quinta-feira, 23 de julho de 2020

Ordem da injustiça e da fome

A direita tem razão quando se identifica com a tranquilidade e com a ordem. A ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem - a tranquilidade de que a injustiça siga sendo injusta e a fome faminta
Eduardo Galeano

O verde e o amarelo

Os ventos que trazem notícias promissoras do verão inglês podem ajudar a tornar mais claro o horizonte de nosso inverno tropical. A vacina contra a Covid 19 criada nos laboratórios de Oxford tem resultados promissores, segundo artigo publicado nesta segunda-feira pela revista científica The Lancet. O que permite esticar o olhar para o que virá depois da pandemia.

Ainda há um longo caminho a percorrer até que as vacinas cheguem aos centros médicos, como se apressou a alertar a Organização Mundial de Saúde. Mas pelo menos há motivos reais para se ter esperança. E o Brasil, vice-campeão mundial da pandemia com seus 80 mil mortos, precisa começar a debater o modelo de desenvolvimento que pretende adotar.

Por enquanto saíram das pranchetas do governo programas com nomes patrióticos, como a carteira de trabalho verde e amarela, que permite a contratação de jovens com menores encargos trabalhistas, e o programa de renda mínima chamado Renda Brasil, uma espécie de reedição modificada do Bolsa Família.

Os desafios que aguardam o Brasil no período pós-pandemia, porém, parecem exigir respostas mais ousadas. Respostas que ajudem a reposicionar o país no cenário internacional. O governo aposta nos investidores internacionais como protagonistas da retomada do crescimento. Mas os investidores têm emitido sinais de que olham o Brasil com preocupação


As mesmas cores da bandeira nacional adotadas pela propaganda governamental podem ajudar a esclarecer o quadro. Um grande sinal amarelo foi emitido por empresas e governos, especialmente da Europa, em direção ao Brasil. Advertências de que as contínuas queimadas na Amazônia e a falta de cuidado com populações indígenas, inclusive durante a pandemia, terão consequências.

A primeira luz amarela foi vista após o anúncio do acordo de associação entre o Mercosul e a União Europeia. As políticas adotadas pelo presidente Jair Bolsonaro na área ambiental levaram a uma espécie de congelamento do acordo, que ainda passa por análise jurídica e precisa ser formalmente assinado, antes de submetido à ratificação pelo Parlamento Europeu e pelos parlamentos nacionais dos países do Mercosul.

O presidente da França, Emmanuel Macron, tem sinalizado que não pretende assinar o acordo se forem mantidas as atuais políticas ambientais no Brasil. Parlamentares da Holanda também já indicaram que apresentarão suas exigências para ratificar o texto.

Depois foi a vez de um grupo de investidores internacionais apresentar as suas preocupações ambientais ao vice-presidente Hamilton Mourão. São responsáveis por bilhões de dólares em investimentos por todo o mundo, que poderão manter distância do Brasil caso não identifiquem mudanças concretas nos rumos do atual governo. Eles temem ser identificados com políticas públicas vistas com desconfiança por seus sócios e clientes.

Pelas lentes dos principais países emissores de investimentos na Europa e na América do Norte, o Brasil está diretamente conectado à questão do meio ambiente. Ainda que o país venha a apresentar-se como um porto seguro para investidores, com regras estáveis e grande potencial de crescimento, o tema ambiental estará cada vez mais presente nas decisões empresariais e governamentais tomadas nesses países.

Um bom exemplo da importância do tema está em um livro que acaba de ser publicado nos Estados Unidos: "O Mundo, uma breve introdução" (em tradução livre), do diplomata Richard Haass, presidente do Council on Foreign Relations, uma organização independente de análise das relações internacionais. Ele trabalhou diretamente com o ex-presidente George W. Bush e o secretário de Estado Colin Powell.

O livro “explica como o mundo realmente funciona, como está mudando e por que isso importa”, segundo as palavras de outra ex-secretária de Estado (desta vez no governo de Bill Clinton), Madeleine Albright.

Na obra, o Brasil é citado cinco vezes. Da primeira vez ao se observar que, no Brasil e na Argentina, democracia e populismo “permanecem em tensão”. Da segunda para lembrar que a população brasileira já ultrapassa 200 milhões de habitantes. A terceira menção informa que o Brasil está lidando com “corrupção endêmica”. As duas últimas estão ligadas ao tema ambiental.

Haass questiona se o Brasil vai “agir responsavelmente” na proteção da floresta amazônica, cuja preservação ele recorda ser “crítica para os esforços globais de combate à mudança climática”. Em seguida, o autor ressalta a importância do Brasil e da Indonésia na questão ambiental.

