quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Independência do Brasil


Blow-up

Blow-up é a ampliação do negativo. Ao revelar a cena e desconfiar da aparência do presidente, que fala em mudança e age como se não a quisesse, o Parlamento entendeu o recado. Partiu para agenda própria e precisa de ímpeto pontual e permanente diante do quotidiano disperso e ambíguo do Executivo.

Tem ainda a temporada no inferno por que passam o Judiciário e o Ministério Público. Seria bom os dois interromperem por um momento a troca de ofensas para explicarem, em nota conjunta, o que é mesmo a justiça para todos.

Convenhamos, não dá mais para alguém dizer essas coisas desse jeito. Sem modos nunca houve sociedade livre. Tem sido comum presidentes desfrutarem uma perigosa liberdade de expressão visando a dirigir os sentimentos da Nação para si próprios. Opiniões e atitudes nesse cargo deveriam ser fatos políticos extraordinários, e não o retrato dos princípios pessoais que estão por trás deles.


Ninguém é herdeiro das lutas do povo por ganhar uma eleição. Especialmente numa época em que milhões de mensagens angulam a percepção do eleitor numa determinada direção, violando sua privacidade. O escondido embaralha os critérios da pessoa, o flagrante esconde o principal. O truque da eleição continua.

Perder o equilíbrio da aparência para ser notícia contém uma carga de orgulho que, contrariada, pode desabar em violência. O insulto é uma forma de defesa. Nomear os outros para segregá-los, simplificando o sentido de tudo, revela um Brasil gigante anêmico.

Nada do que só fecha a porta ao entendimento é liberalismo. Tudo esconde seu oposto, especialmente venenosas atitudes cênicas. E ao deixar a economia se conduzir liberal, enquanto deixa claro que o que vale são acertos de contas, o presidente revela um mal inconsciente em sua compreensão das coisas. Explica a seus eleitores o que quer condenar supondo a rendição do País, que não gosta. Mais rígido, mais se enrola no paradoxo.

Se o Executivo não encara a imensidão de possibilidades que são a liberdade e a diversidade humana, sendo ela a única que pode realmente produzir o resultado econômico e cultural que faz qualquer governo dar certo, melhor o Congresso dar as cartas.

Querer prosperar economicamente sob um governo liberal e ao mesmo tempo ampliar o sectarismo sobre a sociedade é uma equação inexistente. A estagnação econômica permanecerá se não for enfrentada com a árdua missão de governar com autoridade, discernimento e sacrifício. Aqui é assim: a dificuldade no poder ampara o emocionalismo retrógrado do populismo brasileiro.

O coração do povo é mais vasto do que se supõe. Mira o futuro. Polêmicas políticas são piadas velhas. Provocam emoção num tipo de mercado paralelo onde opera uma cabeça de negócios superada.

Polêmicas morais, de querer costurar a letra escarlate em pessoas e instituições, nenhum governo transitório pode se pretender senhor assim. O erro nessa área será devastador se a razão que vê em tudo uma desordem inexistente preparar a justificativa para uma ordem indesejada. É risco na veia governar por antagonismos.

Muitos equívocos entre nós são fruto do esquecimento, que vem depressa. Sempre ficamos sabendo tarde demais que a oportunidade criada pela idiossincrasia das autoridades costuma ser cozida e comida para ser entregue em endereço certo. Assim, tudo pode começar a deturpar o comércio de bens democráticos e ampliar a fragilidade da vida política.

O Parlamento é a principal instituição do País. Existe uma afinidade vocacional e originária no bom parlamentar que é ser responsável sem precisar ser governista em tudo. Sua urgência é romper o despreocupado estado de espírito com os grandes desafios da hora e exercer o papel de organizar o debate nacional compondo interesses conflitantes e legítimos.

Em relação à ordem econômica, é mantra dizer que as economias bem-sucedidas se diferenciam pela duração dos períodos de crescimento. Já é consenso que a boa economia nem deve ser tratada como uma peça de moralidade, nem deve ser imoral.

O País está paralisado por uma espécie de “fada da confiança” vestida pela incerteza que é a natureza do estilo do presidente. E continua dividido entre os economistas sociais, certos de que é a desigualdade que está refreando a demanda, esmagando nossa recuperação e mantendo a crise permanente; e os economistas liberais, convencidos de que a ideia do crescimento é uma onda, traduzida na velha imagem de que é a maré alta que levanta todos os barcos.

Há expectativa e temor no Congresso de que a recuperação do País não seja compatível com o calor que emana do controle político desse presidencialismo de atritos. Só esfriando os ânimos se diminui o potencial da combustão que está no ar.

Outro desafio para a ação parlamentar é deter a tendência de mais um presidente querer inventar uma política externa. Fato que mais nos afasta da hipótese de termos algum papel na balança de poder mundial. Situação possível se o Senado não impedir que o Itamaraty continue a acumular desequilíbrios. É um erro político centrar o debate da ocupação do posto de Washington como problema familiar.

Não se trata de ofender o presidente, mas salvá-lo do risco de sonhar com grandezas que não nos dizem respeito, que é embarcar na encruzilhada em que Trump meteu os EUA com essa ideia de reconstruir o “Sistema de Yalta”, redividir o mundo em áreas de influência e apostar em conflitos regionais.

Se isso acontecer, o Brasil assumirá contornos que podem esfacelar nossa ordem continental, enfraquecer nossa força de poder brando em temas transnacionais, pôr em dúvida nossa legitimidade em operações de paz e quebrar nossa agricultura na OCDE ao ampliar a repercussão desse proselitismo ambiental equivocado. Um Brasil big stick e antieuropeu é um contrassenso cultural e um irrealismo político-militar inédito em 130 anos de História da República.

