terça-feira, 10 de maio de 2022

O magro Dia de Putin!

A Segunda Guerra Mundial, para todos os aliados, exceto para os russos, terminou no dia 8 de maio de 1945. A rendição incondicional da Alemanha nazi foi assinada nesse dia. Estaline, furioso, exigiu que uma segunda assinatura fosse efetuada em Moscovo. Feitios. Para a ex-URSS, a vitória só contava no dia 9, e essa tradição, e teimosia, mantém-se. Tanto faz, na verdade. Vem daí o grande desfile militar em Moscovo, um dia depois, só para mostrar o imenso poderio militar. Para assustar.

A própria ideia e conceção de um desfile militar dessa envergadura, dá logo a sensação de alguma fraqueza. E não é de agora, é de sempre. Uma grande potência militar e nuclear não precisa de mostrar os seus «brinquedos». Nem o passo de ganso. Está implícito e, acima de tudo, confirma-se em teatros de guerra. Essa demonstração colateral é que serve de prova dos nove.

Marian Kamensky

E para Putin, e o seu comando militar, este foi um amargo Dia da Vitória. Porque não há vitória na Ucrânia, porque o teste de força só mostrou fraqueza, e porque o brilho dos soldados, tanques e mísseis, era baço. Nem a Força Aérea apareceu, para mostrar a sua capacidade. Assim, à primeira vista, o desfile militar emagreceu em 50%, o que diz tudo. Foi escanzelado e fraco.

Agora, para explicar à plateia, que já deve ter uma ideia da tragédia militar, Putin apontou a NATO como o verdadeiro inimigo. Afinal a aliança preparava-se, na sua mente confusa, para atacar e ocupar território russo. Isto é um surto psicótico. Todos o querem destruir. Está baralhado, perdido, incapaz de pensar. A NATO nasceu para se defender da URSS, e agora da Rússia, e não o contrário. Tudo isto é como a data da Vitória. A Grã-Bretanha, os EUA e a França têm uma, a verdadeira, eles têm outra.

A fraqueza de Putin foi agora reforçada com duas notícias: um dos seus antigos primeiros-ministros, Mikhail Kasyanov, disse que este desfile e discurso era o princípio do fim do presidente da Rússia, e há relatos de desobediência direta de soldados e graduados russos no Donbas, que não cumprem as ordens de ataque, ou fingem que estão a tentar. Tem razão Kasyanov: isto é um passo antes do fim.

A mamata familiar e a mamata militar

Como já havia feito com a Lei Paulo Gustavo, Bolsonaro vetou a Lei Aldir Blanc, projeto que criaria uma política permanente para o setor cultural, com repasses de verbas da União para estados e municípios durante cinco anos. A Lei Orlando Brito, que proporcionaria a isenção de impostos na importação de equipamentos para fotógrafos e cinegrafistas, também foi vetada. Surpresa zero. Um dos conceitos de propaganda do fascismo canarinho é promover o ódio à cultura. O argumento é aquele manjado: todo artista é mamateiro.

Na realidade, o jamegão presidencial funciona como reserva de mercado, deixando o campo livre para os mamateiros de estimação. Ai, a mamata! Orgulho da produção nacional, tão perseguida e, no entanto, tão vitoriosa sob os auspícios do governo.


Mesmo enfrentando a garimpagem e a grilagem em terras indígenas, o contrabando de ouro e madeira, os fabricantes de cloroquina durante a pandemia, as empresas multinacionais de armamento patrocinadas pela Secretaria de Cultura, a mamata conseguiu se destacar entre as atividades que mais prosperaram no Brasil dos últimos três anos e meio.

Os exemplos de sucesso vêm de cima. Vide o caso Renan Bolsonaro. Com os três irmãos mais velhos investigados por falcatruas, ele manteve a tradição e entrou na mira da PF, por suspeita de tráfico de influência e lavagem de dinheiro. A mamata é um negócio familiar, que passa de pai para filho. E não para: o presidente gastou R$ 4,2 milhões no cartão corporativo em 35 dias.

A grande família das Forças Armadas não poderia desperdiçar a chance. Torrou milhões na operação Verde Brasil, e a Amazônia continua sendo destruída. Usou verbas do combate à Covid com picanha, camarão e uísque. Inacreditavelmente, não sabe explicar a compra de milhares de comprimidos de genéricos do Viagra. Trair e conspirar contra as instituições, tramando um golpe militar, tem lá suas recompensas.

