terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Brasil de sangue

 


Está chegando a hora de acertarmos as contas com Bolsonaro

Faz um ano que começou no Brasil a vacinação contra a Covid-19. Ela deve-se ao governador João Doria (PSDB), de São Paulo, porque o presidente Jair Bolsonaro era contra.

O país tem agora 78,3% de sua população vacinada com alguma dose, e 68,6% com duas ou com a dose única. É o 54º colocado no ranking do Our World in Data dos países que mais se vacinaram.

Registre-se o empenho de Bolsonaro em retardar a vacinação, causando mortes que poderiam ter sido evitadas. Foi bem-sucedido desde que o vírus surgiu na China em dezembro de 2019.

Não foi naquele ano, nem em março de 2020 quando o vírus matou aqui pela primeira vez, nem em janeiro de 2021 quando o primeiro brasileiro foi vacinado, que Bolsonaro disse com orgulho:

“Da minha parte, eu não tomei vacina e não vou tomar vacina. É um direito meu e de quem não quer tomar. Até porque os efeitos colaterais e adversos são enormes”.


A declaração foi feita por ele há pouco mais de um mês, precisamente em 8 de dezembro. Há apenas 6 dias, ele disse ser contra a vacinação infantil devido aos seus “efeitos colaterais”.

Como 79% dos brasileiros são a favor de vacinar as crianças, e 81% da apresentação de comprovante de vacinação para a entrada em locais fechados, Bolsonaro, ontem, deu o dito pelo não dito.

Ao seu modo cínico e debochado, queixou-se em entrevista a uma emissora de rádio do Espírito Santo:

“Deixo bem claro, foi o nosso governo que comprou 400 milhões de doses de vacinas. Continuam me acusando de ser contra a vacina, mas como? Se comprei 400 milhões de doses?”

Um apanhado de 15 afirmações feitas por ele nos últimos 15 meses confirma o que Bolsonaro quer que esqueçamos:

2.set.2020 – “Ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”.

21.out.2020 – “Para o meu governo, qualquer vacina, antes de ser disponibilizada à população deverá ser comprovada cientificamente pelo Ministério da Saúde e certificada pela Anvisa. O povo brasileiro não será cobaia de ninguém”.

5.dez.2020 – “Como sempre, eu nunca fugi da verdade, eu te digo: eu não vou tomar vacina. E ponto final. Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu. E ponto final”.

17.dez.2020 – “Se você virar um jacaré, problema seu. Se você virar super-homem, se nascer barba em mulher ou algum homem começar a falar fino, eles não vão ter nada a ver com isso.”

19.dez.2020 – “A pressa da vacina não se justifica porque você mexe com a vida das pessoas, você vai inocular algo em você”.

7.jan.2021 – “Vocês sabem quantos por cento da população vai tomar vacina? Pelo o que eu sei, menos da metade vai tomar”.

11.fev.2021 – “Quando eu falei remédio lá atrás, levei pancada. Nego bateu em mim até não querer mais. Entrou na pilha da vacina. O cara que entra na pilha da vacina, só a vacina, é um idiota útil. Nós devemos ter várias opções”.

4.mar.2021 – “Tem idiota que a gente vê nas redes sociais, na imprensa, [dizendo] ‘vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe. Não tem [vacina] para vender no mundo”.

17.jun.2021 – “Eu estou vacinado entre aspas. Todos que contraíram o vírus estão vacinados, até de forma mais eficaz que a própria vacina, porque você pegou vírus para valer. Quem pegou o vírus está imunizado, não se discute”.

14.out.2021 – “Por que obrigar criança a tomar vacina? Qual a chance de uma criança, por exemplo, contrair o vírus e ir a óbito? […] Parece, não quero afirmar, que é o lobby da vacina”.

7.dez.2021 – “A gente pergunta: por que o passaporte vacinal? Essa coleira que querem botar no povo brasileiro. Cadê nossa liberdade? Prefiro morrer do que perder minha liberdade.”

