sexta-feira, 10 de abril de 2020

Imagem da Sexta-Feira Santa


A cadeira e o homem

Dizem que a cadeira é uma invenção dos antigos egípcios, que adicionaram um encosto aos assentos. Faraós reinavam em cadeiras de madeira dourada, adornadas com ébano e marfim. Daí em diante, o trono seria a representação da ambição e do poder dos monarcas. Somente com a Revolução Industrial e o capitalismo passaram a ser produzidas em série, como as cadeiras Thonet, famosas pelo curvamento das madeiras, que foram as primeiras numeradas e vendidas por catálogos. No começo do século passado, o ferro passou a ser utilizado para reforçar as cadeiras, como no caso da Hil House de Charles R. Mackintosh, em 1928. Logo surgiram peças mais arrojadas, como a cadeira Wassily, de Marcel Breuer, inspirada nos tubos das bicicletas.

Com o modernismo, as escolas de Bauhaus e Milão passaram a dar o tom na produção do mobiliário mais arrojado. As cadeiras do Palácio da Alvorada, por exemplo, são peças autênticas do modernismo brasileiro, especialmente desenhadas a pedido do arquiteto Oscar Niemeyer. Foram recuperadas pouco antes de Jair Bolsonaro assumir o governo, por uma comissão cuja curadoria ficou a cargo da própria designer dos sofás, poltronas e cadeiras. Anna Maria Niemeyer cuidou pessoalmente da restauração e do posicionamento de móveis, quadros, tapetes, estátuas e outras obras de arte do acervo, que retornaram aos locais que ocupavam no projeto de interiores original, a partir de rigorosa pesquisa. A primeira coisa que o presidente Jair Bolsonaro fez ao chegar ao Alvorada foi mandar substituir as cadeiras vermelhas por cadeiras azuis da grande mesa do Salão de Estado, com 18 lugares.

Com seis metros, base de jacarandá e latão e tampo de pau-ferro, estava em péssimo estado quando foi reconstituída a sua base, com polimento do metal dourado oxidado e a fabricação de um novo tampo. A despesa de R$ 5 mil recuperou uma peça avaliada em R$ 300 mil, devido ao seu valor artístico e histórico. No painel de madeira que reveste a maior parede do ambiente, destaca-se uma tapeçaria assinada por Di Cavalcanti, cuja limpeza havia removido 1kg de pó. A reforma foi realizada no governo de Michel Temer, que assumiu a Presidência, mas preferiu continuar morando no Palácio do Jaburu, que considerava mais aconchegante.


Essa visita ao mobiliário do Alvorada tem uma motivação política: um comentário do ex-presidente José Sarney, durante uma entrevista ao jornalista Roberto D’Ávila, na GloboNews: “A cadeira é maior do que o presidente, não é ela que deve ser adaptar”, disse o veterano político conservador. Sarney governou o Brasil num momento difícil, a transição à democracia, enfrentando um período muito conturbado, com milhares de greves, hiperinflação e uma Constituinte que estava acima de tudo, sob comando do líder da derrotada campanha das Diretas Já, o deputado Ulysses Guimarães, presidente do então PMDB.

Além disso, Sarney havia assumindo em razão da morte do presidente Tancredo Neves, ou seja, como vice de um presidente eleito por via indireta, embora com amplo respaldo político e social, mas que nem chegou a tomar posse. Mesmo depois de encerrada sua longeva carreira parlamentar, continua sendo uma espécie de oráculo dos cabeças brancas do MDB e do DEM, porque se mantém lúcido e tem memória privilegiada, às vésperas de completar 90 anos, no próximo dia 24 de abril. A referência à cadeira foi a única crítica velada que Sarney fez a Bolsonaro durante toda a entrevista. Disse que não gosta de comentar a atuação de seus sucessores.

Nos bastidores, porém, Sarney sempre foi um interlocutor privilegiado, levado em conta no Congresso, sobretudo nos momentos de crise, como a que estamos enfrentando. Suas principais características são a prudência, a moderação e a capacidade de adaptação às circunstâncias. Esses não são o forte do presidente Jair Bolsonaro. Talvez a principal causa da deterioração do atual cenário político esteja sintetizada no breve comentário de Sarney: Bolsonaro não respeita a liturgia do cargo, se acha maior do que a cadeira que ocupa. Não se dá conta de que o simbolismo da liderança está muito mais no poder de articulação do presidente da República, quando conversa com alguém, do que na caneta cheia de tinta para assinar exonerações, nomeações e medidas provisórias.

A articulação transborda para os demais poderes e níveis de governo, enquanto a caneta se limita às atribuições do governo federal, que pode muito, mas não pode tudo que Bolsonaro gostaria. É óbvio que essa questão comportamental reflete uma concepção de mundo e de exercício de poder, mas está aquém das mudanças em curso no mundo e de uma pandemia que pôs tudo de pernas para o ar. Ontem, pela primeira vez, num passeio pela Asa Norte de Brasília, quando resolveu confraternizar com comerciantes e populares numa padaria, Bolsonaro sentiu a chamada voz rouca das ruas criticando seu posicionamento em relação à política de distanciamento social preconizada por Ministério da Saúde, governadores e prefeitos.

Ao estimular as pessoas a saírem do isolamento e voltarem ao trabalho, contrariando a orientação das autoridades estaduais e municipais, Bolsonaro parece não levar em conta que todos os que procederam dessa maneira estão enfrentando grandes dificuldades. É o caso de Donald Trump, nos Estados Undos, em risco de inviabilizar sua própria reeleição. As nossas dificuldades podem ser ainda maiores. Nas últimas 24 horas, houve 141 mortes e 1.930 casos confirmados. Olhando os gráficos, parece que não estamos conseguindo achatar a curva da epidemia na medida necessária para evitar o colapso do sistema de saúde. Se isso ocorrer, Bolsonaro será o principal responsável perante a opinião pública.

