Samuel puxou um carrinho de papel por muito tempo, no centro de São Paulo, e agora fez 60 anos. Leu em algum lugar que iam antecipar o benefício e foi checar lá na Assistência Social: “Vim buscar os R$ 400 da reforma”.
“Olha”, diz o funcionário, “o Congresso não aprovou, mas não se preocupe. É só aguardar mais cinco anos e voltar aqui para pegar o seu salário mínimo”. Samuel tentou ensaiar um “e até lá..?”, mas não conseguiu completar a frase. Tinha gente na fila.
A minoria de cara feia passa a conta para a maioria de cara nenhuma
Seu xará, deputado Samuel Moreira, relator da reforma, poderia dar um jeito nisso. Ele poderia fazer um exercício comum na filosofia: imaginar que acorda, dia desses, e descobre que se transformou no Samuel puxador de carrinho. A loteria da vida tem disso. Se o deputado gastasse dois minutos fazendo isso, o que ele decidiria?
Por óbvio, não vai acontecer nada disso. E não adiantaria mostrar que se vale mais ganhar meio salário, durante dez anos, do que um salário inteiro durante cinco anos.
Ou deixar a escolha para o próprio sujeito fazer. Pouca gente, em Brasília, leva a sério a ideia de dar às pessoas, em especial aos mais pobres, o direito de escolher onde aplicar o dinheiro do FGTS ou onde colocar os filhos para estudar. E até hoje fazemos drama porque deram ao trabalhador o direito de decidir se quer ou não pagar um sindicato.
O Congresso poderia estar discutindo essas coisas. No caso do BPC, podia-se ajustar a regra para meio salário aos 60, e integral, aos 70, ou algum modelo progressivo (sugerido, aliás, por Paulo Tafner). Em vez disso, arriscamos retirar estados e municípios da reforma, pelo simples efeito do lobby corporativo no Congresso.
A razão disso tudo é bastante simples: brasileiros miseráveis são carta fora do baralho no mercado político; minorias bem organizadas, que sabem fazer barulho, comandam o jogo.
O mesmo raciocínio vale para as aposentadorias especiais. Há muitos deputados indignados com a proposta de idade mínima de 60 anos para professores. Professores, argumenta-se, sofrem stress e condições adversas, em especial na área pública.
Tudo isto é verdade. A mesmíssima verdade que poderia ser dita a favor de um sem número de atividades, com a mesma força e argumentos ainda mais convincentes.
Pessoas que carregam tijolos, por exemplo, nos canteiros de obras. Domésticas, costureiras, motoristas de ônibus. O que essas pessoas diriam a seu próprio favor? Podemos imaginar, mas elas não dirão nada. Costureiras e motoristas não tem lobby em Brasília. Não mandam carta, não sobem trending topics no Twitter, não xingam colunistas que contrariam seus interesses e não esperam os deputados para dar uma prensa no aeroporto. É só isso.
Estamos diante de uma reforma que distribui custos para muitos setores na sociedade, mas que soube concentrar o ônus em quem ganha mais. Vamos lembrar: as alíquotas serão progressivas. Para servidores que recebem salário mínimo, será de 7,5%, contra 16,7% para quem ganha R$ 39 mil. Trata-se de um caso raro de projeto de desconcentração da renda no Brasil.
Se fosse diferente, se a reforma acentuasse ainda mais a desigualdade e fosse mesmo contra os mais pobres, já teria passado. Quase nenhum barulho teria se escutado. A reforma é difícil exatamente porque mexe com gente que tem poder e força no Congresso e que não tem lá grande constrangimento de usar os mais pobres como bucha de canhão retórico.
Hoje começa de verdade o debate da reforma no Congresso. Intuo que será fácil, no relatório, perceber as digitais dos grupos de pressão.
A mecânica perversa do mercado político, em que a minoria de cara feia passa a conta para a maioria de cara nenhuma. Se a sociedade não se mexer, a reforma vai perder, além de potência fiscal, muito de sua potência moral, que é dada pelo sentido de equidade. Oxalá isto não aconteça.Fernando Schüler
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