“São dois países cujas florestas estão encolhendo e, a não ser que seus governos tomem medidas para proteger essas florestas, a resposta à mudança climática será mais difícil”, escreve Haass. “O desmatamento é uma causa significativa para o aquecimento global, responsável por boa parte das emissões globais de carbono”.

Já está claro inclusive para o atual governo que a imagem do Brasil no exterior se deteriora em velocidade semelhante à do desmatamento na Amazônia. Por isso, a questão ganhou importância e passou a ser cuidada diretamente pelo vice-presidente Hamilton Mourão. Isso não significa, porém, que o governo tenha novas ideias a oferecer ao mundo.

E aqui se encontram dois temas aparentemente distantes. Por um lado, o Brasil precisa estabelecer uma estratégia para retomar o crescimento da economia após o fim da pandemia. Por outro, tem que apresentar uma resposta aos que o acusam de haver adotado um modelo predatório de desenvolvimento.

Até aqui, o Brasil tem apenas reagido às pressões que vêm de fora. Representantes do governo e parlamentares ligados ao agronegócio reiteram que as pressões estão pouco ligadas a uma preocupação ambiental e mais motivadas por interesses econômicos. Apenas recentemente importantes produtores rurais passaram a alertar que as luzes amarelas acesas no exterior podem vir a prejudicar suas próprias exportações.

O verde entra em campo aqui. Para superar o desafio, o Brasil precisará deixar de ser reativo e adotar uma postura propositiva. Essa mudança tem poucas chances de acontecer no atual governo. Mas pode ser decisiva na elaboração de um novo modelo de desenvolvimento que o país venha a adotar nos anos que se seguirão à pandemia.

O tema ainda é novo no meio político. Mesmo assim, começa a ficar para trás a velha dicotomia entre representantes de produtores rurais e defensores do meio ambiente.

A primeira demonstração da nova tendência foi a inédita união, na Câmara dos Deputados, das frentes parlamentares ligadas aos dois grupos pela ratificação do Protocolo de Kyoto, que garante aos países ricos em biodiversidade, como o Brasil, participação nos resultados econômicos de produtos criados a partir de espécies provenientes de sua diversidade biológica.

O potencial desse novo modelo econômico, que pode unir a boa agricultura à preservação ambiental e à utilização industrial de insumos da floresta, começa aos poucos a ser percebido no mundo político.

Aos olhos do mundo, no pico da pandemia, o Brasil permanece em observação. Se o momento é difícil, porém, também apresenta uma grande oportunidade. O país depende apenas de si mesmo para superar desconfianças e projetar-se como uma potência agrícola e ambiental, com papel de liderança na nascente bioeconomia.

O Brasil que não está indignado com a corrupção da pandemia é um país moralmente morto

O Ministério da Saúde acaba de se queixar da “falta de medicamentos para intubar pacientes graves” do coronavírus. Enquanto isso, os brasileiros tornaram a ver, como nos tempos da Lava Jato, nos canais de televisão, as vergonhosas sacolas e malas de dinheiro vivo supostamente roubado do orçamento destinado a salvar vidas na guerra sanitária em curso.

Talvez porque já se sintam impotentes diante da nova avalanche de corrupção, o fato é que os brasileiros não souberam reagir com um grito de indignação a essa ofensa à vida. E um país passivo perante tamanho pecado perpetrado por quem, pelo contrário, deveria zelar e se sacrificar para salvar vidas, é um país moral e politicamente morto.
Isso me leva a pensar que existe o perigo de que, pelo fato de o país estar sendo governado por um sistema autoritário que incita ao ódio e à divisão, a velha política e as outras instituições do Estado se sintam absolvidas sumariamente de seus pecados e acreditem que podem continuar roubando.

É um perigo que precisa ser evitado se não quisermos que isso sirva de desculpa para fortalecer o Governo autoritário de extrema direita de Jair Bolsonaro. Uma volta à política democrática supõe ter consciência de que isso será impossível se as forças que deveriam defender os valores da liberdade continuassem adormecidas em seus privilégios, roubos e esbanjamentos.

A política que a democracia engendra seria cúmplice e reforçaria os descalabros da política bolsonarista se fosse incapaz de uma renovação profunda e não tivesse a coragem de abandonar as práticas podres da corrupção, que vemos continuarem vivas, assim como de renunciar a seus privilégios insuportáveis. Privilégios que não só ofendem os mais necessitados, os que precisam lutar para ganhar seu prato de comida. Ofendem todos os que lutam e se esforçam para fortalecer a democracia e criar Governos simplesmente decentes.

