ímpeto do bolsonarismo raiz. O ministro da Justiça prepara ainda medidas de endurecimento das leis penais —prática a que o Congresso se dedica periodicamente, em momentos de comoção—, mas a pressa, apenas 15 dias, e a pompa indicam o que o presidente de fato acredita ser eficaz.


Não importa que a segurança pública seja uma atribuição majoritária dos estados, Bolsonaro foi escolhido por um eleitorado amedrontado, horrorizado ou revoltado com o que sofre nas ruas e com o que vê no noticiário —e mediante a promessa de colocar um ponto final “nisso aí”.

Essa sensação de “basta” tomou força com a inestimável ajuda de setores da esquerda que fizeram de tudo para barrar até propostas plausíveis, como o endurecimento das medidas contra adolescentes que cometem crimes graves.

Bolsonaro passou boa parte de suas três décadas como deputadopropalando a ideia de que o único meio de combater a criminalidade era massificar a esterilização de pobres. De uns tempos para cá, abraçou a “solução bangue-bangue”.

A aposta de armar os cidadãos coloca sobre as costas de seus realizadores uma responsabilidade considerável. E passa indiretamente a mensagem de fracasso do país na tarefa de garantir a segurança dos cidadãos. Lança-se o “decreto das armas”, mas pode chamar também de atestado geral da incompetência do estado.

Uma sujeira só

Sujos porque somos sujos, sujos porque nos sujamos, e sujos porque nos sujam
Miguel Torga

Se Cristo voltasse

Gosto de andar de ônibus dentro da cidade. Como jornalista, acho importante ver e ouvir as pessoas comuns. Quem usa o transporte público, por exemplo aqui na pequena e bela cidade de Saquarema, na região dos Lagos fluminense, costuma pertencer às classes menos favorecidas. São os sem-carro e os sem possibilidade de pagar um táxi. São também os que passam despercebidos.

Nesta manhã, junto a um ponto de ônibus do bairro comercial de Bacaxá, uma mulher com pelo menos 70 anos, que por seu modo de olhar devia sofrer de catarata avançada, estava sentada num engradado de madeira, desses que os mercados põem fora, ao lado de onde se forma a fila para subir ao ônibus. Oferecia para vender, apoiados em seu regaço, três modestos e banais pacotes de quiabo.

Fui resolver uns assuntos e, ao voltar, duas horas depois, a mulher ainda estava lá, sob o sol, esperando que alguém comprasse sua pequena mercadoria. Olhava cada passante como o joalheiro perscruta possíveis compradores de uma pedra preciosa. Já no ônibus, veio-me à memória um comentário que Henrique Rocha Melo deixou dias atrás na página deste jornal no Facebook. Perguntava-se: “Se Jesus viesse hoje, seria chamado de comunista ou seria recebido à bala pelos cidadãos de bem?”. A pergunta era sintomática do clima político e religioso que se vive no Brasil, onde o tema Deus foi colocado no centro do poder.


Refletindo sobre a pergunta do leitor, e com a imagem da mulher dos três pacotes de quiabo ainda na minha retina, pensei que, se Jesus estivesse voltando, como se anuncia às vezes até na traseira dos caminhões de carga, teríamos uma surpresa. Não se trata de saber se seria visto como comunista ou liberal. Sem dúvida, estaria do lado da idosa tão pobre que precisa sair à rua para vender três punhados de hortaliças.

Mas poderíamos nos fazer outra pergunta ainda mais inquietante: se Cristo voltasse, ao lado de quem não estaria? A resposta tampouco é difícil. Não andaria, sem dúvida, de braços dados com quem permite que continuem existindo pessoas abaixo do nível de pobreza. Não estaria ao lado dos que, como acaba de dizer o papa Francisco, “melhor seria se fossem ateus em vez de irem à igreja e continuarem odiando”. Odiando e também se esquecendo da caravana dos excluídos, vítimas do novo capitalismo excludente que vai deixando um rio de “inúteis” à sua passagem. É assim que o autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, Yuval Noah Harari, se refere em seu último livro, 21 Lições Para o Século 21, aos novos proletários da era da inteligência artificial, os que já não servem nem para consumir.

