quarta-feira, 23 de junho de 2021

Suicídio anunciado

O golpe prometido e descrito por Jair Bolsonaro como forma violenta de manter-se no poder, ao fim do atual mandato, ganhou um absurdo suporte institucional da Câmara e do Senado.

As providências em gestação estão aceleradas. Certamente convencido de que não se reelegerá, Bolsonaro já anunciou que vai recusar o resultado das eleições. Para disfarçar, armou um pretexto. Exige do Congresso a criação do voto impresso, seu instrumento para contestar o resultado. Se não lhe derem o que quer, ameaça com a convulsão social.

A Câmara do deputado Arthur Lira avança para atendê-lo. Uma contribuição ao tumulto ampliada pela adesão do Senado do senador Rodrigo Pacheco.

O arcabouço normativo do golpe vem cheio de disfarces e encontra abrigo na manobra diversionista da ampla reforma político-eleitoral. Em entrevista ao Estadão, o cientista político Jairo Nicolau lembrou que esta proposta só poderia ser feita por uma Constituinte, tal seu alcance e profundidade. Mas Lira a está fazendo à sua maneira provinciana. Produz um terremoto a partir da cooptação onerosa de ampla maioria dos deputados. Sem discussão, vai empurrando suas causas.


O retrocesso do voto impresso chegou à Câmara, como outros absurdos da agenda bolsonarista (Escola sem Partido, liberação do uso de máscaras), pelas mãos da deputada brasiliense Bia Kicis, presidente da Comissão de Constituição e Justiça. Ex-funcionária do governo do PT, eleita pelo PSL, dela ninguém ouvira falar até aparecer associada às manifestações antidemocráticas, citada em inquéritos sobre notícias falsas e cenas da extrema direita de contestação do Supremo Tribunal Federal. Mas é freguesia antiga. Há seis anos já era convidada a explicar-se sobre o que, naquela época, ainda se chamava de crime cibernético. Kicis-Lira formam a linha de frente do domínio da Câmara por Bolsonaro.

Tanto quanto o presidente, não conseguem demonstrar a fragilidade da urna eletrônica. A Justiça Eleitoral deu prazo de 15 dias para que Bolsonaro entregue provas de tal acusação. Caso existissem, já as teria apresentado há muito tempo. Recorre-se, então, à fábula, contada sob sigilo para dar veracidade.

Numa cena alegórica, um homem de camisa amarela está posto em sentinela ao lado do biombo onde está instalada a urna eletrônica da sessão eleitoral. Surge, então, um eleitor, que assina a folha de votação apresentada pelo mesário. Em seguida, se dirige à cabine, mas é impedido de entrar pelo camisa amarela. O cidadão vai embora, mas seu voto já terá sido computado em número coincidente com a de assinaturas da folha.

Mestre-sala do enredo do governo, o presidente da Câmara conduz com mão de ferro a sua base. Consolidada pela generosa distribuição do orçamento secreto, conforme denunciado pelo Estadão e até hoje não explicado pelos que o manipularam. A maioria da Câmara deixou-se seduzir, está até a cabeça comprometida com o projeto Bolsonaro-Lira e com os instrumentos políticos da frente Lira-Kicis.

Havia expectativa de reversão do golpe pelo Senado até que, esta semana, também ruiu, com a denúncia publicada pela revista Crusoé. Revelou-se a distribuição de outra parte do orçamento secreto para premiar a emergente tropa de choque bolsonarista na CPI da Covid. Especialmente Heinze, Marcos Rogério e Fernando Coelho.

Rodrigo Pacheco, o presidente da Casa, não dá sinais de repulsa ao insensato tropel golpista. Ao contrário, dá seguimento, com presteza, às medidas preparatórias.

Grupos de reflexão política, reunidos neste fim de semana para avaliar a demonstração de força nas ruas, reduziram sua esperança numa reação. Passaram a temer que o Congresso venha precipitar-se numa espécie de suicídio institucional.

Ninguém lembrou, ainda, que em 2022 haverá eleições para senadores e deputados federais, um encontro irrecusável dos parlamentares com a opinião pública.

