quinta-feira, 18 de julho de 2024

Pensamento do Dia

 


Era uma vez na América

Diante das imagens que nos chegam de Milwaukee, nos EUA, dando Donald Trump como já vitorioso nas eleições americanas, parece que logo veremos o fim da maior democracia do mundo. Não, não é um alarmismo simplório. Elas estão me fazendo perguntar se, por todos esses séculos, convivemos mesmo com a maior democracia do mundo ou com uma ilusão fabricada pelos próprios americanos.

O que significavam aqueles filmes de julgamento, em que a razão sempre triunfava sobre o obscurantismo e a mentira? Vide o jurado feito por Henry Fonda em "Doze Homens e uma Sentença" (1957), o velho professor por James Stewart em "Festim Diabólico" (1948), o advogado por Spencer Tracy em "O Vento Será Tua Herança" (1960) e muitos outros. Eram homens adultos, justos, lúcidos —pode-se imaginá-los em Milwaukee de chapéu de vaqueiro e apito na boca? Eram ficção ou tinham correspondentes na vida real?Duke Ellington e Cole Porter estariam em Milwaukee? E Billie Holiday e Judy Garland? Bette Davis, Lauren Bacall, Jane Fonda? Fred Astaire, Cary Grant, Humphrey Bogart? Edgar Allan Poe, Mark Twain, Dorothy Parker? Não sei a filiação política da maioria deles, nem importa. Eram pessoas que admirávamos não só pelo talento, mas pela sensação de inteireza que transpiravam. Sabemos que existiram. Mas seriam amostras reais dos EUA ou uma casta, talvez até fabricada?

A dúvida agora é se, algum dia, os próprios EUA existiram. Ou se os EUA reais não seriam aquilo que Nova York e Los Angeles chamam de F.O.T, "flying over territory", o território que só serve para se passar por cima, de avião. O que nós, brasileiros, sabemos da gente que vive nesse imenso F.O.T. e que, pelo visto, está em massa em Milwaukee, apaixonada por Trump?

Eu me pergunto também se muitos americanos não se estarão fazendo essa mesma pergunta e suspeitando de que, até agora, viviam numa América do era uma vez.

Sexualidade na política brasileira

A política brasileira está cada vez mais colorida pela sexualidade. Quer seja o ex-presidente Jair Bolsonaro ou o progressista Lula da Silva, ambos medem frequentemente a sua força política com linguagem sexual. Na extrema direita, Bolsonaro cunhou o termo imbrochável . Foi o grito que ele soltou em discurso em praça pública enquanto beijava sua mulher, a evangélica Michelle , e perguntava se ele alguma vez havia falhado com ela.


Segundo o dicionário Michaelis, “brochar” significa “perder a potência sexual”, mostrar-se incapaz de satisfazer uma mulher. Em sentido figurado também significa “parecer desanimado”. Essa palavra imbrochável no sentido sexual é aquela que Bolsonaro cunhou numa moeda que oferece às personalidades que o visitam. A ocasião mais recente foi a visita do presidente argentino Javier Milei. O presidente participou de um evento público a favor de Bolsonaro sem se encontrar com o presidente Lula.

Ao entregar a medalha de imbrochável a Milei, ele entendeu muito bem e até fez a brincadeira de mexer as nádegas. É verdade que agora alguém avisou a Bolsonaro que esta comparação sexual também pode indicar que ele não cederá politicamente, que continuará a sua luta mesmo que acabe na prisão. Quer continuar sendo a bandeira da extrema direita no Brasil, já ligada à extrema direita global.

Curiosamente, também o esquerdista Lula, que pela terceira vez preside os destinos do Brasil, usa da margem oposta o símbolo sexual do “cortiço” para indicar a sua força política. Ele deixou isso explícito quando se falava que teria mais de 80 anos em 2026, quando tentará se candidatar novamente. Ele explicou que, apesar da idade, tem “uma tenacidade”, aludindo à força sexual de um jovem de 20 anos e ainda brincou dizendo: “Pergunte à minha mulher, Janja ”.

Sempre se soube da força que a sexualidade teve na cultura brasileira, fundamentalmente sensual pela sua história e costumes. Basta lembrar dos carnavais, os mais ousados sexualmente do mundo. Lembro-me de um artigo que Mario Vargas Llosa escreveu neste jornal após ter participado de um desfile de carnaval na Avenida Copacabana, no Rio de Janeiro. “A questão é, Juan”, ele me disse, “eles fizeram sexo ao ar livre lá”.

