quinta-feira, 13 de junho de 2019

Brasil à mesa


Temos de ser mais humanos

Abram os olhos. Somos umas bestas. No mau sentido. Somos primitivos. Somos primários. Por nossa causa corre um oceano de sangue todos os dias. Não é auscultando todos os nossos instintos ou encorajando a nossa natureza biológica a manifestar-se que conseguiremos afastar-nos da crueza da nossa condição. É lendo Platão. E construindo pontes suspensas. É tendo insónias. É desenvolvendo paranóias, conceitos filosóficos, poemas, desequilíbrios neuroquímicos insanáveis, frisos de portas, birras de amor, grafismos, sistemas políticos, receitas de bacalhau, pormenores.

Angel Boligán 
É engraçado como cada época se foi considerando «de charneira» ao longo da história. A pretensão de se ser definitivo, a arrogância de ser «o último», a vaidade de se ser futuro é, há milénios, a mesmíssima cantiga.

Temos de ser mais humanos. Reconhecer que somos as bestas que somos e arrependermo-nos disso. Temos de nos reduzir à nossa miserável insensibilidade, à pobreza dos nossos meios de entendimento e explicação, à brutalidade imperdoável dos nossos actos. O nosso pé foge-nos para o chinelo porque ainda não se acostumou a prender-se aos troncos das árvores, quanto mais habituar-se a usar sapato.

A única atitude verdadeiramente civilizada é a fraqueza, a curiosidade, o desespero, a experiência, o amor desinteressado, a ansiedade artística, a sensação de vazio, a fé em Deus, o sentimento de impotência, o sentir-mo-nos pequeninos, a confissão da ignorância, o susto da solidão, a esperança nos outros, o respeito pelo tempo e a bênção que é uma pessoa sentir-se perdida e poder andar às aranhas, à procura daquela ideia, daquela casa, daquela pessoa que já sabe de antemão que nunca há-de encontrar.

O progresso é uma parvoíce. Pelo menos enquanto continuarmos a ser os animais que somos.
Miguel Esteves Cardoso, "Explicações de Português"

A democracia bolsonarista

Em recente entrevista a Danilo Gentili, Jair Bolsonaro formulou sobre o que seria democracia: “É a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população.”

Não serão poucas as questões que se insinuam desde essa conceituação tão rasamente bela quanto profundamente autoritária. Tratarei de algumas aqui. Mas não sem antes reconhecer a transparência discricionária do presidente; porque tal definição condensa o ânimo que motorizou, por exemplo, as manifestações governistas de 26 de maio: a ideia de que a condição de líder carismático eleito de maneira contundente determine a subjugação dos demais poderes republicanos à agenda do governante popular.

Nada há de mais grave, no conteúdo vazado de conversas entre o então juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, do que a passagem em que o hoje ministro da Justiça apresenta um propósito autocrático absolutamente inaceitável para um magistrado — intento, aliás, tocado adiante com sucesso, apesar do ceticismo: “Ainda desconfio muito de nossa capacidade institucional de limpar o Congresso”. O que dizer? Que Moro — juiz cuja intenção era limpar o Parlamento — está no lugar certo; e que não foi à toa que Bolsonaro levou a Lava -Jato, na figura do doutor, para dentro do governo. Há uma convicção em comum; um inimigo em comum.

Na origem dessa visão de mundo jacobinista influente, claro, está o desprezo pela atividade política e, logo, o entendimento da democracia representativa como entrave burocrático ao avanço do país: o Congresso compreendido como ameaça, a encarnação do establishment, a máquina defensora de interesses corporativos, não raro tratada como sindicato do crime, que operaria para inviabilizar os compromissos de campanha — espécie de imperativo divino inquestionável — assumidos por Bolsonaro.

Não se pode negligenciar o grau de crença religiosa que a trajetória e o discurso do presidente agregam a esse movimento de desqualificação da política. O homem foi esfaqueado em plena campanha, nos braços do povo, e não perde oportunidade de encaixar sua sobrevivência como a comprovação de que ora cumpriria uma missão de Deus. Uma engrenagem de fé personalista cujo fim virtuoso autorizaria a sociedade a prescindir dos freios e contrapesos que equilibram a República: porque o presidente, vítima e sobrevivente, foi eleito, quase à morte, defendendo tais e quais bandeiras, não lhes endossar incondicionalmente transformaria o Parlamento — reduzido a despachante do Executivo — em traidor da vontade popular.

Essa é a construção narrativa que impulsionou os atos governistas de 26 de maio, destinados a intimidar o Legislativo (já criminalizado pelo lavajatismo), e que ancora a pretensão bolsonarista de enfraquecer (ainda mais) o Congresso por meio de uma (improvável) mobilização popular constante — o que chamei de “plebiscito permanente”.

Voltemos, pois, à democracia segundo Bolsonaro: aquela cuja plenitude dependeria de a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população. Parece bonito. Vende desapego. É sedutor. Mas: que “população” seria essa? Melhor: o que seria “população”? Essa pergunta precisa ser enfrentada à luz de um sistema de credos que vilipendia mediações e que tem centro num mito anabolizado por delegação celestial e com ambições de falar diretamente ao rebanho. Mais: o que seria uma afinação perfeita? Essa indagação precisa ser encarada sem que se perca de vista que o ímpeto de mobilização popular tem a atividade política como prática delinquente — algo só controlável sob pressão e medo.