Pensamento do Dia

 


A cama está feita

A farsa golpista encenada por Bolsonaro chegou à página em que a confiabilidade do sistema eleitoral brasileiro estaria condicionada ao exame por auditoria a ser contratada pelo partido de Valdemar Costa Neto. Processo cuja legitimação dependerá da supervisão das Forças Armadas, o Poder Moderador empossado pela leitura pervertida do Artigo 142 da Constituição e, até outro dia, comandado pelo general candidato a vice na chapa de Bolsonaro à reeleição.

A cama está feita.

Mais do que se considerarem, as Forças Armadas agem como Poder da República. Poder da República especial, cujo alcance moderador foi investido por ministros de tribunal superior que avalizaram burocratas armados e ressentidos como interlocutores com status para formular questões cujo pressuposto é a desonestidade da Justiça Eleitoral. Uma tocaia em que, independentemente das respostas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a tese de fraude restará provada.

A cama está feita.

As Forças Armadas que agem como Poder Moderador são as mesmas a serviço de minar a credibilidade do sistema eleitoral. A serviço, pois, dos interesses de Bolsonaro.


O ministro da Defesa já é outro. Não importa quem seja o da vez. O governo é militar e não se move senão sob o entendimento viciado — desde há muito explicitado — segundo o qual as Forças Armadas seriam conjunto com poder interventor sobre Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional. São generais zelosos dessa competência arbitrária — de representantes de um Poder acima do equilíbrio republicano, com direito a tutela sobre a concertação republicana — os que Luís Roberto Barroso e Luiz Fux convidaram a participar do processo eleitoral.

É uma obviedade: militares não são autoridades em matéria eleitoral; nem compõem um Poder, muito menos um Moderador. O problema, porém, é maior. Há má intenção. Sob o que já chamei de 7 de Setembro permanente, um estado mesmo de ameaça golpista que sustenta a instabilidade institucional como modo de o populismo bolsonarista prosperar, os militares aceitaram o papel de fundação para que o arruaceiro lastreasse o conspiracionismo com que espalha desconfiança contra uma das expressões concretas da República.

Parêntese importante aqui. Não é à toa que Bolsonaro ataca as culturas brasileiras de vacinação e eleição, ambas sólidas manifestações de um país que chega igualmente a todos. Ambas, portanto, materializações — manifestações de sucesso e fortaleza — da ideia de República. E ele é, antes de tudo, um antirrepublicano.

O presidente da República é, sobretudo, um mentiroso. Prometeu várias vezes — e há tempos não fala disso — apresentar provas de que a eleição que venceu fora fraudada. Nunca o fez. Nunca foi punido por criminalizar o TSE.

Prometeu também que sossegaria — aceitaria — qualquer que fosse o resultado da votação no Parlamento sobre adoção do voto impresso; pacificação em que só acreditou quem não compreende que a existência competitiva de Bolsonaro se alimenta de choques e imprevisibilidades. Arthur Lira nunca acreditou. Compôs o teatro. É sócio e está bom assim, bem servido pela multiplicação de orçamentos secretos que o antirrepublicanismo favorece.

Escorado num Congresso amansado, Senado de Pacheco incluído, por Orçamento da União sem teto para gastos de natureza patrimonialista em ano eleitoral, Bolsonaro declara que “as Forças Armadas não vão fazer o papel de chancelar apenas o processo eleitoral”. Note-se como evolui a corrosão da ordem constitucional. Convidadas — pelo TSE — a “chancelar” a qualidade do sistema, algo que nunca lhes coube, as Forças Armadas, orientadas pelo presidente e “bastante zelosas” de suas prerrogativas assaltadas à Constituição, tomaram o que jamais lhes foi função e ora vão deitadas na cama, de coturno e tudo, endossando previamente o que será acusação de fraude na eleição de outubro.

A cama está feita e ocupada.

Bolsonaro é claro sobre como explorará a armadilha que o Supremo levantou ingenuamente e a que o Supremo se oferece: “As Forças Armadas não estão se metendo no processo eleitoral. Elas foram convidadas”. Foram mesmo; convidadas a participar de comissão de transparência — um erro imensamente apontado — e agora se projetam como habilitadas a não validar o resultado de eleição.

