sábado, 28 de maio de 2022

Pêsames presidencial

 


Esperanças e utopias

Sobre as virtudes da esperança tem-se escrito muito e parolado muito mais. Tal como sucedeu e continuará a suceder com as utopias, a esperança foi sempre, ao longo dos tempos, uma espécie de paraíso sonhado dos cépticos. E não só dos cépticos. Crentes fervorosos, dos de missa e comunhão, desses que estão convencidos de que levam por cima das suas cabeças a mão compassiva de Deus a defendê-los da chuva e do calor, não se esquecem de lhe rogar que cumpra nesta vida ao menos uma pequena parte das bem-aventuranças que prometeu para a outra. Por isso, quem não está satisfeito com o que lhe coube na desigual distribuição dos bens do planeta, sobretudo os materiais, agarra-se à esperança de que o diabo nem sempre estará atrás da porta e de que a riqueza lhe entrará um dia, antes cedo que tarde, pela janela dentro. Quem tudo perdeu, mas teve a sorte de conservar ao menos a triste vida, considera que lhe assiste o humaníssimo direito de esperar que o dia de amanhã não seja tão desgraçado como o está sendo o dia de hoje. Supondo, claro, que haja justiça neste mundo. Ora, se nestes lugares e nestes tempos existisse algo que merecesse semelhante nome, não a miragem do costume com que se iludem os olhos e a mente, mas uma realidade que se pudesse tocar com as mãos, é evidente que não precisaríamos de andar todos os dias com a esperança ao colo, a embalá-la, ou embalados nós ao colo dela. A simples justiça (não a dos tribunais, mas a daquele fundamental respeito que deveria presidir às relações entre os humanos) se encarregaria de pôr todas as coisas nos seus justos lugares. Dantes, ao pobre de pedir a quem se tinha acabado de negar a esmola, acrescentava-se hipocritamente que “tivesse paciência”. Penso que, na prática, aconselhar alguém a que tenha esperança não é muito diferente de aconselhá-lo a ter paciência. É muito comum ouvir-se dizer da boca de políticos recém-instalados que a impaciência é contra-revolucionária. Talvez seja, talvez, mas eu inclino-me a pensar que, pelo contrário, muitas revoluções se perderam por demasiada paciência. Obviamente, nada tenho de pessoal contra a esperança, mas prefiro a impaciência. Já é tempo de que ela se note no mundo para que alguma coisa aprendam aqueles que preferem que nos alimentemos de esperanças. Ou de utopias.

José Saramago, "O caderno"

O eclipse visto pela ciência e pelos índios

Eclipse vem do grego e significa a ação de abandonar ou um desaparecimento.

Testemunhamos um eclipse lunar no dia 15 deste mês, com ápice na madrugada do dia 16. Ele me levou ao ano de 1961, quando, em 26 de agosto, meu companheiro Julio Cezar Melatti (hoje professor emérito da Universidade de Brasília) e eu — ambos na casa dos 20 anos — éramos iniciados no trabalho de pesquisa antropológica e sérios, mas inocentes, tentávamos compreender o estilo de vida de “índios” regionalmente chamados de gaviões, um grupo de língua jê timbira, na Amazônia paraense.




A Wikipédia informa que “o eclipse lunar de 26 de agosto de 1961 foi um eclipse parcial, o segundo e último de dois eclipses lunares do ano. Teve magnitude penumbral de 1,9330 e umbral de 0,9863. Duração total de 186 minutos. A Lua estava quase coberta pela sombra da Terra num eclipse parcial muito profundo, que durou três horas e seis minutos. Com 99% da Lua na sombra no eclipse máximo, foi um evento memorável. (...) Também coincidiu com o perigeu lunar, ponto mais próximo da Terra, deixando a Lua Cheia cerca de 14% maior e um pouco mais brilhante que no apogeu. Ou seja, o eclipse parcial se deu com uma superlua”.

