quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Pensamento do Dia

 

Allan McDonald

O futuro

Certa feita, Astrud Gilberto, João Donato e eu vínhamos de um estúdio de gravação, em Nova Iorque, quando passando por uma rua vimos uma cigana num sobrado e resolvemos consultá-la. Donato foi o primeiro a sentar-se frente a ela que, tomando-lhe a mão, disse: "Vou ler o seu passado." E Donato, com aquele ar perdido e olhar esgazeado, retrucou: "Não, gipsy, o passado eu já conheço. Fale do futuro." Desconcertada, a cigana voltou-se para nós e confidenciou: "Ele é maluco..." Claro. Só a loucura poderia ser tão lúcida. De uma tacada, Donato descartara o passado. Quantos, para exorcizá-lo, necessitam recorrer à psicanálise ou mesmo às autobiografias...

Vinícius de Moraes, pouco tempo antes de morrer, estava num bar - o Barbas - sendo entrevistado por uma jovem e inconsequente jornalista que, enquanto "dava um tapa num baseado", perguntou-lhe: "Poeta, você está com medo da morte?" No que Vinícius, indiferente ao constrangimento geral que se fez à sua volta, respondeu, serenamente: "Não, filhinha, estou é com saudade da vida..."


Conceitos como passado, saudade, levam a intermináveis reflexões. Por exemplo, o que o poeta teria querido dizer com "saudade da vida"? Acredito que não se referisse a “toda a vida", mas sim à vida como um todo. Concordo que tudo que já aconteceu, na vida, serviu como aprendizado, acrescentou, valeu. Mas, nem sempre, tudo foi gratificante. Nesse caso, para mim, ter saudade de alguma coisa ou de alguém é, exatamente, de como essa coisa ou essa pessoa ficou na nossa memória. E, nesse sentido, mais uma vez, a palavra saudade representa uma contribuição enriquecedora de nosso idioma. Porque, no meu entender, saudade pode até ser triste, mas nunca melancólica como sua contrapartida internacional, a nostalgia. Esta, ainda que provoque emoções, sempre me deixa um gosto de algo incompleto, inacabado ou que não se encaixa, como já o fez em outros tempos. Feito aquelas músicas, filmes ou amores antigos que, por mais que os tenhamos apreciado, sempre se ressentem ante uma revisão.

Assim é que tenho saudades de Vinícius e da época áurea da Bossa Nova. Mas é a nostalgia que me bate quando lembro do Brasil nos anos 60, o que poderia ter sido e não foi. E afinal, por melhores recordações que tenha de minha adolescência e juventude, nunca aceitaria nenhum acordo que me fizesse voltar àquela época a não ser que pudesse carregar comigo todo o cabedal de experiência acumulado até hoje. Posso até sentir saudade do que já fui, mas não me arrependo de não ser mais.

É comum, nos colégios, que os professores solicitem pesquisas de seus alunos, o que leva a garotada a sair por aí, de gravador em punho, entrevistando, sobretudo, artistas e intelectuais, sobre os mais diversos assuntos. Recentemente, um desses grupos invadiu meu ateliê para pesquisar-me - como era de esperar - sobre Bossa Nova, Música Popular Brasileira e tal. Foi quando uma menina, de enormes olhos castanhos, quis saber: "Carlos, como era no teu tempo?" Apanhado assim de surpresa, na hora respondi qualquer coisa, como: "Antes, preciso saber o que é o meu tempo." Não adiantava nem querer bancar o moderninho, porque o máximo que iria conseguir daqueles garotos era que me vissem como um "coroa legal". Seja lá o que tenha eu declarado, não pude dar àqueles enormes olhos castanhos uma resposta que eu sequer tinha para mim mesmo. Para começar, não só o meu tempo como o próprio conceito de tempo em si também pede reflexão.

Mais tarde, meditando sobre o assunto, veio-me à cabeça o filósofo Henri Bergson que, além de ter afirmado que o tempo é relativo, achava também que tempo é duração. Lembrei-me ainda - e mais uma vez - do poeta Vinícius de Moraes que parece concordar com isso, quando preconiza que o amor "...não seja imortal, posto que é chama mas que seja infinito enquanto dure". Marcel Proust (que foi aluno de Bergson) achava que o futuro nada mais é do que o passado projetado para diante. Como devo, então, pensar ou calcular meu tempo? Como tempo mecânico, contável, em horas, minutos, segundos? Ou o tempo como ele é percebido pelos meus sentidos? Em tempo contável, meu passado contém uma mala cheia. Devo, por isso, pensar que o meu tempo é o passado? Não sei. Em termos mais dinâmicos, seria melhor que fosse o presente, com seu dia a dia renovador. Mas o presente dura pouco, é muito rápido, vertiginoso. Quando a gente olha, já é passado. E o passado já passou. O que resta, afinal? Como perspectiva, só mesmo o futuro.