Assim, sugiro, não se deve avançar sem medir a probabilidade de “afinação perfeita” ser o mesmo que submissão total à população. Tampouco se deve esquecer de que o agente político para quem a democracia derivaria de a classe política estar “afinada” aos desejos do povo é o mesmo que classificou os cidadãos que protestaram contra seu governo como “idiotas úteis”. Donde se infere que, para Bolsonaro, não haveria anseios da população nas pautas de oposição. Donde se infere que, para Bolsonaro, os anseios da população só seriam anseios se coincidentes com os de Bolsonaro.

A questão, portanto, continua sendo o que significaria, de acordo com a democracia bolsonarista, esse ente “população”.

A fala do presidente exprime uma visão totalitária; uma abordagem que, a rigor, mais do que confundir povo com governante popular, anula essa diferença, suprime mesmo o valor impessoal de representação, para fazer emergir o governante, o ungido, que é a população — a população que é o governante. Daí por que convido o leitor a refletir sobre se a definição “democracia é a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população” não poderia ser substituída, para benefício de seu peso real, por “democracia é a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios do governante”.

Os sem-lobby e a reforma da Previdência

Não há do que eu ache mais graça, nos debates da reforma da Previdência, quando um político bacana, em Brasília, sugerindo falar em nome dos mais pobres, se diz contrário às mudanças no BPC(Benefício de Prestação Continuada). Quando escuto essas coisas, me vem uma pergunta: falou com o Samuel?

Samuel puxou um carrinho de papel por muito tempo, no centro de São Paulo, e agora fez 60 anos. Leu em algum lugar que iam antecipar o benefício e foi checar lá na Assistência Social: “Vim buscar os R$ 400 da reforma”.

“Olha”, diz o funcionário, “o Congresso não aprovou, mas não se preocupe. É só aguardar mais cinco anos e voltar aqui para pegar o seu salário mínimo”. Samuel tentou ensaiar um “e até lá..?”, mas não conseguiu completar a frase. Tinha gente na fila.

A minoria de cara feia passa a conta para a maioria de cara nenhuma

Seu xará, deputado Samuel Moreira, relator da reforma, poderia dar um jeito nisso. Ele poderia fazer um exercício comum na filosofia: imaginar que acorda, dia desses, e descobre que se transformou no Samuel puxador de carrinho. A loteria da vida tem disso. Se o deputado gastasse dois minutos fazendo isso, o que ele decidiria?

Por óbvio, não vai acontecer nada disso. E não adiantaria mostrar que se vale mais ganhar meio salário, durante dez anos, do que um salário inteiro durante cinco anos.

Ou deixar a escolha para o próprio sujeito fazer. Pouca gente, em Brasília, leva a sério a ideia de dar às pessoas, em especial aos mais pobres, o direito de escolher onde aplicar o dinheiro do FGTS ou onde colocar os filhos para estudar. E até hoje fazemos drama porque deram ao trabalhador o direito de decidir se quer ou não pagar um sindicato.

O Congresso poderia estar discutindo essas coisas. No caso do BPC, podia-se ajustar a regra para meio salário aos 60, e integral, aos 70, ou algum modelo progressivo (sugerido, aliás, por Paulo Tafner). Em vez disso, arriscamos retirar estados e municípios da reforma, pelo simples efeito do lobby corporativo no Congresso.

A razão disso tudo é bastante simples: brasileiros miseráveis são carta fora do baralho no mercado político; minorias bem organizadas, que sabem fazer barulho, comandam o jogo.

O mesmo raciocínio vale para as aposentadorias especiais. Há muitos deputados indignados com a proposta de idade mínima de 60 anos para professores. Professores, argumenta-se, sofrem stress e condições adversas, em especial na área pública.

Tudo isto é verdade. A mesmíssima verdade que poderia ser dita a favor de um sem número de atividades, com a mesma força e argumentos ainda mais convincentes.

Pessoas que carregam tijolos, por exemplo, nos canteiros de obras. Domésticas, costureiras, motoristas de ônibus. O que essas pessoas diriam a seu próprio favor? Podemos imaginar, mas elas não dirão nada. Costureiras e motoristas não tem lobby em Brasília. Não mandam carta, não sobem trending topics no Twitter, não xingam colunistas que contrariam seus interesses e não esperam os deputados para dar uma prensa no aeroporto. É só isso.

Estamos diante de uma reforma que distribui custos para muitos setores na sociedade, mas que soube concentrar o ônus em quem ganha mais. Vamos lembrar: as alíquotas serão progressivas. Para servidores que recebem salário mínimo, será de 7,5%, contra 16,7% para quem ganha R$ 39 mil. Trata-se de um caso raro de projeto de desconcentração da renda no Brasil.

Se fosse diferente, se a reforma acentuasse ainda mais a desigualdade e fosse mesmo contra os mais pobres, já teria passado. Quase nenhum barulho teria se escutado. A reforma é difícil exatamente porque mexe com gente que tem poder e força no Congresso e que não tem lá grande constrangimento de usar os mais pobres como bucha de canhão retórico.