Sempre desconectado

Quando Bolsonaro aciona a boca, não liga o cérebro
Jorge Kajuru, senador  (Cidadania-GO)

A engenharia do Jair

É ilusão do presidente acreditar que o vírus que atormenta o mundo não o atingiu. Fez mais que isso, matou uma chance quase certa de reeleição e, dependendo da evolução de seus efeitos, poderá eliminar também as condições para a conclusão do mandato. O presidente imagina-se livre da gripezinha enquanto agoniza de um mal bem maior: a erosão do próprio poder. Principalmente, mas não só, em decorrência do posicionamento dele diante das urgências da pandemia.

Com a crise sanitária deu-se por completada a obra de desconstrução da força política, da influência social e da autoridade moral da Presidência da República, cujo engenheiro atende pelo nome de Jair Bolsonaro. Está certo quando enxerga uma onda gigantesca de rejeição a ele, mas demonstra não compreender a razão quando delira imaginando que isso ocorra por seus méritos, pois tal reação acontece devido à terra arrasada que semeou em torno de si neste um ano e poucos meses de atuação desgovernada.

A situação talvez não estivesse no estágio de degradação a que chegou se Bolsonaro não tivesse dizimado seu capital político e explodido pontes de convivência institucional com coisas inúteis. Gastou patrimônio antes do tempo e, hoje, em plena crise de saúde pública, quando mais precisaria de âncoras de sustentação, está zerado: isolado, sem diálogo, desmoralizado, desautorizado, desacreditado.


Operando num mundo onde a lógica não tem vez, o presidente semeia a discórdia desde os primórdios de sua gestão. Não se deu ao respeito e ainda se dá ao direito de desrespeitar a tudo e a todos que vê como obstáculos ao exercício do mando. Por essa visão distorcida do que sejam atributos de um governante, Bolsonaro acabou perdendo o poder de comando.

É hoje um tutelado. Não traduz a realidade de maneira correta a atribuição dessa tutela aos militares que o cercam. Vai muito além: inclui o Judiciário na representação do Supremo Tribunal Federal, o Legislativo nas figuras dos presidentes da Câmara e do Senado, as unidades da federação nas pessoas de governadores e prefeitos, a insatisfação da sociedade retratada na imprensa, a diplomacia avessa aos ditames da cúpula do Itamaraty, entidades civis e parte significativa do universo religioso, entre outros setores que têm barrado iniciativas de Bolsonaro, sejam elas autoritárias ou contrárias à ciência.

Embora não tenha condições objetivas de provocar retrocessos irremediáveis como temiam alguns, o presidente causa um mal enorme ao país ao se posicionar como fator de instabilidade, obrigando a todo momento a uma mobilização de forças para contê-lo. Energia que deveria ser direcionada para o que de fato importa.

Se esse homem que ora desgoverna o Brasil tem consciência da própria responsabilidade pela armadilha na qual se encontra prisioneiro é uma incógnita, embora já não seja mistério para ninguém seu medo de perder o cargo antes do tempo regulamentar.

Mostram isso as constantes reafirmações autorreferidas de poder. Isso, em público. No particular já foi bem explícito a dois ministros do Supremo que, antes da crise atual, cada qual numa situação diferente, ouviram dele a aflitiva indagação: “Você acha que eu termino o mandato?”. Perplexos e constrangidos, calados ficaram.

Chegada do coronavírus ameaça terras indígenas

Desde o século XVI, os povos indígenas convivem com epidemias levadas pelos brancos. Surtos de sarampo, varíola e doenças respiratórias já dizimaram etnias inteiras na Amazônia. Agora a ameaça está de volta com a chegada do coronavírus.

Ontem, o ministro Luiz Henrique Mandetta disse que o governo tem “extrema preocupação” com o assunto. Os indígenas tentam se proteger como podem, mas reclamam da falta de assistência e da presença de invasores em suas terras.

“Estamos muito apreensivos”, diz Paulo Tupiniquim, coordenador da Associação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ele conta que a ordem da Funai para proibir a entrada em terras indígenas tem sido desrespeitada. “Em algumas áreas, a presença de madeireiros e garimpeiros aumentou na epidemia.”


O sanitarista Douglas Rodrigues, da Unifesp, diz que a falta de saneamento e o modo de vida dos índios tendem a aumentar a transmissibilidade do vírus. O compartilhamento de utensílios e as moradias coletivas inviabilizam a adoção das medidas de isolamento indicadas à população urbana.

“Ainda não sabemos qual será a letalidade do coronavírus entre os índios, mas o cenário é o pior possível. As ações do governo estão muito aquém do necessário para enfrentar a doença. O que mais assusta é a precariedade do sistema de saúde”, diz o professor, que trabalha em aldeias desde 1981.

O conceito de grupo de risco usado nas cidades também pode não se aplicar aos indígenas. O pesquisador Antonio Oviedo, do Instituto Socioambiental, lembra que muitas aldeias registram alta incidência de anemia e desnutrição entre jovens. As queimadas também causam problemas respiratórios em todas as faixas etárias.

A Secretaria de Saúde Indígena confirmou ontem a contaminação de um ianomâmi de 15 anos em Roraima. O adolescente foi levado para Boa Vista e está internado em estado grave. O órgão contabiliza outros cinco casos de coronavírus em terras demarcadas. Fora delas, já foram registradas ao menos duas mortes de indígenas, em Manaus (AM) e Santarém (PA).

Pensamento do Dia


Louco da caneta

Em um hospício do futuro, dois enfermeiros conversam:

“Quem é aquele enfezadinho, naquele cercadinho, que anda com uma grossa caneta na mão, dizendo te demito?”.

“Ah! Figura nova, veio do longínquo 2020, hoje muito popular nos manicômios. Antigamente existia o Napoleão. Agora é o pô, sou presidente. Com a caneta, ameaça demitir todos os psiquiatras, visitantes e residentes.”