19.dez.2021 – “Vacina para criança: primeiro, só autorizado pelo pai. Se algum prefeito, governador, ditador aí quiserem impor é outra história. Mas por parte do governo federal tem que ter a autorização dos pais. Tem que ter uma receita médica”.

27.dez.2021 – “A questão da vacina para crianças é uma coisa muito incipiente, o mundo ainda tem dúvidas, e não vem morrendo crianças que justifique uma vacina emergencial”.

6.jan.2022 – “A vacina será de forma não obrigatória. Então, ninguém é obrigado a vacinar o teu filho. Se é não obrigatória, nenhum prefeito ou governador poderá impedir o garoto ou a garota de se matricular nas escolas por falta de vacina”.

12.jan.2022 – “300 e poucas crianças, lamento cada morte, ainda mais de crianças que a gente sente mais. Mas não justifica vacinação pelos efeitos colaterais adversos que essas pessoas têm”.


A próxima viagem internacional de Bolsonaro será ao Suriname nesta quinta-feira. Dos 52 integrantes da equipe precursora que voariam para lá, 10 contraíram o vírus.

Quer dizer: não basta ter dado passe livre ao vírus para que matasse quem tivesse de morrer no Brasil, ele pode pôr em risco no Suriname a saúde dos que o receberem, e à sua comitiva.

O mensageiro da morte não liga para a própria vida desde que escolheu ser paraquedista e antes de o Exército dispensá-lo por conduta antiética, acusado de pretender jogar bombas em quartéis.

O médico responsável pela internação de Bolsonaro no último dia 3º, o cirurgião Antônio Luiz Macedo, aconselhou Michelle, a primeira-dama, a pôr um cadeado na moto dele.

“O presidente não pode fazer força também por um bom tempo, a força pode fazer o abdome torcer”, explicou Macedo. Há dois dias, Bolsonaro passeou de moto em Brasília.

Se não tem amor à vida, o problema é dele. Ameaçar a vida alheia, porém, é um problema que afeta a todos os seus governados. Está próxima a hora de acertarmos as contas com Bolsonaro.

Negacionismo assassino

Mortalidade acumulada da Covid-19 no Brasil: 2.900 mortes por um milhão de pessoas. No Vietnã, 360 mortes por um milhão de pessoas. Aguardo comentários de que o Vietnã é uma ilha, muito mais desenvolvido do que o Brasil. Negacionismo mata!
Pedro Hallal, epidemiologista

Condeno a ignorância que reina neste momento nas democracias

Condeno a ignorância que reina neste momento tanto nas democracias como nos regimes totalitários. Essa ignorância é tão forte, muitas vezes tão total, que parece desejada pelo sistema, se não pelo regime. Muitas vezes pensei sobre como poderia ser a educação de uma criança. Acho que precisamos de estudos básicos, muito simples, onde a criança aprenderia que existe dentro do universo, num planeta cujos recursos, ela mais tarde terá que conservar, que depende do ar, da água, de todos os seres vivos, e que o menor erro ou a menor violência corre o risco de destruir tudo.

Aprenderia que os homens mataram-se em guerras que nunca apenas produziram outras guerras, e que cada país organiza a sua história, enganadoramente , de forma a louvar o seu orgulho.


Ensiná-la-íamos o suficiente sobre o passado para que se sentisse ligada com os homens que a precederam, para admirá-los onde merecem estar, sem fazer deles ídolos, nem do presente, nem de um futuro hipotético.

Tentaríamos familiarizá-la com os livros e outras coisas; saberia os nomes das plantas, conheceria os animais sem se permitir as horríveis experiências impostas às crianças e aos adolescentes a pretexto da biologia; aprenderia a dar primeiros socorros aos feridos; a educação sexual incluiria estar presente no parto, a educação mental, a visão de doentes graves e mortos.

Receberia, também, as noções simples de moralidade sem as quais a vida em sociedade é impossível, uma instrução que as escolas de ensino fundamental e médio não ousam mais dar neste país.