Hoje começa de verdade o debate da reforma no Congresso. Intuo que será fácil, no relatório, perceber as digitais dos grupos de pressão.

A mecânica perversa do mercado político, em que a minoria de cara feia passa a conta para a maioria de cara nenhuma. Se a sociedade não se mexer, a reforma vai perder, além de potência fiscal, muito de sua potência moral, que é dada pelo sentido de equidade. Oxalá isto não aconteça.
Fernando Schüler

Pensamento do Dia


Desafios que nos unem

Em seu livro “O progressista de ontem e o do amanhã”, Mark Lilla, intelectual da esquerda liberal dos Estados Unidos, faz uma profunda crítica à prioridade dada a causas identitárias, que teria sido grande responsável pela derrota do Partido Democrático para o republicano Donald Trump. Segundo Lilla, seu partido não tratou de questões comuns as pessoas mas apegou-se à bandeiras de nichos que, em vez de unir, muitas vezes dividem a sociedade.

No Brasil os partidos derrotados na sucessão presidencial ainda não fizeram uma reflexão semelhante sobre seu desastre eleitoral. Tateiam no escuro, sem um discurso capaz de promover sua reconciliação com os brasileiros. O maior partido de oposição, o PT, está preso ao passado, tendo como única bandeira o “Lula Livre”. De forma simplista, todos eleitores de Jair Bolsonaro são colocados em um mesmo saco pela esquerda, como se conservadorismo e reacionarismo fossem sinônimos.

Uma pesquisa da Fundação Tide Setubal joga luz ao debate para entender a cabeça de grande parte do eleitorado que votou em Bolsonaro. Não a dos fiéis radicais, mas daqueles que não são bolsonaristas na origem. A maioria dos entrevistados não se diz de direita, embora seja apegada a valores tido como conservadores, como a valorização do núcleo familiar, da religião e da ordem.

Esse cidadão entende que a desigualdade é o grande problema do país. Apesar de reconhecer a discriminação e aceitar a união estável entre pessoas do mesmo sexo, é muito crítico às bandeiras identitárias e políticas afirmativas, como cotas raciais. Considera que essas questões jogam um brasileiro contra o outro.


Entender por que esse eleitor votou em Bolsonaro não é difícil. Para Mark Lilla, tal qual Trump, o presidente soube falar o que é comum aos brasileiros, por meio de temas transversais, enquanto os partidos de centro e da esquerda não empunharam a bandeira do bem comum. Paradoxalmente, o discurso do presidente estreitou pós eleição, voltando-se para seus nichos: caminhoneiros, evangélicos, entre outros. Isso explica, em grande medida, a perda de sua popularidade.

Se olharmos para nossa história recente, os progressistas se deram bem quando tiveram um discurso amplo, para todos os brasileiros. Assim foi com a bandeira a favor da democracia durante o regime militar ou com a estabilização da moeda e o Plano Real de Fernando Henrique Cardoso. E toda vez que a ala progressista priorizou bandeiras que dividem a sociedade, se isolou, amargou derrotas.

A pesquisa da Fundação Tide Setubal dá a pistas sobre duas questões presentes nas preocupações do brasileiro médio: ordem e igualdade. E o quanto ele é refratário a temas comportamentais.

Em artigo recente, cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, da UFBA, fez uma distinção interessante entre o conservadorismo e populismo reacionário, para propor a reconstrução de pontes entre conservadores e progressistas. Elas já existiram no passado.

Dialogar requer uma postura de escuta ativa. E nem sempre a verdade está com os progressistas. Valores como a defesa da família, da religião, da ética, do combate à corrupção não podem ser uma muralha a dividi-los. Guardadas as respectivas diferenças e características, que precisam ser assumidas e reforçadas, também é importante buscar consensos.

Não será surpresa que descubram que têm muito mais desafios em comum do que conflitos.

Brasil cai dez posições em ranking mundial da paz

O Brasil caiu dez posições no ranking de países mais pacíficos do mundo, amargando o 116° lugar entre 163 nações, segundo apontou o Índice Global da Paz (IGP) de 2019, divulgado nesta quarta-feira em Londres.

Entre os países analisados, o Brasil registrou a quinta maior queda entre o ano passado e este ano, com nove indicadores se deteriorando e apenas um melhorando. Entre 2017 e 2018, o país havia subido uma posição.

O Índice Global da Paz, elaborado pelo Instituto para Economia e Paz (IEP), com sede na Austrália, cobre 99,7% da população mundial, utilizando como base 23 indicadores qualitativos e quantitativos, e mede o estado de paz usando três domínios temáticos: segurança social, conflitos internos e internacionais em curso e grau de militarização.

Somando 2,271 pontos de um máximo de cinco (quanto mais alto o número, pior o índice), o Brasil está na zona amarela, o que significa nível médio de paz. Contudo, está a apenas duas posições do nível baixo, ficando atrás de países como Gana, Laos, Sérvia, Albânia, Tanzânia, Serra Leoa, Bósnia, Ruanda, Tunísia, Cuba, Haiti e Uganda.