Em casa, desafio Marcia, minha mulher:

“Sem olhar no celular diga que dia é hoje?”.

Marcia pensa, arrisca:

“Sexta-feira”.

“Como acertou?”

“Semana passada, fiz compras para uma semana e era sexta-feira. Então? E amanhã então é sábado, maravilha.”

“Maravilha por quê.”

“Não teremos o que fazer.”

“Mas faz 15 dias que não temos o que fazer, o que fazemos é por nossa conta, você dá retoques em um projeto, eu esboço um texto, você vê um filme, eu mergulho em A Balada do Café Triste, de Carson McCullers, além do lindo livro de Marina Colasanti, que acabou de sair, Mais Longa Vida. Sem esquecer Wisnik, Dentro do Nevoeiro. Belo título para os dias de hoje.

Wisnik, vejam só, décadas atrás, eu um insensato, tive um arranca-rabo injusto com ele, que até hoje me envergonha. Não ter o que fazer? Loucura. É só querer que tem. Na verdade, temos feito muito, mas achamos que não estamos “fazendo” nada. Põe a mesa, tira a mesa. Faxina no quarto, no banheiro. Mais tarde na sala e no quarto. Leva o lixo para baixo. Você acaba de arrumar cozinha, já tem outra à espera. E as roupas para lavar. Passar? Para quê? Não vamos sair. Amassado é moda, assim como jovens andam rasgados. E minha mãe que não me deixava sair de casa, aos 20 anos, se o vinco da calça não estivesse perfeito? Hoje, ao menos, não têm mais meias para cerzir. Falando em meias, e o comovente gesto de Liliana Aufiero, convocando todos os funcionários da Lupo e adaptando máquinas para fazer máscaras e doar? Eta Araraquara! E os Trajanos, do Magazine Luiza, dizendo: “Temos dinheiro para aguentar a crise”, enquanto muitos choram e mamam? Eta! E tira o pó, e tira o pó, e faz e repete, faz e repete, faz e repete, bate uma vitamina, bate um bolo, faz um mexidinho, e lava e desinfeta, lava e desinfeta. Maçanetas, trincos, botões de elevador, tudo que é tocado pela mão humana se torna maldito.

Porteiro chama: “Chegou o álcool gel”. Ele coloca no elevador, não era álcool gel, era água de coco mandada pelo meu filho Daniel. Mas a neura hoje é álcool gel.

Estamos “descobrindo o valor das domésticas, essas que superlotam a Disney, segundo o Guedes PecPecPecPecPec. O homem parece um pato grasnando. Não há declaração sem citar a PEC. Dá logo o dinheiro do povo e desgruda dessa PEC. Perdemos a contagem dos dias. Robinson Crusoe fazia uma marca com faca em árvores para cada dia que passava: foram 28 anos. No isolamento, olho a primeira página do jornal, vejo a data. Se um dia entregarem o jornal atrasado, vão me descontrolar. Também para que preciso saber o dia, todos são iguais, silenciosos, desertos? O que notamos é o ar mais puro. Antes, sair com camisa branca significava chegar em casa com o colarinho preto. Nunca vi como agora um céu tão límpido, durante o dia ou à noite.

Solidariedade e humor têm nos feito suportar o isolamento. A frase tornou-se clichê, mas deixe, vamos repetir à exaustão. Ao receber um meme, se gosto, reenvio. Quem não recebeu este, leia. Memes são como piadas, não se sabe onde nascem.

“Balanço do mês.

Taxas, pagamentos, crediários.

Boletos de banco contaminados, 14.

Sob ameaça de ter coronavírus, 9.

Mortos, 11.”

Há finais de livros e filmes que ficam para sempre em nossas mentes. A frase de Joe Brown, "Ninguém é perfeito", no filme Quanto Mais Quente Melhor é motivo de riso até hoje, passados 60 anos. Ruy Castro encerrou de modo exemplar uma crônica recente. Falando da hierarquia militar, rígida, severa, que faz o Exército ser o que é, ele comenta: “Hoje, generais batem continência para um ex-capitão expulso do Exército por indisciplina”. Há que pensar, há que pensar!

Outra foi Tati Bernardi que assim fechou sua crônica: “Vai ficar tudo bem. Eu sei que vai dar tudo certo, precisa dar. Eu tenho uma filha”. Nós todos temos, Tati. Filhas, filhos, netos, tudo. Quem tem razão é a blogueira Marli Gonçalves dentro do Chumbo Gordo, pondo o dedo na ferida: “A maior desgraça mundial hoje, além do vírus, é a ignorância, que aqui no Brasil há anos contamina nossos dias”.

Sobrevivemos. A cada dia, sento-me em uma cadeira diferente, em um lugar diferente, olho de uma janela diferente, coloco músicas que nunca ouvi, ou que fazia anos que não ouvia (Hernando’s Hideaway ou Mercado Persa), estou localizando aquela pilha de livros que comprei compulsivamente e jamais li. Dia desses, encontrei antiquíssima agenda de telefones, liguei para Daisy. Quem seria? Um homem atendeu: “Você é daqueles que, 50 anos atrás, ligavam sem parar e me infernizavam a vida?”. Era o pai ou o marido? O que fez Daisy no passado que eu não soube? Deu-me vontade de ligar para todos aqueles telefones, saber o que aconteceu com cada pessoa. Só que os números foram mudando, mudando, crescendo e as pessoas desaparecendo, assim como desaparecem os fones fixos, os orelhões e as listas telefônicas, que serviam para tudo, desde encostar a porta para que não batesse com o vento, até para marombados mostrarem sua força rasgando-as ao meio.

Tenho medo de que nos acostumemos com o confinamento. Medo de passarmos a gostar de encontros virtuais, festas virtuais, reuniões virtuais, happy hours virtuais, ida ao banheiro virtual, jejum virtual, transas virtuais, beijos virtuais, doenças virtuais, brigas virtuais, guerras virtuais, caminhadas virtuais. Cada um de nós isolado, segregado, desarticulado, afastado, insulado dentro de nós mesmos, nascendo com um celular acoplado na mão.

