domingo, 29 de setembro de 2019

Viva o velho Brasil!

Até os eleitores mais fiéis de Bolsonaro devem estar com uma pulga atrás da orelha depois de todos os desdobramentos políticos e jurídicos que atingem com artilharia pesada a Lava-Jato, a mais importante e famosa operação anticorrupção do mundo, depois da Mani Pulite, a Mãos Limpas italiana. Os outros brasileiros, os infiéis ao presidente e todos os que nunca votaram e jamais votariam nele também devem estar abismados com a reviravolta que vai se consumando no Brasil. A grande lavagem da corrupção dentro da política brasileira está desaparecendo porque aos poucos vão sendo dela subtraídos sabão e água.

A mudança do clima em torno da Lava-Jato, outrora intocável, é mais do que visível. Os torpedos que vão sendo disparados do Congresso, do Supremo e até do Palácio do Planalto causam danos importantes à força tarefa, alguns insuperáveis. A situação chegou a esse ponto porque, primeiro, Sergio Moro aceitou o convite e virou ministro de Bolsonaro. Depois, as trocas de mensagens entre Moro e a turma do Ministério Público publicadas pelo Intercept conferiram a coragem que faltava a muitos dos homens que hoje manejam a artilharia e os torpedeiros.


O Congresso dispara contra a Lava-Jato de modo a se proteger. É de uma desfaçatez monumental. O STF a ataca muitas vezes incomodado com o seu sucesso e com a sombra que ela projeta sobre a casa suprema. Claro que os argumentos sempre são outros e fazem todo sentido jurídico. Limita-se a Lava-Jato atendendo a premissa constitucional de se oferecer ampla defesa a qualquer acusado. No caso dessa semana, o STF entendeu que a defesa é cerceada se o delator for julgado depois do delatado. É controverso, mas faz sentido em razão do atendimento ao processo legal. O que parece incabível mas pode acontecer é que a decisão coloque em liberdade diversos condenados. A decisão vai alcançar 150 condenados, segundo O GLOBO, entre eles o ex-presidente Lula.

No Palácio, ao indicar Augusto Aras para a Procuradoria-Geral da República, o presidente escolheu uma pessoa que não esconde sua vontade de impor limites à Lava-Jato, propondo trocar jovens procuradores por outros de cabelos brancos. Foi o que ele disse na sabatina do Senado onde sua indicação foi aprovada por expressiva maioria de 68 votos a dez. Claro, tanto os partidos que apoiam o governo quanto os da oposição querem que a força-tarefa se exploda. Os primeiros procuram blindagem contra possíveis ações a eles dirigidas. Os demais, buscam tirar da cadeia seus companheiros mais ilustres.

E assim o país caminha para trás. Ainda este ano, o Supremo deve votar pela terceira vez a prisão após condenação em segunda instância. E tudo indica que vai derrubar o princípio que o mesmo plenário já havia consagrado em votação anterior. Mas antes a Lava-Jato era forte e tinha prestígio popular. O presidente do STF, Dias Toffoli, defende que a prisão se dê após a condenação pelo STJ, para que o réu tenha toda chance de se defender. Ocorre nesse caso o mesmo problema da prisão na segunda instância, os advogados vão alegar que ainda falta o recurso final ao próprio Supremo.

O fato é que o Brasil aos poucos volta a ser o velho Brasil de antes da Lava-Jato. O corrupto, o criminoso, que tiver recursos para contratar bons advogados vai ficar impune dez, 15, 20 anos. Muitos terão seus crimes prescritos, como no passado. E, como no passado, tanto tempo correrá entre a denúncia e a condenação que outros já não poderão mais ser presos por causa da idade, ou porque morreram em liberdade. O Brasil do passado voltou. Viva o velho Brasil.

Dudu faz as malas

A reforma da Previdência vira refém da conveniência de tempo e agenda dos senadores. Vetos são derrubados sem que o presidente que os proferiu nem sequer lamente. O líder do governo no Senado é investigado sob a acusação de ter recebido propina quando era, vejam só, ministro de ninguém menos que Dilma Rousseff.

A sequência de fatos, todos das últimas duas semanas, contraria dois pilares da campanha de Jair Bolsonaro, comprados pelo valor de face pelo eleitorado traumatizado pelo PT: a proposta liberal-reformista na economia e o combate implacável à corrupção e à velha política.

Pouco importa. Essas promessas e a fidelidade a uma parcela do eleitorado foram colocadas em segundo plano diante da prioridade do momento: preparar o terreno no Senado para o envio, mais de dois meses depois do primeiro anúncio, da indicação do terceiro filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, à Embaixada do Brasil em Washington.

Não que seja uma preparação de todo planejada, como nada é na parafernália de conceitos e métodos do bolsonarismo. Ao mesmo tempo em que é necessário fidelizar senadores para a aprovação de Eduardo, seu irmão Carlos fustiga o partido com a segunda maior bancada na Casa, o Podemos – pela primitiva razão de que a sigla cresce em cima do PSL e pode virar morada de algum adversário do pai em 2022, como o temido Sérgio Moro.

O próprio candidato a embaixador, que de diplomático não tem absolutamente nada, postou há algumas semanas em suas redes sociais vídeo de uma youtuber bolsonarista com pesadas críticas a alguns de seus potenciais eleitores.

Mas isso são filigranas. O verdadeiro jogo de bastidores para que Eduardo passe no Senado, a despeito de sua completa falta de qualificação para um dos principais postos da diplomacia do País, passa pelo acordo nos grandes temas, descritos no início deste texto, e é feito em conexão direta entre o Planalto e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP).