Alguém me perguntará com que direito escrevo que Jesus, se voltasse, estaria do lado da mulher pobre dos quiabos e não dos que se gabam de serem os donos de Deus. Digo isso à luz de evangelhos hoje tão citados em templos e congressos neste país. Escrevo-o recordando como Jesus se comportava com o poder, seja o político ou o religioso, quando tramavam sua morte. Vou recordar apenas dois episódios emblemáticos narrados pelos evangelhos canônicos, autorizados pela Igreja, que os evangélicos e católicos devem conhecer muito bem.

Em Lucas 13, 31 e ss., os amigos de Jesus o aconselham a ir embora da pobre e rural Galileia onde pregava, já que o rei Herodes queria matá-lo. Não explicam o motivo do ódio do tetrarca contra ele, mas fica claro na resposta de Jesus: “Ide, e dizei àquela raposa que continuarei expulsando demônios e curando doentes”. Herodes temia uma insurreição dos pobres e marginalizados que seguiam e aclamavam o profeta.

Na outra passagem, narrada nos quatro evangelhos, é o poder religioso que enfrenta Jesus. Quando viajou à rica e intelectual Jerusalém e entrou no Templo, notou que o local, que devia ser “casa de oração para todas as gentes”, tinha se tornado um “covil de ladrões”. Referia-se aos vendedores de animais para os sacrifícios dos fiéis pobres, e também aos cambistas que traficavam com moedas. Foi a primeira vez que o profeta da paz perdeu a paciência e “derrubou as mesas dos cambiadores”. A reação foi imediata: “Os escribas e príncipes dos sacerdotes, tendo ouvido isto, buscavam ocasião para o matar; pois eles o temiam” (Marcos 11, 15 e ss.). Por que esse medo do poder frente ao desarmado profeta dos últimos?

Hoje, mais de 2.000 anos depois, mais do que querer matar Jesus, o que o poder no Brasil está fazendo é mais sutil e perigoso. É apropriar-se dele, domesticá-lo, usá-lo para seus interesses. O perigo de hoje é que Jesus, em vez de aparecer ao lado de quem precisa vender algo na rua para sobreviver, pareça à vontade nos corredores onde se cozinha a política. Ou nos templos onde se ensina aos humildes e aos pouco escolarizados que Jesus está ao lado dos que triunfam, e não dos perdedores.

Não sei se o profeta galileu, que acabou cravado em uma madeira como um criminoso comum, era ou não anticapitalista. Certamente era anticonsumista. Nem casa tinha. Não deveriam se esquecer disso os religiosos que o profanam ao oferecê-lo como talismã aos governantes. Mais do que nunca, o poder religioso deveria recordar aqui, no Brasil do “Deus acima de todos”, que Jesus tinha pedido a seus seguidores que separassem o trono do altar: “Deem a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Lucas 20, 25). Misturar os dois poderes, colocar Deus como fiador da impunidade, significa montar novas cruzes para poder continuar sacrificando inocentes. A idosa que vendia três pacotes de quiabo na rua, e o que ela simboliza, julga a todos, esquerda e direita, cristãos e ateus.

Armas e urnas

Diante da violência generalizada por bandidos armados, os eleitores foram às urnas para eleger um candidato que defendia autorização para facilitar a posse de armas. Com a ilusão de que arma guardada em casa impede bandido, o eleitor teve razão no seu voto, e o presidente eleito, comprometido com sua promessa, tem razão em cumprir seu compromisso. As urnas pediram armas.