Então é isso. Já tenho a resposta para quando reencontrar a menina dos olhos castanhos: meu tempo é o futuro. Até lá, pois.
Carlos Lyra

Morte na obra

Junto ao tapume da construção, formara-se um grupo de populares, falando pouco, em voz baixa. A obra parara. Mas, das imediações, vinha o mesmo ruído de serra e de elevador transportando material, em outras obras que nada tinham com o caso.

O caso era de Sebastião Raimundo (como informou em três linhas, na manhã seguinte, o jornal), que trabalhava no sétimo andar e, descuidando-se, caíra ao solo. Aí viveu ainda o tempo necessário para que o telefone mais próximo chamasse a Assistência, e a ambulância chegasse, verificando o óbito. Como não havia mais nada a fazer, deixou-se o corpo na mesma posição à espera de outro veículo, que o transportasse ao necrotério. Algumas horas depois, era removido.

No intervalo, curiosos procuravam ver, e não viam. O rapaz tombara dentro da área da construção, e a portinhola do tapume estava cerrada. Apenas, pelas frinchas, podia distinguir-se um trecho de cadáver, e logo depois nem isso, pois ele foi recoberto com um lençol tirado ao barracão dos trabalhadores, junto à obra. Acenderam-se as velas de costume.

Os comentários na calçada eram vagos, nem havia muita substância para eles. O acontecimento fora dos mais simples: falta de cinto de segurança. Somente, como entre o morto e os vivos se levantava um muro de madeira, o primeiro adquiriu um halo de mistério, que a exposição crua não sustentaria. E os olhos queriam ver, porque essa é a função dos olhos, sem embargo da pena que causava a morte do rapaz, ou mesmo servindo à pena, que costuma nutrir-se de visões.

Alguns se quedavam sempre, ora colando o rosto às tábuas, ora contemplando a ossatura do prédio e imaginando as circunstâncias da queda. Outros, ao fim de minutos, mostravam-se menos pacientes, e seguiam a seu destino, mas havia os que voltavam, pensando melhor. Eram velhos cobradores de associações de caridade, porteiros, lavadores de carro, entregadores de pão, crianças. E, ainda, pequeno-burgueses que aguardavam lotação. Moças de maiô, que desciam para o mar, detinham-se um instante, indagavam, iam entristecer, mas os companheiros as chamavam, insofridos, depois de verificarem por sua vez que não havia nada a observar. Nada: a não ser o tapume pintado, com a tabuleta da firma, e uma notícia de morte, que se perdia entre as solicitações da manhã.

Transeuntes cismam longamente diante de dois automóveis amassados na rua, com traços de sangue, ou sem isso; a ideia de desastre os fascina, e a de morte lhes desperta sentimentos que dormitavam sob a necessidade de viver; diante dos ferros retorcidos, registram a proximidade de perigos que os roçaram com a asa, mas que, caprichosamente, foram escolher outras vítimas. Aqui, porém, não há objeto visível. Compete à imaginação trabalhar mais, para criar a simpatia e o terror, que interrompem o curso monótono das coisas, e nos restituem a nós mesmos, tornando-nos conscientes e solidários com o mundo.

É preciso que alguém desabe do alto, para que operem essas forças profundas. Não conhecíamos a pessoa, e amanhã já a teremos esquecido, mas nesse instante em que tomamos conhecimento de seu risco no ar, também morremos um pouco e nos vemos estatelados, à espera do lençol e da vela acesa. À noite, chegando em casa, contamos: Imagina, vi um homem morto na rua. E assim, espraiando-se em círculos por uma porção de casas, à hora do balanço do dia, essa morte rigorosamente anônima se presta, por isso mesmo, a criar em nós a impressão pessoal de morte, em que se condensam outras experiências mais diretas, antigas e abandonadas; em que entra o pressentimento de experiências futuras, para as quais instintivamente nos preparamos. Tudo isso demora um minuto, ou pouco mais, de silêncio, mas conta.

A obra não podia ficar suspensa indefinidamente, e logo recomeçou, arrastada. Os trabalhadores viam lá embaixo a superfície alva, formando pequenas elevações. Tocou a sineta para o almoço. Foram descendo e passando a pequena distância do corpo, olhando-o de banda. Pegaram das marmitas e comeram, calados.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"

Jamais discorde

Meu velho mentor, o brasilianista Richard Moneygrand, está no Brasil (ele adora nosso Natal carnavalesco) e assistiu à sabatina dos ilustres Flávio Dino e Paulo Gonet.

