quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Essência do jogo político

Há muita gente tratando como traição aquilo que é a essência do jogo político brasileiro. O noticiário dos últimos dias está repleto de exemplos de caciques políticos que apoiam um nome à Presidência e, ao mesmo tempo, dão palanque em suas regiões a agremiações de adversários do candidato nacional.
É uma ocorrência comum em todas as últimas eleições. É um comportamento que não deveria surpreender nem ser chamado de traição e, no extremo lógico do raciocínio, tampouco mereceria destaque no noticiário. Na verdade, se notícia é coisa inédita então notícia seria se não se registrasse comportamento desse tipo.

Começa pela maçaroca ideológica brasileira, que não comporta definições precisas do que seja a tendência política dos partidos, se é que se pode falar disso. Afinidades em torno de plataformas ou posturas político/ideológicas são muito raras, e pertencem, a rigor, a extremos do espectro. Os partido já eram fracos ainda antes do esfarelamento que sofreram com a Lava Jato e não têm (mesmo o PT) a tal da “fixação estrutural” da qual falam os cientistas políticos, isto é, não se mantêm o que são por um longo prazo de tempo.


No sistema político eleitoral brasileiro a federação cria realidades políticas estaduais diante das quais, sob a ótica dos caciques donos de partidos, faz todo sentido buscar alianças promissoras no plano nacional e combiná-las – ou, melhor dito, e levá-las adiante na campanha – com acertos de importante expressão regional. Note-se que há décadas a coerência de postulados políticos nas alianças é quimera atrás da qual correm apenas desavisados assistindo ao circo – incluindo o PT, que já foi um “partido orgânico”, por seu enraizamento em determinados segmentos sociais.

Neste momento da campanha, o verdadeiro teste pelo qual passa uma candidatura como a de Alckmin, cuja aposta central é a eficácia dos meios tradicionais de se lutar numa campanha eleitoral (TV, dinheiro e parte da máquina pública), é o teste da percepção que caciques desenvolvem das chances de vitória, e não tanto as tais “traições”. Essa percepção reflete, por sua vez, uma atitude bastante comum no grosso do eleitorado, segundo a qual não se joga voto fora, isto é, corre-se de última hora rumo a quem se percebe como eventual vencedor.

Colocados esses pontos sobre a essência do nosso sistema (oportunismo, fragmentação, regionalismos), ele está funcionando exatamente como seria de se esperar. A partir daí, a “esdrúxula” montagem de alianças que defendem gregos num plano e troianos em outro surge, na verdade, como algo coeso e coerente. O jeito com que o Brasil vota nas eleições proporcionais, com ênfase em indivíduos disputando distritos eleitorais muito amplos, incentiva ainda mais a fragmentação de partidos e seu consequente enfraquecimento.

Para eleitores razoavelmente mobilizados ou bem aglutinados em torno de candidaturas, como acontece com o poste que Lula indicar e, do outro lado, com Bolsonaro (cujo grau de consolidação está surpreendendo consultorias de risco internacionais), a questão das “traições” não chega a ser relevante. No ambiente que no momento prevalece de antipolítica, desânimo e desconfiança em relação aos partidos, no qual começa para valer a campanha eleitoral, significa dizer que o extraordinário número dos indecisos ou que se declaram desinteressados em votar vai empurrando para frente a linha do tempo atrás da qual se vislumbram possíveis vencedores.

O preço a pagar por partidos fracos, sistema com a “essência” descrita acima e falta de plataformas verdadeiramente “políticas” são a dúvida e a imprevisibilidade.

Sacolão Brasil


Mistificação

O jornal britânico Financial Times publicou no dia 21 um artigo de Fernando Henrique Cardoso no qual o ex-presidente critica duramente seu sucessor, Lula da Silva, por enxovalhar a imagem do Brasil no exterior – a mais recente estocada foi um artigo, publicado pelo New York Times, em que o petista diz, entre outras barbaridades, que sua prisão “foi a última fase de um golpe em câmera lenta destinado a marginalizar permanentemente as forças progressistas no Brasil”.

Em resposta a essa patacoada, FHC escreveu que “a maneira que Lula da Silva escolheu para se defender perante o mundo (...) tem de ser contestada”, pois “sua versão da história recente do Brasil guarda escassa relação com a realidade”. Diz também que “o ex-presidente retrata o Brasil como uma democracia em ruínas, na qual o Estado de Direito deu lugar a medidas arbitrárias destinadas a enfraquecê-lo e a seu partido”, o que “não é verdade”.