Não validarão. Está dado. Ou não avançamos no capítulo em que as Forças Armadas — sob gestão explícita de Bolsonaro — plantam, na forma de perguntas diabólicas (em que a Justiça Eleitoral teria de provar a lisura de seu sistema de votação), que um tribunal superior é corrupto? Não se trata de outra coisa.

Desnecessário, a esta altura, será dizer que ninguém ali — presidente à frente — está preocupado com a segurança das eleições, como jamais esteve com a segurança da população a ser vacinada. Só a auditoria de Valdemar poderá nos salvar.

Refúgio


O patriotismo é o último refúgio do patife
Samuel Johnson

Os santos canalhas

O moralismo é a mais hipócrita deformação do caráter humano. Todo moralista carrega sobre a cabeça uma nuvem cinzenta onde se guardam pedaços escondidos de cada defeito moral que ele ostensivamente combate. É por isso que não me movem nem comovem certas campanhas públicas de moralização. Fico sempre com uma orelha atrás e um olho enviesado. Por que sei que entre os sinceramente honestos, há os que só reclamam por não participarem da partilha do butim.

Certa vez, num táxi do Recife, tive de ouvir a conversa irritada do motorista contra tudo que era político. “Tudo ladrão. Num tiro ninguém”. Dizia ele, enquanto batia com a mão direita no volante. Era um homem indignado com a corrupção.

Quando chegamos ao pátio da Alfândega, eu perguntei quando devia. Ele puxou a tabelinha, que complementava a marcação do taxímetro, e respondeu: “Vinte e sete reais”. Eu pedi pra ver a tabela. E tava lá, dezessete reais. Ao ser flagrado querendo surrupiar dez reais, ele pediu desculpas e disse que tava com a vista turva. Não resisti e respondi: “O senhor tem razão, num tire nenhum. É tudo ladrão”. Fechou a cara e eu fechei a porta. E fui ser roubado na livraria.

Na estrada federal que passa por Itaú e vai até Pau dos Ferros, estrada do PAC, que serve de onomatopeia quando o carro passa pelos buracos, pac pac, eu viajo nela quase todos os dias. Com menos de seis meses da sua conclusão já está cheia de remendos e buracos. Mais buracos que remendos.

Pois bem. Alguns moradores de pequenas casas na beira da pista resolveram faturar algum. Enchem um carro-de-mão com barro e vão, com uma pá, tapar os buracos. Quando se aproxima um veículo, eles jogam o barro no buraco. E estiram a mão pedindo um trocado. Ao passar e olhar pelo retrovisor você vai ver o mesmo barro sendo retirado do buraco e devolvido ao carro-de-mão. Pra eles é melhor que o pac continue no pac pac.

Na Semana Santa, alguns moleques aproveitam os quebra-molas das pistas urbanas para fazer uma espécie de pedágio. Quando o carro modera, eles esticam um cordão segurado nas pontas, nos dois lados da estrada. “Uma ajudazinha pro Judas, meu senhor”. É o pedido. Numa dessas paradas, eu dei duas moedas de um real, ao menino de meu lado. O outro moleque do lado direito, perguntou gritando: “Quanto o coroa deu”? E o que havia recebido os dois reais respondeu de pronto: “Deu cinquentinha. Tem vinte e cinco seu”. Pronto. O pobre do Judas, deitado ao sol, na beira do caminho, com sua boca vermelha e olhos negros, acabara de perder um real e meio.

O povo é sábio e honesto? Pode até ser sábio, mas é colega da tchurma. Não fosse assim os eleitos em cada pleito seriam outros. São os mesmos e seus descendentes.

Taí a pátria que nós temos. Da disputa entre a dominação corrupta e a santidade canalha. Té mais.
François Silvestre, Novo Jornal (Natal-RN)

Na Ucrânia, Putin anula "Grande Guerra Patriótica" da Rússia

Bombas caem sobre Kiev, Kharkiv e Odessa – uma ofensiva traiçoeira, sem declaração de guerra. Antes, ao ouvir tais palavras, sabíamos que se tratava de um ataque da Alemanha nazista à União Soviética, da "Grande Guerra Patriótica", como os russos chamam o conflito de 1939 a 1945.

A Segunda Guerra Mundial dividiu o tempo em "antes" e "depois", e por décadas não se precisava explicar mais nada: quando se falava do "pós-guerra", todo mundo sabia que queria dizer "depois de 1945". Desde fevereiro de 2022, contudo, uma outra guerra separa o passado do presente, porém desta vez a Rússia é o agressor.