Eleito para o comando da Casa por ter fincado o pé como aquele capaz de peitar Renan Calheiros, o até então anônimo Alcolumbre foi comprado pelo alvoroço das redes sociais sem que nenhum dos que torciam por ele nem sequer o conhecessem. Essa tomada de partido imediata, na base da escolha binária, sem nem levar em conta o perfil da Wikipédia dos candidatos, levou à eleição de bancadas inteiras de lavradores de redes sociais e até de governadores, como Wilson Witzel.

Não foi diferente com Alcolumbre, que, agora no comando, vai se mostrando um político das antigas – justiça seja feita, ele nem tentou vestir o figurino de renovador. No seu acerto com Bolsonaro entraram cargos no Cade, a garantia de execução de emendas e a proteção a Bezerra Coelho, outro da velha política, nesse caso inclusive aliado da temida esquerda, assimilado pelo bolsonarismo pragmático.

No jogo em que interesses corporativos do Senado e os familiares dos Bolsonaro são colocados à frente dos compromissos de campanha, a reforma da Previdência vai virando uma pauta secundária, que pode ser ou não votada a partir de conveniências. A previsão de que seja promulgada no dia 10 de outubro já parece otimista diante deste quadro.

Quanto à indicação de Eduardo, parece aguardar o momento em que nada lhe obstrua o caminho, de reformas a CPIs indigestas para os também novos aliados do Judiciário. Davi vai na frente, limpando o trilho para o terceiro filho, enquanto este gasta seu tempo entre conversas ao pé de ouvido com senadores, publicações nonsense no Twitter em que desfila uma bizarra doutrina armamentista a partir de uma escultura na entrada da ONU e viagens turísticas ao país no qual deve vir a morar logo mais, graças a um presentão do papai e do tio Davi.

Toxidade brasileira


A espada de Dâmocles

Trata-se de antiga lenda. Uma "história moral", se algo assim for possível. Aconteceu, primeiro, com Timeu de Tauromênio (356-260 a.C.). Mas acabou famosa, só depois, nas mãos do cônsul romano Cícero (106-43 a.C.), em sua Tusculanae Disputationes. Ao mostrar que todo poder é incerto e transitório. Mais tarde, o próprio Cícero provaria desse fel. Acabou proscrito. Executado. Com mãos e cabeça exibidos nas ruas de Roma. Só, que essa é outra conversa.

Aconteceu, no caso, com Dionísio, O Velho. Que, depois de libertar Siracusa do domínio de Cartago, tornou-se um tirano sanguinário. Invejado por governar a mais rica cidade da Sícilia, ninguém o cortejava mais que Dâmocles. Dionísio, irritado com tanta bajulação, pediu que ocupasse o seu posto ao menos por um dia. Foram então dados, a esse aprendiz de ditador, riquezas muitas e as mais belas mulheres (hoje, esse relato seria politicamente incorreto). E tudo corria bem. Até que Dâmocles percebeu haver, pendurada sobre sua cabeça, uma espada afiadíssima. Presa por frágil fio do rabo de cavalo. Dionísio explicou que assim vivia. Sob o permanente risco de perder tudo. E, com receio de morrer, Dâmocles preferiu devolver ao tirano seu posto.

Espada é palavra que vem do grego. Numa referência a Esparta, cidade conhecida por seus guerreiros ferozes. Muitas outras histórias envolvem espadas. Como a de Excalibur, cravada na pedra. E que só poderia ser removida por homem destinado a ser Rei da Inglaterra. Um conto que talvez seja baseado em fato real, ocorrido no século XII. Quando um cavaleiro, Galgano Guidotti, depois de ter renunciado à nobreza, tornou-se eremita. Devotado às lições da Sagrada Escritura, em seus delírios teria se encontrado com os 12 apóstolos. Junto a uma cruz. E, para marcar o local, fincou sua espada no chão úmido, que alí ficou depois petrificado. Tudo como ainda hoje se pode ver na Capela de São Galgano, na cidade de Montesiepi (Itália).


Indo adiante, e não por acaso, a deusa grega Themis, símbolo do Poder Judiciário, tem na mão uma balança; e, na outra, uma espada. Que representa distinção entre o verdadeiro e o falso. Em desalinho com a visão de Ruy Barbosa ("Discursos e Conferências"), para quem “A espada não é a ordem, mas a opressão”. Em sua homilia desta semana, o padre Sérgio Absalão, na capelinha dos Aflitos, lembrou que o próprio Deus é por vezes apresentado com uma espada. Sendo, sua palavra, uma “espada de dois gumes”. Segundo ele, Santo Agostinho explica essa metáfora dizendo que Deus fala “das realidades temporárias e das realidades eternas”. Seja como for, a lenda parece boa lição para nossos homens públicos em nosso país. A partir da frase atribuída a Shakespeare, “O mal da grandeza é quando ela separa a consciência do poder”.

O Congresso quer mandar em tudo. O Supremo até lei criou, para beneficiar réu condenado (em 3 instâncias) por corrupção. O Executivo, sem qualquer coordenação, se perde numa radicalização insensata. A oposição esquece o interesse coletivo e só pensa em votos para as próximas eleições. Enquanto nós, indeterminados cidadãos comuns do povo, assistimos, incrédulos e perplexos, a um Brasil que sofre. Essa gente parece não perceber que, sobre todos, pesa a opinião pública. Uma Espada de Dâmocles.

Lembro nosso queridíssimo Dom Helder: “Eles pensam que o povo não pensa. Mas o povo pensa”. É isso, meus senhores de Brasília. Não abusem, por favor. Vocês podem até não acreditar, mas o povo pensa mesmo.