Só descontentes na rua podem tornar Jair Jail

A primavera despediu-se de Budapeste sábado com a Arena Puskas lotada por 60 mil torcedores presentes ao jogo da Eurocopa entre Hungria e Itália. O verão começou domingo no Hemisfério Norte com festa de rostos nus e abraços comovidos na manhã ensolarada de Nova York. Ali, com 70% da população imunizada, a vitória do time de basquetebol Brooklyn Nets foi comemorada em seu ginásio também lotado. A Hungria foi o primeiro país da União Europeia a vacinar e imunizou metade de seu povo, mesmo sendo o primeiro-ministro Viktor Orbán de extrema direita e venerado pela famiglia Bolsonaro. A vacinação nos Estados Unidos começou sob Donald Trump, herói da contemporânea capitania hereditária tupiniquim, e o presidente Joe Biden, Zé Gotinha ianque, deu por findas as restrições sanitárias na estreia desta estação.

O Brasil acompanha todas as provas da eficácia da imunização de longe pela televisão. Essa é uma das causas do negro humor necrófilo do presidente Jair (ou Jail, cadeia em inglês, destaca cartaz exibido em Londres no fim de semana), o charlatão-mor da pílula do câncer e da cloroquina. No fim de semana, antes de o inverno chegar abaixo do Equador, o mundo soube que sua indiferença contribuiu de forma inelutável para a marca tétrica de meio milhão de mortos pela pandemia de covid-19 nestes cada vez mais tristes trópicos. “Agora é o inverno de nosso descontentamento”, previu o britânico William Shakespeare no último decênio do século 16, na abertura da tragédia Ricardo III. O verso foi usado como título de um romance do norte-americano John Steinbeck em 1961, um ano antes de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. O protagonista é um balconista de origem nobre que negligencia valores morais numa sociedade corrupta.


Bolsonaro não recorreu à piada infame de hábito para ofender e humilhar os entes queridos das vítimas de sua falta de empatia e sensatez. Que poderia ter aprendido com Orbán, que mantém na Hungria pregação negacionista, mas não negligencia a imunização, necessária para garantir suas bazófias eleitorais. Ou com Benjamin Netanyahu, que, antes de entregar a chefia do governo a adversários de direita e esquerda coligados em Israel, adotou postura sábia ao liderar o combate ao novo coronavírus com esforço e eficiência, telefonando todo dia para o CEO do laboratório Pfizer para garantir doses de boa imunização de rebanho pela vacina. Seu fã brasileiro, porém, na live de 17 de junho, disse que contaminação “é até mais eficaz que a vacina”. O negócio dele é matar...

E manobrou os fios de seu teatrinho de fantoches com piadas de caserna para manter no silêncio covarde o discurso gabola. O chefe da Casa Civil, general Luiz Eduardo Ramos, comemorou os 900 dias de desgoverno desfiando lorotas da estratégia desumana desde a concepção no título da nota, “900 dias: nos trilhos na preservação de vidas e da retomada da economia”. Não é ironia, é burrice. O ministro das Comunicações (et pour cause), deputado Fábio Faria, zurrou cinismo intolerável num tuíte: “Em breve vcs (vocês) verão políticos, artistas e jornalistas ‘lamentando’ o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do ‘quanto pior, melhor’. Infelizmente, eles torcem pelo vírus”. Trata-se de uma confissão de insensibilidade incomum mesmo na política brasileira. Faria, que apoiou com o pai Dilma e Lula em 2014, e o impeachment do poste, em 2016, é agora bolsonarista raiz até na total falta de piedade e sabedoria, um declarado apóstolo da seita da direita estúpida, em contraponto à extrema direita de Orbán, Trump e Bibi. É abissal sua dificuldade de entender que muitos “salvos” lamentam os próximos que perderam, ao contrário dele. E que outros sofrem com reações intoleráveis da contaminação e da dolorosa recuperação da capacidade pulmonar perdida. Tendo votado em Dilma em 2014 e contra o próprio voto em 2016, não distingue luto de festim.