Tal é a linguagem “científica” do fenômeno. Eis, entretanto, o que ouvi dos nativos e transcrevi no meu diário de campo:

— A outra grande experiência — escrevi — foi um eclipse da Lua. Já estávamos dormindo, quando fomos acordados por Pembkui, que, como toda a aldeia, dizia que Katire (Lua) havia morrido! Quando ela chegou na minha rede, falou em tom patético: “Lua morreu!”. Imediatamente me levantei e comentei com os homens que, ao que parece, esperavam minha opinião. Quando notaram que concordava, Apororenum e Kaututere saíram de casa e, ao lado dos outros, com achas de lenha cujas pontas estavam em brasa nas mãos, cantaram e oscilaram as achas incandescentes em direção à Lua. Eram canções que chamavam a Lua zangada Lua de volta — (hoje vou ver se tomo nota da letra); e, quando tudo acabou, Kaututere prometeu caçar para Katire muito porco, veado, anta e outros animais... Apororenum explicou que, se a Lua morrer, tudo morria, pois, no escuro, sem Sol e Lua, eles comeriam gravetos. O fogo não acenderia e não haveria caça, pois, sem luz, nós ficamos igual a Megaron (alma dos mortos). Hoje vou me aprofundar mais. O fato é que foi uma experiência fabulosa. Depois fomos dormir e de madrugada acordei novamente, desta vez com o maracá e a cantiga de Apororenum. Hoje vou caçar para Katire.

Eis, num texto telegráfico, duas visões de um eclipse e um exemplo de como o humano engloba tudo entre os “índios”.

Esse englobamento de Lua e Sol, bem como de estrelas, pelo cultural tem inspiração no trabalho de Viveiros de Castro, cuja obra tem posto no devido lugar a oposição entre natureza e cultura de modo antropológico — relativizando a dualidade que nós, ocidentais, exceto no plano religioso, tomamos como absoluta.

O notável na minha memória dessa extraordinária experiência foi descobrir que a Lua, como o Sol, tem dimensões humanas. A Lua zangada foi a causa do eclipse. E, conforme minhas pesquisas ulteriores entre os timbiras mostraram, Sol e Lua formam um par criativo do mundo.

Desde os anos 1930, quando um etnólogo alemão chamado Curt Nimuendajú viveu com os canelas do Maranhão e os apinayés do Tocantins, sabemos da polarização produtiva entre Sol e Lua, que, além de serem masculinos para eles, têm um elo parecido com o que temos com nossos doadores de mulheres, nossos afins: um elo que permite confiar e desconfiar.

Desse modo, Sol faz e Lua desfaz; mas, diferentemente das polarizações negativas, Lua também faz e Sol desfaz... Sol fez pessoas bonitas e saudáveis, Lua as fez feias e doentes. Quando Sol reclamou, Lua mostrou que um mundo sem diferenças seria um Universo vazio de sentido.

Sabemos que é impossível olhar para o Sol. Já a Lua tem fases. Com mais espaço, poderia facilmente ligar isso a nosso sistema político, cujo dualismo é ranzinza e traiçoeiro. Aqui, porém, temos um exemplo em que os opostos são necessários e positivos.
Roberto DaMatta

Chega de falar, é hora de agir

Guerra, recessão, fome, escassez de energia. Os temas das muitas rodadas de discussão no Fórum Econômico Mundial em Davos deram poucos motivos para otimismo. O mundo vive um momento crítico: politicamente, economicamente e socialmente.

As pessoas mais poderosas do planeta, reunidas nos Alpes suíços, concordam com isso. Mas não se resolve crises apenas com conversas. É claro que é necessário intercâmbio entre política, negócios e sociedade civil. É bom que haja diálogo. Mas o Fórum Econômico Mundial de 2022 deve ser o início da ação, e aqui estão os pontos mais urgentes:

Luc Vernimmen (Bélgica)
Os grãos da Ucrânia precisam voltar a ser exportados. Vinte milhões de toneladas de trigo estão apodrecendo em armazéns ucranianos. Os grãos são necessários para alimentar a população mundial. A Ucrânia fornece cerca de 28% do trigo comercializado no mundo, e a próxima colheita, apesar das difíceis circunstâncias atuais, já amadurece nos campos.

Trens e caminhões adicionais devem ser providenciados para transportá-lo. E o presidente russo, Vladimir Putin, precisa permitir essas exportações. Isso significa que uma pressão maior deve ser exercida sobre ele e seu regime. Se isso fracassar, milhões de pessoas em todo o mundo passarão fome ou até morrerão.

As sanções contra o agressor russo devem entrar em uma nova fase. As exportações da Rússia precisam ser massivamente dificultadas. Não deveria ser possível para o país continuar sua guerra de agressão enquanto se beneficia do aumento dos preços da energia.

O ministro da Economia alemão, Robert Habeck, quer limitar o preço do petróleo incentivando os países consumidores a formar um cartel global, o que atingiria duramente a Rússia. A ideia é boa. Afinal, não há problema de abastecimento, há simplesmente um problema de distribuição. Deve-se trabalhar imediatamente para definir como implementar isso. Sem mais longos debates, por favor.