O curioso é que essa liberdade sexual que caracteriza a sociedade brasileira está contaminando a linguagem da política, tanto de direita quanto de esquerda. E a direita usa-o como coringa para defender os valores mais conservadores, a tal ponto que hoje a maioria das mulheres vota pela direita e a maioria dos cidadãos já está contra o aborto e contra a legalização de pequenas drogas.

Leonardo Avitzer, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, escreveu que “o que está acontecendo não é que os brasileiros sejam hoje mais conservadores no campo moral, mas que eles se identificam cada vez mais com a direita”. Se no passado a questão da liberdade sexual era atribuída sobretudo à esquerda, depois da chegada de Bolsonaro com sua linguagem mal-humorada ela também é contaminada pela até ontem modesta direita, que segundo o bolsonarismo tem que ser aquele imbrochável , enquanto a esquerda acredita que para governar bem não é preciso ser jovem, mas sim ter vigor sexual.

Tudo isso às vésperas das eleições municipais do próximo mês de outubro, que estão sendo consideradas tanto um teste para as eleições presidenciais de 2026, já que nestas eleições municipais Lula e Bolsonaro voltarão a medir a sua força eleitoral nas urnas, e elas servirão de enquete para medir a envergadura atual da esquerda e da direita.

Para Lula, as eleições para prefeito em todo o país serão tão importantes que ele chegou a criticar seus ministros por “viajarem demais” ao exterior em vez de colocarem todos os esforços na conquista de votos para a esquerda, essencial para começar a traçar o próximo mandato presidencial. Eleições que serão decisivas para saber se o Brasil se inclina para a modernidade que está mudando o mundo ou opta por permanecer enclausurado nas cavernas da direita bolsonarista que se considera imbrochável.

'Resgatar os animais do Pantanal é salvar o futuro'

Em uma manhã de sol forte no fim de junho, profissionais especializados em resgate de animais andaram 12 quilômetros pelo Pantanal atingido por incêndios na região de Corumbá (MS). Duas horas após o início da caminhada em meio à fuligem e vegetação queimada, encontraram um grupo de macacos bugios com filhotes no alto de um ipê-roxo.

"A árvore pegou fogo, mas eles estavam bem no topo e se salvaram. Praticamente não tinham comida e nem se moviam", relatou a médica-veterinária Paula Helena Santa Rita.

Santa Rita ficou feliz ao encontrar os animais vivos. Mas logo sentiu um desespero: como conseguiria ajudar aqueles animais ariscos? Situações como essa tornaram-se rotina na vida da médica-veterinária, bióloga e professora da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Ela é coordenadora operacional do Grupo de Resgate Técnico Animal Cerrado Pantanal (Gretap).

Vinculado ao governo do Mato Grosso do Sul, o Gretap é formado por órgãos governamentais, instituições privadas e entidades do terceiro setor. Surgiu em 2020, quando o Pantanal sofreu com os maiores incêndios de sua história e pelo menos 17 milhões de animais morreram. Desde então o grupo vem salvando a fauna.

Em maio, a equipe forjada no fogo teve um novo desafio. Foi chamada pelo governo do Rio Grande do Sul para atuar no resgate de animais nas inundações que assolaram o estado. Em 18 dias, os sete membros do grupo que atuaram em solo gaúcho socorreram, atenderam, vacinaram ou deram comida para cerca de 5 mil animais, principalmente cães e gatos.

Voltaram do Sul com uma cuia de chimarrão e dez quilos de erva-mate, presente dos gaúchos. Chegaram em Mato Grosso do Sul no dia 2 de junho e, no dia 20, já estavam em campo novamente. Agora para monitorar, avaliar e resgatar os animais dos incêndios que mais uma vez assolam o Pantanal.


A temporada do fogo no Pantanal preocupa porque iniciou mais cedo e mais intensa neste ano. Considerando os primeiros seis meses, 2024 bateu o recorde de focos de incêndio segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) – a medição ocorre desde 1998. Foram 3.538 focos, 39% a mais que no mesmo período de 2020. E a época mais crítica ainda está por vir, de agosto a outubro.

Walfrido Moraes Tomas liderou o estudo publicado na Scientific Reports que estimou em cerca de 17 milhões de animais vertebrados mortos diretamente pelos incêndios de 2020. De acordo com o pesquisador da Embrapa Pantanal, ainda não é possível estimar o impacto do fogo na fauna neste ano. "No entanto, sabemos que os incêndios causam impactos, como mortes direta e indiretas pelo fogo, degradação de habitats naturais, depleção de recursos, aumento da predação, perda de ninhos", explicou.