Quem pagará a conta da desgraça do coronavírus

Jair Messias Bolsonaro, o comandante em chefe da luta contra o coronavírus, foi ontem tomar refrigerante em uma panificadora da Asa Norte, em Brasília. Juntou gente, nem tanto porque metade dos habitantes da cidade respeita o confinamento decretado pelo governador Ibaneis Rocha (PMDB), do Distrito Federal.

Apertou a mão dos que o cumprimentaram e se disseram seus devotos. Posou com alguns deles para fotos. Mas não demorou muito por ali porque, de repente, começou a ouvir o tilintar de panelas e os gritos de “fora, Bolsonaro”. Saiu de cara fechada. Em 2018, a Asa Norte lhe deu 51% dos seus votos no segundo turno.


O presidente, à noite, fez sua tradicional live das quintas-feiras no Facebook. É o momento da semana onde sente-se mais à vontade. Não tem jornalistas à vista para incomodá-lo com perguntas embaraçosas. Fala o que quer e ninguém o contesta. Seus acompanhantes de ocasião sorriem de todas as suas tiradas.

Embora com ar sério, estava particularmente debochado. Sem citá-lo, debochou do ministro Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, que costuma repetir que médico não abandona paciente. Quer dizer com isso que em meio a uma pandemia, por mais que seja hostilizado por Bolsonaro, não pedirá demissão.

A pretexto de defender mais uma vez o uso da cloroquina contra o coronavírus, Bolsonaro disse que “médico não abandona paciente, mas paciente troca de médico”. Touché! Mandetta preferiu responder à gravação de uma conversa onde o ministro Onyx Lorenzoni e o ex-ministro Osmar Terra defendem sua demissão.

“Lavoro, lavoro, só lavoro”, comentou Mandeta. Lavoro é trabalho em italiano. É o que não falta ao ministro na medida em que o coronavírus multiplica o número de brasileiros infectados e mortos. Hoje, um novo recorde será estabelecido quando o número de mortos ultrapassar a casa dos mil.

De volta à live de Bolsonaro. Com o mesmo ar de seriedade com que deu uma estocada em Mandetta, ele debochou também da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que o proibiu de revogar as medidas de restrição dos governadores para deter o avanço do coronavírus.

Valeu-se da decisão ainda em caráter de liminar para dizer que ela prova que ele, Bolsonaro, nada tem a ver com tais medidas. Até porque sempre se opôs a elas por considerá-las prejudiciais às pessoas que precisam circular e por fazerem mal à Economia. Se dependesse somente dele, nunca teriam sido adotadas.

Com a corrida às farmácias para a compra de cloroquina e o aumento de carros e de pessoas nas ruas das maiores cidades do país, pode-se afirmar tudo – menos que Bolsonaro esteja em isolamento social. Uma larga fatia do país, seja por ouvi-lo, seja por outras razões, está fazendo exatamente o que ele prescreveu.

Ah, mas o Congresso não quer mais conversa com ele! Ah, mas o tempo fechou para ele na Justiça! Esta semana, vários líderes e presidentes de partidos conversaram às escondidas com Bolsonaro no Palácio do Planalto. O clima na Justiça está pesado para o lado dele, mas nenhum togado recusaria um convite para conversar.

Mandetta… Mandetta não perde por esperar. A hora de Bolsonaro mandá-lo embora chegará a partir do instante em que o vírus comece a perder sua força – daqui a dois meses, talvez. Mandetta irá lavorar, lavorar para quem quiser, mas longe da Esplanada dos Ministérios, e sem horário gratuito de propaganda eleitoral.

O acerto final de contas de Bolsonaro com o país se dará quando for possível fazer um balanço do número de vidas ceifadas pelo vírus que ele chamou de “gripezinha”. Se for demasiado grande, se por aqui se repetirem cenas como as que chocaram a Itália e outros países, não haverá mais conversa que possa salvá-lo.

Democracia de coxos

A democracia brasileira me parece um coxo fugindo a um temporal. Manca, tropeça, toma chuva, enlameia-se, mas está viva ainda. Nossos políticos são (na sua maioria, é claro) inacreditavelmente inacreditáveis no seu primarismo, na sua voracidade pelo que há de mais desprezível
Adélia Prado

'Tsunami da miséria': coronavírus pode empurrar meio bilhão para a pobreza

As consequências econômicas do coronavírus podem empurrar até 500 milhões de pessoas para a pobreza. O alerta consta de um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o custo financeiro e humano da pandemia.

Por causa da crise, diz a pesquisa, o nível de pobreza em países em desenvolvimento poderia voltar a um patamar de 30 anos atrás.

Os pesquisadores usaram dados do Banco Mundial para medir os efeitos da redução dos gastos nas economias do mundo em três níveis de pobreza - U$ 1,90 (R$ 9,75), U$ 3,20 (R$ 16,40) e U$ 5,50 (R$ 28,18) por dia.

As previsões pessimistas ocorrem uma semana antes de encontros do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional (FMI) e ministros de finanças do G20 (grupo das 20 maiores economias do mundo).

O estudo foi escrito por especialistas da King's College London, no Reino Unido, e da Australian National University (ANU), na Austrália.

"A crise econômica será potencialmente ainda mais grave do que a crise da saúde", escreveu Christopher Hoy, da ANU.

O relatório, que estima um aumento de 400 a 600 milhões no número de pessoas em situação de pobreza em todo o mundo, diz que o potencial impacto do vírus representa um grande desafio para se cumprir o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da ONU de acabar com a pobreza até 2030.

