Ah, que horror! Lula disse que prioritário é acabar com a fome, não a contenção de gasto social, o tal teto de gastos! A Bolsa caiu! Reação imediata do mercado (nome de guerra dos que não produzem, não se incluem na infraestrutura econômica, e ganham no jogo financeiro das Bolsas). E tome de manchetes em primeiras páginas e comentaristas do "mau passo" com que "Lula já começou". Todos sempre reforçando a exigência reiterada pelo mercado: "Lula tem que indicar logo o novo ministro da Economia".
Tem que? Ainda falta ao mercado a informação de que Lula foi eleito para presidir um país de mais de 215 milhões de habitantes, não para servir à camadinha especulativa. A decisão eleitoral completa neste domingo duas semanas, apenas. Nas quais o mercado se fez de inquieto porque este é um método eficaz para acionar o sobe-desce lucrativo da especulação financeira. E de quebra dizer quem manda, para ver no que isso dá. Nenhuma empresa séria depende da urgência de um nome de ministro.
Expoente dos chamados investimentos financeiros, Arminio Fraga deu a Lula, na Folha, a resposta do mercado: "Estabilidade fiscal (...) gera mais investimento e mais crescimento. Simples assim. E (...) aumenta a chance de os recursos beneficiarem os mais pobres". Parece falar de economia, mas é de políticas que trata.
O crescimento não depende necessariamente de estabilidade financeira, e o Brasil tem no inflacionário governo Juscelino um dos seus tantos exemplos de desvario financeiro e crescimento. O governo da mediocridade desleal, de Michel Temer, até criou o "teto de gastos", mas daí não vieram "mais investimento e mais crescimento". Recursos, provenientes de estabilidade ou não, só "beneficiam os mais pobres" se esta for a política do governo. O que só por um breve período aconteceu no Brasil —e nem digo qual.
O batido tema da estabilidade fiscal ao gosto da especulação provocou, afinal, algo positivo. E assombroso. Em discreto pé de página, uma entrevista ao jornal O Globo (11 novembro) revelou uma franqueza nunca vista aqui, para divulgação pública, por parte de um economista, digamos, bem aceito.
Muito reverenciada por seus colegas destacados na imprensa brasileira, carioca que leciona na Johns Hopkins University, Monica de Bolle foi direta e clara desde o início. Sobre a reação do mercado a Lula: "O mercado (...) faz esses movimentos de Bolsa e dólar para ganhar dinheiro. Esses movimentos não querem dizer nada. Os economistas do mercado têm uma visão míope e estão com ela há muito tempo". Eles e os jornalistas que os ecoam.
Mais: "O teto de gastos já não existe há bastante tempo, basicamente desde que foi criado. Foi modificado em praticamente todos os anos do governo Bolsonaro. (...) Foi uma regra fiscal para jogar no lixo. (...) O momento é de revogar e fazer um teto novo".
A complacência utilitária do mercado com Bolsonaro e Paulo Guedes sufocou as reações a desatinos como a PEC Kamikaze, "a coisa mais populista e gastadora" (de Bolle), o orçamento secreto ainda vigente, o gasto eleitoreiro pró-reeleição. E tantas outras causas do rombo já estimado em prováveis R$ 400 bilhões, a ser deixado para o novo governo.
O que deveria inquietar o mercado e o empresariado bolsonarista é o risco decorrente de esperáveis investigações sobre os pagadores de atos golpistas contra o resultado eleitoral. Esses fatos que se espalham pelo país alertam para o rigor necessário à escolha dos futuros dirigentes da Polícia Federal, das demais polícias federais e da Abin. E, mais adiante, de quem restaure a moralidade na Procuradoria-Geral da República.
Passadas as eleições presidenciais, parte dos apoiadores de Jair Bolsonaro, derrotado nas urnas, continua se manifestando de verde e amarelo, as cores nacionais – atitude consolidada nas duas campanhas disputadas pelo atual presidente. Entre o eleitorado do mandatário eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, surgem paralelamente tentativas de resgatar os símbolos do país.
Mas o que leva, afinal, uma agremiação política a disseminar as cores que simbolizam um país como próprias de sua plataforma?