Onde erramos: de Itamar a Temer

Em janeiro de 2018, fui convidado a uma palestra em Oxford para falar sobre por que Bolsonaro venceu. Disse que aceitaria falar sobre porque os democratas progressistas perderam. A palestra se transformou em pequeno livro que será publicado em breve, em que lembro que, no próximo ano, completaremos 35 anos de democracia, dos quais 26 com democratas-progressistas no poder; e o eleitor decidiu nos derrotar.

Depois de 26 anos no poder, 1/4 de século e de República, cinco presidentes — Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma, Temer —, o quadro que deixamos não satisfez ao eleitor que nos derrotou, mas ainda nos negamos a fazer autocrítica, entender onde nós, os democratas progressistas, erramos.
Erramos ao desperdiçar a chance de um pacto nacional para darmos coesão política ao presente e rumo ao futuro. Consideramos que nosso papel era apenas recuperar a democracia na política e acelerar o crescimento na economia com mínimas ajudas aos pobres, esquecendo que tínhamos um país a construir: eficiente, justo, pacífico, sem pobreza, sustentável. Ignoramos as imensas transformações em marcha na civilização, sob a forma da globalização, da inteligência artificial, dos limites ecológicos ao crescimento, da realidade contemporânea em que o conhecimento é o principal vetor do progresso econômico.

Desprezamos a experiência de que não se constrói justiça social sobre economia ineficiente. Erramos ao ficarmos presos a ideias obsoletas na esquerda e cairmos em vícios da direita. Prisioneiros do imediatismo eleitoral, submetemo-nos ao corporativismo de empresários e de trabalhadores; preferimos atender aos sindicatos do que ao povo, ao presente do que ao futuro. Em vez de usar o poder para transformar, preferimos nos acomodar para sobreviver no poder, optamos pelo populismo.

Não percebemos o esgotamento financeiro, administrativo e moral do Estado. Continuamos recusando as reformas necessárias para fazê-lo eficiente, comprometido com o público e protegido contra a corrupção. Ao contrário, aparelhamos o Estado, patrocinando seu inchaço; fomos tolerantes, coniventes, complacentes e locupletados na corrupção. Optamos pela irresponsabilidade fiscal, jogando o país na recessão, no desemprego e na inflação. Desprezamos a austeridade nos gastos públicos, defendendo mordomias e privilégios, quando deveríamos ter sido a vanguarda das reformas necessárias ao progresso. Preferimos falar para os eleitores no presente, mesmo enganando-os com populismo, a dizer a verdade e apontar para o futuro.

No lugar de fazermos autocríticas, tratamos como inimigos os aliados que nos alertavam e nos aliamos a corruptos que nos aplaudiam. Ainda pior, cooptamos os intelectuais, especialmente universitários, para o silêncio reverencial. Caímos no culto aos líderes das siglas, ignorando seus erros e perdoando suas corrupções.

Abdicamos de defender os símbolos nacionais, politizamos a economia e os valores morais, além de relegar a importância da cultura na formação de uma mente brasileira comprometida com o progresso: a educação, a sustentabilidade, a eficiência, a paz, o sentimento de patriotismo, a defesa da ética no exercício do poder e dos serviços públicos. No lugar do povo e da nação, preferimos o apego às siglas partidárias.

Não percebemos que nossa bandeira viável e revolucionária consistiria em uma “concertação nacional” por uma estratégia de longo prazo para colocar o Brasil entre os melhores do mundo em educação e garantir escola com a mesma qualidade para todos, filhos dos pobres em escolas tão boas quanto filhos dos ricos, como tantos outros países já fizeram. Se tivéssemos seguido essa estratégia nos 26 anos que estivemos no poder, hoje teríamos economia eficiente e sociedade justa.

Fabricamos o “outrismo”, e agora é difícil sair dele. Para isso, será preciso entender onde erramos e formular nossas propostas de rumo para o futuro: atrair o eleitor para uma alternativa que construa novamente o Brasil, sermos estadistas, não apenas políticos. Mas isso não parece fácil pela fragilidade de nossos filósofos e pelos vícios de nossos políticos.

A saída para o Brasil não virá pelos sectários, mas os não sectários não parecem ter chance nos próximos anos. Porque é muito forte a aliança entre os extremos. Os sectários são iguais, com palavras diferentes que se autoalimentam, conseguindo eliminar todos que não se identificam com os reacionários obscurantistas ou com os reacionários obsoletistas, que fazem uma aliança de inimigos, repetindo 2018 em 2022.
Cristovam Buarque

Bolsonaro e o Caliban

"A aversão do século XIX pelo Realismo é a ira de Caliban por ver seu rosto no espelho; a aversão do século XIX pelo Romantismo é a ira de Caliban por não ver seu rosto no espelho”, escreveu Oscar Wilde no prefácio a seu romance “O retrato de Dorian Gray”.

O Realismo tentava retratar a realidade tal como ela é; o Romantismo idealizava a realidade; Caliban é uma personagem bestial de “A tempestade”, de Shakespeare. Wilde quer dizer que existe uma parcela tosca da sociedade que sempre odiará a arte, a cultura, a civilização, ou porque estas revelam seus defeitos e insuficiências, ou porque, ao contrário, descortinam um mundo belo e elevado ao qual ela jamais poderia pertencer.

As armas do Caliban contra a civilização são a inveja, o rancor, o ressentimento, o ódio, o preconceito, o anti-intelectualismo, a intolerância, a mentira, a intimidação, a violência. Assim como Próspero, protagonista de “A tempestade”, mantém Caliban cativo para garantir a segurança de sua filha Miranda, a sociedade precisa manter o Caliban sob controle para garantir a segurança da civilização: quando ele se liberta, as consequências são graves.