Na América do Sul, o Brasil está à frente somente de Colômbia e Venezuela. Entre os sul-americanos, o mais bem posicionado é o Chile. As Américas registraram deterioração da tranquilidade em todas as regiões, sobretudo na América Central e Caribe. Os motivos são a crescente instabilidade política em países como Nicarágua e Venezuela e o aumento da polarização política no Brasil e nos Estados Unidos.

Sobre o Brasil, o relatório afirma que "foi quebrada uma trégua entre as organizações criminosas dominantes no final de 2016, resultando no restabelecimento dos combates, que provocaram cerca de 250 mortes no ano seguinte".

O texto diz ainda que "vários grupos no norte do Ceará renovaram as tréguas entre eles, para se unirem em ataques contra as forças de segurança e infraestruturas públicas". A violência decorrente do tráfico de drogas também é um dos motivos destacados no relatório.

As eleições de 2018, marcadas pela chegada à Presidência de Jair Bolsonaro, culminaram num ciclo de intensa polarização política entre esquerda e direita, que segue em 2019 e "deverá aumentar ao longo do ano", prevê o instituto.

"A implementação pelo presidente Bolsonaro de leis restritivas no domínio da justiça e segurança, a par da reforma do sistema de pensões, deverá fazer aumentar as tensões ao longo do ano", estima o relatório.

O Brasil registou ainda uma alta de 11% no impacto do terrorismo – em parte devido ao ataque a figuras políticas, entre elas o próprio Bolsonaro, que foi atingido por uma facada em setembro de 2018, durante a corrida presidencial – e uma deterioração de 12,5% no crime violento.

A taxa de homicídios mantém-se também no máximo, com o país entre os dez com o pior registro nesse indicador, de acordo com dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC). Segundo o relatório, dadas as insuficiências das forças de segurança, espera-se que o crime violento permaneça um problema sério no Rio de Janeiro, em São Paulo e em outras grandes cidades.

No geral, o IGP de 2019 revela que o nível médio de paz mundial melhorou pela primeira vez em cinco anos, mas o mundo continua um lugar consideravelmente menos pacífico do que há uma década.

Desde 2008, a paz global deteriorou-se em cerca de 3,78%, embora este ano tenha registado uma ligeira melhora de 0,09% em relação ao anterior, devido à "redução na gravidade de vários conflitos, que levaram a um menor número de mortes e a uma diminuição do impacto do terrorismo".

"Enquanto os conflitos que dominaram nos últimos dez anos, como os do Iraque e da Síria, começaram a diminuir, outros se intensificaram no Iêmen, na Turquia e na Nicarágua", apontou o presidente do instituto, Steve Killelea.

A Europa melhorou ligeiramente no ano passado e permaneceu como a região mais pacífica do mundo, com 22 dos 36 países avançando na lista.

A Islândia continua sendo o país mais pacífico do planeta – no topo da lista desde 2008 –, seguida por Nova Zelândia, Áustria, Portugal e Dinamarca. A Alemanha ficou em 22º lugar no ranking, quatro posições abaixo do que no ano passado.

O Afeganistão é o país menos pacífico, substituindo a Síria, que agora está em penúltimo lugar. Sudão do Sul, Iêmen e Iraque fecham a lista dos cinco países mais problemáticos. Desde o início do IGP – que está em sua décima terceira edição –, é a primeira vez que o Iêmen ocupa uma das cinco piores posições, devido ao agravamento do conflito armado em certas áreas do país.

A Nicarágua, por sua vez, foi o Estado que mais piorou o nível de paz, caindo 54 postos em relação ao ano anterior. O país foi alvo de intensos protestos ao longo do último ano, que deixaram mais de 300 mortos, centenas de presos e mais de 60 mil exilados, segundo dados de organizações humanitárias.

Um dos pontos-chave do relatório, segundo Steve Killelea, foi a redução do impacto econômico da violência pela primeira vez desde 2012, com US$ 14,1 trilhões, o que equivale a uma queda de 3,3%

No Brasil, incluindo gastos diretos e indiretos, o custo da violência superou US$ 297 bilhões (cerca de R$ 1,15 trilhão) – o que significa aproximadamente 9% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.

O documento mostra que os países com altos níveis de paz têm, em média, um crescimento do PIB três vezes maior do que os menos pacíficos. Nos dez países menos pacíficos, a média do custo econômico da violência foi equivalente a 35% do PIB, em comparação com apenas 3,3% nos países menos afetados pela violência.

Síria, Afeganistão e República Centro-Africana tiveram os maiores custos econômicos decorrentes da violência, com porcentagem do PIB equivalente a 67%, 47% e 42%, respectivamente.

O estudo também analisa o impacto das mudanças climáticas na segurança, com uma estimativa de 971 milhões de pessoas vivendo em áreas com alta exposição às ameaças desse fenômeno, das quais 400 milhões residem em países com baixo índice de paz.
Deutsche Welle

Mensagens levam Lava Jato para zona de risco

Admita-se que há três iniciativas envenenando a conjuntura política: as mensagens tóxicas trocadas entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol, a CPI da revanche tramada por culpados e cúmplices do Congresso e o julgamento de mais um pedido de suspeição da defesa de Lula contra Moro no Supremo Tribunal Federal. Todas essas encrencas perseguem um único objetivo: desmoralizar a Lava Jato.