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(Inquérito que apura supostas ofensas ao STF) já serviu para buscas nas casas de ativistas, para decreto de medidas protetivas, para censurar Revistas, para afastar funcionários da Receita, para requisitar áudios vazados, agora para apreender armas e celulares de um ex-Procurador da República.
Não é possível que um inquérito misterioso sirva para todo e qualquer fim, conforme o entendimento de qualquer dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. A lei também vale para eles!
Janaina Paschoal, deputada (PSL-SP)

País de maus bofes

Não sei bem o que significa perder as estribeiras, mas, seja o que for, o Brasil parece estar perdendo as suas. Pelo que podemos ver no noticiário e em nós mesmos, tornamo-nos 200 e tal milhões de sujeitos que passam o dia chutando baldes, rosnando ameaças e usando toda espécie de canal para destratar os inimigos, os adversários e até os simples desafetos. Ninguém mais tolera ninguém, ninguém admite um pensamento contrário. A continuar assim, vamos passar a nos esbofetearmos ou cuspir uns nos outros à guisa de bom-dia.

O exemplo vem de cima. Num país em que o presidente é o primeiro a não perder uma oportunidade de ejacular desaforos e descompor pessoas, inclusive ao microfone da ONU, como esperar moderação de seus chefiados? E, se esse presidente exerce a política da terra arrasada, da desarmonia entre os poderes e do desmantelamento das instituições, por que seus seguidores, dentro e fora do governo, fariam diferente?


O ministro da Educação, por exemplo, mesmo incapaz de tomar um ditado, não abre mão da arrogância. E dá-lhe de corte de verbas, desamparo a órgãos centenários e desprezo por funções que ele nem é capaz de entender, como a de professor universitário. E é contagioso. Uma autoridade escoiceando à solta estimula a que um esbirro do quarto escalão agrida uma heroína da cultura brasileira e fique por isso mesmo.

Da mesma forma, uma pistola à mostra num cinto, mesmo nos ambientes mais impróprios, pode levar o povo a achar que o país só se resolverá à bala. Mas, nesse caso, os valentões no poder que se cuidem —a massa de maus bofes que eles estão gerando pode se voltar contra eles.

Um dia, de um jeito ou de outro, talvez o Brasil volte à sanidade. Só então saberemos quem serão os mais aptos a contar a história de nosso tempo —se os historiadores propriamente ditos, os apresentadores sensacionalistas da televisão ou os humoristas.
Ruy Castro

De vilão a vítima

Estágio avançado de insanidade, loucura aprofundada pelo ostracismo depois de anos de fama, lance de marketing mal avaliado. Tudo, ou nada disso. Seja lá o que for, de caso pensado ou por ironia do destino, a chocante revelação do ex-procurador-geral da República, Rodrigo Janot, de que planejou assassinar o ministro Gilmar Mendes, serviu para que em menos de 24 horas o STF passasse de vilão a vítima. 

A confissão do tiro não disparado e do crime não realizado reorientou os holofotes até então concentrados na decisão tomada no dia anterior pela Corte Suprema, que, com doses de interpretação criativa, alterou o entendimento quanto à equidade dos réus perante a lei e das fases finais do processo penal. 



Mesmo sem o alarmismo dos lavajatistas de plantão, que chegaram a anunciar o risco de nulidade de 143 condenações, o novo entendimento pode até não alterar muitas das penas já proferidas, mas permitirá centenas de recursos, boa parte deles protelatórios. Ao fim e ao cabo retardará ainda mais a já paquidérmica Justiça, em que os processos não apreciados aumentam o rol das prescrições e da impunidade.

O debate sobre a inusitada decisão, que só será finalizado na quarta-feira, quando o presidente do STF, Dias Toffoli, pretende anunciar o que ele chamou de regramento possivelmente estabelecendo parâmetros que, a rigor, deveriam ser determinados pelo Parlamento -, acabou ofuscado pelas inconfidências de Janot. 

Na sexta-feira, o ativo STF, por meio do ministro Alexandre de Moraes, tratava de determinar uma ordem de busca e apreensão na casa do ex-procurador-geral. Algo impróprio, no mínimo discutível. Pelo ordenamento em vigor não é tarefa de juízes, sejam eles da primeira, segunda ou qualquer instância, determinar investigações. Mais: fazê-lo sem a existência de um crime, apenas a partir do reconhecimento de uma insânia, que, por mais terrível, felizmente não se materializou. 

Goste-se ou não, ninguém pode ser acusado por ter pensado em matar quando não causou prejuízo de espécie alguma a qualquer um. E os ministros do STF têm obrigação de saber disso. 

Mas em um país em que a Lei está quase sempre sujeita à conveniência, a Corte Suprema escolheu o caminho da espetacularização, que ela tanto diz recriminar, desviando as atenções de si. Tem-se então a apreensão pela Polícia Federal, com direito a intensa cobertura televisiva, de uma pistola e um computador de um “suspeito confesso” por um crime não cometido. 

Sem tirar nem por, a Corte usou o tiro não disparado como escudo para os tiros que ela descarrega contra o país. 

O "fatiamento" da punição do impeachment de Dilma Rousseff, acordado e endossado pelo então presidente do STF, Ricardo Lewandowski, que o diga. Ou as decisões monocráticas em série para soltar gente que as instâncias inferiores mandam prender. Ou ainda, entre tantas, a celeridade com que aprovou a delação dos irmãos Batista contra o ex-presidente Michel Temer, um recorde de dias.

Joesley e Wesley Batista, aliás, são provas vivas de que esta não é a primeira vez que o polêmico Janot causa. 

Responsável pelo generosíssimo perdão concedido aos donos da JBS, mais tarde revisto por ele próprio e definitivamente suspenso por sua sucessora, Raquel Dodge, Janot nunca explicou por que correu tanto contra Temer. Muito menos por quais motivos um de seus auxiliares estava metido naquela encrenca. E do outro lado do balcão.

Agora, abre sua metralhadora giratória. E espalha medo. Afinal, se do nada confessou ideias assassinas, imagine o que dirá se acuado. Alvos insones vão correr para ricochetear tiros. Provavelmente, com aval do Supremo.