Exemplos extremos do Caliban são a fase final da Revolução Francesa; os camisas negras na Itália; a SA e a SS na Alemanha; a Guarda Vermelha na China da Revolução Cultural; o Khmer Vermelho no Camboja; os porões das ditaduras militares sul-americanas. A mais perfeita tradução do Caliban está no brado lúgubre, e contraditório, da Falange Espanhola na guerra civil: “Abaixo a inteligência! Viva a morte!”.

Para se libertar, o Caliban precisa de um ambiente propício, como este que temos hoje no Brasil: devastação econômica; polarização política; frustração, ressentimento e ódio (constantemente alimentados pelos dois lados); a percepção de que o Legislativo é composto de corruptos e o STF é um obstáculo à luta contra a corrupção; deterioração institucional. E um representante do Caliban capaz de galvanizar tudo isso — com o beneplácito de muitos que deveriam temê-lo.

Estamos vendo agressões diárias à imprensa, à academia, à ciência, à arte, à cultura, ao meio ambiente, a países amigos, às minorias, à lei, à lógica, ao bom senso, às boas maneiras — enfim, à democracia e à civilização. Quem ousa discordar é descartado e, se isso não é possível, linchado nas redes. Seria de se esperar que a sociedade— ou, ao menos, sua parcela mais preparada, que compreende a importância da democracia e dos valores ocidentais — reagisse com vigor. Em que pesem os muitos protestos, é assustadora a quantidade de pessoas preparadas que releva, relativiza, minimiza, justifica ou abertamente defende as infâmias de Bolsonaro. Essa complacência se explica pela revolta contra o PT e pelo raciocínio “vamos consertar a economia, o resto a gente vê depois”.

A complacência não se justifica. A revolta contra o PT perdeu o objeto: derrotado na eleição, fora do poder há três anos, com seu chefe e dono preso, o partido está fora da equação. A discussão não é mais sobre se Bolsonaro é melhor do que Haddad, mas sobre se sua conduta é aceitável em uma sociedade democrática.

O “raciocínio” também está errado: para consertar a economia, não é preciso destruir o resto e, dependendo do que for destruído, “consertar depois” pode não ser possível. E, por melhor que seja a equipe econômica, ela não basta. Crescimento sustentável exige investimento em educação, ciência e cultura; respeito ao meio ambiente; segurança jurídica; boas relações exteriores. Exige também investimento privado, coisa difícil em clima permanente de confronto e incerteza. O Caliban não é inimigo apenas da civilização: é inimigo do crescimento econômico, também.

Por fim, vale lembrar àqueles que supõem ser possível controlar o Caliban que a história mostra que ele sempre devora quem o alimenta.

Ricardo Rangel

Paisagem brasileira


Bolsonaristas vão à rua na contramão do capitão

A infantaria bolsonarista organiza nova manifestação para o dia 25 de agosto, um domingo. Dessa vez, o asfalto roncará em duas faixas. Numa, apoiará a dupla Sergio Moro e Deltan Dallagnol. Noutra, pedirá o impeachment de uma trinca suprema: Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.

Jair Bolsonaro terá dificuldade para surfar as cenas, pois passou a marchar na contramão de sua tropa. Trocou a defesa da Lava Jato pela proteção dos esqueletos que sua família tem no armário. Hoje, faz dobradinha com Toffoli e Cia. para desligar da tomada o Coaf e enfraquecer a Receita Federal —duas usinas de dados para processos anticorrupção.

Em 27 de agosto, dois dias depois da manifestação, Moro e Deltan serão arrastados para o patíbulo. O pescoço do ex-juiz vai à guilhotina na Segunda Turma do Supremo, no julgamento de um pedido de suspeição formulado pela defesa de Lula. Com azar, esse julgamento pode envenenar a biografia de Moro como ex-magistrado. Com muito azar, a Segunda Turma pode devolver Lula ao meio-fio.

A lâmina assediará a garganta de Deltan, chefe da força-tarefa de Curitiba, no julgamento de um pedido de punição no Conselho Nacional do Ministério Público. Coisa relacionada ao conteúdo da primeira leva de mensagens roubadas do seu celular. O conta-gotas começou a pingar há dois meses e cinco dias, em 9 de junho. Numa das conversas, ironicamente, Deltan fala para colegas da Lava Jato sobre a conveniência de atiçar as ruas.

Tomando-se como autêntico o que foi vazado, o coordenador da Lava Jato escreveu o seguinte na antevéspera da apresentação da primeira denúncia contra Lula: "A opinião pública é decisiva e é um caso construído com base em prova indireta e palavra de colaboradores contra um ícone que passou incólume pelo mensalão". Com azar, as mensagens podem render uma suspensão de Deltan. Com muito azar, abre-se um procedimento para sua exoneração.


Na campanha presidencial, Bolsonaro enrolou-se na bandeira da ética. Eleito, enfeitou a Esplanada dos Ministérios com a biografia do homem que mandou prender Lula. Agora, seus apologistas mais abrasivos pedem que prestigie Moro e aproveite a sucessão de Raquel Dodge para acomodar Deltan na poltrona de procurador-geral da República.

Em relação a Moro, o capitão deu voz de prisão ao pacote anticrime do ministro, trancando-o no freezer. "Entendo a angústia dele em querer que o projeto dele vá para a frente, entendo, mas nós temos que combater, diminuir o desemprego, fazer o Brasil andar, abrir o nosso comércio". Quanto a Deltan, Bolsonaro apressou-se em afastá-lo da poltrona de procurador-geral. Retuitou mensagem na qual o procurador era retratado como "um esquerdista estilo PSOL".

Em nova fase, o capitão reserva seus melhores elogios para as togas que seus seguidores querem puxar para fora do Supremo. Em privado, Bolsonaro derrama-se em elogios a Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. A pedido do primogênito Flavio Bolsonaro, Toffoli, suspendeu investigações fornidas com dados do Coaf e da Receita. Moraes travou investigação do Fisco sobre 133 contribuintes, entre eles Gilmar Mendes. E mandou afastar dois servidores da Receita.