Depois de descrever as muitas mentiras de Lula sobre o “golpe” contra a presidente Dilma Rousseff e sobre o processo que condenou o petista à cadeia, FHC afirma que “é uma grave distorção da realidade (...) dizer que há uma campanha no Brasil para perseguir indivíduos específicos” e termina com um protesto: “Meu país merece mais respeito”.


Já não era sem tempo. A máquina lulopetista de agitação e propaganda, calejada depois de mais de três décadas destruindo reputações alheias e construindo a mitologia de seu morubixaba, há muito tempo trabalha para convencer a opinião pública no exterior de que o impeachment de Dilma e a prisão de Lula foram parte do tal “golpe” destinado a “reverter o progresso dos governos do PT”, como diz o caviloso artigo do chefão petista. Era mesmo necessário que alguém da estatura de FHC, reconhecido internacionalmente como estadista, viesse a público manifestar seu repúdio mais veemente contra essa campanha de desinformação e má-fé.

Mas o fato é que o estrago está feito. O aparato da seita de Lula para desmoralizar a democracia brasileira no exterior mobilizou tantas frentes que hoje é praticamente impossível tentar conter seus danos por meios tradicionais, como a diplomacia, ou com artigos na imprensa estrangeira.

São artistas, intelectuais, professores universitários e políticos de diversos países, todos convencidos de que Dilma Rousseff caiu em razão de um “golpe” e que Lula da Silva é um “preso político”. Pudera: até uma “greve de fome” os petistas deflagraram para caracterizar o “estado de exceção” brasileiro.

Essa campanha de desinformação não para de dar frutos. No mês passado, por exemplo, o cientista político Steven Levitski, de Harvard, autor do best-seller Como as Democracias Morrem, disse em entrevista ao Estado que o impeachment de Dilma “viola o espírito das leis” e que a exclusão de Lula da corrida presidencial “é algo perigoso a se fazer” – como se, em ambos os casos, a lei não tivesse sido seguida.

O mesmo equívoco, mas numa dimensão muito maior, cometeu o ex-chanceler do México Jorge Castañeda. Em artigo no New York Times, intitulado Por que Lula deve ter permissão para concorrer à Presidência, Castañeda argumenta que “a causa de Lula foi endossada por muitas figuras internacionais ao redor do mundo” e sugere que seu caso se assemelha à perseguição política empreendida pelas ditaduras da Venezuela e da Nicarágua contra seus oponentes. Após dizer que impedir a candidatura de Lula seria marginalizar milhões de eleitores que querem “seu ídolo de volta à Presidência”, ele completa: “As acusações (contra Lula) são tão frágeis, os alegados crimes, tão pequenos, a sentença, tão escandalosamente desproporcional (...) que a democracia deveria se sobrepor ao Estado de Direito” – ou seja, o “desejo” dos eleitores de Lula deveria prevalecer sobre a lei.

Quando prestigiados intelectuais, alguns com boas credenciais democráticas, se deixam encantar dessa forma pelas patranhas de Lula, a ponto de abdicar da defesa do Estado de Direito – que é o pilar da democracia, pois assegura que ninguém, nem mesmo deidades como Lula, está acima da lei –, só resta esperar que a Justiça brasileira não vergue ante essa espantosa histeria coletiva.

Morto muito vivo

Lula é hoje o maior ser humano vivo
Manuela d’Ávila, candidata do PCdoB à Presidência

Desaforos não se leva para casa

Estica a corda. Estica. Uma hora ela arrebenta e é esse impasse previsível que tem deixado – a mim e a muitas pessoas às quais tenho grande apreço – mais do que preocupados, chateados e irritados. Desanimados total, achando tudo um porre, nada (nem ninguém) que preste. Estamos brincando em cima de uma panela de pressão – um país perdido sem direção e em crise econômica, institucional e vou dizer: em profunda crise existencial.

Jogadas políticas temerárias vem sendo feitas à luz do dia e na calada da noite. Alguns riem. O resultado do placar é que aparece diferente para cada plateia. De um lado, os estupefatos que aceitam as provocações e acham que a solução é fechar o tempo de vez, sem entenderem que a História não deve nem precisa voltar atrás aos tempos obscuros, cavernosos e sangrentos vividos, tempos que teimam em negar como se realidade não tivessem sido. Nesse grupo há ainda os crédulos em justiceiros falastrões para quem – os que o criticam – somos analfabetos, sem ter ideia de quantos milhões o são mesmo, sem solução, e que podem votar, mas não podem ser votados para lutar contra isso.