Acreditar que basta denunciar um Governo e um regime como antidemocrático e fascista, sem ser capaz de fazer antes um sério exame de consciência sobre as próprias culpas, seria desonrar a democracia. A política democrática só poderá ter o direito de fazer uma cruzada contra o que estamos vivendo na medida em que tomar consciência de que seus erros podem ter sido a causa da eleição de um personagem como Bolsonaro. Sem essa renovação, todos aqueles que tinham votado no “mito”, desgostosos não só com os desvios de corrupção do PT, mas também da classe política em geral, poderiam ter a tentação de considerar que ditadura e democracia dão na mesma. Não é verdade, mas isso não basta, porque uma política democrática corrupta e embebida em privilégios costuma ser o primeiro passo rumo ao autoritarismo que sempre aparece falsamente revestido de virtude e de renovação da política.

Os partidos e as outras instituições do Estado, começando pela Justiça, deverão hoje mais do que nunca demonstrar a força da democracia com fatos que possam ser entendidos até pelos menos cultos, os quais só costumam receber as sobras da opulência e da corrupção.

Não é fácil convencer a massa dos que trabalham duro e mal remunerados, e pior ainda os sem-trabalho, os que sofrem as garras da violência do Estado e do racismo, de que a democracia é o melhor sistema para deixarem de ser escravos.

Como podem, por exemplo, esses políticos sabidamente corruptos e nadando em privilégios convencer sobre os valores da liberdade ao mundo das comunidades abandonadas à própria sorte nas grandes periferias urbanas? Como alguém que fez da política uma chance de enriquecer a si e aos seus com práticas antirrepublicanas pode ter autoridade moral para exigir sacrifícios de quem já vive curvado pela pobreza? Daqueles a quem se negam os direitos humanos fundamentais? Como acreditar nos valores democráticos de políticos que se aliam vergonhosamente com milícias e traficantes para conseguir votos e que deixam a violência correr solta contra os pobres?

A defesa dos valores democráticos está sem dúvida acima de tudo se não quisermos abrir espaço à barbárie que acaba esmagando os excluídos. Entretanto, nunca será possível conseguir uma sociedade livre, nem fazer frente aos demônios dos novos fascismos, se quem se declara favorável à democracia acaba manchando-a e traindo-a com suas condutas indecorosas.

Ou a democracia se conjuga com a honestidade dos políticos ou se transformará em tentações totalitárias. Ou a política da democracia e da defesa dos diferentes e das liberdades muda seus velhos hábitos corruptos ou pode se esquecer de conseguir que uma força progressista volte a governar este país. Ou muda a política de quem recusa a tirania ou, depois de Bolsonaro, continuarão governando os nostálgicos do autoritarismo, de um pai indulgente ou de um pistoleiro que os defenda dos fantasmas de uma democracia tristemente desprestigiada.

Pensamento do Dia


A defesa da geoinformação na Amazônia: É o mapa, estúpido!

O mundo sempre foi representado de forma distorcida. Isso é natural pois, salvo se formos terraplanistas, representar algo esférico de forma plana sempre causa esse efeito. Como exemplo, a Amazônia legal brasileira, isoladamente, é maior do que a União Europeia e seria o sétimo maior país do mundo. Ela é duas vezes e meia maior do que a Groenlândia, aquela ilha dinamarquesa no extremo-norte do planeta e que, geralmente, aparece do tamanho de toda a América do Sul no mapa-múndi de Mercator – projeção que aumenta os extremos do planeta e comprime as zonas tropicais.

Criar um mapa do mundo é escolher um tipo de distorção que, muitas vezes, reflete uma opção política. Desde sempre e em regra geral, neste pedaço de terra pequeno no mapa – mas gigante no mundo, principalmente quando se trata de meio ambiente –, os países desenvolvidos fazem uma defesa enfática pelo patrimônio natural da superfície amazônica.

O Brasil, por sua vez, defende que o real interesse deles é o subsolo e o material biológico lá existente. Aponta que as queimadas são superestimadas. E que a soberania territorial é nossa.

É um debate desigual, no qual a sedutora (e justa) narrativa ambiental é usada como justificativa política para castigar nosso competente e competitivo agronegócio, enquanto as imagens das constelações de satélites, que fazem a análise em tempo real das queimadas na Amazônia, legítimas ou não, são dos gringos.



O Brasil, de forma oficial, sequer está mapeado completamente na escala de 1:100.000, mínima para planejamento, sendo suas principais lacunas exatamente na região amazônica. Se aumentarmos esta escala e quisermos obter suas imagens, ou seja, melhorarmos sua precisão, estes mapas serão encontrados no Vale do Silício, em Moscou, em Pequim ou na Europa. Pouco há no Brasil.