Noutros tempos, Jair Bolsonaro espancaria o Supremo e seus ministros nas redes sociais. Seu filho Zero Três, Eduardo Bolsonaro, talvez repetisse que bastam "um cabo e um jipe" para fechar a Suprema Corte. Mas os tempos são outros. Escolhido como novo embaixador brasileiro em Washington, Eduardo virou matéria-prima para o Supremo numa ação por nepotismo que aguarda na fila para acontecer. E seu pai-presidente agora faz dobradinha com a Corte que costumava desancar.

Nas pegadas das decisões de Toffoli e Moraes, Bolsonaro se equipa para fatiar os poderes da Receita e lopoaspirar as competências do Coaf, escondendo-o no organograma do Banco Central. De resto, ajeita a demissão de Roberto Leonel, o auditor que Moro transferira da Lava Jato para o comando do Coaf na época em que ainda dispunha de "carta branca".

A cabeça de Leonel vai à bandeja porque ele ousou criticar, por esdrúxula, a decisão de Toffoli no recurso de Flávio Bolsonaro. Recorde-se que a movimentação bancária atípica do filho mais velho não é o único esqueleto dos Bolsonaro. As investigações bloqueadas por Toffoli incluem transferência de R$ 24 mil do "amigo" Fabrício Queiroz para a conta bancária da primeira-dama Michelle Bolsonaro.

O presidente alegou tratar-se de parte do pagamento de um empréstimo de R$ 40 mil que fez a Queiroz, ele próprio dono de movimentação bancária milionária. Não há vestígio de contrato ou promissória. Bolsonaro desobrigou-se de prestar contas à Receita Federal. Ainda não explicou como repassou os R$ 40 mil ao "amigo". Tampouco esclareceu se já regularizou sua situação no fisco. Sabe-se apenas que a primeira-dama encontra-se na alça de mira de auditores fiscais.

O discurso que fazia de Bolsonaro um paladino autoproclamado dos bons costumes enferrujou. A manifestação do dia 25 de agosto ajudará a expor o processo de oxidação. É cedo para dizer se as ruas conseguirão deter as lâminas que um pedaço do Supremo e do Conselho Nacional do Ministério Público gostariam de descer sobre os pescoços de Moro e Deltan. Mas Bolsonaro já não consegue disfarçar a ferrugem que recobre sua imagem.

Os procuradores de Curitiba queixam-se de que a oligarquia e a bandidagem repetem com a Lava Jato o movimento de desqualificação que engolfou a Operação Mãos Limpas, na Itália. Lá, deu em Silvio Berlusconi. Se Bolsonaro não se cuidar, o asfalto pode concluir que ele virou uma espécie de Berlusconi à brasileira.

No pensamento privado

A habilidade específica do político consiste em saber que paixões pode com maior facilidade despertar e como evitar, quando despertas, que sejam nocivas a ele próprio e seus aliados
Bertrand Russell

Zero Dois, o colecionador de cabeças

Em versão atualizada e enxuta, está de volta o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) – e congêneres, desta vez sob a chefia do vereador Carlos Bolsonaro, vulgo Zero Dois, o temido colecionador de cabeças que assombra a República desde que seu pai vestiu a faixa presidencial, lá se vão quase oito turbulentos meses.

Em sua versão original, datada do início dos anos 60 do século passado, o CCC foi uma organização paramilitar anticomunista de extrema direita composta por estudantes e policiais favoráveis à implantação no país de um regime autoritário. Com o golpe militar de 64, passou a caçar os adversários da ditadura.

Como o capitão, o Zero Dois acha que o Brasil poderá ser uma presa fácil para o comunismo que ainda estaria vivo por toda parte e ameaçador. Dedica-se à tarefa de defender o pai de todos aqueles que enxerga como inimigos – à esquerda ou à direita, não importa. E para isso só haveria uma solução: decapitá-los.


Foi o que já fez com os ministros Gustavo Bebbiano (Secretaria-geral da Presidência) e Santos Cruz (Secretaria do Governo). E agora com o jornalista Paulo Fona que só ficou sete dias como assessor de imprensa da presidência da República. Em menos de oito meses, Bolsonaro já teve três assessores de imprensa.

Em junho último, Fona foi chamado para uma conversa com Fabio Wajngarten, chefe da Secretaria de Comunicação Social da presidência. Wajngarten quis ouvi-lo sobre sua experiência como assessor de imprensa de dois governos no Distrito Federal (PMDB e PSB) e de um no Rio Grande do Sul (PSDB).

No final do mês, em novo encontro, Wajngarten convidou Fona para ser o assessor de imprensa de Bolsonaro. O jornalista sugeriu que ele pesquisasse sua vida profissional para se certificar melhor da escolha que fazia. Forneceu-lhe todos os seus dados pessoais – CPF, Carteira de Identidade e nomes de antigos empregadores.

Quinze dias depois, o martelo foi batido durante o terceiro encontro dos dois, e Fona apresentado como assessor de imprensa aos generais Luiz Eduardo Ramos Pereira (ministro da Secretaria de Governo) e Otávio Rêgo Barros (porta-voz da presidência da República). Em seguida, a notícia vazou para a imprensa.

A nomeação só foi formalizada no dia 6 de agosto porque Fona demorou a providenciar cópias do certificado de reservista e do diploma de bacharel em jornalismo. Ontem à tarde, um auxiliar de Wajngarten chamou Fona ao seu gabinete e disse que Bolsonaro mandara demiti-lo. Não se deu ao trabalho de explicar por quê.

Funcionário da liderança do PSB no Senado até 31 de julho, o jornalista é o mais novo desempregado da praça. Quem aconselhou Bolsonaro a demiti-lo foi o Zero Dois por considerá-lo de esquerda. Carlos não descansará enquanto não despachar com o pai em Brasília como o responsável pela área de comunicação do governo.