Santa Rita disse que a situação ainda não pode se comparar a de 2020. Mas há muitos animais mortos, principalmente répteis, como cobras e jacarés, anfíbios, como sapos e rãs, e aves. Os bichos morrem incinerados, por excesso de calor ou mesmo pela inalação de fumaça.

No caso dos bugios encontrados no ipê-roxo no fim de junho, eles praticamente não tinham o que comer e poderiam ser vítimas de predadores. A família era formada por dois machos, três fêmeas e dois filhotes recém-nascidos. A informação de que os animais estavam em perigo fora dada por catadores de iscas das matas pantaneiras.

Ao chegarem ao local, os especialistas avistaram os bugios. Com binóculos, drone e paciência, analisaram a situação. "Nós não derrubamos [capturamos] todos os animais que encontramos", explicou Santa Rita. "A gente faz uma avaliação clínica e categoriza o bicho. A proposta é intervir o mínimo possível na vida dos animais silvestres."

A conclusão foi de que a melhor estratégia seria fornecer alimentos, como frutas e leguminosas, e monitorar a situação daqueles animais por meio de armadilhas fotográficas. No fim de junho e início de julho, o Gretap atendeu de forma semelhante outras três famílias de bugios. A equipe de sete profissionais, que se revezam de tempos em tempos, segue na região para avaliar a situação desses e de outros animais.

Neste ano, o Gretap não precisou capturar nenhum animal. Mas, às vezes, esse recurso é necessário, como ocorreu em 2020. Brigadistas que combatiam o fogo viram uma onça-pintada debilitada e avisaram a força-tarefa. O grupo encontrou o animal e o observou durante 28 horas até ter certeza de que o atendimento seria necessário.

A onça havia se abrigado em uma casa abandonada, mesmo refúgio usado por outra onça. E além de precisarem socorrer os dois felinos, o rifle que usariam para sedar os animais falhou. Recorreram a uma zarabatana – uma arma onde o dardo é lançado por sopro.

Os animais foram transportados pela Força Aérea Brasileira para o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (Cras) em Campo Grande. Como havia apenas uma gaiola na aeronave, uma das onças – sedada – seguiu viagem nos pés de Santa Rita. Uma delas morreu, mas a outra se recuperou e foi reintroduzida na natureza. O projeto Felinos Pantaneiros monitorou o bicho por um ano e meio e descobriu que ele procriou com mais de uma fêmea e deixou filhotes.
Seres irracionais

Enquanto as mudanças climáticas causadas pelo homem geram extremos como incêndios e inundações, os desastres naturais também mostram os extremos da relação dos humanos com os animais. No Rio Grande do Sul, os membros do Gretap puderam perceber essa contradição.

Em uma das tentativas de resgate, encontraram um cachorro morto afogado que estava preso a uma corrente. "Não sei o que passa na cabeça do ser humano. Acho que o irracional somos nós", refletiu Santa Rita.

Por outro lado, a médica-veterinária ficou tocada pela história de uma senhora. Ela, junto com os filhos, teve que sair da casa inundada, mas não conseguiu levar o gato de estimação.

Tentou voltar algumas vezes à residência, mas não conseguia achá-lo. Até que encontrou a equipe do Gretap. Uma médica-veterinária especialista em pequenos animais conseguiu resgatar o bicho, assim como outros quatro animais de seus vizinhos.

Na avaliação de Walfrido Moraes Tomas, "houve uma melhora substancial nas estratégias de combate aos incêndios" em relação a 2020. Mas na sua avaliação é preciso reforçar a educação. "O fator humano é o desencadeador potencial dos incêndios. Neste sentido, é o ponto mais crítico dos fatores que interagem para resultar em incêndios catastróficos. É onde a atuação das instituições públicas e privadas deve ser mais fortalecida, de forma a sensibilizar as pessoas quanto aos efeitos e custos do fogo errado e do combate aos incêndios".

Segundo Tomas, tanto as cheias como o fogo são importantes no Pantanal. Mas o pesquisador defende o resgate da cultura pantaneira. "É preciso resgatar o conhecimento tradicional do uso do fogo, que está sendo perdido. Trata-se da queima 'no cedo' (ao final das chuvas, com a vegetação campestre ainda verde) ou 'no tarde' (após as primeiras chuvas no final do ano), bem como queima de macegas e campos, nunca florestas."