Até então, a lembrança da vitória na Segunda Guerra era a base da identidade russa. Todas as enquetes e estudos desde o fim dos anos 1990 comprovam sua importância na consciência pública nacional. Não é por acaso que o regime Putin transformou a lembrança dessa vitória na narrativa central para manter unida a sociedade do país. Ela se tornou uma espécie de religião civil, aceita pela maioria da população.

Por exemplo, as vítimas da Segunda Guerra são homenageadas com a ação "Regimento Imortal". A ideia partiu inicialmente da sociedade, como alternativa ao páthos triunfal do Estado e a slogans como "Podemos fazer de novo". No entanto, logo a propaganda estatal se apropriou dessa iniciativa cidadã.

O mesmo aconteceu com a Fita de São Jorge, originada numa condecoração militar do Império Russo e mais tarde reinstituída na União Soviética sob outro nome. Na Rússia, ela é hoje o mais importante sinal de recordação da derrota da Alemanha nazista. Também aqui, a sociedade russa seguiu a propaganda do Kremlin.


Em 24 de fevereiro de 2022, no entanto, o próprio Vladimir Putin derrubou esse pilar da identidade russa. Agora as tropas russas na Ucrânia não só disparam contra Kharkiv e Odessa, elas invadem Mykolaiv e sitiam Kherson; lançam bombas nas proximidades do memorial do Holocausto Babin Yar, em Kiev, e, por medo, alvejam tanques de combate que as cidades ucranianas colocaram sobre pedestais, em memória da Segunda Guerra.

Seu alvo não é só aquela "Grande Vitória": é um ataque com tanques, tanto metaforicamente, à memória dos veteranos do conflito, como literalmente, aos próprios veteranos, às poucas testemunhas ainda sobreviventes da Segunda Guerra que não podem deixar seus apartamentos e casas por causa dos bombardeios russos.

Qualquer que seja o resultado da guerra ofensiva desencadeada por Putin (se não acabar em ataque nuclear), os ucranianos e aqueles russos que se opõem à agressão têm agora a sua guerra, a "Grande Guerra Patriótica Ucraniana", como já é denominada. Agora ela vai dividir as vidas de gerações inteiras em "antes" e "depois".

Essa guerra – e não qualquer outra, como a contra a Geórgia, em 2008, ou a anexação da Crimeia, em 2014 – marcará tanto o fim do período pós-soviético como também o do próprio "espaço pós-soviético": agora há o "Império da Rússia" e os que conseguiram se libertar dele lutando.

E a Rússia, por sua vez – que graças à derrota da tentativa de golpe de Estado de 1991, em Moscou, conseguiu preservar a aparência de "principal democracia" do espaço pós-soviético –, se converterá agora definitivamente numa "prisão de povos", como a União Soviética costumava ser chamada.

Nem todos sentirão imediatamente as mudanças em curso. Enquanto na Ucrânia uma "nova era" começou em fevereiro de 2022, muitos russos continuam de cabeça enfiada na areia, como a proverbial avestruz. Porém também eles estão no limiar de um "novo tempo", que inevitavelmente chegara como um duro golpe.

Ele será marcado pelas sanções do Ocidente e as contrassanções do Kremlin, que também atingem o próprio povo; pelo incontornável aumento dos preços dos alimentos, devido à falta de plantio no Sul da Rússia e na Ucrânia; escassez de mercadorias e inflação galopante, geradas pelo isolamento. Quando, descontentes com tudo isso, os russos saírem às ruas em protesto, lá estarão, para recebê-los, a polícia e a Guarda Nacional.

Os russos finalmente conseguiram sua "nova Rússia do futuro", mas ela não é nenhum mar de rosas. Agora se constata que Vladimir Putin tinha uma visão clara do futuro do país, mas que não revelou ao longo de todos esses anos, já que ela definitivamente não agradaria à maioria da população, a qual poderia ter se rebelado.

Agora a maioria se encontra num país totalmente diferente, que sequer se assemelha ao anterior, com censura militar e isolado do resto do mundo. O fundamento da identidade nacional russa, a vitória sobre o fascismo, foi detonado pelos lança-mísseis que atingem Kharkiv. A Rússia está a caminho de um conflito social, e o chefe do Kremlin rompeu a última barragem.