Imagem do Dia


O dilema shakespeariano de Bolsonaro de 'ser ou não ser'

Tudo indica que o presidente Jair Bolsonaro, aos nove meses de um Governo que seria cheio de audácia, de mão dura contra a corrupção, contra a violência, contra a velha política e a favor da decolagem da economia encolhida, se encontra na verdade desorientado, entre duas águas, ou, para dizê-lo como o grande dramaturgo inglês William Shakespeare, preso entre o “ser ou não ser”.

A frase pronunciada pelo príncipe da Dinamarca, no início do terceiro ato da obra Hamlet, atravessou séculos de literatura e foi aplicada tantas vezes ao campo da política e até nos momentos de crise pessoal, quando, de reis até nós, os súditos, a vida nos obriga a escolher, a ser o que queríamos ser ou a permanecer na mediocridade do não saber escolher.


Recita o príncipe Hamlet: “Qual é a mais digna ação da alma: sofrer os dardos penetrantes da sorte injusta ou opor-se a esta corrente de calamidades e dar-lhes fim com atrevida resistência?”. O príncipe da Dinamarca segurava uma caveira na mão enquanto recitava seu “ser ou não ser, eis a questão”. E essa interrogativa de mais de 400 anos atrás volta a ser atual hoje no mundo da política e das lutas sociais e se coloca com força na política brasileira.

O dilema de saber o que queremos afeta hoje visivelmente quem comanda os destinos do Brasil presidido pelo ex-capitão Jair Bolsonaro, que o colunista Vinicius Torres Freire acaba de descrever na Folha de S. Paulo como o presidente que “além de animar a extrema-direita e de cuidar dos filhos, está sem rumo. Além do circo e da filhocracia, existe uma sensação de vazio no ar”.

E é verdade que o problema de Bolsonaro, que deveria ser aconselhado a reler o Hamlet de Shakespeare, é saber o que realmente quer. Se ser o que prometeu para conquistar os votos ou ser o que agora talvez veja que lhe é impossível, porque a realidade da política acaba por superá-lo.

Bolsonaro começou a perceber que não existem atalhos entre democracia e ditadura se se quer fazer política. E esse é o seu problema, que por um lado abomina a política na que sempre viveu e gostaria de evitar os suores de resolver os problemas sem ferir os valores democráticos, que só se conjugam com a arte do compromisso e do diálogo e não admitem saltos no vazio nem ameaças autoritárias.

Que o presidente ainda não sabe o que quer ser é demonstrado pelo fato de que todos os dias perde consenso entre os que o enalteceram, porque se sentem traídos por ele ao vê-lo flertando com juízes e políticos da velha guarda. Aqueles que aplaudiram quando seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, disse durante a campanha eleitoral que para fechar o Supremo Tribunal Federal “bastava um cabo e dois soldados”, lhes parece uma traição vê-lo hoje com o magistrado Antonio Dias Toffoli, presidente do Supremo, como dois velhos amigos.

Em uma reunião com políticas, deputadas e senadoras, o presidente chegou a dizer-lhes que Toffoli havia sido uma “uma pessoa excepcional” com ele. E acrescentou: “a justiça está do nosso lado”. E Toffoli confidenciou que Bolsonaro era “uma pessoa alegre e de bom humor”. Adulações perigosas, mas que deram frutos, se considerarmos que o presidente viu Toffoli lançar um decreto que permitiu que seu filho, o senador Flávio Bolsonaro, deixasse de ser investigado sobre suas supostas acusações de corrupção.

Bolsonaro, que havia prometido aos seus que com ele no Planalto “Lula apodreceria na cadeia”, pode, ironia da vida e da política, ver sob seu reinado o petista sair da prisão e até, talvez, ser absolvido de sua primeira condenação. Todos os dias o presidente cheio de audácia se vê mais perdido entre o ser e o não ser. E isso é grave inclusive para a direita liberal e para o centro, pois, com suas loucuras políticas, o presidente parece fazer ver que fora da esquerda, que ele abomina, não existem outras possibilidades políticas na democracia. A extrema-direita —que até ele já não sabe como administrar— está comprometendo o futuro político deste país.

Um sinal de que Bolsonaro parece perdido é que, mesmo antes do primeiro ano de sua presidência, seus filhos já estejam lançando sua candidatura à reeleição em 2022. A dinastia Bolsonaro deve ter detectado que os excessos do pai rearmaram a direita e o centro civilizados e até fazem a esquerda sonhar. Por isso querem começar já uma campanha eleitoral de três anos, quando na realidade Bolsonaro ainda continua em sua campanha anterior, que é o que ele gosta. É na campanha que podem ser lançadas as maiores barbaridades ou promessas celestiais sem medo.

Governar em paz, para todos, com respeito à democracia sem excluir ninguém, sem anátemas e sem ameaças, é outra coisa. Polônio, o velho camareiro-mor do reino, diz ao príncipe, em Hamlet: “a loucura acerta às vezes, quando o juízo e a prudência não dão frutos”. E é o juízo e a prudência que parecem faltar hoje à política brasileira. Será por isso que tantos continuam apostando e se sentem bem na loucura?

O difícil, nestes momentos em que parece não haver fronteiras entre o juízo e a loucura e onde, em meio a uma política e políticos que não sabem decidir entre o ser e o não ser, é encontrar o caminho da sensatez e da defesa de todos aqueles valores humanos e liberdades que nos redimem.

E aí entramos todos os que queremos uma política que fale, que não esconda, que ajude os mais pobres, que não degrade as conquistas sociais e as mantenha vivas. Um dos grandes silêncios de Bolsonaro e suas hostes é justamente o mundo dos excluídos, que estão deslizando abaixo da linha da pobreza. Um mundo que, quando Bolsonaro foi falar na ONU, ficou esquecido no Brasil. Seu silêncio sobre as questões sociais foi ensurdecedor.