Bolsonaro, Ramos e Faria são incapazes de entender notícias dolorosas como as dívidas acumuladas pelas famílias com a cobrança de hospitais chegando à internet. E a perda média calculada de 18 anos de vida pelas vítimas de morte da peste contemporânea, caso do ex-presidente do Banco Central Carlos Langoni. Contentam-se em comprar votos de parceiros na roleta-russa da comissão parlamentar de inquérito da covid, no Senado, por R$ 660 milhões. Na caneta BIC deles dinheiro público no Orçamento é vendaval, como cantou certa vez o príncipe Paulinho da Viola, Paulo César Batista de Faria, que não é parente de Fábio, o genro profissional.

Neste nosso inverno do descontentamento, no inferno do luto e do pranto por nossos irmãos extintos, a razão dos fatos revelados nos países que não são desgovernados mostra que a direita estúpida não manda na rua com “motociatta”. E põe em risco o discurso do capitão de milícias: pois a flexibilização das restrições pode transformar a tormenta que nos ameaça em fogueira para imolar “Jail” Inácio Bolsonaro. Oxalá a vacinação em massa devore sua imunidade política.

Intelectuais alemães alertam: democracia brasileira pode não resistir

Em 2018, cerca de uma semana antes do segundo turno das eleições presidenciais, um grupo de mais de 40 intelectuais alemães lançou uma carta aberta sobre os riscos à democracia e aos direitos humanos no Brasil.

Quase três anos após o manifesto, signatários do documento avaliam que aquele temor acabou se confirmando sob o governo Jair Bolsonaro e dizem que as instituições democráticas, corroídas por dentro, estão sob pressão crescente, podendo não resistir.

A carta de 2018 não citava abertamente o então candidato Bolsonaro, mas fazia referências claras a declarações dadas por ele e seus apoiadores em relação à propagação de desinformação e difamações, aos ataques aos direitos de minorias, e à incitação da violência.

"Aprendemos, dolorosamente, com a história europeia e, em especial, com a história alemã, que a apologia da tortura e da violência e o desrespeito a concidadãos e minorias jamais serão solução para crises econômicas e políticas", destacava a carta.

Ao final do texto, os intelectuais pediam que o Judiciário brasileiro e as forças democráticas lutassem pelos direitos humanos e a democracia, e defendiam a punição daqueles que violam esses princípios com palavras ou atos.

Bolsonaro acabou eleito, e seu atual mandato está entrando na fase final. Nestes quase três anos, foram frequentes a realização de atos contra instituições democráticas, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso nacional, e gestos de apoio a pedidos de intervenção militar. O presidente e alguns de seus ministros participaram ativamente destes eventos, além de alimentar com ataques verbais o ódio contra a democracia e minorias.


O país também tem visto o desmonte de órgãos ambientais e de proteção a minorias e tentativas de interferência política em instituições de fiscalização, como a Polícia Federal, além de vivenciar ataques constantes à imprensa, praticados principalmente pelo presidente.

Já a propagação de mentiras se tornou política oficial durante pandemia, com o governo promovendo medicamentos sem eficácia comprovada contra o coronavírus e desdenhando de medidas sanitárias reconhecidas e aplicadas internacionalmente.

Diante deste cenário, acadêmicos alemães ouvidos pela DW Brasil afirmam que a preocupação expressada na carta de 2018, de certa maneira, acabou se concretizando. Para a socióloga Maria Backhouse, da Universidade de Jena, essa confirmação, porém, ocorreu de forma diferente do que ela imaginava na época.

"Tinha o receio de que Bolsonaro instalaria uma ditadura, mas isso não ocorreu porque ele está tendo sucesso em sabotar a democracia por dentro", afirma a especialista em sociologia ambiental e desigualdade global.

Segundo ela, o presidente vem corroendo a democracia com os próprios meios deste sistema ao nomear determinados nomes para cargos estratégicos ou cortar recursos de universidades ou instituições de defesa do meio ambiente e minorias.

"A estratégia de Bolsonaro pode ser observada em vários países, não é um golpe claro, mas sim uma infiltração", ressalta Backhouse.