Cuide-se Wajngarten, mas não só ele. Rêgo Barros, pouco a pouco, vem sendo desidratado como porta-voz. Começa a circular nos corredores do Palácio do Planalto uma pergunta que põe o futuro do general em xeque: para quê Bolsonaro precisa de um porta-voz se ele mesmo não para de falar sobre tudo e qualquer coisa?
Ricardo Noblat

Ataques de Bolsonaro contra universidades seguem a mesma lógica de Hugo Chávez

Nas eleições presidenciais de 1998, 56% dos eleitores venezuelanos decidiram dar uma chance ao ex-militar Hugo Chávez, um antipolítico que prometia acabar com a "velha política" e a corrupção. O discurso inflamado e as convicções autoritárias de Chávez foram a estratégia acertada em uma eleição marcada pela ampla insatisfação com o sistema político tradicional e o desejo de ruptura. No ano seguinte, em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o então deputado e ex-militar Jair Bolsonaro chamou o líder venezuelano de uma "esperança para a América Latina." Foi além: "Gostaria muito que esta filosofia chegasse ao Brasil. Acho ele ímpar. Pretendo ir à Venezuela e tentar conhecê-lo”. De fato, apesar de declarar o chavismo como grande inimigo ao longo dos últimos anos, Bolsonaro compartilha várias características com o ex-presidente venezuelano.


Uma dos traços que o brasileiro tem em comum com o fundador do chavismo — e que não costuma ser lembrado — é uma conturbada relação com o mundo acadêmico e o pensamento crítico. Por exemplo, Bolsonaro já criticou a autonomia das universidades federais — garantida pela Constituição — e seu Governo fez ameaças de que instituições fazendo “balbúrdia” teriam suas verbas reduzidas, tendo como alvo principal as ciências humanas, área que supostamente teria forte influência de doutrinação marxista. Como um político da oposição venezuelana me disse durante minha recente visita a Caracas, "Bolsonaro é um aliado importante na luta contra a ditadura aqui, mas é claro que sua retórica me lembra a de Hugo Chávez."

Como costuma ocorrer em regimes com tendências autoritárias, o incômodo do regime chavista com o pensamento crítico e independente nas universidades venezuelanas tradicionais se revelou logo depois da primeira eleição de Chávez. Como o cientista político turco Ilhan Uzgel argumenta, "a primeira coisa que esse tipo de movimento ideológico ataca são pessoas e instituições que produzem conhecimento. Eles precisam eliminar essas áreas para estabelecer seu próprio poder. Porque elas [as universidades] representam a única força dissidente na sociedade."

Em regimes de direita com ambições autoritárias, o pensamento crítico costuma ser tachado de comunista, subversivo ou moralmente reprovável, enquanto regimes de esquerda com as mesmas pretensões geralmente o rotulam de imperialista, fascista ou ligado à velha ordem, opção abraçada pelo presidente Chávez e seus seguidores. O tipo de acusação diverge, mas o desejo de enfraquecer ou controlar centros de pensamento independente é o mesmo.

O presidente Chávez logo percebeu, porém, que confrontar diretamente as universidades tradicionais — as chamadas "universidades autónomas" — seria uma batalha difícil de vencer e causaria resistência junto às elites intelectuais, além de reprovação internacional. Optou, portanto, por uma estratégia mais sofisticada. Em nome de aumentar o acesso ao ensino superior, criou um sistema paralelo de novas universidades diretamente subordinadas ao Executivo, onde há pouco ou nenhum espaço para o pensamento que não estivesse alinhado ao do governo. A conta do Twitter de umas delas, a Universidad Bolivariana de Venezuela (UBV), por exemplo, poderia ser facilmente confundida com uma conta do Governo Maduro, constantemente compartilhando fotos de eventos e palestras do presidente. Universidades alinhadas com o pensamento oficial receberam cada vez mais financiamento público e cresceram rapidamente, enquanto instituições públicas tradicionais tiveram cada vez menos apoio financeiro do Governo.

A partir de 2010, o órgão responsável por aprovar a criação de novos cursos parou de emitir pareceres favoráveis para universidades autônomas, não alinhadas ao chavismo. Travou também o processo de nomear reitores críticos ao regime. Dois anos mais tarde, o Governo começou a interferir diretamente nas eleições de movimentos estudantis. Nessa época, forças de segurança do Estado começaram a intimidar ou prender estudantes, censurar publicações universitárias e invadir instituições de ensino superior, como ocorreu durante as manifestações de 2014 contra o Governo venezuelano. O relatório El pensamiento bajo amenaza: Situación de la libertad académica y la autonomía universitaria en Venezuela (O pensamento sob ameaça: situação da liberdade acadêmica e a autonomia universitária na Venezuela), publicado pela Coalizão de Cátedras e Centros de Direitos Humanos, liderada por acadêmicos venezuelanos, detalha a estratégia sistemática do regime chavista de suprimir a liberdade acadêmica e a autonomia universitária.

Apesar de toda a pressão e das dificuldades que o Governo tem criado para o ensino superior autônomo, porém, o regime não tem conseguido controlar os professores e principais movimentos estudantis, e as universidades se mantêm como principal espaço de pensamento independente do país. Estudantes das grandes universidades autônomas foram cruciais para explicar a derrota de Chávez no referendo sobre a mudança constitucional em 2007 e na organização dos protestos nos anos seguintes. Em retrospectiva, Chávez acertou ao enxergar no mundo universitário a maior resistência a seu projeto autoritário. Enquanto a oposição oficial está dizimada, parcialmente presa, exilada ou desorganizada, numerosos professores e grupos estudantis continuam lutando, diariamente, para preservar um espaço surpreendentemente vivo para o debate político.