Tomas disse admirar o trabalho do Gretap. "É preciso esclarecer o público que é humanamente impossível atender animais atingidos numa escala como a dos incêndios do Pantanal. A fração atendida pode ser ínfima em relação à dimensão da tragédia, mas ele se reveste de um componente ético fundamental. Atender animais feridos nos incêndios, o máximo que a capacidade permitir, é louvável e merece todo apoio."

Santa Rita vê a atuação da equipe como um trabalho de formiguinha perto da destruição que o Pantanal vive. Ela espera que o maior empenho das instituições públicas e privadas neste ano dê resultado. "Mas estamos nos organizando para minimizar o impacto e tentar conservar o máximo a biodiversidade desse bioma", disse. "Se um filhote, como do bugio, chegar na fase adulta e se reproduzir, nós ganhamos. Resgatar os animais é salvar o futuro."

Inocência sem flor

A história do Brasil pode ser considerada pelo lado do negro com três pês: pão, pano, pancada. Pelo lado do indígena, entram nessa história feita de assombros nas caçadas humanas três emes: missa, miçanga, mato.

Capítulos dessa história, impregnada de usurpação e açoite, dizem que o Brasil Colonial formou uma dívida com o negro e o indígena que de tão grande nas léguas da desgraça tornou-se impagável.

Em algumas paragens desse Brasil continental, pisado pelo colonizador ávido, chegou-se ao ponto de terem desaparecido populações indígenas que viviam em perfeito entendimento com a natureza, tirando dela apenas o necessário para a sobrevivência.

Às vezes, escuto vozes que rolam dos longes nesses rastros da desgraça. Como acreditar? Houve uma mancha que envergonha. A fuga em desespero tingiu a manhã do horror na taba queimada. Por entre as sombras do que é perverso e não se apaga, remorso não existiu dos que feriram os hábitos da inocência irmanados com o verdor da mata, dizimaram a aldeia, forjaram a chacina, denominando as cenas insanas de façanhas.

Quem saberá quantos ventos na fuga de uma gente sem rumo entoaram lamentos de uma triste música? Gemidos produzidos nas entranhas da selva impenetrável? Como se nada de horror acontecesse num mundo que amanhecia cheio de passaradas, brilhos e fragrâncias.


Pasmem os céus, até hoje sentimentos que escorrem em dó e lágrima ressurgem desses rastros que machucam. Tive conhecimento que a virgindade de meninas indígenas vale pouco, muito pouco na cidade de São Mateus, que fica nos confins do braço norte do território do Japará. Lá um homem branco compra a virgindade de uma menina indígena também com aparelho celular, peça de roupa de marca e com uma caixa de bombom.

As mães das vítimas pediram à polícia há um ano para apurar o caso. Nenhum suspeito foi preso até agora.

Doze meninas já prestaram depoimento. Elas relataram que foram exploradas sexualmente e indicaram nove homens como os autores do crime. Entre eles, há comerciantes locais, um ex-vereador, um médico chamado Pedro de Deus, um farmacêutico, dois sargentos e um açougueiro.

As vítimas vivem na periferia de São Mateus do Japará, município de baixa renda, que vive das atividades agrícolas, com base em lavouras primárias, de pouca duração, nas estações temperadas de sol e chuva. São Mateus do Japará tem quase cem por cento da população formada por gente indígena. Calcula-se que a população seja de quinze mil pessoas.

Entre as meninas exploradas, há as que foram ameaçadas pelos suspeitos. Algumas foram obrigadas a se mudar para casa de familiares, na esperança de ficarem seguras. O repórter da revista “O Planeta” ficou interessado pelo caso logo que tomou conhecimento.

Conversou com algumas dessas meninas. Criou inicial fictícia para cada uma delas, querendo com isso dificultar a identificação.

B, de 12 anos, conta que vendeu a virgindade para um vereador. O acerto, afirmou, ocorreu por meio de uma prima dela, que é também adolescente.

“Ele me levou para o quarto e tirou minha roupa. Foi a primeira vez, fiquei depois sem saber o que fazer.”

A menina informou que uma amiga dela esteve duas vezes com um comerciante.

“Na primeira vez, ela também foi obrigada. Ele deu um celular.”

Já L, de 11 anos, disse que ela e outras meninas ganharam chocolates, dinheiro e roupa de marca em troca da virgindade. Como aconteceu com as outras na primeira vez, ela foi também obrigada. Recebeu trinta reais e uma caixa de chocolates.

Outra menina, S, de 13 anos, disse que presenciou encontros de sete homens com meninas de até dez anos.