A União Europeia precisa de um plano de contingência bem antes do início do inverno. A guerra na Ucrânia fez com que os preços da energia já extremamente altos em todo o mundo subissem ainda mais. Cada vez mais indivíduos não podem pagar suas contas de luz. As empresas estão tendo que reduzir a produção. A Europa pode sofrer apagões no próximo inverno. Cortes de energia longos e generalizados afetariam toda a infraestrutura crítica – saúde, telecomunicações, abastecimento de água, apenas para citar alguns.

Uma potencial recessão deve ser combatida com uma intervenção estatal inteligente. Em Davos, a chefe do FMI, Kristalina Georgieva, chocou os participantes ao relatar que as perspectivas de crescimento de 143 de seus países-membros haviam sido rebaixadas. Menos crescimento significa menos bem-estar. A guerra na Ucrânia, o dólar em alta e o encolhimento da economia da China devido à pandemia são as principais causas.

E agora, como seguir? O pior a se fazer é esperar a recessão chegar, é preciso combatê-la logo no início! Com cortes nos impostos, programas estaduais de apoio à proteção climática ou investimento em infraestrutura digital. Economizar agora é o caminho errado.

Um Plano Marshall para a Ucrânia deve ser elaborado e implementado rapidamente. Cidades estão destruídas, assim como infraestruturas importantes. Ninguém sabe quanto tempo a guerra vai durar. Mas o futuro do país deve ser garantido agora. Com investimentos em reconstrução, construção de novas casas e vias de transporte.

Não deve haver qualquer hesitação. Porque a Ucrânia precisa dessa ajuda agora, e a população precisa de perspectivas para o futuro. A luta deles contra o agressor russo é também uma luta a favor dos valores ocidentais, da democracia e do direito à autodeterminação dos Estados soberanos.

Que bom que alguns cenários de crise foram discutidos no Fórum Econômico Mundial. E que bom que políticos, empresários e todos os outros têm condições agora de agir rapidamente. Se não o fizerem, o mundo mergulhará em sua pior crise desde a Segunda Guerra Mundial.
Manuela Kasper-Claridge

Faltavam apenas as câmaras de gás

Ao longo da trajetória do Judeus pela Democracia, desde o fatídico e recorrentemente lembrado dia da palestra de Bolsonaro na Hebraica-RJ (quando estávamos do lado de fora protestando), sempre que nos manifestamos sobre a aproximação do presidente e do governo com ideologias nazifascistas, vemos reações diferentes.

Por um lado, os mais cautelosos e os apoiadores do governo nos acusam de assimetria, de estarmos fazendo comparações com o incomparável. Dizem que os horrores perpetrados por Bolsonaro não se aproximam do que os nazistas fizeram. Nos perguntam: “se Bolsonaro é nazista, onde estão as câmaras de gás?”

Por outro lado, os opositores do governo por vezes exageram nas comparações, dizendo que Bolsonaro é até pior do que Hitler. E muitas vezes arrematam: “faltam apenas as câmaras de gás”.

O que aconteceu esta semana em Sergipe, quando agentes da Polícia Rodoviária Federal mataram Genivaldo de Jesus Santos (negro, pobre e com transtornos mentais) sufocado responde, mais literalmente do que simbolicamente, as aspas acima: as câmaras de gás já se fazem presentes.

As câmaras de gás como ferramenta da indústria da morte foram implementadas pelo governo nazista alemão nos chamados Campos de Extermínio. Elas tinham o intuito de acelerar as execuções e, ao mesmo tempo, economizar recursos gastos com munição. As câmaras, que inicialmente funcionavam canalizando o escapamento de veículos para sufocar as vítimas com monóxido de carbono e depois passaram a usar um pesticida chamado “Zyklon B”, foram a causa da morte, apenas em Auschwitz, de cerca de 1 milhão de judeus, mais dezenas de milhares de ciganos e prisioneiros de guerra soviéticos. Belzec, Sobibor e Treblinka foram outros campos que também utilizaram câmaras de gás, nos quais estima-se que mais 2 milhões de judeus tenham sido mortos.


É por conta do uso de uma espécie de câmara de gás pela Polícia Rodoviária Federal, que o assassinato de Genivaldo nesta quarta-feira em Sergipe carrega um simbolismo tão forte. A tortura, o sufocamento e finalmente a execução, escancaram um discurso que o presidente incorporou desde antes de subir ao poder: a banalização da morte de alguns – daqueles que valem menos, que não se encaixam na mentalidade eugenista, seletiva e preconceituosa deste governo. Cabe lembrar que os primeiros mortos pelo regime nazista foram, precisamente, as pessoas com deficiência.