Suprema ironia: as iniciativas acionadas contra a maior operação anticorrupção já realizada na história se escoram em um crime: a invasão dos celulares de autoridades. Desse crime resultou a revelação de indícios eloquentes de que o juiz Moro operou à margem das normas legais em parceria com Dallagnol. A questão agora é ajustar a euforia dos encrencados à realidade.


O palco para esse ajuste será o Supremo Tribunal Federal. Ali, há duas correntes visíveis. Uma se expressou pelos lábios de Gilmar Mendes. Prova obtida ilegalmente pode ser usada para inocentar um injustiçado, disse o ministro. A segunda corrente soou na voz de Edson Fachin: "A Lava Jato é uma realidade. Não acredito que essa realidade venha a ser afastada por qualquer circunstância conjuntural", ele declarou.

No meio das vozes há um monturo de fatos malcheirosos: o saque à Petrobras, as delações em série, a devolução de bilhões roubados do Estado, as condenações e as prisões de corruptos e corruptores poderosos… Comprometer tudo isso seria uma tragédia. Retroceder como resultado de um crime cibernético seria um escárnio. Torça-se para que prevaleça o bom senso. Do contrário, será necessário admitir que o crime compensa.

Bolso fechado, país estagnado

Ressabiado, o brasileiro evita meter a mão no bolso e o consumo em queda é mais uma confirmação da piora da economia nos primeiros meses do novo governo. Depois de uma queda no primeiro trimestre, a atividade continua emperrada e já se fala, no mercado, em rever para baixo as estimativas para o período de abril a junho. As projeções de crescimento econômico em 2019 continuam caindo e já chegaram ao mísero nível de 1%. Essa é a mediana das previsões coletadas pelo Banco Central (BC) em sua última consulta a cerca de cem instituições financeiras e a consultorias. Os mais novos números do varejo combinam muito bem com esse quadro. Em abril, o volume de vendas de bens de consumo não duráveis e semiduráveis, como comida, remédios e roupas, foi 0,6% menor que em março, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).


Esse foi o pior resultado para um mês de abril desde 2015, quando a queda chegou a 1%. Era o começo da recessão. Com a nova baixa, o total vendido ficou 7,3% abaixo do recorde atingido em outubro de 2014, quando a indústria já afundava na crise, mas os consumidores ainda mostravam ânimo. Em abril, as vendas ainda foram 1,7% maiores que as de um ano antes. Além desse, alguns poucos indicadores positivos aparecem quando se examinam as variações anuais. O total acumulado nos primeiros quatro meses do ano foi 0,6% superior ao de janeiro a abril de 2018 e em 12 meses houve ainda expansão de 1,4%. Mas nem esses números positivos são animadores.

A média móvel trimestral ficou 0,2% abaixo do nível do ano anterior e, mais importante, a maior parte do comércio varejista continua em patamar próximo ao do fim do ano, quando o quadro já era ruim.

O recrudescimento da inflação nos primeiros meses do ano pode explicar em parte o enfraquecimento do consumo. A persistência do desemprego em nível muito alto, com mais de 13 milhões de desocupados, também é parte do cenário. A inflação recuou a partir de maio, como se previa, mas nem isso justifica maior otimismo quanto à evolução do consumo. A insegurança de consumidores e empresários permanece elevada e nenhum sinal de maior animação econômica é visível neste momento.

O conjunto parece ficar um pouco menos feio quando se acrescentam as vendas de veículos, partes e peças, com alta de 0,2% no mês, e também de material de construção, com aumento de 1,4% sobre março. Acrescidos esses dois itens, a variação mensal do chamado varejo ampliado em relação ao total de março fica nula. Zero pode ser melhor que -0,6%, mas só uma extraordinária boa disposição extrairia dessa diferença algum entusiasmo.

“O varejo recua após dois meses de estabilidade, e só essa observação já mostra a perda de ritmo em 2019”, comentou a gerente da Pesquisa Mensal do Comércio do IBGE, Isabella Nunes. Com a ampla capacidade ociosa das empresas, o desemprego muito alto e a geração de empregos quase restrita à informalidade, a massa de rendimentos permanece insuficiente para animar o consumo, observou a economista. A maior parte das famílias dificilmente se dispõe a comprar mais que o essencial.

O baixo movimento da maior parte do varejo se reflete na estagnação da indústria. Em abril, a produção de bens de consumo semiduráveis e não duráveis foi 2,6% maior que a de março, mas 0,7% menor que a de um ano antes. Em 12 meses, a produção desses itens diminuiu 1,4%, como já havia informado o IBGE.

Desemprego elevado, baixo consumo e estagnação industrial formam um círculo vicioso, com realimentação contínua de um dado negativo para outro. Dificilmente o investimento privado quebrará essa sequência, porque a ociosidade do parque produtivo é muito ampla. A ruptura virá mais provavelmente de um incentivo ao consumo das famílias, de um investimento maior ligado ao setor público ou de uma combinação dos dois.