Quando nos vimos, o famoso brasilianista foi logo dizendo como a sabatina era um ritual fora do lugar no Brasil — especialmente entre integrantes da elite política. Perguntei: “por quê?”. E o professor foi claro:

— Ora— observou sério, sorvendo meu uísque —, vocês são adestrados para jamais discordar ou dizer não. Exceto, claro, para os inferiores... Aliás, foi você mesmo quem me informou sobre o assunto quando contou que um de seus mais penosos aprendizados foi não revelar suas opiniões franca e abertamente, correndo o risco de desagradar ao superior, promovendo o dissídio, a crítica ou a negação de uma ordem social estrutural e inconscientemente escravocrata.

Nela, concordar combina com harmonizar, com entender, com “estar junto” e com obedecer, que é sua dimensão oculta mais importante. Conciliação, como você bem sabe, é um elemento básico na história social do Brasil. Evitar extremos porque, afinal, a virtude está no meio, conforme dizia Sérgio Buarque de Holanda, citando o poeta quinhentista português Francisco Sá de Miranda.

Ficar em cima do muro, esperar sentado, fechar o bico, morder a língua, saber-se inoportuno ou inferior é uma virtude nacional prezada e admirada. Com ela, ganham-se prestígio e poder porque, afinal de contas, a conciliação adia questões cruciais, deixando o problema para outra administração.


— Num mundo tão complicado — concluiu Moneygrand —, acho conciliar razoável. Afinal, é melhor harmonizar do que terrorismo e guerra...

Durante as dez horas de sabatina, meu antigo mentor e eu víamos poucos confrontos sobre temas básicos — como as convicções éticas, respondidas, aliás, com brilho por Flávio Dino, levando meu mestre a comentar que o ministro, afinal, havia entendido bem que somos responsáveis pelos papéis que desempenhamos, mas somos igualmente devedores morais dos encargos devidos a nossos cargos. Não entender isso é destruir a ordem, gerando o caos, como ocorreu no governo Bolsonaro.

No mais, ouvi o estrangeiro amigo chamar minha atenção para nossa dificuldade cultural de isolar a mesa e os sabatinados, muitas vezes interrompidos seja pelos serviçais que, como humildes papagaios de pirata, circulavam à volta deles, seja por colegas que, brasileiramente, falavam com o presidente do ritual, revelando que as normas variam de acordo com o nível de conhecimento e amizade.

Moneygrand repetia: veja como você tem razão. No Brasil, há enorme dificuldade de isolar pessoas como exige o ritual. Vossa índole relacional e hierárquica tende a impedir a separação, mesmo num ritual tão importante quanto essa sabatina que certamente — completou — dará a Lula da Silva um tribunal superior domesticado.

Discordei inutilmente porque não podia deixar de enxergar nossa dificuldade cultural de discordar e confrontar. Imediatamente, pensei no imenso problema de resolver legalmente as várias situações decorrentes da escravidão, ainda cravadas em nossas veias e corações.

Ao término da sabatina, estávamos sabatinados de cordialidade formal. Tínhamos testemunhado mais uma batalha entre “inimigos íntimos” — de uma elite de irmãos siameses. Poderosa e dura de roer como afirmou Moneygrand, terminando meu estoque de uísque...

Hoje, vivemos o alívio do pós-confronto de “donos do poder”, que, afinal de contas e graças ao bom Deus, concordam em discordar e domesticam as feras da mudança que, sabemos bem, jamais serão capazes de triunfar sobre o mau gosto de discordar.

'Passei com meus filhos por explosões e cadáveres em decomposição'

Saímos com muita pressa. Estávamos assando pão e percebemos que as casas à nossa frente estavam sendo bombardeadas, uma por uma. Eu sabia que em breve seria a nossa vez. Tínhamos arrumado algumas malas para o caso de isso acontecer, mas tudo estava tão apressado que esquecemos de levá-las. Nem fechamos a porta da frente.

Tínhamos esperado para partir porque não queríamos mudar meus pais idosos e levamos anos para economizar para construir nossa casa em al-Zeitoun, mas no final tivemos que ir. Meu filho, Omar, morreu lá em novembro de 2012, quando estilhaços atingiram nossa casa em outra guerra com Israel e eu não podia arriscar perder mais filhos.