"Em sua gênese no século 18, os símbolos nacionais de Estados contemporâneos nasceram à esquerda, para usar a terminologia da Revolução Francesa. E nasceram no setor democrático, para representar o povo acima de qualquer rei, imperador, senhor feudal, autoridade religiosa tradicional", destaca Manuel Loff, professor do Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Universidade do Porto.
O que tem acontecido no momento, aponta, "é uma apropriação desavergonhada desses símbolos por parte da extrema direita". "Ela cria um confronto, e os símbolos nacionais perdem o significado unificador que pretendem ter."
O bolsonarismo, segundo o historiador, apresenta um agravante: a associação desses símbolos nacionais a práticas de violência e ideais religiosos.
"É uma das raras situações em que um ato agressivo, bélico, que é simular com a mão um revólver, é acrescentado à simbologia política. Como se arma, cruz e bandeira pudessem se fundir", afirma Loff.
Especialistas questionam se o Brasil deveria ter trabalhado melhor as marcas deixadas pela ditadura militar (1964-1986), durante a qual o usar as cores da bandeira era uma forma de mostrar apoio ao regime.
"As memórias subterrâneas retornam à superfície quando não são tratadas em políticas públicas", aponta Michel Gherman, professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
"O que aconteceu na ditadura militar e o que voltou a acontecer nesses últimos anos, inclusive com o retorno do discurso pró-ditadura, é que essa bandeira mais uma vez se tornou propriedade do Estado", analisa Ana Caroline Almeida, especialista em Comunicação e professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
"Nesses contextos ultranacionalistas, não só a bandeira do Brasil, como várias outras bandeiras de Estados-nação tendem a se tornar metonímia não de um país, mas de partidos da extrema direita, que se apropriam e sequestram símbolos nacionais e, curiosamente, com isso, ferem a própria ideia de nação como constituição de um 'espírito coletivo'", constata.
Comum nas ditaduras militares da América Latina e também nos regimes stalinistas, a apropriação desses símbolos está também associada ao catálogo de medidas dos fascismos do século 20, aponta Francisco Palomanes Martinho, professor de História Ibérica da Universidade de São Paulo (USP).
"Na chamada crise dos liberalismos do período que sucedeu à Primeira Guerra Mundial, essa apropriação ganhou contornos muito próprios: ela se dá na afirmação do 'nacional' em detrimento do 'outro'. É nesse contexto que ideias de 'raça' ou 'espírito nacional' ganharam espaços cada vez maiores. Os símbolos nacionais, assim, se tornaram absolutos, inquestionáveis. Questioná-los seria questionar a própria existência da nação", pontua Martinho.
No entanto, pondera Odilon Caldeira, professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), "os movimentos fascistas, no século 20, não somente se apropriavam de uma determinada simbologia nacional, como também subvertiam em certa medida essa simbologia ou criavam novos símbolos".
"Hoje, o extremismo e o radicalismo de direita utilizam sobretudo os símbolos nacionais dentro de uma, digamos, matriz republicana", diz o professor, que coordena o Observatório da Extrema Direita.
"Eles fazem uso de uma simbologia pré-existente, dando a ela um novo sentido, um novo caráter, uma nova leitura, mais do que necessariamente criar uma nova simbologia tal qual o fascismo no século 20 fazia", conclui.
Na Europa, aponta Loff, hoje é comum haver normas legais e regulações sociais sobre a utilização política desses símbolos. "Em Portugal, por exemplo, nenhum partido pode usar, segundo a Constituição, a bandeira nacional como símbolo próprio, justamente porque se considera que ela é um símbolo unificador e não divisório."
Durante as seis primeiras décadas que se sucederam à Segunda Guerra Mundial, a relação dos alemães com os próprios símbolos nacionais era considerada complexa – em uma rejeição coletiva explícita a qualquer demonstração que pudesse deixar suspeitas de nacionalismo exacerbado.
Quando o país sediou a Copa do Mundo de 2006, começou um processo de relativização, encabeçado pelas gerações mais jovens, do desconforto frente a símbolos como a bandeira e o hino.