Mas o governo do presidente Jair Bolsonaro tem condicionado qualquer novo estímulo à aprovação da reforma da Previdência. Até lá, a economia se arrastará e o desemprego assombrará as famílias. Tem sentido prolongar esse drama?

Paisagem brasileira

Igreja do Rocio, Paranaguá (1930), Alfredo Andersen

É preciso resgatar da extrema direita os símbolos nacionais

Em um fim de semana recente, ao sair de casa para correr no Parque Ibirapuera, em São Paulo, minha mulher questionou a escolha da minha camisa – da seleção brasileira. "Vão achar que você é bolsominion", alertou e me lembrou das manifestações pró-governo previstas para o dia seguinte na Avenida Paulista.

De fato, verifica-se hoje uma tendência crescente de apropriação de símbolos nacionais por movimentos de extrema direita tanto no Brasil quanto em outros países. Isso faz parte de uma estratégia sofisticada, pois permite uma suposta divisão da população entre patriotas de um lado e inimigos da pátria de outro.


Na Finlândia, por exemplo, usar uma camisa estampada com o símbolo nacional – o leão e a cruz – era comum no passado, mas seu uso hoje está fortemente associado a grupos xenófobos. Incomodada com o controle da extrema direita sobre o símbolo, uma agência finlandesa de design chegou a pedir, poucos anos atrás, sugestões para criar símbolos alternativos, que cidadãos moderados poderiam usar sem ser confundidos com radicais da direita. "Grupos extremistas sequestraram símbolos nacionais, fizeram do nacionalismo uma palavra suja e basicamente roubaram o direito de todos nós nos orgulharmos de nosso país", explicou Karri Knuuttila, um dos principais membros da iniciativa, à época.

Nos Estados Unidos, o presidente Trump tem sistematicamente tentado se apropriar da bandeira nacional, alegando (incorretamente) que seus adversários evitavam usá-la em eventos – e que, portanto, não seriam patriotas.

Na Alemanha, o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha (AfD)costuma assegurar que todos os seus manifestantes portem a bandeira alemã e acusa os demais partidos de sentirem vergonha dos símbolos nacionais. Um vídeo em que a premiê Angela Merkel tira uma pequena bandeira alemã do palco durante a celebração da sua vitória nas urnas em 2013 viralizou entre grupos da extrema direita e é até hoje mencionado por líderes do partido extremista como prova de que Merkel seria "anti-alemã". O movimento alemão xenófobo e nacionalista chamado Pegida, aliado ao AfD, adota o slogan "patriotismo não é crime", alegando que as elites cosmopolitas envergonham-se de qualquer símbolo nacional.

Em resposta, porém, moderados em muitos países caíram na armadilha dos radicais e cederam o uso dos símbolos nacionais aos extremistas – e, com isso, abriram mão do debate sobre patriotismo. Durante a última Copa do Mundo de futebol masculino, a ala jovem do Partido Verde alemão chegou a pedir que os torcedores não usassem a bandeira alemã durante os jogos – em grande parte uma resposta às marchas da AfD e do movimento Pegida. Quando milhares de alemães encheram as ruas de Berlim em 2018 para protestar contra a ascensão da extrema direita, a organizadora da manifestação, Theresa Hartmann, sugeriu aos participantes usarem bandeiras com o arco-íris e cartazes com os dizeres "Refugiados são bem-vindos", mas pediu que os manifestantes não usassem a bandeira alemã, pois ela teria "uma conotação de direita". Segundo ela, não se tratava de uma manifestação para demonstrar orgulho nacional. Sem querer, ela deu munição à narrativa dos radicais de que os progressistas não gostam de usar a bandeira porque não sentem orgulho do país.

O que Hartmann não entendeu é que não há contradição entre, de um lado, manifestar-se a favor da tolerância e dar as boas vindas a refugiados (pilares da Constituição alemã) e, de outro, sentir orgulho nacional. São episódios como esse que facilitam o trabalho da extrema direita, a qual busca estabelecer uma falsa dicotomia entre cidadãos "verdadeiros" e aqueles menos comprometidos com a nação. Na Finlândia, em vez de investir em símbolos alternativos com pouca chance de ampla aceitação, moderados deveriam buscar resgatar dos grupos xenófobos os símbolos nacionais.

Não se trata, é claro, de competir com os extremistas sobre quem mais abraça os símbolos da pátria, como nos EUA, onde a decisão de não usar um pin com a bandeira americana no paletó levou críticos do então candidato a presidente Barack Obama a questionarem sua lealdade à nação. Porém, em um momento em que movimentos nacionalistas surgem com força ao redor do mundo -- em parte devido a temores sobre o impacto da globalização –, os segmentos moderados da sociedade não deveriam se afastar dos símbolos da pátria nem se retirar do debate sobre o papel da identidade nacional e do patriotismo hoje. Tachar qualquer tipo de patriotismo de ufanismo retrógrado e contrastá-lo com o pensamento moderno e cosmopolita é contraproducente, pois não reconhece que a onda nacionalista veio para ficar. Com as turbulências resultantes do confronto comercial entre Washington e Pequim, o avanço tecnológico que tornará milhões de empregos supérfluos, as catástrofes ambientais e os fluxos migratórios de dimensões sem precedentes, apelar ao nacionalismo será uma tentação irresistível para muitos líderes políticos oportunistas.