O problema é que o país que não se programa no século 21, será programado por terceiros. A floresta está no Brasil, mas os satélites não são nossos. O país está invertebrado, pois suas vértebras, ou melhor, seus mapas, estão expostos para estudo de cientistas fora do país.

E o que temos no país não ajuda. O beliche cartorário, usando uma expressão de Sérgio Jacomino para ilustrar a sobreposição de títulos imobiliários, demonstra que temos algo em torno de 650 mil km2 (extensão similar ao tamanho do estado de Minas Gerais) de sobreposição de propriedades. Tem desde disputa de terras entre privados até, p. ex., proprietários rurais dizendo que terra indígena é sua.

O Cadastro Ambiental Rural (CAR), destinado à preservação ambiental, tem uma distorção ainda maior: o Boletim Informativo do Serviço Florestal Brasileiro de novembro de 2019 mostra que a diferença entre a área real e cadastrada perfaz 1.451.955,94 km2. Se fosse um país, seria o 19º. maior do mundo, quase do tamanho do estado do Amazonas.

O Barão do Rio Branco, a personalidade mais homenageada em praças públicas no Brasil e patrono de nossa diplomacia, usava mapas para resolver conflitos que, se tivesse perdido, poderiam ter diminuído enormemente o território do Brasil.

Sua trilogia, que compõe a disputa do Brasil com a Argentina (Questão de Palmas de 1890-1895, sob arbitragem do presidente norte-americano), com a França (Questão do Amapá de 1895-1900, sob arbitragem do presidente suíço) e com a Bolívia (Tratado de Petrópolis de 1904, que culminou na integração do Acre ao Brasil e na fixação de fronteira com a Bolívia e o Peru) é uma obra que merece maior compreensão para a administração do território nacional, pois o largo uso de mapas para defesa jurídica fez toda a diferença. A ponto de, p. ex., Vidal de la Blache, o pai da Geografia moderna francesa, ter atuado como parecerista para o lado francês na Questão do Amapá e ter perdido a arbitragem.

Já fomos bons em defender a Amazônia dos interesses europeus. Principalmente porque tínhamos meios de provar nossa razão e usamos a melhor técnica: mapas e dados confiáveis.

Podemos fazer muito resgatando esta prática. O ministro da Economia, Paulo Guedes, disse algo sobre pensar soluções criativas entre IBGE e Ipea. A Medida Provisória 954/2020, que se destinava a atribuir ao IBGE uma lista telefônica analógica em tempos de dados geográficos online, derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), foi exemplar para mostrar que o pensamento econômico do governo precisa ter uma visão 360 graus para alcançar o objetivo no qual se propõe, inclusive aderindo à visão geopolítica típica dos militares.

Estamos atrasados para internalizar as melhores práticas de políticas públicas geográficas e criarmos uma agência reguladora de infraestrutura de dados espaciais. Isso seria especialmente importante para a Amazônia e para os produtores rurais, pois confeririam dados seguros ao país para vencermos esta guerra informativa.

Fé e religião no governo Bolsonaro

A religião de um ministro não deveria importar para sua avaliação. A partir do momento, contudo, em que a religião é um dos critérios pelos quais foi escolhido, ela se torna relevante, para o bem ou para o mal.

Ainda em novembro de 2018, a equipe do presidente eleito Jair Bolsonaro sondava Mozart Neves Ramos, na época diretor do Instituto Ayrton Senna, para o Ministério da Educação.

Assim que a informação veio a público, contudo, gerou reação imediata da bancada da Bíblia, que vetou o nome. Bolsonaro acatou. Depois de um ano e meio perdidos, Bolsonaro finalmente nomeia um ministro da Educação evangélico.


O Estado laico é daquelas conquistas sociais que, quanto mais de perto examinamos, mais fica difícil de definir. Afinal de contas, o que difere um valor "religioso" de um valor "laico"? Todos nós partimos de certos pressupostos normativos —os fins que desejamos para nós e para a sociedade— que não têm embasamento racional.

Quando deixamos as sutilezas filosóficas de lado, contudo, e olhamos para o todo, é um avanço inestimável de nossa civilização ter não só separado a autoridade religiosa da autoridade secular (separação que, pode-se dizer, está já na origem do cristianismo) como também ter desobrigado esta de qualquer tipo de subordinação àquela.

Desde então, todas as religiões e igrejas têm a liberdade de existir, sem qualquer favorecimento ou obstáculo do Estado, desde que respeitem a lei.

Isso exigiu de todos, e especialmente de autoridades religiosas, o reconhecimento de que a pluralidade de visões de mundo, bem como a necessidade da convivência pacífica, exigem que se trate visões discordantes com respeito.