"Nossas descobertas apontam para a importância de uma expansão substancial das redes de segurança social nos países em desenvolvimento o mais rápido possível e - de maneira mais ampla - uma atenção muito maior ao impacto da covid-19 nos países em desenvolvimento e ao que a comunidade internacional pode fazer para ajudar", afirmou Andy Sumner, do King's College London.

Quando a pandemia terminar, prevê o estudo, mais da metade da população mundial, ou 3,9 bilhões de pessoas, podem estar vivendo na pobreza.

Considerando o patamar de pobreza de U$ 5,50 (R$ 28,18) por dia, cerca de 40% dos novos pobres estariam concentrados no leste da Ásia e no Pacífico, com cerca de um terço na África Subsaariana e no sul da Ásia. A América Latina responderia por 10% desse aumento global.

No início desta semana, mais de 100 organizações internacionais pediram a suspensão dos pagamentos da dívida este ano para os países em desenvolvimento, que liberariam US$ 25 bilhões (R$ 128 billhões) em recursos para suas economias.

Fique em casa! Fique em casa!

O descaso com a quarentena em vigor há 17 dias levou o governador paulista, João Doria, a ameaçar adotar ontem medidas mais rígidas, como “multa, advertência e voz de prisão”, para manter em casa pelo menos 70% da população. São Paulo é a cidade que concentra o maior número de casos e mortes por Covid-19 no Brasil. As avaliações a respeito do cumprimento das medidas de distanciamento social revelam um quadro aterrador.

De acordo com os dados coletados pela InLoco com base na localização de celulares, o índice de isolamento social no país caiu de 69,6%, no último dia 22, para 49%, ontem. No estado de São Paulo, ficou pouco abaixo disso, 48,7%. Em bairros críticos da cidade, como o centro, mal passa dos 30%, como se não tivesse havido nenhuma mudança.

Tal quadro representa a receita certeira para a explosão nos casos. Enquanto muitos continuam nas ruas, enchem as praças e transformaram os supermercados em shopping centers, o novo coronavírus encontra mais gente para infectar e se espalhar. São Paulo se torna aos poucos uma espécie de Wuhan, epicentro da epidemia na China, onde a população teve de ser submetida a medidas draconianas de isolamento para diminuir a transmissão da Covid-19.

Fossas comuns para indigentes mortos de
Covid-19, no Bronx, bairro de Nova York

Em cidades chinesas onde o contágio foi detido, os contatos caíram pelo menos 85%. No Reino Unido, um estudo recente estimou em mais de 70% a diminuição na quantidade de interações entre os habitantes (note que há uma diferença entre esse número e os usados por Doria ou pela InLoco, medidas da proporção da população parada em casa – embora ambos estejam relacionados).

A resistência do brasileiro em aceitar a necessidade de isolamento tem fundo cultural. Há um misto de ignorância e onipotência. A primeira despreza os mecanismos de contágio e a facilidade de contrair um vírus que fica incubado até uma semana e é transmitido por quem nem apresenta sintomas. A segunda acredita que “nada de grave vai acontecer comigo” ou “é só uma gripezinha”.

Ambas são características presentes no discurso e nos atos do presidente Jair Bolsonaro, criticado ontem mais uma vez ao distribuir cumprimentos numa padaria de Brasília. A imprensa mundial tem tratado o presidente brasileiro como lunático por desdenhar a pandemia, hoje levada a sério por todos os líderes que no início hesitaram, como o americano Donald Trump e o britânico Boris Johnson, também vítima do coronavírus e só ontem liberado da UTI.

Os números da InLoco revelam que a manifestação de Bolsonaro coincide com o relaxamento no isolamento. Depois de seu pronunciamento no dia 31 de março, o índice caiu ao nível mais baixo atingido desde o início das quarentenas: 47,2%. Não há como atribuir a Bolsonaro a responsabilidade pelo que faz a população, mas é fato que sua atitude negacionista em nada ajuda o país na emergência.

Metade da população ainda tem consciência da necessidade de ficar em casa. A outra metade ou bem não pode, ou não quer. O desafio de estender o isolamento a favelas, periferias e regiões pobres ds grandes cidades depende não só da adoção de regras duras como quer Doria, mas também de um discurso coerente das autoridades em todos os níveis de governo. Quando cada um diz uma coisa, o cidadão fica perdido, faz o que bem entender ou o que lhe deixa mais confortável.

Uma realidade perversa pode dar a ilusão de que o quadro não está tão ruim quanto se pinta e incentivar o relaxamento: a epidemia evolui com atraso de duas semanas em relação às medidas das autoridades. Quem morrerá nos próximos 14 dias provavelmente já contraiu a doença e deve até estar no hospital. Para quem pega o vírus hoje, o período do contágio à morte se estende na média por mais de 30 dias.

Em virtude disso, o relaxamento dos últimos dias no isolamento social só será sentido nos números da epidemia, com a explosão inevitável nos casos, dentro de uns dez dias. O vírus, enquanto isso, continuará a se espalhar. Mantido o ritmo atual de contágio, ao fim desse período o país somaria perto de 5 mil mortos, e São Paulo, mais de 2 mil (contando apenas casos oficiais, já que não se sabe quantas mortes por Covid-19 foram atribuídas a outras causas).

O mais provável é que a tragédia já incubada seja ainda maior graças ao relaxamento no isolamento. Se não houver mudança na atitude do brasileiro – e rápido –, será impossível evitar o pior. Não vacile: fique em casa, fique em casa!

Assim se 'governa' o Brasil


O fraco mundo dos fortes

Chegam equipas médicas chinesas e cubanas a Itália ou a Espanha. São o rosto maior da cooperação dos fortes com os fracos. E, como sempre fazem os fortes que “cooperam” com os fracos, não se eximem de mostrar que o mundo a que chegam – por contraposição com o mundo de onde vêm – é mal governado e precisa de regras novas, enfim, daquilo a que os fortes chamam boa governação (referindo-se sempre à governação dos fracos).