Exemplos desse método de corrosão e seu impacto ocorreram em países como a Turquia de Recep Tayyip Erdogan – que ocupou o Judiciário e Forças Armadas com aliados e conseguiu assumir o controle destas instituições – ou a Hungria de Viktor Orbán – que conseguiu aprovar leis que, na prática, impossibilitam a vitória da oposição em eleições.

A economista Barbara Fritz, da Universidade Livre de Berlim, diz que o modo de agir de Bolsonaro já era previsível antes das eleições. "Desde início era previsto que o governo Bolsonaro seria antidemocrático e promoveria uma luta permanente entre Judiciário e Legislativo, que tentam proteger as instituições democráticas. A ameaça à democracia continua existindo", destaca.

O sociólogo Hauke Brunkhorst, da Universidade de Flensburg, tem uma visão semelhante e afirma que a carta aberta continua atual. "Ainda seria um golpe de sorte caso a democracia no Brasil sobreviva nessas circunstâncias", avalia.

Para Brunkhorst, especialista em sociologia constitucional e teoria política, o tipo "populista caótico fascista", como Bolsonaro ou o ex-presidente americano Donald Trump, dificilmente consegue resistir a um mandato. Mas se ele conseguir manipular o sistema eleitoral, a imprensa e outras instituições democráticas a seu favor, afirma o intelectual, como ocorreu na Hungria e na Polônia, Bolsonaro pode permanecer no poder "legalmente" por vários anos.

Devido a essas tentativas de corroer o sistema democrático por dentro, os intelectuais preveem um cenário mais sombrio no caso de um segundo mandato de Bolsonaro. Brunkhorst pontua que nenhuma democracia sobrevive à reeleição de "tais figuras, que não perseguem nada além de interesses próprios, privados e narcisistas".

Backhouse ressalta que as instituições democráticas já estão sofrendo uma enorme pressão, mas elas não implodiram ainda. "Há muita resistência, apesar de todas as catástrofes, mas temo que num segundo mandato Bolsonaro seja mais autoritário e atue com muito mais força para destruí-las", avalia.
Risco de golpe?

Fritz também enxerga o futuro cenário brasileiro de forma semelhante. Para a economista, as chances eleitorais de Bolsonaro, no entanto, dependem, além dos candidatos, dos rumos que a economia vai tomar neste e no próximo ano. "Há muitas incertezas neste momento, mas as condições de largada para a economia do Brasil são muito ruins, o que pode influenciar negativamente o voto em Bolsonaro".

Segundo Brunkhorst, o fim do risco à democracia só ficará claro nas próximas eleições e depende, não somente de uma troca de governo, como também da reação dos militares neste caso. O especialista, porém, avalia que o cenário não é tão favorável para as Forças Armadas.

"Um fator muito importante é que de repente a esquerda pode voltar a ganhar eleições nas Américas e trazer para a agenda projetos radicais, com os quais ninguém contava, como a mudança da Constituição no Chile, que deixa de lado o mercado e vai de encontro à democracia e novas formas de socialismo, ou o programa político dos EUA, que vai além do New Deal. Pela primeira vez, parece que os militares brasileiros não podem mais contar com o apoio americano no caso de um golpe", acrescenta o sociólogo.

Assim como Brunkhorst, Backhouse estima que a ameaça também depende da reação de militares a uma eventual derrota do presidente nas urnas, o que, na visão dela, pode resultar numa escalada de violência no país devido à eventual recusa de Bolsonaro em reconhecer o resultado eleitoral.

Pensamento do Dia

 

Ahmad Rahma (Turquia)

Escalada violenta de Bolsonaro não é mais do mesmo: é sinal de alerta para o Brasil

Qual é o ponto de não-retorno de uma crise da democracia? Será possível enxergá-lo em concomitância aos fatos do dia a dia pelas nações e gerações que enfrentam esses momentos históricos? Os brasileiros de 1964 sabiam ao certo que na virada de março para abril veriam suprimida a democracia? Os americanos que conviveram com os tuítes de Donald Trump por quatro anos e acompanharam voto a voto a apuração da Georgia e da Pensilvância podiam ter certeza de que assistiriam à invasão do Capitólio logo em seguida?