Embora Bolsonaro ainda não tenha ido tão longe quanto Chávez, sua retórica e alguns dos primeiros passos do atual governo no que tange a relação com as instituições públicas de ensino superior demonstram claramente a mesma lógica chavista: inibir o pensamento crítico e não alinhado ao discurso oficial. Opositores ao chavismo com quem tive contato direto em Caracas foram explícitos ao apontar as semelhanças entre Chávez e Bolsonaro no tocante à maneira de lidar com o pensamento crítico e independente. Apesar de atacar ferozmente o chavismo, o mandatário brasileiro tem mais em comum com seu “inimigo preferido” do que seria capaz de admitir.

Pensamento do Dia


Desconhecido e quase intacto: o segundo pulmão verde do planeta

Nas profundezas da África Central palpita uma das florestas mais desconhecidas e intactas do planeta, distribuída entre seis países. Mais de 200 milhões de hectares que em grande medida permanecem um mistério para a ciência e que, ao contrário da Amazônia ou das florestas tropicais da Indonésia, ainda estão ausentes dos catálogos turísticos e das prioridades do agronegócio. No entanto, a crescente demanda por alimentos, madeira e carvão, a falta de oportunidades econômicas e o comércio ilegal de espécies estão começando a corroer os recantos mais virgens da Bacia do Congo. Uma floresta que sustenta 60 milhões de pessoas; abriga uma em cada cinco espécies conhecidas, incluindo cerca de 10.000 de plantas, e regula o clima e os padrões de chuva do mundo. Não à toa, é o segundo pulmão verde do planeta depois da Amazônia.

Florestas da Bacia do Congo concentram 70% da cobertura florestal
 do continente e funcionam como um termostato natural para a região e para o mundo
“Precisamos urgentemente compreender como funcionam as florestas da África Central para criar planos de manejo sustentável que beneficiem as comunidades, o clima e a biodiversidade ao mesmo tempo”, diz Paolo Cerutti, um dos grandes especialistas mundiais no assunto e responsável pelo Projeto Formação, Pesquisa e Meio Ambiente em Tshopo (Forets), no norte da República Democrática do Congo (RDC). A iniciativa, financiada pelo XI Fundo Europeu de Desenvolvimento e coordenada pelo Centro Internacional de Pesquisa Florestal (Cifor), promove o desenvolvimento sustentável em torno da reserva da biosfera de Yangambi, além de formar a primeira grande geração de especialistas florestais do país e romper um isolamento científico alimentado por décadas de fragilidade e violência.

As principais causas de degradação da floresta na RDC são a produção de carvão e a agricultura de corte e queimada, seguidas pela extração de madeira e a mineração. “Normalmente, os madeireiros artesanais cortam de forma seletiva as árvores que interessam aos setores de marcenaria e construção”, explica a especialista científica do projeto, Silvia Ferrari. “Depois a população local corta o restante das árvores para fazer carvão e, na última etapa, queima toda a vegetação da região para cultivar alimentos como a mandioca. A produtividade é muito baixa e a terra logo se esgota, razão pela qual o ciclo se repete em outro lugar, devorando a floresta progressivamente”.

Esse círculo vicioso é um desafio considerável para o Forets e seus parceiros congoleses, especialmente considerando o ponto de partida: uma população que dobrou em apenas 20 anos e continua a crescer; a dependência do carvão e da lenha, que fornecem 80% da energia primária na África subsaariana e não têm um substituto imediato; bem como a demanda por madeiras nobres no continente e em mercados estrangeiros como a China. O panorama é complexo, mas existem saídas, começando por conhecer melhor como são e como funcionam as florestas da África Central.


Passar semanas seguidas trabalhando e vivendo na floresta equatorial não é algo simples, como bem sabem o doutorando congolês Nestor Luambua e sua equipe de apoio. Nos últimos meses eles inventariaram, mediram e identificaram todas as árvores em uma área equivalente a 300 campos de futebol, e o fizeram abrindo passagem a golpe de facão, evitando raízes aéreas e desfilando entre lodaçais e focos de formigas marabunta.

O calor e a umidade são suficientes para embaçar os óculos instantaneamente, mas Luambua e os seus companheiros sabem como entrar na floresta: “O gorro enfiado até as orelhas nos protege das nuvens de moscas que tentam entrar nos ouvidos; o capacete de obra, das frutas e galhos poderes que se desprendem a grande altura; e as botas de borracha são uma linha de defesa contra animais como víboras e cobras”, comenta Luambua durante uma parada ao longo do caminho. “Seja como for, quando estou na floresta não penso nos desconfortos; estou absorto em meu trabalho de pesquisa”.

Este rapaz de 29 anos está ciente de que está abrindo caminhos que outros seguirão, na floresta e fora dela. Em 2005 havia apenas seis pesquisadores com mestrado ou doutorado em ciências florestais em toda a RDC, um país quase cinco vezes maior que a Espanha e que concentra 60% das florestas da África Central. Luambua é um dos 220 estudantes de mestrado e doutorado congoleses que se formaram na última década sob o guarda-chuva do Cifor, da União Europeia e da Universidade de Kisangani (Unikis), a cerca de 90 quilómetros rio acima de Yangambi, no norte do país.

Luambua está pesquisando como as árvores locais reagiram às alterações climáticas e à presença humana no passado, enquanto o doutorando de 27 anos Chadrack Kafuti estuda o crescimento da Afrormosia (Pericopsis elata), a segunda espécie de madeira nobre mais exportada da RDC. Segundo o associado do Cifor Nils Bourland, essa espécie emblemática mal está se regenerando em condições naturais, razão pela qual continuar cortando-a às cegas poderia dar-lhe o golpe de misericórdia nas próximas décadas. Na Nigéria, Costa do Marfim e República Centro-Africana só estão de pé os barcos, móveis e caixões que foram feitos com sua resistente madeira castanho-dourada.