Os eleitores sempre têm razão, mas nem sempre estão certos. A razão vem do clima de desconfiança e do desespero, mas estar certo depende dos resultados que serão obtidos: nada indica que o armamentismo vai reduzir a violência no presente, e tudo indica que vai trazer consequências negativas no futuro.

Precisamos de polícia armada para nos defender, não de nos armarmos para reagir a ruídos na porta, desentendimento no trânsito, rejeição de atendimento a um familiar doente nas portas de hospitais. Em outubro, armas e urnas casaram, mas não darão bons frutos.

Um mínimo de lucidez sem demagogia permite imaginar os negativos resultados do armamentismo individual: aumento no desprezo e na falta de respeito aos policiais e soldados; mais armas nas mãos de bandidos que se dedicarão a roubar pessoas de que eles desconfiem ter armas; pessoas decentes que em momento de raiva se transformarão em assassinos; risco de nas mãos de crianças de famílias descuidadas provocarem tragédias definitivas. Autorizar posse de arma não combate a violência, expande-a, leva-a para dentro de casa, nas mãos de menores curiosos, de maridos violentos, de vizinhos nervosos.

Num tempo em que não se confia na polícia e nos policiais, nem em outras forças armadas e profissionais da segurança, o eleitor votou no que lhe parecia ser o melhor caminho para se defender. Sobretudo quando os próprios governantes recomendam não confiar na polícia nem nos policiais e autorizam cada um a comprar sua arma.

O eleitor iludido tem razão, mas comete um equívoco; o governante ilude e compromete a segurança, no lugar de enfrentá-la. A solução correta seria recuperar a confiança do eleitor na polícia e nas forças armadas, mas preferiu-se a solução simplista e demagógica de concordar com o cidadão para manter o desprezo à polícia e assumir o papel de defender pessoalmente a si e sua família.

O voto foi democrático, o presidente cumpre sua promessa de campanha, mas eleitores e ele estão errados, porque em política nem sempre ter razão é estar certo. Ter razão vem dos argumentos que ouvimos e nos convencem, estar certo decorre dos resultados positivos que ocorrerão em função da decisão tomada.

Pior é que esse armamentismo dificilmente será revertido. Uma vez armados, brasileiros nunca mais serão desarmados. Os que têm dinheiro para comprar armas e balas vão adquirir o direito e, no Brasil, direito adquirido fica pétreo para os ricos. Não faltarão políticos demagogos e populistas para serem aplaudidos ao proporem juros baixos para os pobres comprarem armas e “bolsas-bala” para municiá-las.

Além disso, medidas simplistas como essa tendem a impedir debates sérios. Iludem, ofuscam e fogem de perguntar por que o país que antes instigava pela tolerância agora intriga por substituir o diálogo pela intolerância; que aceitava e até se divertia com suas divergências, agora transforma as divergências em disputa, brigas, guerras.

O país que instigava pela tolerância é o campeão mundial de mortes violentas com mais de 60 mil assassinatos por ano, é campeão de concentração de renda e de desprezo aos professores; último colocado na qualidade de suas escolas e pior na desigualdade como suas crianças são educadas.

Não se debate como foi possível manter a persistência da pobreza ao longo de décadas, sem renda suficiente, água, esgoto, cultura; como deixamos nossas cidades se transformarem em “monstrópoles”, no lugar de metrópoles; como perdemos o controle e deixamos continuar o desmatamento da Amazônia, a contaminação dos rios, a sujeira nas ruas; sobretudo não nos perguntamos por que ficamos violentos, achando que o problema decorre da falta de armas nas mãos dos cidadãos e não do excesso delas na sociedade desigual, descontente, desconfiada.

No lugar de buscarmos soluções definitivas, o armamentismo aparece como opção simplista que não resolve e muito possivelmente agravará o problema. No lugar de entendermos o porquê da violência e como construir harmonia, estamos preferindo iludir o eleitor com a demagógica e grosseira falta de lucidez de que mais armas constrói paz e reduz mortes.