Essas perguntas e variações delas me acompanham diariamente na cobertura do governo Jair Bolsonaro. Porque assistimos o presidente da República escalar dia a dia na afronta às instituições e ao estado democrático de direito de forma a que tendemos a achar que se trata de mais do mesmo. E não se trata.

Apenas nessas últimas semanas o presidente fez o Exército se dobrar humilhado perante sua pressão, chamou o presidente da Justiça Eleitoral para uma rinha e ameaçou publicamente com "convulsão social" caso não haja voto impresso e instou o ministro da Saúde a abolir a obrigatoriedade do uso de máscaras numa canetada.


Tais arroubos podem parecer retórica inflamada, mas produzem consequências práticas, imediatas e algumas delas insanáveis. A politização do Exército é uma realidade concreta, tangível, com potencial de se transformar num fator de insegurança para as eleições do ano que vem. Ou se encara a coisa dessa forma ou podemos ser surpreendidos como os nossos pais em 64.

Nesta segunda-feira, depois de manifestações vigorosas e de ultrapassarmos a ultrajante marca de 500 mil brasileiros mortos por covid-19, Bolsonaro não só não foi capaz de expressar um singelo pesar pelo luto nacional como quase agrediu fisicamente uma repórter em visita ao interior de São Paulo quando questionado pelo fato de ter chegado ao evento sem máscara.

A violência sempre foi uma marca das ações e declarações de Bolsonaro, mas ela se traveste de gravidade muito maior pelo fato de ele estar na Presidência. Portanto, não cabem aqui comentários ligeiros e aleivosias do tipo "para surpresa de zero pessoas".

É sempre chocante, e precisa continuar sendo, quando um presidente da República investe com perdigotos e ofensas contra um jornalista (e as mulheres são sempre os alvos preferenciais de Bolsonaro quando resolve bancar o machão) no exercício de seu trabalho. Não é tolerável, e não pode continuar a ser tolerado.

Antes, nessas ocasiões, havia as notas de repúdio. Agora, Arthur Lira é um espectador conivente dos arbítrios de Bolsonaro, pois se beneficia de sua política orçamentária e fisiológica, em troca de manter as gavetas das dezenas de pedidos de impeachment hermeticamente fechada. E Rodrigo Pacheco é tão mineiro que não consegue descer do muro nem diante dos mais rasgados absurdos. Até quando?

Na falta de reação à altura das instituições, cabe aos atores políticos perceberem a gravidade do momento e terem inteligência para se preparar para uma já contratada tentativa de ruptura institucional em 2022.

Não se trata de alarmismo: Bolsonaro tem avisado que vai tentar todos os dias. Nesta segunda-feira, mesmo, já disse que Lula só vence o pleito se houver fraude. Não precisa intrpretação: ele está dizendo que só aceitará o resultado da eleição se vencer. Ainda que as instituições cedam e condescendam com a excrescência do tal "voto auditável", essa cloroquina eleitoral.

Vamos assistir silentes a esse anúncio público e antecipado de tentativa de golpe? E a classe política seguirá tão dividida e sem estratégia a ponto de que Bolsonaro dê todas as cartas da dinâmica e da narrativa do pleito do ano que vem? Mesmo com sua obra trágica da pandemia diante de todos nós na forma de mortes, desemprego, inflação e tecido social completamente esgarçado?

É preciso que a sociedade e as instituições tenham o destemor da repórter da TV Vanguarda, de Guaratinguetá, cujo nome pretendo descobrir para parabenizá-la pessoalmente: diante de um protótipo de ditador descontrolado e aos berros, ela manteve o microfone aberto, a serenidade e a mão firme, para registrar a cena para o país. É a síntese do papel da imprensa, mas ela é apenas uma perna da mesa que mantém a democracia estabilizada. As demais precisam estar igualmente firmes.
Vera Magalhães

Um país legal

Digam o que disserem, o Brasil é; de fato um país legal. "Legal" no sentido coloquial que tem hoje esta palavra. Quando uma coisa é boa, dizemos que é legal, mesmo que seja contra a lei. Um país que injeta cocaína em balas da porta dos colégios é ou não é legal? Estão vendendo saguim oxigenado como se fosse mico-leão-dourado. Legal! O cruzeiro não vale nada e você cobra o preço que quiser. Legalzinho. Tudo aqui é o maior barato. Legal, não é? Sabemos curtir a vida. Aqui ninguém precisa de lei. Aliás, nem de vacina 

Qual Futuro?