“Existem pouquíssimos estudos sobre como as florestas da Bacia do Congo reagirão ao aquecimento global”, diz Kafuti, explicando que esse conhecimento é essencial para prever como responderão à crise climática e à pressão demográfica no futuro, e para orientar as políticas de conservação e exploração sustentável das florestas na África Central.

O conhecimento é urgente em muitas áreas. De acordo com Kafuti, por exemplo, 70% das exportações de madeira da República Democrática do Congo são de apenas 10 espécies, o que ameaça sua sobrevivência. “É fundamental explorar outras espécies de potencial interesse econômico para reduzir a pressão sobre essas árvores, mas não temos cientistas suficientes”, explica Kafuti, que pesquisa com o apoio da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens Ameaçadas de Extinção (Cites). E quando o pessoal não falha, o equipamento falha.

Até recentemente, os cientistas que estudavam árvores na Bacia do Congo tinham que levar suas amostras para a Europa (ou para mais longe) para analisá-las. “Imagine ter de carregar 30 cortes de madeira de 10 quilos cada até a Bélgica”, diz Kafuti, que colabora com a Universidade de Ghent e o Museu Real da África Central (RMCA). “Conheço pesquisadores congoleses que queriam realizar estudos muito interessantes sobre a anatomia da madeira, mas tiveram que jogar a toalha porque não havia equipamento adequado na região”. Em outros casos, o dinheiro acabou e as amostras terminaram empilhadas às margens do rio Congo, estragando ao lado de carregamentos de borracha e carvão vegetal.

Para sorte de Kafuti e seus colegas, a Estação de Pesquisa de Yangambi acaba de inaugurar o primeiro laboratório de biologia da madeira na África subsaariana. Uma instalação de ponta junto à floresta que permitirá que pesquisadores nacionais e estrangeiros compreendam como as árvores funcionam na Bacia do Congo. “A madeira representa 98% da biomassa da floresta tropical, então dificilmente podemos compreender a floresta sem conhecer esse componente”, explica Hans Beeckman, chefe do Serviço de Biologia da Madeira do RMCA e um dos promotores da instalação.

“O laboratório pretende se tornar um viveiro de cientistas congoleses e um centro de intercâmbio com especialistas de países da Bacia do Congo e de outros continentes”, resume Mélissa Rousseau, colaboradora científica do RMCA e responsável pela instalação. Os equipamentos, que no futuro serão totalmente operados por pessoal local, também poderão ser usados para a identificação forense da madeira. Ou seja, para determinar a quais espécies pertencem lotes de madeira que levantaram suspeitas entre as autoridades locais ou da Cites.

Quantos crimes em teu nome...



Não há poder. Há um abuso de poder
Henry de Montherlant

A ultradireita chega ao paraíso

Agora que alcançamos o oitavo mês de 2019, um pouco mais de 200 dias de gestão do presidente Bolsonaro, vê-se que está em vigência a gestão mais ideológica desde a implantação da chamada Nova República no País. Só lembrando, esse é o nome do atual período político que começou em 1985, com a eleição indireta de Tancredo Neves, instalação da democracia e da estabilidade econômica. Nas eleições de 2018, a classe média ressentida com as condições de vida se consolou nos braços do populismo, deu mote ao discurso de ódio e alimentou o ultra conservadorismo. Hoje, a direitona é quem manda; falou, está falado; não tem discussão.


Nenhum governo, de 1985 para cá, foi mais ideológico que o atual, ao contrário do que o próprio presidente garantiu no discurso do dia primeiro de janeiro, quando tomou posse. Ele – ou “Ele”, se preferirem – disse, em português e na linguagem de libras, que a culpa de todos os males brasileiros era a ideologia. Como se ideologia fosse o espectro das esquerdas. “Ele” insistia que era preciso “livrar o país das amarras ideológicas” e culpou o “viés ideológico” pela corrupção e pela crise econômica. Fazer essa confusão de significados e de discurso era sua estratégia para barrar a atuação política das esquerdas e atribuir a esse segmento a responsabilidade pelos graves problemas sociais, torná-los inimigos públicos, e abrir alas para ele mesmo ser visto como um salvador da Pátria.

Desde as gestões de FHC, Lula e Dilma, o Brasil vinha caminhando – ora mais lento, ora mais rapidamente – no rumo das políticas afirmativas, das conquistas em favor das minorias, dos avanços da cidadania. Mesmo quando lenta, era uma caminhada constante. Mas, na campanha do ano passado, “ele” conseguiu implantar sua agenda de extrema direita, elogiando o uso da força para resolver questões de violência, enaltecendo a tortura praticada durante a ditadura militar; e pregando o moralismo como, por exemplo, a chamada “cura gay”. Eleito, passou a estimular o desejo de uma população nostálgica do uso da força a reviver a experiência militar no governo; e renovou sentimentos reprimidos de quem estava insatisfeito com o politicamente correto.

O critério de escolha dos ministros não levou em conta outra característica senão a ideológica. Não são apenas conservadores, pois conservadores (como os republicanos dos Estados Unidos) são aquelas pessoas que defendem mudanças letárgicas, em passo de tartaruga. Os principais assessores do presidente brasileiro são de extrema direita, que não incluem em suas projeções qualquer possibilidade de benefício aos trabalhadores.

O próprio presidente continuou na defesa do militarismo, do uso de armas de fogo pela população, de torturadores, e provocando as famílias dos desaparecidos da ditadura. O governo não vacilou um segundo, nesses oito meses, em impor o seu modelo econômico e de dominação. Sejam nas questões ligadas às medidas econômicas (privatização acima de tudo e capital acima de todos); no que diz respeito ao meio ambiente (nunca na história deste País se devastou tanto a Amazônia); no desrespeito às minorias (povos indígenas); no ataque aos avanços da população LGBT; na defesa da volta da condição da mulher ao modelo dos anos 1950. E o sentimento de xenofobia encontrou ressonância em integrantes do governo.