Eu sabia que no sul não havia eletricidade, nem água e as pessoas tinham de fazer fila durante horas para usar uma casa de banho. Mas no final, pegando apenas uma garrafa de água e algumas sobras de pão, juntámo-nos a milhares de outros que faziam a perigosa viagem pela estrada de Salah al-Din em direção ao sul, onde Israel dizia ser seguro.

Muitos membros da minha família caminharam juntos – minha esposa Ahlam, nossos quatro filhos, de dois, oito, nove e 14 anos, meus pais, irmãos, irmãs, primos e seus filhos.

Caminhamos durante horas e sabíamos que eventualmente teríamos que passar por um posto de controle israelense que foi montado durante a guerra. Estávamos nervosos e meus filhos perguntavam: “O que o exército fará conosco?”

Paramos a cerca de 1 km do posto de controle e nos juntamos a uma enorme fila de pessoas que enchia toda a estrada. Passamos mais de quatro horas esperando lá e meu pai desmaiou três vezes.

Havia soldados israelenses nos observando de prédios bombardeados de um lado da estrada e mais soldados em um terreno baldio do outro lado.

À medida que nos aproximávamos do posto de controle, vimos mais soldados acima de nós, numa tenda numa colina. Achamos que eles administraram o posto de controle remotamente de lá, nos observando através de binóculos e usando alto-falantes para nos dizer o que fazer.

Havia dois contêineres abertos perto da tenda. Todos os homens tiveram que passar por um e as mulheres pelo outro, com câmeras constantemente apontadas para nós. Depois de passarmos, os soldados israelenses pediram para ver nossas identidades e fomos fotografados.

Vi cerca de 50 pessoas detidas, todos homens, incluindo dois dos meus vizinhos. Um jovem foi detido porque tinha perdido os seus documentos e não conseguia lembrar-se do seu número de identificação. Outro homem ao meu lado na fila foi chamado de terrorista por um soldado israelense, antes de também ser levado embora.

Eles foram instruídos a ficar apenas de cueca e sentar no chão. Posteriormente, alguns foram convidados a se vestir e ir embora, enquanto outros foram vendados.

Vi quatro detidos vendados, incluindo os meus vizinhos, levados para trás de uma colina de areia perto de um edifício demolido. Quando eles estavam fora de vista, ouvimos tiros. Não tenho ideia se eles foram baleados ou não.

Separadamente, outras pessoas que fizeram a mesma viagem que eu foram contatadas por um colega meu no Cairo. Um deles, Kamal Aljojo, disse que logo depois de passar pelo posto de controle, uma semana antes, viu cadáveres, mas não sabia como haviam morrido.

O meu colega também falou com um homem chamado Muhammed que passou pelo mesmo posto de controlo no dia 13 de Novembro. “Um soldado me pediu para tirar todas as minhas roupas, até mesmo a roupa de baixo”, disse Muhammed à BBC. Ele acrescentou: "Eu estava nu na frente de todos que passavam. Fiquei com vergonha. De repente, uma soldado apontou a arma para mim e riu antes de afastá-la rapidamente. Fiquei humilhado." Muhammed disse que teve que esperar nu por cerca de duas horas antes de poder sair.

Embora minha esposa, meus filhos, meus pais e eu tenhamos passado pelo posto de controle com segurança, dois de meus irmãos se atrasaram.

Enquanto esperávamos por eles, um soldado israelense gritou com um grupo de pessoas à nossa frente que tentava voltar em direção aos contêineres para ver como estavam seus parentes, que haviam sido detidos.

Ele usou um alto-falante para dizer-lhes que seguissem em frente e ficassem a pelo menos 300 metros de distância, então um soldado começou a atirar para o alto em sua direção para intimidá-los. Ouvimos muitos tiros enquanto estávamos na fila.

Todos choravam e minha mãe soluçava: "O que aconteceu com meus filhos? Eles atiraram neles?"


Depois de mais de uma hora, meus irmãos finalmente apareceram.

As Forças de Defesa de Israel (IDF) disseram à BBC que “indivíduos suspeitos de afiliação a organizações terroristas” foram detidos para inquéritos preliminares e, se permanecessem suspeitos, foram transferidos para Israel para interrogatórios adicionais. Outros foram “imediatamente libertados”, disse.

Ele disse que as roupas tiveram que ser removidas para verificar se havia coletes explosivos ou outras armas e que os detidos foram vestidos o mais rápido possível. Afirmou que não pretendia “minar a segurança e a dignidade dos detidos” e que as FDI “operam de acordo com o direito internacional”.