A Igreja Católica, hoje em dia —assim como os principais ramos das igrejas protestantes históricas (como a Igreja Presbiteriana, do ministro Milton Ribeiro)—, convive em paz e relativa harmonia com o Estado laico.

Foi uma guerra de séculos para que o aceitassem.

A convivência de diferentes perspectivas só pode funcionar se reconhecemos uma esfera de conhecimento e ação comum, na qual conflitos possam ser resolvidos por um critério anterior a qualquer fé específica: nossa razão (também ela falível e, portanto, sempre aberta ao contraditório). Assim, é possível avaliar um ministro por critérios técnicos que independem da fé.

Até a saída de Weintraub, o discurso do governo era de que não existe excelência técnica: existe apenas a guerra de narrativas, ideologias e fés.

Os grandes problemas da educação brasileira não eram a má gestão, a falta de recursos, o despreparo e desamparo de professores, a indicação política dos cargos de diretores de escolas, e sim a ideologia ensinada por professores comunistas em sala de aula. Ateísmo, socialismo, sexo.

Em vídeo em que prega a sua congregação, o pastor Milton Ribeiro aterroriza os fieis com o espectro da revolução sexual; as universidades estariam, sob a inspiração do existencialismo, ensinando aos jovens ("os nossos filhos") o sexo sem limites. (Como egresso da Faculdade de Filosofia, lamento ter passado batido por essa matéria.) A fala não o abona.

Ao mesmo tempo, contudo, tem um doutorado (real) em educação. É cedo para dizer que também fará um ministério ideológico. Como bom presbiteriano, apesar do conservadorismo, deve saber separar melhor igreja e Estado. Talvez seja o equilíbrio possível dentro deste governo. Oremos.
Joel Pinheiro da Fonseca

Uma elite sem modos e sem atitude

Os últimos dias têm sido um festival de arrogância de homens públicos e brasileiros abastados expondo publicamente seu pedantismo diante de pessoas em suposta posição de desvantagem na escala econômica. O mais recente, o desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, chamando de “analfabeto” um guarda que cobrou dele o uso da máscara enquanto ele caminhava na orla de Santos, é de cair o queixo. Siqueira rasgou uma multa que recebeu e a jogou em cima do guarda municipal que o abordava. O desembargador ainda ligou para um superior para reforçar a ameaça, como mostram as imagens do vídeo que tomou as redes sociais neste final de semana.


Tornar-se alvo de repúdio de parte dos brasileiros não faz corar nenhum integrante desse topo da pirâmide, que só alcançou status por dinheiro, mas são deploráveis em termos de valores. Alguns entregam seu apego a uma etiqueta de opressão, descolados de um mundo que avança em outro sentido. Dias atrás circulou a imagem de um casal reclamando com um fiscal no Rio que cobrava que fossem embora de um bar pelas restrições impostas pela pandemia. Quando o fiscal chamou o rapaz de “cidadão”, a mulher reagiu dizendo: “cidadão não, engenheiro civil”. Também o secretário executivo do Ministério da Saúde, Elcio Franco Filho, mostrou sua hostilidade com quem não pode se defender ao dar ao vivo uma bronca gratuita num garçom que entrou sem querer na visão da câmera que filmava a live da qual participava Franco Filho.

Um pouco antes, foi a vez de um empresário no condomínio de luxo Alphaville apelar em alto e bom som para a baixaria quando foi abordado por um policial, chamado pela mulher do empresário. “Você é um bosta, você é um merda de um PM que ganha mil reais por mês. Eu ganho 300.000 por mês. Eu quero que você se... , seu lixo!”, vociferava ele na frente da mulher — e da filha. Este, ao menos acabou algemado, e pediu desculpas publicamente pelo show de horrores que promoveu. Mas estava sendo detido por violência doméstica. Quem é o lixo aqui?

Essa falsa superioridade presente em uma parte da elite mata de verdade. É a mesma que fecha os olhos para a pobreza e a violência policial que executa negros na periferia, colocando o Brasil como um dos campeões em crueldade. É a mesma que despreza o filho da empregada sozinho no elevador, como Sarí Corte Real, mulher do prefeito de Tamandaré. Miguel, filho de Mirtes que passeava os cachorros de Sarí enquanto a patroa fazia as unhas, caiu do alto do prédio e morreu.

Não se pode generalizar a elite brasileira com esses exemplos rastaquera. Há muita gente no topo da pirâmide querendo verdadeiramente dar sua contribuição para garantir um país mais decente. Um PIB que se preocupa com educação dos mais vulneráveis, com o meio ambiente e com o avanço democrático do Brasil. Que não se prestaria, seguramente, a se tornar uma caricatura dos “você sabe com quem está falando?” como o desembargador Siqueira. Mas ainda são poucos os que se erguem com veemência contra injustiças no país que os enriquece. Neste momento, é inacreditável que atores globais, assim como a socióloga Neca Setúbal, tenham de interceder junto ao governador João Doria Jr. para que ele receba movimentos sociais negros que querem ser ouvidos para falar da violência policial das periferias em São Paulo que subiu vertiginosamente.