Atribui-se a Einstein uma afirmação que quero deixar como esperança: “a crise leva ao melhor da criação e expõe o gênio do ser humano”. Oxalá que a emaranhada crise que o Brasil está vivendo e sofrendo leve, embora hoje possa parecer um sonho difícil, a uma profunda purificação da política e da cultura hoje tão desprezada.

No final, relendo Shakespeare 400 anos depois, vemos que os problemas políticos de então não eram tão diferentes dos que estamos sofrendo na era da inteligência artificial. Hamlet já se queixava de que não era fácil “suportar a lentidão dos tribunais, a insolência dos funcionários e as arbitrariedades que recebe pacífico o mérito dos homens mais indignos”.

Bolsonaro deverá se decidir a ser ou não ser, ou serão as outras forças democráticas que decidirão por ele ou sobre ele.

Tiro certo

O outro não é necessariamente quem se opõe ao governo; é aquele de quem o governo não gosta
Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação

A política do extermínio

O presidente das Filipinas empreendeu uma cruzada de extermínio contra traficantes e usuários de drogas. Foram elaboradas, em cada comunidade, listas de indivíduos acusados de consumir ou vender para adverti-los de que, se não cessassem, seriam mortos. Milhares o foram. Num seminário recente sobre as Filipinas foi relatado que um chefe policial notabilizado pelo alto número de pessoas que tinha matado organizou uma festa de Natal e convidou os filhos dos mortos para lhes entregar brinquedos. A imagem me veiou à mente com a notícia de que o governador Witzel, uma vez morto o sequestrador do ônibus da Ponte Rio-Niterói, entrou no ônibus e pediu aos sequestrados para orar pela família do falecido. O ensinamento da cena é que o autoritarismo, na sua fase final, exige inclusive que as vítimas aceitem seu destino.


Os colegas filipinos no seminário explicaram que estavam documentando o que acontecia no seu país não para parar o massacre, algo que consideravam inviável, mas para que um dia as vítimas pudessem ser lembradas, e ações de reparação empreendidas com o intuito de evitara repetição do pesadelo. Infelizmente, o Rio precisa se perguntar até que ponto está na mesma situação.

Desde os tempos do Major Vidigal no século XIX, os casos de excesso policial ou de vítimas inocentes serviram para restringir, mesmo que temporariamente, a violência policial, reiniciando o típico ciclo na política de segurança fluminense, que alterna truculência aberta e contenção relativa. Entretanto, areação do governo atual do Rio à morte da pequena Ágatha confirma que, para eles, a morte de inocentes —claro, os inocentes que moram nos lugares de sempre —é um preço justo a ser pago pela política de extermínio.

Na insanidade que tomou conta do Brasil nos últimos tempos, pessoas que se definem como cristãs apoiam governos que pregam a morte, como se o Quinto Mandamento fosse dispensável. Embora no momento o aumento da letalidade policial coincida coma diminuição das taxas de homicídio, esta dinâmica não continuará indefinidamente. A brutalidade policial acabará mais cedo ou mais tarde estimulando a violência do outro lado. Afinal, não é possível acabar coma violência como se acaba comum a doença transmitida por mosquitos, simplesmente eliminando os mosquitos.
Ignacio Cano

A agonia da esperança

Logo depois de saber que o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot pensara em matar o ministro Gilmar Mendes, do STF, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), indagou à plateia de um evento realizado no Rio de Janeiro, ontem: “Quem vai querer investir num país desses?”. Foi a reação típica do que Maia é, um deputado com preocupações humanistas e um liberal convicto na economia. Ao mesmo tempo que se horroriza com a confissão sobre o desejo de matar feita por alguém que ocupou a chefia do Ministério Público, e que, por isso mesmo, jamais deveria admitir algo semelhante, imagina as consequências imediatas de tudo isso na economia.

Se Maia pensou logo que os investidores não vão querer vir para o Brasil ao saber que o procurador da República poderia ter matado um colega do STF, outros tiveram conclusões diferentes. Gilmar Mendes, a potencial vítima, pôs em dúvida a legalidade de todas as decisões, atos, investigações, pareceres, acusações de Janot durante os quatro anos em que esteve à frente da Procuradoria-Geral da República. Terminou por aconselhar o ex-procurador a buscar a ajuda de um psiquiatra. Houve também os que viram na atitude de Janot uma tentativa de impulsionar a curiosidade pelo livro de memórias que pretende lançar daqui uns dias. Tudo seria, portanto, uma jogada de marketing.


O certo é que as pessoas que pensam se viram, de repente, se perguntando: “Mas o que é que está acontecendo no País?”. Como é que o ex-procurador da República diz que se armou, foi para o STF, encontrou Gilmar Mendes, sozinho, na antessala do cafezinho, e só não se tornou um assassino por ter sido contido pela mão de Deus?

Assim como essas perguntas começaram a ser feitas a partir de uma revelação chocante, outras, muitas outras, também estão por aí, no ar, e dizem respeito ao País, ao seu passado recente, ao presente e ao futuro. No caso do ex-procurador, choca o fato de uma alta autoridade da República admitir que pensou em eliminar outra alta autoridade da mesma República pela chamada defesa da honra. Gilmar, segundo Janot, enredara a filha dele, ex-procurador, numa mentira, ao dizer que ela advogava para a empreiteira OAS no Cade.

E as filhas dos que não são autoridade, e que são também envolvidas em calúnias, injúrias e difamações? Já pensou se todo mundo se armasse e fosse resolver a questão da defesa da honra à bala? E as vítimas de balas perdidas, crianças das quais roubam não o futuro, mas a vida, como a menina Ágatha, recentemente, no Rio de Janeiro?