Agora, ou haverá purgações em massa contra os dissidentes, ou o conflito na sociedade desembocará numa guerra civil – se os antibélicos e pacifistas ainda forem capazes de opor resistência. Na Ucrânia, a situação é outra: ela nunca esteve tão unida como desde o começo da "Grande Guerra Patriótica" – não importa como este conflito acabe.

O prestígio e o papel das Forças Armadas

É grave erro usar o prestígio dessa instituição para fins incompatíveis com suas atribuições constitucionais. Militares devem estar distantes da política e de assuntos eleitorais

As Forças Armadas têm prestígio junto à população. Trata-se de um fato bem conhecido. Esse prestígio foi conquistado e é preservado, entre outras causas, pela exemplar lealdade da Marinha, do Exército e da Aeronáutica à Constituição de 1988 e aos princípios republicanos, com a estrita obediência às suas atribuições constitucionais, bem longe da política. É de justiça reconhecer: depois da redemocratização do País, as Forças Armadas entenderam o seu papel dentro da organização de um Estado Democrático de Direito. Não são guarda pretoriana, tampouco poder moderador. Destinam-se, assim o estabelece a Constituição de 1988, “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Por óbvio, é muito bom – muito saudável institucionalmente – que a população confie nas Forças Armadas. O prestígio dos militares é um bem para o País e merece ser zelosamente preservado. No entanto, deve-se advertir que há quem queira usar o prestígio das Forças Armadas para outros fins não previstos na Constituição, o que representa um perigoso desvio da função militar.

O caso mais grave é o bolsonarismo, que tenta continuamente se identificar com as Forças Armadas, identificação esta que é rigorosamente inconstitucional. As Forças Armadas não têm orientação político-partidária, e menos ainda são um grupo político. No entanto, com frequência, Jair Bolsonaro refere-se às Forças Armadas com um “nós”, como se fossem uma só coisa. Entre outros danos, expressar-se assim é descarada manobra para atrair a si a confiança que a população deposita nos militares.


Além da inconstitucionalidade, há uma notória contradição nessa atitude de Jair Bolsonaro. Ele quer os louros políticos da imagem pública das Forças Armadas, mas nunca se dispôs a cumprir o que fundamenta o prestígio da instituição militar: a disciplina, a hierarquia e a obediência à lei. Como se sabe, Jair Bolsonaro foi um mau militar.

Para piorar, nos últimos meses, Jair Bolsonaro tem tentado envolver as Forças Armadas em seus devaneios golpistas, em especial na campanha para desacreditar o sistema eleitoral brasileiro. No fim do mês passado, em ato público no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro defendeu a contagem paralela de votos pelas Forças Armadas, o que é uma aberração institucional. Não cabe às Forças Armadas a função de revisor da votação.

A inusitada tentativa do Palácio do Planalto de envolver as Forças Armadas em assuntos eleitorais remete, por sua vez, à iniciativa do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de convidar, em agosto do ano passado, o Ministério da Defesa para participar, com um representante, da Comissão Externa de Transparência da Justiça Eleitoral. O convite foi um modo de o TSE aproveitar o prestígio das Forças Armadas para fortalecer a confiança da população no sistema eleitoral, que na época estava sendo ostensivamente atacado pelo bolsonarismo. O motivo da Justiça Eleitoral era justo e necessário, mas os meios, não. Não é papel dos militares atuar nesse tipo de matéria, de natureza essencialmente civil.

O equívoco do TSE ficou ainda mais em evidência quando, meses depois, as Forças Armadas decidiram não participar de um teste público de segurança da urna eletrônica. De fato, não tinham de participar, mas a recusa desvelou a insensatez de toda a situação: as Forças Armadas estavam sendo colocadas no papel de garantidoras da lisura das eleições. Mais recentemente, soube-se que, ao longo dos últimos meses, os militares enviaram dezenas de questionamentos sobre supostos riscos das urnas, que foram devidamente respondidos pelo TSE.

Se tudo o que veio à tona corrobora o bom trabalho da Justiça Eleitoral, provendo um sistema de votação confiável, há nessa história um importante aprendizado. As Forças Armadas devem estar apenas em suas funções constitucionais. Não há motivo, por mais nobre que seja, a justificar exceções. Para o bem do País e das Forças Armadas, para que possam continuar desfrutando de seu merecido prestígio.