No livro Wie der Fußball Deutsche macht (Como o futebol transformou os alemães, em tradução livre), publicado em 2016, Sven Ismer analisa detalhadamente essa mudança de comportamento da população ao longo das últimas décadas. Se no contexto do futebol tornou-se normal balançar bandeiras, fora dele "a moderação continua, felizmente, existindo", diz o autor – exceto entre círculos minoritários de extrema direita.
Para Ismer, esse comedimento é positivo, visto que "o nacionalismo alemão devastou a Europa duas vezes, deixando milhões de mortos". "Portanto, uma conduta atenta frente à simbologia nacional continua adequada", considera.
Após
Ulrich Wagner, professor de Psicologia Social da Universidade de Marburg coordenou dois estudos sobre nacionalismo, patriotismo e xenofobia. Em um deles, aplicou dois tipos de questionários entre grupos específicos, a fim de averiguar tendências xenófobas. No primeiro deles, usou formulários "limpos"; no segundo, fez uso dos mesmos formulários acrescidos de uma bandeira da Alemanha no campo superior direito.
"Fomos capazes de demonstrar que, quando confrontadas com símbolos nacionais, as pessoas se revelam de fato um pouco mais xenófobas", relata Wagner.
No Brasil, o processo de uso indevido dos símbolos nacionais não poderá ser facilmente revertido, considera Caldeira: "Da mesma maneira que a apropriação foi longa, construída antes mesmo da gestação do próprio bolsonarismo, o processo do esvaziamento desse sentido não se dará da noite para o dia."
A partir da década de 1930, o futebol se tornou um elemento importante na construção das diversas identidades nacionais, visto que foi o primeiro esporte de massa com dimensão planetária. Hoje, a Copa do Mundo até poderá ajudar a sociedade brasileira, a retomar, de forma mais ampla, o uso dos símbolos e das cores nacionais, mas isso não bastará, considera Caldeira.
"Há um esforço no sentido dessa retomada, mas me parece que esse fenômeno não vai ser resolvido exclusivamente por conta do processo eleitoral e tampouco pelo Mundial", avalia.
"A camisa amarela ainda remete ao bolsonarismo, a atos antidemocráticos e bloqueios de estrada. Pode haver uma refundação dessa relação, mas vai levar tempo", concorda Gehrman.
Loff aponta haver na Europa uma grande atração não só pelo futebol brasileiro, mas pela cultura do país de forma geral. Segundo ele, era comum até poucos anos atrás ver pessoas vestindo a camisa verde e amarela nas ruas de países europeus, mas não está claro que destino terá essa predileção de agora em diante.
"Culturalmente o Brasil tem uma grande capacidade de atração em todo o mundo, mas o bolsonarismo pôs isso em causa", conclui o historiador.
Conta a estória que na maestral Ouro Preto do século XVIII, o vigário da Nossa Senhora do Pilar e o vigário da Nossa Senhora da Conceição disputavam uma imagem da Virgem Santa para as suas igrejas. O vigário do Pilar propôs então que amarrassem a Santa no lombo de um burro, e para onde o burro fosse a paróquia ficaria com a imagem. E em assim acordado, o burro dirigiu-se, de pronto, para a basílica do Pilar. É que o burro era do vigário do Pilar, o que ficou conhecido como o Conto do Vigário! Outra estória é a do Santo do Pau-oco, levado por tropas de mulas para a venda no Rio de Janeiro como expressão do barroco mineiro, mas ocos por dentro e recheados de ouro. Ou seja, santo por fora, não tão santo por dentro.
Bolsonaro se divide em dois. O que nos tirou o fôlego colocando nossos corações para fora da boca com sustos diários da iminência da quebra institucional, e o que compõe politicamente na busca de seus interesses imediatos ou pela maior segurança do que acha que possa vir a lhe acontecer. Os caminhoneiros param as estradas; a população urge à frente dos quartéis; cidadãos se mataram na anteposição ideológica. “Se pegar, quem sabe, leva; se não pegar, simplesmente se compõe”. Não era bomba, era traque, e como traque se dissipou. Como atribuído a De Gaulle após sua visita ao Brasil, como figura retórica, “ce n’est pas un pays sérieux”.