São poucos os que dão a cara para bater. Num Brasil à flor da pele neste momento tão trágico como o da pandemia, não faltam aqueles que continuam repetindo à exaustão a cantilena do liberalismo econômico como meio de melhorar a vida dos pobres, como sugeriu em entrevista à Folha de S. Paulo Henrique Bredda, da gestora Alaska. Diz Bredda que fica “com o pé atrás” quando ouve falar em desigualdade no Brasil.

Faltaram brios também aos empresários mais poderosos do Brasil diante da “boiada” que está passando na Amazônia. Foram fracos em não se posicionar diante dos ataques à floresta nestes últimos tempos. Foi preciso que fundos estrangeiros trilionários ameaçassem retaliar o Brasil para que fossem bater à porta do general Hamilton Mourão com um manifesto contra o desmatamento. Uma carta assinada inclusive pela Vale, cuja atuação em desprezo ao meio ambiente e aos trabalhadores do grupo deixou sequelas profundas em Minas Gerais.

No ano passado, o empresário Blairo Maggi, maior exportador de soja, foi um dos poucos a falar publicamente e chamar a atenção para o risco que o Brasil corria diante dos incêndios na Amazônia. Mostrava o perigo para o agronegócio diante da gestão. “O Brasil tinha subido no muro e passado a perna para descer do outro lado, agora fomos empurrados de volta e para bem longe do muro. Não veja como crítica feroz, mas sim como um alerta”, avisou Maggi.

A lista de desconfortos só cresce. Quanto os bancos se empenharam para que houvesse crédito a empresas neste momento de pandemia? Dados do IBGE revelam que somente 12,7% das empresas tiveram acesso ao crédito emergencial do Governo destinado ao pagamento de salários. O recurso, anunciado em março, estaria disponível através dos bancos. Falhou o Governo em repassar? Quantas vozes se insurgiram contra esse quadro? Não por acaso mais de 700.000 empresas já fecharam em definitivo por causa da pandemia.

A elite brasileira precisa se envergonhar da sua cumplicidade com um Brasil perverso. Em outros países, milionários estão fazendo campanha para aumentar os próprios impostos, contribuindo com movimentos por justiça social. O silêncio dos que detêm dinheiro e poder permitiu que o país se tornasse pária no exterior. Nada mais constrangedor do que ter a chance de evoluir, e calar. Tenham modos, tenham coragem para deixar que o Brasil tenha orgulho de si mesmo.

Troco tudo por um abraço

Caminho sob um sol torrencial. O rio Tejo brilha, ao meu lado direito, como uma grande cobra adormecida no lodo. Avanço em direção ao futuro. Se voltar para trás, continuarei avançando em direção ao futuro. Essa é a única certeza que tenho.

“O verão parece agora um inverno perpétuo”, escreveu a romancista portuguesa Patrícia Reis numa crônica recente. Venho escutando muitos comentários semelhantes. As pessoas sentem-se presas numa espécie de armadilha temporal. O verão europeu parece um inverno perpétuo, apesar do sol que ocupa todo o céu, e do calor violento, e das esplanadas que se desdobram ociosas junto ao rio. O verão europeu parece um inverno perpétuo porque não há quase ninguém nas ruas, não há risos nem festas, nem amigos que se abraçam, trocando insultos fraternais e fortes tapas nas costas. Não há casais se beijando nos bancos dos jardins. Não há casais se beijando. Aliás: não há beijos!



Pela primeira vez na vida sinto verdadeira falta de alguém que me abrace. Tento roubar abraços aos conhecidos (e até a alguns desconhecidos) que encontro na rua. A vasta maioria esquiva-se com horror: “Cuidado, olha o vírus!”

Odeio aqueles que se aproximam com o cotovelo em riste. A pior invenção destes dias é a cotovelada. 

Não falta muito para que os assaltantes, ao invés de mostrarem uma faca, se aproximem das vítimas fazendo boquinha: ]

— Me passa a carteira, otário, ou te dou um beijo. 

No estado em que me encontro arriscaria o beijo. Até trocaria a carteira por um beijo.

Receio que quando finalmente for descoberta uma vacina contra o covid-19, já se terá instalado em todas as grandes cidades do planeta uma epidemia de agorafobia. Muitas pessoas recusarão sair de casa, aterrorizadas com os perigos inumeráveis do espaço exterior. Outras tantas não sairão por já não caberem nas portas. Ou talvez nessa altura as casas já nem tenham portas.