“Eu vi meninas passando aquela situação, sem poder fazer nada.” Comentou que eles sempre dão dinheiro em troca disso (da virgindade).

Ela aceitou falar ao repórter porque já tinha denunciado tudo à polícia federal. Sabia que o pior podia acontecer, mas não tinha medo de nada.

“O homem que me usou primeiro falou que se continuasse denunciando eu iria junto com ele pra cadeia.”

A mãe de S disse que, se ela abrir a boca, o homem que tirou a virgindade da filha vai mandar matar ela.

Não é difícil imaginar que a menina S tinha os olhos sumidos no rosto sem brilho, durante a entrevista que deu ao repórter de “O Planeta”.

Quase não saiu o que disse no final:

“Na primeira vez senti as coxas doloridas. A boca com um gosto de coisa ruim. Depois fiquei triste”.

O esplendor da desigualdade

No sábado passado decidi me tornar uma pessoa disciplinada e adiantar a coluna, para não precisar mais virar a noite no desespero da véspera. Escrevo desde que me tenho por gente e, desde que me tenho por gente, entrego tudo em cima do prazo, quando não irremediavelmente atrasado. A minha vida é uma corrida contra um relógio atônito que me olha de banda e que não entende o porquê do esforço: há matéria-prima abundante no mundo para que qualquer colunista de variedades, com um mínimo de organização mental, possa escrever com calma.


Ali estava o casamento do ano na Índia, uma celebração de opulência sem precedentes. O jornal The Guardian, de Londres, calcula que os Ambani, família mais rica da Ásia, gastaram nele cerca de US$ 600 milhões ao longo de cinco meses, quantia inimaginável para a maioria de nós, mas insignificante diante dos seus US$ 115 bilhões — o equivalente a uns R$ 50, digamos, para quem tem R$ 10 mil no banco.

Um ótimo assunto!

E aí a internet explodiu com o atentado a Trump. Todos os meus planos foram notícia abaixo: passei os dias lendo e ouvindo incontáveis análises sobre o panorama político nos Estados Unidos. Quando voltei ao casamento do ano já estava atrasada de novo. Meu destino é varar madrugada, escrevendo em cima do laço.

Enfim, foram festas em cima de festas, banquetes intermináveis e shows exclusivos. Houve um cruzeiro pelo Mediterrâneo para mil pessoas com paradas em Cannes e Portofino. Na lista de atrações das várias comemorações estiveram Rihanna, Backstreet Boys, Justin Bieber, Shakira, David Guetta, Pitbull, Katy Perry, Andrea Bocelli e os principais nomes da música indiana, a começar por A. R. Rahman, que ganhou um Oscar em 2009 por “Jay ho”, a canção do filme “Quem quer ser um milionário”.

Para o casamento propriamente dito, agora no fim de semana, um centro de convenções maior do que o Riocentro foi transformado em aldeia cenográfica para 1.400 convidados, de Boris Johnson a Kim Kardashian, passando por constelações inteiras do firmamento indiano. Foi um desfile interminável de roupas extravagantes bordadas a pedrarias, ouro e prata. Nunca se viram joias iguais em público — ou nunca, pelo menos, desde 1971, quando Indira Gandhi acabou com os privilégios dos marajás.

Uma sucessão de eventos fascinante e obscena ao mesmo tempo.

Os Ambani são a face mais visível da desigualdade na Índia, onde o 1% mais rico detém 40% da riqueza do país. A renda média mensal é de pouco mais de R$ 800, menos de um terço da renda média no Brasil. A pobreza vem diminuindo, mas há mais de meio século não se vê concentração de renda tão elevada.

Faz tempo que esse tipo de ostentação deixou de ser elegante num mundo consciente dos seus desafios — mas, ainda assim, é difícil interpretar o significado e o impacto de tal extravagância, sobretudo quando identidade e branding se confundem. A Índia, que há séculos é conhecida pela pobreza, busca uma nova imagem.

O que vimos na mídia e nas redes sociais não foi um acontecimento de família, mas uma jogada corporativa, voltada para consolidar o prestígio da família Ambani e do seu conglomerado (e que, agora mesmo, acaba de render meia página no GLOBO).

A máquina de RP do grupo deve ter ficado muito contrariada com aquele atirador inconsequente, que roubou as manchetes no fim de semana.


A família mais rica da Ásia gastou US$ 600 milhões numa festa de casamento. Mas o atentado a Trump roubou as manchetes do fim de semana
Cora Rónai