Diz Wright Mills que manda o poder econômico, garante o poder militar, executa o poder político. Diz Phillipe Schmitter, brasilianista, que o Brasil é um dos casos mais bem sucedidos de controle da população por uma elite, que não muda ao longo do tempo, onde mudam apenas as siglas. E diz Maquiavel que manter o principado é mais difícil do que ganhar o principado; não que ganhar seja fácil. Daí, a predominância do econômico sobre as sociedades, e as possíveis composições ao nível político. Ainda bem que existe a política! Os partidos que se uniam em torno de Bolsonaro, unem-se hoje, em um piscar de olhos, em torno de Lula. O acordo tácito entre as partes foi selado por cardeal católico, não por pastor, nem ortodoxo. Ou ainda, como se diz na gíria, “se colar, colou, se não colar, deixa prá lá”. Ninguém morre pelos seus liderados.
No total do eleitorado, Bolsonaro teve 33% dos eleitores no 1º turno, 37% no 2º turno, o representante dos 1/3. 20% formam seu núcleo duro eleitoral. 1% é radical, autodenominados de “patriotas”. É uma minoria pequena, mas barulhenta. As fake-news são ainda mais intensas. As Forças Armadas, a Polícia Federal, e as Polícias Militares, órgãos de Estado, seguem na normalidade democrática. Datas de possíveis conturbações: 15 de novembro no Dia da República; 19 de dezembro na Diplomação dos Eleitos pelo TSE; 1º de janeiro na Posse do Presidente Eleito. Mas sem riscos à estabilidade do país. O fascismo era pífio, e se esvaiu. Bolsonaro será líder de somente uma minoria dos que nele votaram.
O Capitalismo começa como uma espécie de realismo pragmático, mas depois de um certo ponto degenera em delírio quantitativo. No começo, ele é materialista até a medula. Escarnece da religião, faz pouco das ideologias, torce o nariz para a arte, dá um chega-pra-lá em todos os subjetivismos e diz que no mundo somente as coisas materiais contam. Só conta o que dá resultado, o que gera riqueza, o que produz. É nessa fase, por exemplo, que as manifestações artísticas são enxotadas para o sótão dos “Passatempos Para Gente Desocupada”. Por que perder tempo com coisas que provocam apenas prazer estético e enriquecimento espiritual? Já que ninguém pode quantificar prazer estético, ninguém pode lucrar planejadamente com ele. Quanto ao enriquecimento espiritual, pra começo de conversa não existe essa coisa chamada espírito.
Na sua fase produtiva, o capitalismo impõe um culto à produção, à matéria, às transformações das matérias primas em produtos. Esse culto é tão forte que contaminou o próprio comunismo, em suas tentativas falhadas de substituir o adversário. Estatizando o Capital e glorificando o Trabalho, o comunismo perpetuou e ampliou as ladainhas à máquina, à indústria, à produtividade, à transformação da natureza. Materialista por definição, o comunismo foi, neste aspecto, uma mutação avançada do capitalismo. Só existe o que é “material”.
O que destruiu o capitalismo e vai destruir o mundo (não se enganem) é o estágio seguinte, em que a Matéria cede lugar ao Símbolo. O capitalismo deixa de ser concreto e passa a ser abstrato. Já não conta mais quantas moedas de ouro você possui, e sim quantos zeros você acumula em suas contas bancárias. O Capitalismo Financeiro sucedeu ao Capitalismo Produtivo e começou a tirar milhões de coelhos virtuais de dentro da inesgotável cartola das manipulações bancárias. É irônico que um sistema de pensamento tão voltado para o que é sólido tenha se desmanchado no ar com tanta facilidade; e que as “águas glaciais do cálculo egoísta” tenham se evaporado nessa neblina impalpável, nessa nuvem dos trilhões de dólares inexistentes que são negociados todos os dias nos mercados mundiais.
Trilhões de zeros que bancos, empresas e países vendem, compram, revendem, emprestam, dividem, partilham, multiplicam, como se esses zeros todos valessem alguma coisa, como se existisse algum lastro produtivo (ouro, prata, grãos, capim, sei lá, qualquer coisa que servisse para algo no mundo real). O Capitalismo embebedou-se de Capital, passou a se alimentar não de produção mas de ficções financeiras, como um drogado que deixa de comer e de beber água, para poder continuar se drogando.