Chega material médico de Pequim a Paris ou a Lisboa. É a expressão da debilidade e da falta de sentido estratégico de um tecido produtivo que foi deixado aos apetites de uma elite sem noção das necessidades básicas do coletivo. Agora, em desespero, há empresas e comunidades de investigação que, na Europa e nos Estados Unidos da América, abandonam o que faziam normalmente e fabricam kits de testes ou máscaras de proteção. Mas é um arremedo, não é uma estratégia. Outros, os fortes de agora, tiveram-na e é a esses que europeus e norte-americanos, os fracos de agora, pedem ajuda. Ajuda humanitária, claro. E, como sempre aconteceu com aquela que foi dirigida aos fracos quando europeus e norte-americanos eram fortes, esta ajuda humanitária que agora é dirigida aos que estão fracos, virá com fatura.

Talvez agora os europeus e os norte-americanos percebam melhor o que é ser destinatário de ajudas e de cooperação. Talvez compreendam melhor que, para lá de boas intenções, de altruísmo, de solidariedade e de humanidade, há sempre uma relação de poder que vai transportada nessas ajudas e nessa cooperação, porque é claro que esse poder de quem é forte é o outro lado do estado de necessidade de quem é fraco.


Talvez os europeus e os norte-americanos entendam melhor, por estes dias, que a segurança humana que, enquanto fortes, prescreveram para o mundo, é aquela de que nós mesmos precisamos agora. Europeus e norte-americanos pregaram ao mundo que a segurança no século XXI não era para ser entendida de modo estreito, como segurança militar, de defesa do território contra invasões, coisa de exércitos e de submarinos. Que era muito mais do que isso: a segurança das pessoas, a freedom from fear e a freedom from need. Europeus e norte-americanos disseram ao mundo que era assim que devia ser. A segurança humana dos sírios, essa foi espezinhada pela insegurança mais clássica de todas: a do armamento vendido pelos mesmos europeus e norte–americanos aos senhores da guerra. A segurança humana dos palestinianos ou dos saharauis, essa, continuou a ser espezinhada pelas cumplicidades diplomáticas dos pregadores da segurança humana. O discurso da segurança humana soou, por isso, vezes demais, a ficção cínica. Mas, agora, é na Europa e nos Estados Unidos da América, e não lá longe, que se testa a coerência com a proclamação da segurança humana como objetivo certo. E a referência crucial desse teste é o Estado social. Ao contrário do que quer fazer crer o discurso securitário de exceção, é mesmo a freedom from fear e a freedom from want que são intensamente compreendidas por europeus e norte-americanos como pilares da segurança das suas vidas. Contra a insegurança insidiosa de um vírus agressivo, são os sistemas públicos de saúde que são vistos como garante da segurança das pessoas. Contra a insegurança imensa do desemprego, é o salário e a proteção social que são compreendidos como âncoras da segurança das vidas. Como depois da II Guerra Mundial, o que hoje se joga na Europa e nos Estados Unidos da América é a afirmação da segurança humana como princípio de organização social contra a barbárie. E isso tem um nome: Estado social.

Talvez agora os europeus e os norte-americanos entendam melhor que a segurança humana que advogam para o mundo começa aqui e que isso implica reforço dos serviços públicos contra o primado do negócio. Talvez entendam tudo isto agora. Mas talvez o desentendam logo a seguir. O vírus do business as usual é incrivelmente resistente.

Postura de Bolsonaro ante Covid-19 pode ser começo de seu fim

O presidente Jair Bolsonaro está praticamente isolado em seu discurso menos rígido em relação à necessidade do distanciamento social para conter a disseminação do novo coronavírus. Essa postura, segundo a revista The Economist, deverá marcar o começo do fim de sua presidência.

“Um por um, os que duvidam fizeram as pazes com a ciência médica. Apenas quatro governantes do mundo continuam negando a ameaça à saúde pública representada pela covid-19. Dois são destroços da antiga União Soviética, os déspotas da Bielorrússia e do Turquemenistão. Um terceiro é Daniel Ortega, o ditador tropical da Nicarágua. O outro é o presidente eleito de uma grande democracia, ainda que maltratada”, diz a publicação em texto da nova edição.

A tradicional revista britânica destaca que Bolsonaro é apoiado por um pequeno círculo de fanáticos ideológicos que incluem seus três filhos, pela fé de muitos protestantes evangélicos e pela falta de informações sobre a Covid-19 entre alguns brasileiros. Esses dois últimos aspectos, porém, podem mudar à medida que o vírus atinge seu pico.

O número de casos confirmados e mortes deve subir muito entre as últimas semanas de abril e as primeiras de maio, segundo expectativa oficial. Já antecipando este movimento, muitos governadores determinaram o fechamento do comércio não essencial em seus estados já nas últimas semanas de março, o que gerou uma tensão com Bolsonaro.


Dizendo temer os impactos econômicos, Bolsonaro defende o “isolamento vertical”, pelo qual apenas os brasileiros com mais de 60 anos ficariam em quarentena. “Existem dois problemas com isso. Os jovens morrem de covid-19 (10% dos mortes no Brasil têm menos de 60 anos), e a imposição dessa quarentena seria impossível”, diz a Economist.

Enquanto isso, a popularidade do presidente cai. Uma pesquisa realizada neste mês pelo Datafolha, e citada na publicação, revela 76% de aprovação para atuação do Ministério da Saúde na questão do coronavírus, em comparação com 33% para o gerenciamento da crise por Bolsonaro.

“Ele chegou duas vezes perto de demitir seu próprio ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta. Bolsonaro está aparentemente com ciúmes do crescente perfil de um ministro que ele alega ‘carece de humildade'”, diz o texto.

A Economist cita ainda que seus principais ministros, incluindo o grupo de generais no gabinete, bem como o Congresso, também deram apoio às vezes ostensivo a Mandetta. “Mesmo para seus próprios padrões, a violação de seu dever principal de Bolsonaro por proteger vidas foi longe demais”, diz.