Sem profundas transformações em nosso pensamento e em nossa política, o futuro das crianças e, pois, do Brasil, estará comprometido. Quem hoje é criança será beneficiária ou, mais provável, sofrerá as consequências das nossas ações passadas, presentes e futuras.

O Índice dos Direitos das Crianças, baseado na Convenção da ONU sobre este tema, é um indicador da atenção que países dedicam à situação dos seus mais jovens. Nele, entre quase duzentos países, o Brasil está na 99a posição, longe daqueles países que aplicam políticas públicas eficazes para a melhoria da qualidade de vida das suas crianças. Qual futuro esperar se nossas crianças são assim tão mal tratadas?

São 54 milhões de pessoas abaixo dos 18 anos: 25% da nossa população. Grande parte nem estuda nem trabalha. Mais da metade é afrodescendente, quilombola ou indígena, e sofre com preconceitos e falta de oportunidades. Com a pandemia e o fechamento de escolas e lojas, grande número ficou sem ensino, sem merenda, sem sustento e em dúvida sobre como sobreviver: engajar-se no Uber, no tráfico ou em quê?


Entre 1990 e 2006 houve avanços. A desnutrição crônica caiu de 20% para 7% entre os menores de 5 anos, mas o consumo de alimentos com baixo teor nutricional e excesso de gorduras, sódio e açúcares aumentou, resultando em sobrepeso e obesidade: 33% das crianças entre 5 e 9 anos têm excesso de peso, 17% dos adolescentes estão com sobrepeso e 8% são obesos.

Os danos à saúde dessas pessoas são imensos, e também enormes são e serão os gastos púbicos decorrentes de suas morbidades; alguém já ouviu, da equipe econômica, propostas no sentido de desligar essa bomba relógio? Nada, nem uma linha!!! Com o agravante de que, desde 2015, a cobertura vacinal contra poliomielite e outras doenças caiu sensivelmente. Como justificar tal evolução num governo que se diz preocupado com as contas públicas? Não enxergam além do balanço financeiro mensal?

E a questão da violência? A cada hora alguém, entre 10 e 19 anos, é assassinado no Brasil, quase todos meninos pretos, pobres e favelados.

Na pandemia, mais de cinco milhões de crianças não tiveram acesso à educação no Brasil. O Ministério da Educação foi além do rame-rame?
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O Índice de Direitos das Crianças avalia aspectos como a vida, a educação, a proteção recebida, a saúde e o ambiente promotor dos direitos das crianças. Como dito, há 98 países à frente do Brasil nesses quesitos; sendo assim, que futuro nos espera? Isso, embora a legislação, aqui, segundo inclusive a UNICEF, seja das mais avançadas, o que revela, mais uma vez, a incapacidade dos nossos Poderes Constitucionais em até mesmo fazer cumprir as leis!!!

Entre os ditos “presidenciáveis”, algum já se manifestou, com propriedade, sobre essa grave questão? Não? Então não votem nele!!!
Eduardo Fernandez Silva, ex-diretor da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados

A patologia nacional

Se não existe sociedade perfeita — como adverte Claude Lévi-Strauss —, é necessário entender nossas doenças. E, se é bíblico jogar pedras nos outros, foi preciso um presidente com a compulsão de jogar pedras em todo mundo para que ele acabasse com a cabeça quebrada pelo meio milhão de mortos, vítimas da sua política de sabotar vacinas.

Tudo o que vai volta. A horrível experiência de Bolsonaro é a responsabilização por um boicote orquestrado e criminoso às vacinas. Se a antropologia social não é muito animadora quando confirma que toda coletividade tem problemas, ela mostra que não há sistema fundado na mentira, na malandragem, na má-fé e no negacionismo.