Em vez de negar essa realidade e permitir que nacionalistas radicais possam definir o que é patriotismo ou identidade nacional, é preciso envolver correntes moderadas nos debates sobre o tema e ajudar a mostrar que um 'patriotismo razoável', para usar um termo do filósofo William Galston, pode ser positivo e é perfeitamente compatível com conceitos cosmopolitas, como estar a favor da cooperação internacional para lidar com desafios globais, apoiar a integração regional, combater a xenofobia, ser a favor da diversidade e reconhecer e respeitar a pluralidade de opiniões no processo político.

Ainda que um pouco apreensivo, acabei portando minha camiseta da seleção brasileira naquele sábado no Parque Ibirapuera.

Oliver Stuenkel gar essa realidade e permitir que nacionalistas radicais possam definir o que é patriotismo ou identidade nacional, é preciso envolver correntes moderadas nos debates sobre o tema e ajudar a mostrar que um 'patriotismo razoável', para usar um termo do filósofo William Galston, pode ser positivo e é perfeitamente compatível com conceitos cosmopolitas, como estar a favor da cooperação internacional para lidar com desafios globais, apoiar a integração regional, combater a xenofobia, ser a favor da diversidade e reconhecer e respeitar a pluralidade de opiniões no processo político.

Ainda que um pouco apreensivo, acabei portando minha camiseta da seleção brasileira naquele sábado no Parque Ibirapuera.
Oliver Stuenkel

Como se perde um país

Se a democracia morrer no século 21, não será como no século 20. Eis, em resumo, o que vários cientistas políticos nos dizem. Hoje, ninguém acredita em tanques nas ruas ou bombas nos palácios. Há formas mais sutis de chegar ao mesmo fim: a supressão da liberdade e o triunfo do autoritarismo. E que formas são essas?

Um livro recente, que falha em muita coisa, acerta no essencial. Foi escrito por Ece Temelkuran, uma conhecida escritora turca. O título resume a ambição da obra: "How to Lose a Country - The 7 Steps from Democracy to Dictatorship" (como perder um país - os 7 passos da democracia à ditadura).

Escrevi que o livro falha em muita coisa porque Temelkuran procura convencer o leitor de que o exemplo turco será seguido por outros países europeus e, é claro, pelos Estados Unidos de Donald Trump. Um caminho de centralização do poder que terminará com presos políticos, censura da mídia, eleições fraudulentas e a oposição no exílio.

Lamento. Não compro essa histeria. Por mais indigesto que Donald Trump seja, os Estados Unidos ainda não são a Turquia. A tradição democrática dos primeiros não pode ser confundida com a ausência de tradição da segunda.

Por outro lado, também não compro a forma displicente como Temelkuran inclui o brexit na vaga extremista que persiste na Europa.

Como se viu nas recentes eleições europeias, com a vitória do Brexit Party e a humilhação de conservadores e trabalhistas, os ingleses não apenas querem sair da União Europeia como não toleraram a traição que os dois partidos consumaram sobre o eleitorado, sabotando o que foi decidido nas urnas.


O livro de Temelkuran interessa-me por outro motivo: primeiro, porque é um retrato notável sobre a regressão democrática na Turquia; e, em segundo lugar, porque essa regressão pode ser imitada em democracias incipientes ou pouco consolidadas.

Segundo Temelkuran, essa viagem para as trevas começa com a criação de um movimento (como o partido AKP de Recep Tayyip Erdogan) que explora o ressentimento popular contra as elites (políticas, econômicas, midiáticas etc.) de forma a tribalizar a sociedade (nós versus eles).

Não que as massas —o "povo real", para usar essa expressão equívoca— não tenham razões de queixa. Mas o movimento vitimiza as massas de uma forma histérica e irracional, aumentando as suas dores.

Formado o movimento, há um assalto aos opositores que é também um assalto à linguagem (George Orwell sabia disso no seu "1984"). No melhor capítulo do livro, Temelkuran vai listando o tipo de argumentos que os partidários de Erdogan usam contra os inimigos.

Podem ser argumentos "ad hominem", quando é a pessoa a ser atacada, e não as suas ideias. Podem ser argumentos "ad ignorantiam", em que algo é refutado (ou defendido) porque ninguém o conseguiu provar (ou refutar).

E podem ainda ser argumentos "ad populum" —algo é verdadeiro porque muita gente acredita nisso, ponto final.

Como conclusão, a autora recorda um observação certíssima de Albert Camus: "Um homem com quem não se pode conversar é um homem a ser temido". Muitas democracias atuais converteram-se nesse inferno de Camus: espaços onde ninguém fala com ninguém.

Formado o movimento e a sua linguagem terrorista, há um assalto ao "sentido de decência" —o que era impensável e impronunciável por razões de civilidade é agora dito, repetido e normalizado.

Uma vez no poder, o movimento derruba os mecanismos judiciais e políticos que sustentam a democracia liberal (controle dos juízes; sabotagem de partidos rivais; eleições fraudulentas etc.).