Faz uma semana assisti a um show de Yamandu Costa, que se mudou para Lisboa pouco antes do fim do mundo, e aproveitou o período de confinamento para compor novas canções. O músico começou por se queixar de que engordara muito no confinamento, e mal conseguia cruzar as pernas. Terminou o show muito mais leve. Ele e nós. 

“O Yamandu tem o instrumento diretamente ligado ao cérebro” — disse-me um amigo, também ele músico. Concordo. Yamandu e o violão são um mesmo organismo musical, que se move no palco como se tivesse inúmeros braços, fazendo com que a luz cresça ou se apague em harmonia com o seu próprio coração. 

Compreendi, ouvindo o violonista gaúcho, que se não for através da música, da literatura, do cinema, das artes plásticas, nunca conseguiremos sair do confinamento espiritual que o isolamento físico tende a impor. A música abre portas que nem sabíamos que estavam lá. A arte nos ensinará a romper com este inverno perpétuo, e a avançar para o futuro inevitável, qualquer que ele seja, iluminando e inventando caminhos. 

Reaprenderemos a beijar-nos através da arte — ou nunca mais nos beijaremos.
José Eduardo Agualusa

A eucaristia bolsonarista

A cena: Bolsonaro ergue a caixa de um medicamento; assim como se, capitão que é, igualmente ovacionado pelos espectadores, fosse Carlos Alberto levantando a Copa do Mundo. A embalagem de cloroquina então transformada na Jules Rimet — cujo destino de derretimento não deve ser possibilidade excluída ao porvir de um remédio apregoado como panaceia pelo presidente-milagreiro.

Derretem as vidas. No presente. Um fato.

Houve também quem comparasse o episódio a uma passagem do filme “Rei Leão”, em que o primata Rafiki ergue o recém-nascido Simba, filho do rei Mufasa. Um gesto para noticiar à comunidade que o reino tinha herdeiro — um ritual, pois, para informar sobre o futuro. Um movimento de segurança e esperança. De vida; para a vida.

A comparação com a liturgia de Bolsonaro é, portanto, descabida. Sim, o ato do presidente teve linguagem religiosa. Não me surpreenderia se alguém ali, diante daquela missa campal, esperasse o Messias andar sobre o espelho d’água. Bolsonaro emulava a comunhão. Na prática, porém, anticomunhão; porque aquela congregação esmagava, atraídos pelo egoísmo do pregador, vítimas potenciais do vírus traiçoeiro. Um gesto-ritual para noticiar à comunidade de crentes que o pastor, pura versão, negava-se aos fatos — um gesto, pois, para informar sobre o passado permanente. Um movimento de negação e temeridade. De doente; para a doença.


O presidente celebrava a eucaristia bolsonarista — a própria ação de graças, essencialmente personalista, do autocrata. Uma distorção do sacrifício. A terceirização do sacrifício por meio do culto ao negacionismo e à desinformação; um ritual de pretensão sagrada em cuja irresponsabilidade publicitária só havia morte — e nenhuma ressurreição.

A caixa do remédio glorificada pelo sacerdote Bolsonaro não era o corpo do mito Bolsonaro; corpo este que ali estava protegido, isolado, seguro. A embalagem de medicamento elevada pela crendice bolsonarista não era a carne daquele salvador eleito que se imolava por seus fiéis; povo este que ali estava espremido, exposto, vulnerável.

Não era o “Tomai, todos, e comei. Isto é o meu corpo”. Não. Mas o “Tomai, todos, e comei. Isto é o vosso corpo”. O corpo de milhares de mortos pela peste.

A esta antimissa se associaram as Forças Armadas. Gilmar Mendes tocou num nervo. Pode-se discutir o emprego de genocida para definir a responsabilidade de Bolsonaro sobre a morte de brasileiros. A responsabilidade, entretanto, existe. A negligência resulta. A crendice resulta. Influenciam — condicionam — e resultam.

Deve-se mesmo questionar que a pancada, ainda que correta, venha da boca de um ministro do Supremo, a quem não caberia se comportar como comentarista político porque, objetivamente, talvez venha a julgar algo relativo à omissão de Bolsonaro ante a pandemia.

Não é adequado. Não foi a isto, contudo, que reagiram os militares. Tampouco à afirmação de que teriam se associado a um genocídio. Mas à constatação — factual — de serem agentes já inseparáveis de um governo de cujo conjunto curandeiro decorrem mortes. O problema é a verdade.