Do mesmo modo que as sociedades humanas (tribais ou nacionais) demandam território, elas exigem coerência moral. Não há como combinar democracia com hipocrisia e com uma rejeição absurda de uma doença por um governo federal que, eleito com o compromisso de acabar com a velha política, hoje sucumbe pela patologia de um cancro conhecido pelo nome de despotismo. Jair Bolsonaro foi feito presidente para cumprir um programa democrático que seu atávico familismo tem ostensivamente negado. A tragédia é a morte de mais de 500 mil pessoas por uma pandemia claramente sabotada.

Não há sistema sem trocas. Mas convenhamos que comprar e vender seres humanos — que, no regime escravocrata, viravam máquinas e animais e eram governados pela lógica do capital — é um irrefutável negacionismo. No Brasil, o negacionismo dos costumes legitimou um estilo de vida que combinou — como disse um FH sociólogo — capitalismo e escravidão, ambos legitimados por um catolicismo romano oficializado.


Tal dissonância foi orquestrada, mas não deixou de ser algo incômodo no passado (Joaquim Nabuco e Machado de Assis testemunham tal aberração), e seus restos e rastros são hoje algo vergonhoso, porque negar o real é mais que um erro; é algo impensável, abusivo e, no limite, psicótico.

Advirto que nenhum morto morre sozinho

O negacionismo que rompe com a sintonia entre meios e fins não é tampouco “jeito” ou teimosia. É, sejamos claros, demência e autoflagelação. Se, como diziam os velhos ideólogos do militarismo, a guerra não pode ser deixada a cargo de políticos interesseiros e levianos, não se pode deixar que um obstinado negador do princípio de realidade (aquilo que ocorre ignorando nossos planos e vontades) continue como um aliado e um quinta-coluna do vírus. Um sócio remido de uma pandemia que, graças a essa negação, matou, até o momento, mais de 500 mil brasileiros.

Você já perdeu um filho, mulher ou irmão por incúria sanitária ou perseguição religiosa, étnica ou ideológica? Já viu num caixão um corpo amado transformado pelo mármore da morte? Advirto que nenhum morto morre sozinho. Com ele, morrem no mínimo dez ou mais pessoas de modo direto e, indiretamente, uma multidão de outros corações, que exigem respeito, solidariedade e compaixão. Mas como sentir comiseração se o líder nacional não mostra o menor sentimento? Se é que ele, além do narcisismo, tem mesmo piedade pelo próximo...

Não há, por certo, perfeição, mas não há em nenhuma democracia honesta presidentes — com uma vênia a Donald Trump — sabotadores de seus eleitores. A indiferença ao bom senso e a deslealdade interesseira, negacionista das obrigações eleitorais — traição que é rotina na “política” brasileira — , são nossa patologia. São nossa doença mais ou menos clara dos governantes. Porque “politicar” virou desfaçatez e traição em nome do povo e dos pobres. Não é de hoje que a esfera política virou sinônimo de força bruta funcionalmente legalizada, permitindo todos os abusos em nome de fins jamais pronunciados.

Quando a delinquência é envolvida por uma pandemia renegada por quem está no poder, chegamos a esse meio milhão de mortos reveladores, ao fim e ao cabo, de nosso descaso por nós mesmos. Escrevo como perdedor, já que faço questão de honrar minhas perdas. É assim que o meu coração se solidariza com os dos sobreviventes das mais de 500 mil vítimas. Um coração e uma alma que se envergonham de testemunhar um vírus sabotado pela onipotência e pelo egoísmo de um presidente que ficará na História como traidor das promessas feitas solenemente ao povo que o elegeu.

Penso que não há religião, ciência ou arte capazes de resistir a nossa ética de insinceridade. Este país feito por um rei fujão, esta República sem republicanos fundada na escravidão. Este sistema permanentemente transformado pelos interesses de políticos e juízes formalistas, de generais subservientes e de um Estado explorador da sociedade. Enfim, de um país que, educadamente, confunde demência e incúria com negacionismo — essa patologia nacional.