Pode-se argumentar sobre o caráter genocida intencional ou não do governo brasileiro. Mas o fato é que os nossos atuais mandatários têm simpatia pela morte, sobretudo daqueles que, na visão deles, não agregam – ou atrapalham – à sociedade.

A pandemia da Covid-19 acelerou a rotina de morte e evidenciou essa simpatia. Os membros do governo que manifestaram alguma solidariedade às vítimas foram escanteados e/ou perderam seus cargos. E, enquanto a doença matava 10, 100, 300, 600 mil brasileiros – indígenas e os mais pobres em uma proporção maior – Bolsonaro debochava da “gripezinha” e vociferava contra aqueles que tentavam de alguma forma proteger as suas populações.

Com o arrefecimento da letalidade da pandemia veio à tona uma outra ferramenta de massacre, já conhecida pelos mais pobres e mais frágeis e potencializada pelo sentimento bolsonarista: a truculência assassina da polícia.

A violência da polícia, sobretudo contra determinados grupos, não é novidade no Brasil. É comum lermos que “temos a polícia que mais mata e a que mais morre”. A prática de assassinatos injustificados e em situações mal explicadas e misteriosas sempre ocorreu. A diferença, perigosíssima, vem do discurso decorrente. E no discurso também reside o fascismo.

No último ano vimos a perpetração dos dois maiores massacres da história da polícia no Rio de Janeiro: a chacina do Jacarezinho, que matou 28 pessoas e o massacre do começo desta semana na Vila Cruzeiro, cuja contagem de corpos, até o momento, chega aos 26 (esta segunda com a participação, não apenas da Polícia Militar, mas também da Polícia Rodoviária Federal – a mesma que matou Genivaldo sufocado).

Independente do contexto, quando mais de 50 pessoas, cidadãos brasileiros, morrem pelas mãos da polícia, a utilização do termo “confronto” é inverossímil. Trata-se de massacres.

Quanto aos discursos decorrentes, eles mostram o incentivo assustador e o prazer sádico, por parte de Bolsonaro, seu governo e seus seguidores, ao que vem ocorrendo. Bolsonaro comemora, celebra a ação dos policiais, chama todos os mortos de bandidos e merecedores do destino que tiveram. Nas redes sociais os seguidores do presidente esbravejam, chamam de “defensores de bandido” aqueles que lamentam a ação policial, celebram os “CPFs cancelados”, vibram com o sangue derramado e dizem que Bolsonaro é um macho patriota limpando o país, defendendo a família e os valores de Deus. É esta a diferença. Este é o discurso que evidencia que estamos sob comando de fascistas.

O constante ufanismo, o nacionalismo falso e hipócrita, o desdém claro por direitos humanos, a idolatria aos militares – sobretudo quando eles matam – geralmente associada ao culto à masculinidade, são o fascismo. E, neste sentido, a polícia é alçada ao mesmo tempo a protagonista e a bode expiatório, sendo o músculo executor, o órgão que transforma as ideias do fascismo em ações fascistas.

A manipulação através dos grupos de Whatsapp, Telegram, Facebook convence os apoiadores, a proximidade bizarra entre o governo assassino e valores religiosos aproxima os crentes desiludidos e desavisados. Os ataques àqueles que tentam defender minorias esquecidas e o desprezo por nossos artistas e intelectuais (como fez o ex-Secretário da Cultura, Roberto Alvim, de forma explícita em sua alegoria de Goebbels com Wagner) traz regozijo, e o discurso demagógico anticorrupção, enquanto vemos evidências claras de corrupção eclodindo quase que diariamente, ilude. Isso é, na essência mais pura, o fascismo.

O intuito deste artigo não é chamar a polícia de fascista. Pelo contrário. As forças policiais e de segurança pública têm a missão de servir e proteger a população. No entanto, infelizmente, estas forças policiais são o reflexo de uma cultura que desumaniza, e hoje servem, sim, a um líder fascista. E precisam entender que estão sendo usadas por este líder para promover o genocídio do pobre, do negro, do indígena.

Temos a certeza de que tiraremos Bolsonaro do poder nas eleições de outubro. Mas, infelizmente, acabar com a ideologia fascista que ele ajudou a plantar será muito mais difícil.