O País vive um misto de desesperança e desespero. Desesperança por ver suas autoridades confessando intenções como as de Rodrigo Janot, por ver que as promessas feitas pelos governantes quase nunca são cumpridas, por não ver algo em que possa se agarrar para buscar um fio de esperança na vida. Desespero pelo desemprego que ainda atinge mais de 12,6 milhões de pessoas, pelo subemprego dos que pedalam de 12 a 14 horas por dia para entregar comida e receber menos de um salário mínimo, pelo gigantesco número de empresas quebradas e de vagas de emprego que se fecharam e que não têm perspectiva de reabertura.

As autoridades do País, todas elas, têm responsabilidade com o futuro dos cidadãos, sua saúde, sua educação, seu bem-estar. Boa parte, no entanto, vira-lhes as costas e vai cuidar de seus próprios interesses, de seus amigos ou familiares.

Janot talvez tenha feito de sua intenção de matar o ministro Gilmar Mendes um marketing para vender o livro de memórias que será lançado em breve. Mas, se o fez de caso pensado, foi um marketing macabro diante da realidade tão dura do povo brasileiro.

Pensamento do Dia


Extrema direita da Alemanha se arma cada vez mais

Há indícios de que a cena de extrema direita da Alemanha esteja se armando de forma crescente: durante a investigação de atos criminosos de motivação ultradireitista em 2018, foram apreendidas muito mais armas de fogo do que no ano anterior. A informação consta de uma reportagem da emissora de TV ARD, com base na resposta do Ministério do Interior a um questionamento da bancada do partido A Esquerda do parlamento.

Segundo o órgão, registraram-se 563 crimes de motivação direitista, entre os quais 235 delitos violentos. No curso das investigações, a polícia recolheu 1.091 armas, o que representa um incremento de 61% em relação às 676 apreensões de 2017. Entre elas encontravam-se revólveres, rifles, armas brancas e de guerra, assim como artefatos explosivos e incendiários, e atiradeiras.

Falando ao site de notícias Tagesschau.de, o especialista em extremismo de direita Matthias Quent, do Instituto de Democracia e Sociedade Civil (IDZ, na sigla em alemão), classificou a tendência como "assustadora", indicando "um maciço armamento e criação de arsenal pela cena radical de direita".

Os utradireitistas estariam possivelmente se preparando para investidas contra minorias, opositores políticos e representantes do Estado: "Seu objetivo é intimidar a sociedade e expulsar grupos humanos. Partes dessa cena querem até mesmo a guerra civil", advertiu Quent.

Também no inquérito sobre o assassinato do governador da Hessen Walter Lübcke, conduzido pela Procuradoria Geral, com sede em Karlsruhe, foi encontrado em posse dos suspeitos um total de 46 armas de fogo.

O Ministério do Interior ressalva que "o exame criminal e classificação legal das armas ainda está em andamento", porém, numa sessão não oficial do Comitê Interno do Bundestag (câmara baixa do parlamento alemão), no fim de setembro, um representante do Ministério Público Federal confirmou que as armas foram ocultadas de forma muito profissional.

No começo de junho, o então governador de Hessen, Lübcke, foi morto com um tiro na cabeça no terraço de sua residência no município de Kassel, no norte do estado. A Procuradoria Geral alemã parte do princípio que houve motivação extremista de direita. Capturado há cerca de duas semanas, o suspeito Stephan E. inicialmente apresentou uma confissão, porém mais tarde retirou-a. Ele se encontra em prisão cautelar, sob suspeita de assassinato.
Deutsche Welle

Tempestade fascista

Para seu novo e sempre fundamental ciclo de palestras, como de hábito no Sesc, o prof. Adauto Novaes escolheu um dos temas mais relevantes da atualidade: o neofascismo. A “Volta do fascismo” seria um título geral adequado, mas Novaes, influenciado pelo visionário Paul Valéry, optou pelo poético “Ainda Sob a Tempestade”.

Dissipada a tempestade da Primeira Guerra Mundial, Valéry continuou sentindo no ar o mesmo clima de ansiedade de antes, alimentado por desesperançados temores e terríveis incertezas; uma sensação de mal-estar insanável, como se uma nova tempestade estivesse a caminho. Estava, mesmo, e em três etapas desabou, trazendo Mussolini, a Depressão e Hitler.


A procela da vez já cobre nosso céu há algum tempo. A neodepressão veio em 2008. Quanto ao resto, temos aí Trump, Erdogan, Duterte, Orbán, Bolsonaro. Além de Salvini, provisoriamente no freezer. 

Ao ler, tem pouco tempo, o ensaio Récidive 1938, do filósofo francês Michaël Foessel, Novaes pôde avaliar, com maior riqueza de dados, o quanto a sociedade alemã havia muito estava preparada para aceitar com espantosa naturalidade e bovina tranquilidade o nazismo, oficialmente alçado ao poder em 1933. Na Alemanha de 1938 descrita no livro Novaes deparou com a recidiva bolsonarista.

1938 também foi o ano em que economistas e filósofos se reuniram para recauchutar o liberalismo econômico posto à prova pela tempestuosa Depressão de 1929. Ali nasceu o neoliberalismo redentor, tão historicamente ligado ao fascismo e ao populismo de direita quanto o fascismo à modernidade e ao capitalismo oportunista e predatório.

Pelo menos três dos 25 conferencistas se concentrarão na análise desse embaraçoso conúbio: a filósofa Marilena Chauí, o filósofo e pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica, Grégoire Chamayou, que em seu livro mais recente, La Societé Ingovernable, faz uma “genealogia do liberalismo autoritário”, tema de sua palestra; e Eric Fassin, professor de sociologia da Universidade de Paris 8, especialista em populismo, de esquerda e direita.