Como consequência, afirma a Ecomomist, os pedidos para que ele saia aumentaram. “Eles não vêm apenas da esquerda, mas também de alguns de seus ex-apoiadores, como Janaina Paschoal, uma deputada estadual de São Paulo que ele considerou como seu companheiro de chapa. Dizendo que ele era culpado de ‘um crime contra a saúde pública'”.

Janaina também disse que, apesar disso, o país não tem tempo para mais um processo de impeachment neste momento. Por isso, apesar de Bolsonaro ter forçado a possibilidade de sua própria saída, segundo a revista, é provável que permaneça lá após a superação da epidemia.

E como sente!



Quando o rico geme, o pobre é quem sente a dor
João Ataíde

Pandemia de falta de noção

A racionalidade e a lógica indicam o caminho do isolamento social e as medidas restritivas até que a curva da pandemia comece a melhorar. Valores como justiça social, e sentimentos como compaixão e empatia, tornam imperativo cobrar das autoridades medidas urgentes de complementação de renda, desonerações e esforço máximo para atender aos mais vulneráveis. Nada disso, porém, pode ser confundido com a falta de noção dos espertinhos que querem tirar vantagens que vão muito além da pandemia e dos que tentam aproveitar politicamente a situação ou usufruir seus cinco minutos de fama.

Todos os dias, somos surpreendidos pelo Diário Oficial e por medidas anunciadas e votadas de supetão. Quarta-feira, ao acordar, descobrimos que podemos sacar R$ 1.045,00 do FGTS e que o PIS/PASEP acabou. Com a primeira providência, o governo Bolsonaro se antecipou a uma proposta do PT, que provavelmente o Congresso aprovaria. O Executivo está ficando rápido no gatilho. Alguém no Legislativo anuncia, ele vai lá e faz — como no auxílio, que era de R$ 500 e acabou ficando em R$ 600. Quanto ao fim do PIS/PASEP, sabemos que nenhum brasileiro tem amor por esse fundo, embora alguns tivessem dinheiro lá. Será que passamos pela sonhada reforma desburocratizadora de fundos e tributos enquanto dormíamos? Ninguém explicou.

Nesse momento delicado, estamos todos perdidos, e às vezes fica difícil avaliar de cara o que é mesmo bom ou ruim, se ajuda ou cria problemas. O aplicativo da inscrição para receber o auxílio emergencial demorou e teve, nas primeira 24 horas, mais de 20 milhões de acessos — para se ter uma ideia da carência de boa parte da população. Ao mesmo tempo, porém, especialistas em políticas de distribuição de renda e prefeitos dizem que este acabará sendo o caminho mais complicado para que o dinheiro chegue a quem mais precisa, até porque o brasileiro miserável de verdade não tem celular nem acesso à internet.

Mais fácil teria sido usar os cadastros sociais das prefeituras, em sua maioria montados na era petista, mas ainda inteiros e capazes de identificar os mais pobres. Ou chamar especialistas reconhecidos na formulação e execução de programas sociais. Só que esse pessoal é “vermelho”, como se diz no jargão bolsonarista — e, para esse governo, a ideologia está acima do bem estar da população.

Não é só no Executivo. No DF, com uma canetada, um juiz pode ter cancelado as eleições municipais deste ano. Itagiba Catta Preta Neto, em sentença com cara de manifesto, bloqueou os fundos eleitoral e partidário e destinou seus R$ 3 bilhões ao combate ao coronavírus. A decisão pode ser revista por instância superior, mas é o caso de ficar de olho no resto da torcida para adiar as eleições, um marco da democracia, usando como desculpa a pandemia. A seis meses do pleito, quem defende isso no fundo não quer eleições por medo de perder.

São muitos os exemplos, até de quem, involuntária ou apressadamente, arrisca-se a criar confusão para o futuro. No Legislativo, foi admirável a atuação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, ao votar a toque de caixa, remotamente, os projetos de combate ao coronavírus. Mostrou competência e espírito público. Mas passou do ponto ao aprovar na mesma tarde, em dois turnos, com voto pela Internet, uma emenda constitucional — a PEC do Orçamento de Guerra. Precisou ser lembrado pelo Senado, que adiou o exame da matéria para semana que vem, que as coisas não podem ser assim com mudanças na Constituição.

É preciso mais vagar e reflexão para não abrir precedentes perigosos para o futuro. Maia, que não é bobo, parece ter aprendido a lição. Desistiu de votar o Plano Mansueto, uma profunda reestruturação das finanças estaduais com ajuda federal, durante a pandemia. Vai destacar do projeto, para votação imediata, itens urgentes para os estados, como renegociação de dívidas e compensação de impostos. O resto só na volta à normalidade. Emergência é emergência, reforma é reforma, democracia é democracia — e suas regras têm que ser preservadas em qualquer circunstância.

Porta está aberta para a Renda Básica Universal

Com a crise do novo coronavírus, o debate sobre esse recurso parece mais relevante do que nunca, já que fragilidade dos sistemas de proteção social tradicionais ficou exposta

Nos últimos anos o interesse em propostas de Renda Básica Universal (RBU) cresceu enormemente em todo o mundo. Segundo os autores de um livro sobre RBU publicado neste ano pelo Banco Mundial, “Exploring Universal Basic Income” 1, 91 livros sobre o tema foram publicados apenas na última década.

O interesse não tem se restringido ao meio acadêmico: programas-pilotos foram implementados em diferentes países, e na esfera política vários candidatos têm adotado propostas de RBU como pivô de suas campanhas.


Com a crise deflagrada pelo novo coronavírus, o debate sobre uma RBU parece mais relevante do que nunca, uma vez que a fragilidade dos sistemas de proteção social tradicionais ficou exposta. Em vários países, incluindo o Brasil, surgem medidas de pagamento de uma renda básica a indivíduos ou famílias na tentativa de tapar buracos no sistema vigente.

