Não serão poucas as questões que se insinuam desde essa conceituação tão rasamente bela quanto profundamente autoritária. Tratarei de algumas aqui. Mas não sem antes reconhecer a transparência discricionária do presidente; porque tal definição condensa o ânimo que motorizou, por exemplo, as manifestações governistas de 26 de maio: a ideia de que a condição de líder carismático eleito de maneira contundente determine a subjugação dos demais poderes republicanos à agenda do governante popular.
Na origem dessa visão de mundo jacobinista influente, claro, está o desprezo pela atividade política e, logo, o entendimento da democracia representativa como entrave burocrático ao avanço do país: o Congresso compreendido como ameaça, a encarnação do establishment, a máquina defensora de interesses corporativos, não raro tratada como sindicato do crime, que operaria para inviabilizar os compromissos de campanha — espécie de imperativo divino inquestionável — assumidos por Bolsonaro.
Não se pode negligenciar o grau de crença religiosa que a trajetória e o discurso do presidente agregam a esse movimento de desqualificação da política. O homem foi esfaqueado em plena campanha, nos braços do povo, e não perde oportunidade de encaixar sua sobrevivência como a comprovação de que ora cumpriria uma missão de Deus. Uma engrenagem de fé personalista cujo fim virtuoso autorizaria a sociedade a prescindir dos freios e contrapesos que equilibram a República: porque o presidente, vítima e sobrevivente, foi eleito, quase à morte, defendendo tais e quais bandeiras, não lhes endossar incondicionalmente transformaria o Parlamento — reduzido a despachante do Executivo — em traidor da vontade popular.
Essa é a construção narrativa que impulsionou os atos governistas de 26 de maio, destinados a intimidar o Legislativo (já criminalizado pelo lavajatismo), e que ancora a pretensão bolsonarista de enfraquecer (ainda mais) o Congresso por meio de uma (improvável) mobilização popular constante — o que chamei de “plebiscito permanente”.
Voltemos, pois, à democracia segundo Bolsonaro: aquela cuja plenitude dependeria de a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população. Parece bonito. Vende desapego. É sedutor. Mas: que “população” seria essa? Melhor: o que seria “população”? Essa pergunta precisa ser enfrentada à luz de um sistema de credos que vilipendia mediações e que tem centro num mito anabolizado por delegação celestial e com ambições de falar diretamente ao rebanho. Mais: o que seria uma afinação perfeita? Essa indagação precisa ser encarada sem que se perca de vista que o ímpeto de mobilização popular tem a atividade política como prática delinquente — algo só controlável sob pressão e medo.
Assim, sugiro, não se deve avançar sem medir a probabilidade de “afinação perfeita” ser o mesmo que submissão total à população. Tampouco se deve esquecer de que o agente político para quem a democracia derivaria de a classe política estar “afinada” aos desejos do povo é o mesmo que classificou os cidadãos que protestaram contra seu governo como “idiotas úteis”. Donde se infere que, para Bolsonaro, não haveria anseios da população nas pautas de oposição. Donde se infere que, para Bolsonaro, os anseios da população só seriam anseios se coincidentes com os de Bolsonaro.
A questão, portanto, continua sendo o que significaria, de acordo com a democracia bolsonarista, esse ente “população”.
A fala do presidente exprime uma visão totalitária; uma abordagem que, a rigor, mais do que confundir povo com governante popular, anula essa diferença, suprime mesmo o valor impessoal de representação, para fazer emergir o governante, o ungido, que é a população — a população que é o governante. Daí por que convido o leitor a refletir sobre se a definição “democracia é a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios da população” não poderia ser substituída, para benefício de seu peso real, por “democracia é a classe política estar perfeitamente afinada com os anseios do governante”.
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