As Forças Armadas não precisavam pontificar neste altar. Pouco tinham a ver com Bolsonaro, tipo condenado à baixa patente, um sindicalista agitador, conspirador de quartel, que propunha a quebra da hierarquia a bombas — do qual o Exército se livrara desde havia muito, mas de quem se reaproximaria deliberadamente, por cima, sobretudo a partir de gestões políticas do general Villas-Boas.

Para muito além dos limites impostos a instituições de Estado, as Forças trabalharam para estrelar o projeto de poder bolsonarista; e isto a ponto de um general da ativa — submetendo consigo o Exército — aceitar o papel de cavalo para que o presidente pudesse ser o ministro da Saúde. Aí está. Como aí está o ministro Ramos, general da ativa quando afirmou — atribuindo poder moderador à sua casta — a tese de que se poderia desrespeitar decisão de tribunal superior se considerada “não justa”.

As Forças podem agora desfiar o rosário. É falso que lhes cairia no colo — de qualquer maneira — um fracasso de Bolsonaro; que, por ser militar, levaria consigo a imagem das Armas. É falso. O sujeito deixara o Exército em 1987, defenestrado, reinventando-se em político defensor dos interesses corporativos de cabos e soldados, mais próximo das polícias que das Armas — às quais bastaria guardar a distância que a impessoalidade republicana demarca.

As Forças Armadas, no entanto, desejaram integrar o governo. E agora temem que suas fardas sejam manchadas — investigadas no Tribunal Penal Internacional — pela maneira como o governo a que dão (flexível) espinha lidou com a peste.

Bolsonaro jogou nos braços do Exército — na figura do vice Mourão — a Amazônia em chamas e a dizimação (o genocídio?) dos povos indígenas. E jogou na conta do Laboratório do Exército a fabricação milionária de cloroquina — o Exército, produtor do comprimido por meio do qual a morte é comungada, também pode erguer a taça. Amém.

Imobilizado e imbecilizado com Bolsonaro no poder, o Brasil vai para onde?

Com apenas um ano e meio de governo, o presidente Jair Bolsonaro jaz inerte, aprisionado por seus próprios erros. Totalmente despreparado para o exercício do Poder, Bolsonaro desprezou o aconselhamento de aliados de alto nível, como os generais Augusto Heleno, Santa Rosa, Hamilton Mourão e Santos Cruz e o advogado Gustavo Bebianno, preferindo seguir seus filhos irresponsáveis e o guru terraplanista Olavo de Carvalho, mentor ideológico deles.

Este foi seu primeiro gravíssimo erro, porque significou a escolha de ministros de baixo nível, como Ricardo Vélez Rodrigues, Damares Alves, Ernesto Araújo e Marcelo Álvaro Antonio.

Depois, insistiu no erro e perdeu quadros importantes, como Bebianno (Secretaria-Geral), Santos Cruz (Secretaria de Governo), Santa Rosa (Assuntos Estratégicos). E também errou ao colocar o vice Mourão no freezer do Planalto, proibindo-o de receber embaixadores e dar entrevistas sobre o governo. Os outros saíram, mas Mourão é indemissível, absorveu o golpe e deixou o tempo passar.


Ao mesmo tempo em que perdia grandes aliados, Bolsonaro cometia outros erros gravíssimos. Um deles foi atacar a mídia, que sempre apoia governos iniciantes. Mas Bolsonaro preferiu confiar na avaliação do guru virginiano e dos filhos, que lhe convenceram de que a mídia não tem mais força e hoje o importante é dominar as redes sociais.

Resultado: pela primeira vez na História do Brasil, um governo perdeu o apoio de toda a grande mídia logo no início da gestão, muito pior do que aconteceu com João Goulart, que ainda tinha parte da mídia a seu favor, quando foi derrubado.

Outro grave erro foi colocar Paulo Guedes como czar da economia, dando-lhe plenos poderes. O ministro da Economia fracassou desde o início, fez uma reforma da Previdência remendada, que garantiu privilégios da nomenklatura civil e militar, preferindo cortar por baixo.

O pior é que Guedes não tem nenhum planejamento, está perdido em si mesmo, só pensa em desonerar empresas, proteger banqueiros e vender estatais. É um mau brasileiro, deveria voltar ao mercado, para aplicar aqueles golpes nos fundos de pensão que lhe valeram denúncia oficial da Previc (Superintendência Nacional de Previdência Complementar) e até hoje ele não foi prestar depoimento.

Desde o início, a chamada ala militar tentou recolocar o governo nos trilhos, mas o próprio Bolsonaro não aceita sugestões dos aliados. O resultado é um governo imbecilizado e imobilizado, no qual o chefe da Casa Civil, ao invés de tocar o governo na eterna ausência do titular, dedica-se a arranjar um emprego altamente remunerado para a filha.