Todavia, essas transferências que estão agora sendo implementadas não configura RBU, pois estão programadas apenas para um período emergencial e os beneficiários devem satisfazer determinados critérios de elegibilidade. Em contraste, uma RBU é usualmente conceituada como montante fixo de dinheiro regularmente pago pelo governo a cada indivíduo na sociedade, independentemente de sua renda ou posição no mercado de trabalho.

A ideia básica tem mais de dois séculos, tendo sido introduzida pelo filósofo Thomas Paine (1737-1809). A onda recente (antes da chegada do coronavírus) de interesse em RBU surgiu inicialmente nos países desenvolvidos, motivada pela crescente insegurança no mercado de trabalho - associada à automação e à globalização - e pelo crescimento da desigualdade.

No Brasil, a ideia de prover renda básica a cada cidadão foi introduzida nos primeiros anos da década de 1990 pelo então senador pelo PT Eduardo Suplicy (atualmente vereador de São Paulo). A campanha de Suplicy levou à aprovação, em 2004, da Lei de Renda Básica de Cidadania (Lei nº 10.835, de janeiro de 2004), que estabelece a progressiva implementação de uma renda básica universal no país. A lei “não pegou”. Têm prevalecidos argumentos de que uma RBU não é fiscalmente sustentável, ou de que programas de transferências focalizadas e condicionais, como o Bolsa Família, são mais efetivos na redução da pobreza.

Com o objetivo de examinar os efeitos fiscais e distributivos da implementação de uma RBU no Brasil, os autores deste artigo realizaram simulações de esquemas alternativos de RBU, usando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2017 e técnicas de microssimulação de tributos e benefícios. Um dos esquemas simulados, conhecido na literatura como Basic Income/Flat Rate Proposal, combina uma RBU com imposto proporcional sobre todas as outras rendas.

A renda básica (paga a cada indivíduo) foi fixada em R$ 406 por mês, que em 2017 era equivalente à linha de pobreza proposta pelo Banco Mundial para países de renda média alta (US$ 5,50 por dia). No esquema simulado, as aposentadorias e pensões pagas atualmente pelo governo são reduzidas no mesmo montante da renda básica e as demais transferências monetárias são abolidas. O imposto proporcional substitui o atual imposto de renda da pessoa física bem como as contribuições previdenciárias dos empregados. Sua alíquota é calculada de forma a garantir “‘neutralidade orçamentária”, significando que o déficit fiscal não é exacerbado.

Neste esquema, o custo líquido da RBU foi estimado em 11,5% do PIB (R$ 758 bilhões, em 2017), e a alíquota do novo imposto de renda (compatível com neutralidade orçamentária) foi estimada em 35,7%. Conforme projetado, a pobreza seria eliminada com a reforma. Cabe mencionar que, sob o sistema vigente, a proporção de pessoas abaixo da linha de pobreza, em 2017, era 23,5%. Entre as crianças (17 anos ou menos), a taxa de pobreza era bem mais elevada, 39,7%, enquanto entre os idosos (65 anos ou mais), a proporção de pobres era 3,2%.

Em grande medida, isso ocorre porque hoje mais de 85% do gasto público com transferências monetárias correspondem a aposentadorias e pensões. O que também está associado ao fato do montante total de transferência para os 20% mais ricos da população ser cerca de dez vezes maior do que para os 20% mais pobres 2.

A proposta simulada também provocaria uma redução substancial na desigualdade de renda. Medida pelo coeficiente de Gini (que varia entre 0 e 1), a redução seria de mais de um quarto, com o Gini indo de 0,51 para 0,38.

Quase todos os indivíduos entre os 50% mais pobres da população teriam a renda familiar aumentada, sendo que os ganhos mais significativos se concentrariam na base da distribuição de renda. No caso dos 10% mais pobres da população, a renda familiar per capita quase que triplicaria, em média. Ao todo, 64% da população teria um ganho líquido com a reforma. As perdas líquidas, por sua vez, se concentrariam no topo da distribuição de renda. Para os 10% mais ricos, a redução média na renda domiciliar per capita seria de 16%.

Pode ser desconcertante admitir que a substituição (parcial) de um sistema complexo por outro - radicalmente simples - que paga uma quantia modesta a todos os indivíduos na sociedade e é financiado por um imposto com alíquota única sobre todas as rendas possa ter efeitos equalizadores tão fortes. De fato, essa oportunidade é peculiar do Brasil, dada a ineficiência e iniquidade do sistema atual. Outros países enfrentam tradeoffs muito mais fortes entre sustentabilidade/viabilidade fiscal e equidade. É importante ressaltar que além de ganhos em termos de equidade, um sistema como o discutido aqui tem vantagens derivadas de sua simplicidade, universalidade e transparência.

Entre elas, está a redução da burocracia e de custos administrativos, bem como minimização de oportunidades para manipulação do sistema por grupos de interesses específicos.

Crises frequentemente são motores de mudanças estruturais de longo prazo. Ao sair desta que agora vivenciamos, o Brasil e o mundo terão acumulado mais experiência com programas extensivos de transferência de renda. Há ainda a esperança de mudanças nas atitudes, que se tornem mais favoráveis à construção de contratos sociais mais inclusivos. Uma RBU pode ter um papel crucial nesse mundo mais justo. As evidências para o Brasil indicam que temos essa escolha. A porta está aberta.

Rozane Bezerra de Siqueira / José Ricardo Bezerra Nogueira Departamento de Economia/UFPE 
1 Gentilini, Ugo, Margaret Grosh, Jamele Rigolini, and Ruslan Yemtsov, eds. (2020). “Exploring Universal Basic Income: A Guide to Navigating Concepts, Evidence, and Practices”. Washington, DC: The World Bank
2 Ver “Efeito Redistributivo da Política Fiscal no Brasil”, Ministério da Fazenda, Brasília, 2017