De outro, a jogada mais radical, feita para a torcida única de bandeirinha na mão que acha que só ela sabe o que é que é bom, o que é pobre, miséria, justiça social, arte engajada, e insiste em criar caso até o fim no que não será possível, infelizmente, de forma alguma, que seja executado em paz – essa é a certeza: a candidatura de Lula, o encarcerado que mais recebe visitas que podem ser chamadas de íntimas – sem sexo, e com grande incontinência verbal.

Tapas sequenciais na cara. E ninguém está a fim de virar o outro lado para ser esbofeteado de novo.

Deixe os meninos brincarem – diria um sábio ancião, observando esse caso lá de cima de uma montanha, de onde já não mais precisa descer para votar nesse tutti-frutti absurdo e desconexo de cabo a rabo que se apresentará nas urnas. Diria mais: que eles precisam sempre regar o grupo deles, para não perderem mais do que já perderam nesses últimos anos, os que despertaram do torpor infantil emanando da plantação do canto esquerdo do rio. Jogar para a galera é o que fazem.

Só que os meninos estão justamente brincando com fogo porque querem se queimar, há entre eles muitos que – nem um pouco meninos – sabem ser o choque inevitável e para lá exatamente por isso encaminham a comissão de frente. ONU. ONU? Isso é que é atirar para todos os lados. Nunca os vi mexer o traseiro para situações vexatórias de miserê.

Teremos dias exóticos, ainda mais exóticos, quero dizer, pela frente. Vamos observar. Debates e entrevistas, os mais divertidos. Uma das melhores coisas é lembrar que a maioria das perguntas que uns fazem aos outros e que os jornalistas cutucam não têm o menor interesse de verdade para a gente a resposta, a não ser por futrica. Ver se um vai dar uma bifa na cara do outro; se o efeito do calmante vai passar, se o sangue vai subir, se gravata combina com o terno, que inclusive está tudo muito masculino para o meu gosto, se plantaram ou pintaram cabelo é o que dá a audiência.

E o que é pior, se perguntássemos ou se a conversa girasse apenas sobre as suas propostas para o Governo, seria menos constrangedor o silêncio.

Reflexos no espelho

“Os verdadeiros inimigos do povo — e da democracia — são aqueles que tentam sufocar a verdade [das mensagens] vilanizando e demonizando o mensageiro.” “Os esforços para minar sistematicamente a credibilidade da imprensa são um ataque às nossas instituições democráticas.” “Criticar a mídia, por subestimar ou exagerar nas reportagens ou por entender algo de forma errada, está inteiramente certo. Repórteres e editores são humanos e cometem erros. Corrigi-los é fundamental para o nosso trabalho. Mas insistir em que verdades das quais você não gosta são notícias falsas é perigoso para a alma da democracia. E chamar os jornalistas de ‘inimigos do povo’ é perigoso, ponto.”

Essas frases, tiradas da coluna de domingo último da ombudsman Paula Cesarino Costa, são de editoriais publicados na semana passada por 400 organizações de mídia nos EUA. Foram editoriais em defesa da liberdade de imprensa ameaçada pelo presidente Donald Trump. Para Trump, tudo que não lhe seja simpático é rotulado de fake news e justificativa para ataques aos jornalistas.


Pela primeira vez nos 242 anos de existência dos EUA, discute-se a liberdade de imprensa. Equivale à ciência discutir, de repente, a lei da gravidade. Mas Trump levou a isso. Para encobrir seus malfeitos, ele põe em risco uma cláusula pétrea, base da própria democracia.

Releia agora o primeiro parágrafo e veja se não poderia se aplicar, vírgula após vírgula, a uma defesa contra os ataques do PT e de seus aliados à imprensa brasileira —a “mídia golpista”. Trump e o PT têm isso em comum: não acreditam em notícias que não sejam a seu favor. E, em vez de desmenti-las com fatos, partem para a tentativa de descrédito de toda a mídia.

No caso do Brasil, o PT não está sozinho em sua campanha contra a liberdade de imprensa. Tem um duplo naquele que, no fundo, é seu próprio reflexo no espelho: Jair Bolsonaro.