Chauí irá dissecar o que identifica como “totalitarismo neoliberal”, com sua concepção de sociedade organizada e administrada, cujo sucesso e eficácia se medem em termos de gestão de recursos e estratégias de desempenho e encarniçada competitividade. Para ela, o neoliberalismo “não é apenas uma mutação histórica do capitalismo com a passagem da hegemonia econômica do capital produtivo ao financeiro, mas também uma mutação sociopolítica”.

Esse “momento neofascista do liberalismo” será um dos tópicos de sua conferência, na abertura do ciclo, segunda-feira. A seu ver, e ela não pensa assim sozinha, os populistas de direita, de Trump a Bolsonaro, não são inimigos do neoliberalismo, e sim seus instrumentos. Talvez mencione Paulo Guedes, czar da economia bolsonarista e ex-colaborador da ditadura de Pinochet no Chile, talvez não, por desnecessário.

“Fascismo é uma latência das formas hegemônicas de vida no interior das democracias liberais.” A partir dessa premissa, Vladimir Safatle fará uma análise libidinal do fascismo, inspirada em Georges Bataille, Wilhelm Reich e pela primeira geração da Escola de Frankfurt e seus estudos sobre a personalidade autoritária e patologias sociais. Boa oportunidade para se falar das arminhas gestuais tão caras ao presidente, de seus rompantes sexistas, de suas fixações genitais, e até das tietes do lavajateiro-mor.

Partindo de uma observação de Hannah Arendt sobre a credulidade na política contemporânea, o doutor em filosofia Helton Adverse mostrará como as pessoas, insuladas nos “espaços de credulidade” das redes sociais, “inclinam-se a acreditar em coisas que chocam o bom senso”, como, por exemplo, o terraplanismo, os imaginários complôs comunistas, as fake news e as alucinações religiosas, e deste modo realimentam o fascismo.

A professora Olgária Matos, que prefere qualificar as redes sociais de “espaços de incredulidade”, examinará de que maneira as transformações aceleradas da tecnologia e da economia impossibilitam formar e reconhecer valores, produzindo um mundo no qual o homem se vê coagido a adaptar-se a algoritmos e programas formais de performance, que o automatizam e condenam à passividade, ao isolamento e à desconfiança. A mesma espécie de desconfiança que alguns decepcionados eleitores do Jair exibem ao proclamar, com certa empáfia: “Não votarei mais em ninguém; todos os políticos são iguais”.

A reemergência na cena política internacional do racismo, do antissemitismo e da tortura também será examinada no ciclo, cabendo ao professor Newton Bignotto abordar com mais profundidade a questão da imigração e da recepção hostil de estrangeiros, agora vistos, em diversos países, não mais como intrusos, mas inimigos do Estado.

A banalização da violência praticada pelo aparato repressor do Estado e, de uns tempos para cá, também pela militância foi o tema escolhido pelo cientista político Renato Janine Ribeiro. “O outro não é necessariamente quem se opõe ao governo; é aquele de quem o governo não gosta”, salienta Ribeiro, que, sem se afastar do tema violência, irá tocar no ódio à inteligência, à ciência, à cultura e à arte, tão característico dos regimes fascistas.

“Odiar a criatividade, com apoio popular, é um perigo”, alerta o ex-ministro da Educação do governo Dilma.

A dobradinha fascismo-machismo não podia faltar. “Nem todo machista é fascista, mas a recíproca não é verdadeira”, dirá Maria Rita Kehl na abertura de sua intervenção. O machismo fascina o fascista e os perversos são seus parentes de primeiro grau. Para a psicanalista, tortura e escravidão, sempre praticadas por pessoas que se dizem “de bem”, são duas formas de perversidade. Esta conferência vai bombar.

Estudo indica que queimadas na Amazônica ocorreram em áreas desmatada este ano

As dramáticas fotos de uma Amazônia em chamas que atraíram a atenção mundial em agosto não correspondem à queima de florestas tropicais, e sim a áreas que foram desmatadas ao longo de 2019 e incendiadas em agosto para concluir sua conversão para uso agrícola. É o que revela um relatório divulgado esta semana pelo Projeto de Monitoramento da Amazônia Andina (MAAP) ao qual a Mongabay teve acesso exclusivo antes de seu lançamento.

Pelo menos 125.000 hectares (o equivalente a 172.000 campos de futebol) foram desmatados desde o início de 2019 e depois queimados em agosto, segundo o relatório. A maioria das ocorrências foi observada no Amazonas, onde 39.100 hectares foram desmatados e depois queimados, ou cerca de 30% do total. A mesma sobreposição também foi detectada em Rondônia e no Pará, onde houve numerosos focos de incêndio em agosto. Esses foram os últimos números disponíveis pelo estudo antes da publicação desta reportagem.

O MAAP divulgou um mapa inédito que liga o desmatamento de 2019 aos focos de incêndio, além de 16 vídeos em time-lapse de alta resolução como evidências complementares da sobreposição de áreas de desmatamento e queimadas na Amazônia.


O mapa sobrepôs duas camadas de dados principais: alertas de desmatamento coletados em 2019 pelo GLAD, o laboratório de Análise e Descoberta Global de Terras da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e alertas de incêndio da agência espacial americana NASA do mesmo período, revelando uma clara sobreposição entre o desmatamento e as queimadas. Na sequência, pesquisadores do MAAP ampliaram imagens de satélites de alta resolução da empresa americana Planet e da Agência Espacial Europeia (satélite Sentinel-2) de áreas selecionadas e criaram vídeos impressionantes em time-lapse no site da Planet que comprovam focos de incêndios em áreas.