As IDF também disseram que "não disparam contra civis que se deslocam ao longo do corredor humanitário de norte a sul", mas quando jovens tentaram mover-se na direcção oposta, "foram recebidos com tiros para fins de dispersão, depois de terem sido disse por meio de um alto-falante para não avançar em direção à posição das tropas e continuou a fazê-lo".

Acrescentou que o som de tiros era comum e “o som de tiros por si só não constitui uma indicação de tiro de um local específico ou de um determinado tipo”.

Minha esposa e eu ficamos aliviados quando seguimos em frente e o posto de controle desapareceu de vista atrás de nós, mas não tínhamos ideia de que a parte mais difícil da viagem ainda estava por vir.

À medida que caminhávamos mais para sul, vi cerca de 10 corpos em diferentes locais à beira da estrada.

Outras partes espalhadas e apodrecidas do corpo estavam cobertas de moscas e pássaros bicando os restos mortais. Eles exalavam um dos cheiros mais desagradáveis ​​que já experimentei.

Eu não suportava a ideia de meus filhos os verem, então gritei a plenos pulmões, dizendo-lhes para olharem para o céu e continuarem andando.

Eu vi um carro queimado com uma cabeça humana decepada dentro. As mãos do cadáver apodrecido e sem cabeça ainda seguravam o volante.

Havia também corpos de burros e cavalos mortos, alguns reduzidos a esqueletos, e enormes pilhas de lixo e comida estragada.

Então um tanque israelense apareceu numa estrada secundária, vindo em nossa direção a uma velocidade vertiginosa. Ficamos assustados e para fugir tivemos que atropelar cadáveres. Algumas pessoas na multidão tropeçaram nos corpos. O tanque mudou de rumo cerca de 20 metros antes de chegar à estrada principal.

De repente, próximo à estrada, um prédio foi bombardeado. A explosão foi assustadora e estilhaços voaram por toda parte.

Eu queria que o mundo nos engolisse.

Estávamos abalados e exaustos, mas seguimos em direção ao acampamento Nuseirat. Chegamos lá à noite e tivemos que dormir na calçada. Estava congelando.

Colocamos minha jaqueta em volta dos filhos do meio, enfiando as mãos nas mangas para tentar mantê-los aquecidos. Cobrimos nosso filho mais novo com minha camisa. Nunca senti tanto frio em toda a minha vida.

Quando a BBC perguntou sobre o tanque e os corpos, as IDF disseram que "durante o dia, os tanques se movem em rotas que se cruzam com a estrada Salah al-Din, mas não houve nenhum caso em que os tanques se moveram em direção a civis que se deslocavam de norte a sul da Faixa de Gaza no corredor humanitário".

As IDF disseram não ter conhecimento de nenhum caso de pilhas de cadáveres na estrada Salah al-Din, mas houve momentos em que os veículos de Gaza "abandonaram corpos durante a viagem, que as IDF posteriormente evacuaram".

Na manhã seguinte partimos cedo para Khan Younis, a segunda maior cidade de Gaza. Pagamos alguém para nos levar parte do caminho em uma carroça puxada por um burro. Depois, em Deir al-Balah, pegamos um ônibus que deveria transportar apenas 20 pessoas, mas embarcaram 30 pessoas. Alguns sentavam-se no telhado e outros agarravam-se às portas e janelas pelo lado de fora.

Em Khan Younis, tentámos encontrar um lugar seguro para ficar numa escola gerida pela ONU que tinha sido transformada num abrigo, mas estava cheia. Acabamos alugando um armazém embaixo de um prédio residencial e ficamos lá por uma semana.

Os meus pais, irmão e irmãs decidiram ficar em Khan Younis, mas depois do mercado local ter sido bombardeado, a minha mulher e eu decidimos levar os nossos filhos mais para sul, para Rafah, para ficarmos com a família dela. Eles conseguiram uma carona em um carro e eu me juntei a eles mais tarde de ônibus, mas estava tão cheio que tive que me segurar do lado de fora da porta.

Agora estamos alugando um pequeno anexo com telhado de lata e plástico. Não há nada que nos proteja da queda de estilhaços.

Tudo é caro e não conseguimos muitas das coisas que precisamos. Se quisermos água potável, temos que fazer fila durante três horas e não temos comida suficiente para três refeições por dia, por isso não almoçamos mais, apenas pequeno-almoço e jantar.

Meu filho comia um ovo todos os dias. Um ovo - você pode imaginar? Não posso nem dar isso a ele agora. Tudo o que quero é sair de Gaza e estar seguro com os meus filhos, mesmo que isso signifique viver numa tenda.