Finalmente, e em plena consonância com experiências ditatoriais ocorridas no passado, o novo regime cria um "cidadão novo" (os "cidadãos velhos" não têm vez) e até um "país novo" (sobre os escombros do antigo). Assim, e nas palavras da autora, "a alma de um país é alterada irrevogavelmente quando ele repudia os seus cidadãos".

O livro de Ece Temelkuran é o testemunho pungente de quem acompanhou a deriva autoritária do seu país, exilando-se no processo.

Mas é também uma análise fina sobre o autoritarismo no mundo contemporâneo: um fenômeno que dispensa exércitos ou violência física, optando antes por uma guerra civil existencial em que uma parte da nação é renegada pela outra parte.

Dividir para reinar sempre foi a receita favorita dos tiranos.
João Pereira Coutinho 

Troca de mensagens não torna Lula inocente

Concordamos quase todos que a troca de mensagens entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol foi no mínimo imprópria, já que há controvérsia sobre sua irregularidade. De acordo com os dados hackeados e até aqui divulgados, o juiz e o procurador-chefe da Operação Lava-Jato trocaram impressões sobre o caso em julgamento em pelo menos meia dúzia de vezes. Em dado momento, o juiz orientou o procurador a ouvir uma fonte que poderia oferecer mais elementos para o caso. Em outro, Moro e Dallagnol discutem a oportunidade de divulgar um grampo ilegal feito de telefonema entre Dilma e Lula.

O episódio coloca os dois na defensiva. Dallagnol pode ser punido pelo Conselho Nacional do Ministério Público. Moro não pode sofrer sanção de classe porque já deixou a magistratura, mas pode ser afastado do Ministério da Justiça pelo presidente Bolsonaro. Sua demissão provavelmente não vai acontecer, a menos que o capitão sofra um súbito ataque ético. Sua punição deverá ser conhecida em novembro do ano que vem. Ele pode perder a indicação para a vaga de Celso de Mello no Supremo.

O fato inarredável é que a troca de mensagens entre os dois protagonistas da Lava-Jato deixou a operação frágil. Seu futuro está claramente ameaçado. Dallagnol pode ser afastado da função e com ele desaparece o seu caráter missionário. Outros procuradores, que atacaram Lula e PT em distintas trocas de mensagens também hackeadas, da mesma forma podem desfalcar a operação. Sendo incerto o seu futuro, a pergunta a fazer é o que pode ocorrer com o passado da Lava-Jato, ou com os efeitos que a operação produziu até aqui.


A defesa de Lula pede a anulação de todo o processo e a soltura imediata do ex-presidente. Entende que Lula sofreu perseguição política em um julgamento combinado entre o procurador e o juiz da causa. Esse é o problema a ser resolvido agora. O que fazer com as sentenças dadas por Moro? Terá Lula se tornado inocente em razão da troca de mensagens entre juiz e procurador? As indicações de corruptos de partidos aliados para as diretorias da Petrobras deixaram de ocorrer? O rombo bilionário nos cofres da estatal não foi feito?

O ex-presidente já foi condenado em duas ações. Sobre elas, cabe perguntar:

1) Lula não recebeu benefícios de empreiteiras que roubavam da Petrobras?

2) O tríplex do Guarujá não era dele, como mostram documentos, fotos, vídeos, depoimentos, testemunhos e delações?

3) O apartamento não foi equipado com elevador especial e cozinha encomendada por Dona Marisa?

4) Lula não visitou o imóvel na companhia do dono da OAS?

5) O sítio de Atibaia não foi reformado e depois equipado com cozinha igual à do tríplex e pela mesma OAS?
Não, Lula não virou inocente em razão da troca de mensagens entre Moro e Dallagnol. Mas, suponha que este entendimento prevaleça, o processo seja anulado e Lula colocado em liberdade. Nesse caso, por isonomia, também deve ser solto o ex-presidente da OAS Léo Pinheiro, que deu e equipou o apartamento do Guarujá e reformou o sítio de Atibaia. Mais grave, se a teoria for para valer, a dobradinha entre juiz e procurador contaminou toda a Lava-Jato. Nesse caso, para se fazer justiça, deve-se suspender as 61 etapas da operação.

E o que se obterá com isso? Em primeiro lugar, além de Lula, devem ser soltos todos os que ainda estão presos. Entre eles, saem da cadeia Eduardo Cunha, José Dirceu, Antonio Palocci, Geddel Vieira Lima e mais vacarezas, genus e vacaris de PT, PP, PMDB, PSDB, PTB e SD. Os doleiros e empresários presos também devem ser soltos. Marcelo Odebrecht pode tirar a tornozeleira, pegar de volta seu passaporte e retomar o comando da sua empresa.

Do ponto de vista financeiro, a Petrobras tem que devolver a empreiteiros e políticos os R$ 2,5 bilhões que recuperou com a operação Lava-Jato. Por outro lado, com a troca de mensagens nas mãos, a estatal pode ir a Nova York tentar interromper o pagamento de US$ 3 bilhões que está fazendo em parcelas a investidores americanos que perderam dinheiro com o escândalo. Pode alegar que foi apenas uma armação de um juiz e um procurador que odiavam o PT e fizeram isso tudo para impedir uma nova eleição de Lula. Vai que cola.