“A questão principal é o desmatamento. Agora faz sentido por que os incêndios tinham tanta fumaça. Parece um incêndio florestal, é fumegante como [seria] um incêndio florestal, mas na verdade são queimadas em áreas desmatadas recentemente. O ponto chave era analisar o arquivo de imagens de satélite coletadas ao longo de 2019. Temos muito mais informações do que uma simples foto”, declarou Matt Finer, pesquisador sênior e diretor do MAAP, uma iniciativa da Associação de Conservação da Amazônia (ACA).

“Não estamos minimizando a importância dos incêndios, mas nossas descobertas estão mostrando que o desmatamento também é uma questão crítica”, disse Finer à Mongabay, que teve acesso exclusivo ao relatório antes de seu lançamento. “O mundo precisa estar tão alerta e incomodado com o desmatamento quanto em relação aos incêndios, porque é com a derrubada da floresta que esse processo, que todo esse sistema, tem início… Precisamos dar ao desmatamento a mesma atenção que estamos dando às queimadas, porque ambos estão conectados.”

Em agosto, dezenas de milhares de focos de incêndio devastaram a região amazônica e provocaram protestos em todo o mundo, com manifestantes no Brasil e em vários países exigindo ações efetivas do presidente Jair Bolsonaro para conter as chamas. Os incêndios na Amazônia tornaram-se destaque depois que um corredor de fumaça repentinamente escureceu o céu de São Paulo na tarde de 19 de agosto, provocando uma onda de consternação nas mídias sociais em todo o mundo sob a hashtag #PrayforAmazonas, que alcançou mais de 300.000 tweets em apenas dois dias.

Bolsonaro reagiu imediatamente, levantando a hipótese, sem qualquer prova, de que ONGs poderiam estar por trás dos incêndios como retaliação contra o Governo por causa da suspensão de um repasse de 33,2 milhões de dólares da Noruega ao Fundo Amazônia.

Especialistas destacaram rapidamente a ligação entre o desmatamento e os incêndios, devido à inexistência de uma estação seca severa deste ano. De acordo com a análise dos especialistas, a estratégia de conversão de floresta em pastagem na Amazônia consiste em cortar árvores da floresta tropical, esperar que a madeira seque e depois incendiá-la para limpar completamente a terra e, com as cinzas, fertilizar o solo onde será plantado o capim para pastagem — um processo que claramente ganhou peso científico com as descobertas do MAAP.

As novas descobertas também parecem sustentar as acusações feitas por críticos de Bolsonaro, de que sua retórica inflamada durante e após as eleições de 2018 encorajou os fazendeiros a derrubaram a floresta amazônica depois que o novo presidente assumiu o cargo em janeiro.

De fato, as autoridades brasileiras estão atualmente investigando um grupo de cerca de 70 agricultores e grileiros no estado do Pará que supostamente organizaram o “Dia do Fogo” em 10 de agosto, em apoio a Bolsonaro e a suas medidas para enfraquecer a ação de fiscalização de órgãos ambientais no país, informou a revista Globo Rural.

Procurado pela Mongabay para comentar o relatório do MAAP, o Ministério do Meio Ambiente não se pronunciou.

Embora a análise do MAAP não tenha detectado grandes incêndios florestais no Brasil até o momento, o risco ainda existe à medida que a estação seca se aproxima, dado que muitas ocorrências de incêndios foram detectadas nos limites entre terras agrícolas e áreas florestais, explicou Finer.

“Os incêndios… atingem a linha da floresta e [parecem] apagar-se, mas [ainda] estão impactando sua borda… E esses incêndios que queimam áreas recentemente desmatadas podem facilmente se transformar em incêndios florestais. Ainda não vimos isso acontecer este ano na Amazônia brasileira, mas, à medida que a estação seca continua, ou se houver um ano de [piora] da estiagem, esse processo de queima de terras desmatadas recentemente ficará muito, muito pior. Podemos começar a testemunhar grandes incêndios florestais”, alertou o diretor do MAAP.

Até agora, o MAAP detectou grandes incêndios atingindo a vegetação nativa apenas em ecossistemas menos úmidos, incluindo a floresta seca da Bolívia e o Cerrado brasileiro.

O relatório também inclui vídeos em time-lapse de alta resolução de incêndios ocorridos nos territórios indígenas Kayapó e Munduruku, onde Finer supõe que as queimadas tenham como objetivo regenerar áreas de pastagem para criação de gado. A área queimada nas duas reservas indígenas totalizou 24.000 hectares e 700 hectares, respectivamente. O relatório também detectou incêndios recentes nos limites do território Kayapó, no norte de Roraima, que queimaram cerca de 930 hectares.

“Quando vimos a floresta seca queimando na Bolívia, lá vimos realmente a imagem que todos tinham na cabeça: incêndios fora de controle, queimando ecossistemas naturais. Mas, no Brasil, toda vez que ampliávamos a imagem de um incêndio, o que víamos era o fogo queimando uma área já desmatada. Nunca vimos um incêndio fora de controle varrendo a floresta tropical [em agosto]”, explicou Finer.

Na versão preliminar do relatório, também obtida com exclusividade pela Mongabay, a área desmatada e depois queimada era de 52.500 hectares (o equivalente a 72.000 campos de futebol).

Em março, o MAAP detectou grandes incêndios florestais no norte de Roraima, incluindo queimadas próximas ao território indígena Yanomami. Entre janeiro e agosto, as queimadas em terras indígenas aumentaram 88% em comparação com o mesmo período de 2018, de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), citando dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

"A narrativa global [é que] a floresta amazônica está queimando; há incêndios devastando a Amazônia”, conclui Finer. Mas, segundo ele, é fundamental que o mundo “compreenda a importância do desmatamento nesse processo. O cenário principal que estamos vendo é o do desmatamento seguido de incêndio. Essa é a mensagem que o público precisa entender: há duas questões juntas — floresta derrubada e floresta queimada, e não apenas incêndios. E para evitar as queimadas, precisamos evitar o desmatamento.