Até o projeto de reforma da previdência, praticamente aprovado pelo Congresso Nacional, está sustentado no princípio de que é preciso conter os direitos do cidadão, visando um suposto benefício geral do País. A PEC é justificada pelo crescimento pífio do PIB, pela retomada do crescimento econômico, pelo reequilíbrio das contas públicas. Mas não levou em conta as necessidades do trabalhador. Ninguém fala que o déficit tem razões históricas e é decorrente, sobretudo, da dívida de grandes empresas para com a previdência.

Mas, será que a ultradireita sobrevive? Como nós estamos num país com características próprias, isso vai depender em grande parte do órgão mais sensível do corpo humano: o bolso. A continuação da gestão do presidente Bolsonaro ou a ascensão de um futuro sucessor está condicionada ao desempenho da economia. Se o povo sentir que as condições de vida estão cada vez piores, que sobra mais dia do que salário no final do mês, que o atual governo não oferece resposta para seus problemas e afunda, a cada dia, a situação social injusta; não haverá ideologia que o salve.
Cícero Belmar

Chegamos ao cocô

Sem porta voz, o cocô entrou na pauta governamental do país. Invocado semana sim, semana também, suscita dúvidas. Tem ideologia? O cocô diário será de esquerda? Feito dia sim, dia não, será de direita? Semanal, fica como de ultradireita? De três em três dias, define posição de centro?

Há cocô partidário? Vermelho é comunista? Preto, que assusta os médicos, será anarquista ou nazi-faci? O patriótico terá coloração esverdeada ou amarelada? Será premiado? Castanho – o mais comum – será tucano, tipo muro, nem lá nem cá?

Cocô frequente entra na esfera de rebelião civil? Será crime? Inafiançável? Cabe recurso? Permite habeas corpus?


Apresentada ontem, a nova modalidade, o “cocozinho petrificado de índio”, identifica passagem histórica de “esquerdalha” cagona ou só atrapalha a estrada?

O cocô diário, ainda liberado nos States, será o principal atrativo para o cargo de embaixador, reservado especialmente a portador de incurável distúrbio intestinal?

Assim liberado, o cocô verbal é o fundo do poço? Apenas indicativo da escatologia doente de quem, na vida, não supera a fase anal?

Tem cura?

Chegamos ao cocô. Que M virá ainda? Diária? Aplaudida? Pensada como método de comunicação, a ser disparada todas as manhãs, assim sobre nós, como brincadeira séria nesse poço sem fundo, sem eira nem beira?

Assombrados, abestados, bora invocar Castro Alves, roubando verso do poema Improviso?

“A inépcia nos chamou de estúpidos!”

A inépcia nos trouxe a isso.

População de animais em florestas caiu pela metade desde 1970

Desmatamento, caça ilegal, doenças, mudança climática. Para os animais silvestres que vivem nas florestas do mundo, as últimas décadas representaram uma hecatombe. Segundo um relatório divulgado pela ONG ambiental World Wide Fund for Nature (WWF), a população desses animais diminuiu pela metade desde 1970.

O estudo analisou 455 populações de 268 espécies de mamíferos, répteis, anfíbios e pássaros que vivem em florestas e concluiu que houve um declínio de 53% na quantidade de animais vertebrados entre 1970 e 2014. A WWF aponta que a situação é particularmente crítica na Amazônia e em outras florestas tropicais. O estudo também analisou populações de florestas temperadas, boreais e mediterrâneas.

Segundo a ONG, 60% dessas perdas estão relacionadas ao desmatamento e à degradação drástica do habitat das populações de animais. O texto ainda aponta que a caça, a introdução de espécies invasoras, a disseminação de doenças e a mudança climática também contribuíram para o quadro.

No caso do Brasil, a WWF menciona a derrubada de árvores por madeireiros como principal causa da diminuição da população de animais, mas queimadas também tiveram efeitos duradouros sobre várias espécies. A ONG lembra que 20% de toda a Amazônia já foi derrubada.

Em florestas tropicais como a Amazônia, em média, a perda de população das espécies estudadas superou o crescimento de todos os grupos somados. Já nas florestas temperadas, o crescimento da população de algumas espécies, especialmente pássaros, ajudou a reverter a tendência negativa na média de todas as populações.

Ainda de acordo com a WWF, a diminuição da população tem sido especialmente dura com anfíbios e répteis, enquanto as populações de pássaros registraram mais anos positivos de crescimento do que de declínio.

A análise também menciona exemplos de como a população de algumas espécies pode ser recuperada. Entre os casos mais otimistas mencionados pela WWF está o aumento das populações de gorilas na África Central e Oriental, graças a medidas de proteção, e de macacos na Costa Rica.

No caso da Costa Rica, a WWF chama de positiva a tendência de aumento na proteção e regeneração da floresta tropical. No entanto, a ONG adverte que enquanto as florestas têm capacidade para recuperar mais rapidamente a sua cobertura vegetal, as populações de vertebrados que habitam essas matas podem precisar de muitas décadas para se recuperar totalmente.

Por fim, a WWF lembra que as florestas são essenciais para que metas globais de conservação da biodiversidade sejam atingidas e para combater as mudanças climáticas e promover o desenvolvimento sustentável.

"As florestas são importantes depósitos de carbono, e as florestas tropicais são alguns dos habitats com maior biodiversidade do mundo, contendo mais da metade das espécies terrestres do mundo. As florestas também fornecem outros serviços ecossistêmicos vitais, incluindo alimentos, medicamentos, materiais, purificação de água, controle de erosão e reciclagem de nutrientes. E mais de um bilhão de pessoas dependem das florestas para sua subsistência", conclui o estudo.
Deutsche Welle