Faria Lima aposta em Bolsonaro em 2022

Ouvi que parte do mercado financeiro acredita que Jair Bolsonaro vencerá Lula em 2022, se a eleição ficar mesmo polarizada entre esses extremos. Apesar das atrocidades cometidas pelo atual presidente, esse pessoal da Faria Lima e adjacências mentais acha que ele será ajudado pela recuperação econômica no ano que vem, quando a pandemia será vaga lembrança. Há controvérsias.

Em 2016, fui convidado para um café da manhã numa corretora que ficava localizada justamente na Faria Lima. Sei lá por que motivo, talvez pelo fato de O Antagonista ser uma novidade na época, eles queriam saber o que eu pensava sobre o iminente impeachment de Dilma Rousseff. Estavam na dúvida se a retirada da petista do presidência abriria a trilha para a recuperação econômica. Alguns achavam até mesmo que a situação, afinal de contas, não estava tão ruim assim, e que o impeachment não era boa opção. Respondi que não havia como ficar pior se a petista fosse apeada do poder. E acrescentei: “Vocês enxergam o mundo aqui do alto deste prédio de luxo e, quando saem, é sempre nos seus carros blindados. Vivem numa bolha. Aconselho que vocês deem uma volta no entorno da Faria Lima. Não precisa ir longe, não. O Brasil de verdade está logo aqui do lado, cheio de mendigos, camelôs e desempregados. Dilma Rousseff é um desastre e a Faria Lima não é a Quinta Avenida“.


Dilma Rousseff saiu, Michel Temer entrou, a coisa melhorou um pouco em vez de piorar e, com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, fatores endógenos, como o liberalismo de fachada, somaram-se a fatores exógenos, como os efeitos da pandemia, para que a economia brasileira continuasse a chafurdar no pântano.

Não sou economista, mas tenho tempo suficiente de Brasil de verdade para dizer que boa parte do pessoal da Faria Lima continua cego para o que ocorre fora da sua bolha. Se o país crescer 6% em 2022, como se aposta, ainda assim isso será insuficiente para compensar a contento os recuos e os crescimentos pífios dos anos anteriores. Em 2015 e 2016, o PIB diminuiu 3,5% e 3,3%, respectivamente. Em 2017 e 2018, aumentou 1,1%; em 2019, cresceu 1,4%. Já em 2020, o tombo foi de 4,1%.

O Brasil redemocratizado nunca foi muito bom nessa história de crescimento, quando comparado a outros países emergentes. A média do governo Lula foi de 4% ao ano; a do governo FHC, 2,4%. A eventual retomada da economia é bem-vinda, mas é improvável que faça muita diferença na percepção do povão. Feitas as contas, se o PIB crescer 3,5% em 2021 e 6% em 2022, isso representará um acréscimo de riqueza de 155 bilhões de dólares em relação a 2015. Ou seja, um aumento de renda per capita de pouco mais de 700 dólares em 7 anos. É menos do que medíocre. É ridículo.

Eu não estaria tão certo quanto esse pessoal da Faria Lima, portanto, que um crescimento como o projetado para 2021 e 2022 levará a que os brasileiros esqueçam as dificuldades dos últimos anos e a sociopatia de Jair Bolsonaro no trato da pandemia. Para não falar da volta da inflação anual que se aproxima perigosamente dos dois dígitos, sempre mais danosa para os pobres do que para os ricos, e que vai diminuir o poder de compra do salário de quem conseguiu arranjar emprego. A Faria Lima não sabe, mas as pessoas comem arroz, feijão e macarrão, não PIB. Se possível, feijoada. Aliás, nessa miragem da feijoada, o cozinheiro é Lula. Livre das condenações e acusações de corrupção e lavagem de dinheiro, ele está cada vez mais à vontade para voltar a vender ilusões — e também facilidades para a outra parte do mercado financeiro que já conversa com ele.

Com qualquer um dos dois na presidência da República, estamos destinados ao fracasso — ora retumbante, ora suspirante — como nação. A Faria Lima não é a Quinta Avenida.