Em matéria de religião, não imporia nenhuma prática ou nenhum dogma, mas dir-se-ia algo de todas as grandes religiões do mundo, e principalmente do país onde está, para despertar o respeito e a destruição de certos preconceitos odiosos.
(...)
Definitivamente, há uma maneira de falar mais cedo com as crianças sobre coisas realmente importantes .
Marguerite Yourcenar  (1980)

Há algo de bom no reino da Dinamarca

Não se trata de bem material. O Brasil nunca será a Dinamarca, até porque os dois países não poderiam ser mais diferentes. A Dinamarca é rica. O Brasil patina há décadas na tal “armadilha da renda média”. O Brasil é um país continental. A área da Dinamarca é menor que a da Paraíba. O Brasil ginga ao som de Anitta e Pablo Vittar. A Dinamarca segue o baticum tecnológico de When Saints Go Machine e Kasper Bjorke.

Enquanto nossos melhores cérebros buscam abrigo fora do Brasil, a Dinamarca os atrai. O urbanista carioca Maurício Duarte tem 39 anos e vive em Copenhague há sete, trabalhando nos melhores escritórios de arquitetura da cidade.

Maurício Duarte dá uma pista sobre o tal bem imaterial que a Dinamarca tem de sobra. Lá, o governo desempenha um papel que Maurício chama de “catalisador”. De um lado, ouve a população – e, a partir do que ouve, desenha políticas públicas. De outro, costura parcerias com a iniciativa privada.

Os investimentos trazem mais empresas, que geram empregos, que atraem talentos. Os recursos alimentam o estado de bem-estar social, que garante a todos o mínimo para uma vida digna. Ano após ano, a Dinamarca sobe ao pódio nos rankings internacionais de felicidade.

É um país onde é possível planejar a longo prazo. O bairro-modelo de Nordhavn, em Copenhague, vem sendo erguido aos poucos. A previsão é de que fique pronto em 20 anos. “Os contratos entre empresas, e entre empresas e governos, são sucintos, às vezes não têm mais de uma página. A Justiça funciona e o poder público costuma honrar seus compromissos”, diz Maurício.

A palavra-chave – o bem imaterial que nos falta e sobra na Dinamarca – é confiança. Da população no governo, dos investidores na capacidade do poder público em garantir contratos.

Em entrevista a José Fucs, do Estadão, o cientista político Antônio Lavareda mostra como tal confiança se perdeu no Brasil. Falta transparência aos governos, como no caso do “orçamento secreto”. Sobram governantes que se dizem “outsiders” e criminalizam a política – e, por tabela, a democracia – como se não fizessem parte dela.

Estamos distantes da Dinamarca, mas poderíamos nos aproximar um pouco se nossos candidatos assumissem um compromisso no ano eleitoral: fazer uma campanha de alto nível, que permitisse recuperar a confiança na política e no País. Confiança traz investimento, empregos, bem-estar – e, como mostram os dinamarqueses, o maior dos bens imateriais: a felicidade.

Simples assim

A todo momento há alguém dizendo na televisão: “Eu só queria pontuar que…”. Apresentadores, repórteres, comentaristas, entrevistados, todos estão freneticamente querendo pontuar. Ninguém está a fim de virgular, exclamar, interrogar e muito menos ponto-virgular. Só de pontuar. É uma das palavras do momento. E, como outras do gênero, desnecessária. Se, em vez de pontuar, a pessoa disser logo aquilo que quer pontuar, sua supressão não fará a menor falta.

Outra mania em curso na praça é “simples assim”. Para mim, o primeiro a usá-la, há mais de 30 anos, foi Paulo Francis. Era tradução de “that simple” e combinava com o jeito de Francis argumentar. Ele morreu em 1997 e, por décadas, não ouvi ninguém dizer “simples assim”. Mas, de há algum tempo, passei a escutá-la no atacado e no varejo —não no sentido original de “não é complicado”, mas no de “Ponto final!”, “Cala a boca!”, “Acabou, porra!” e outras bolsoexcreções. O mesmo se aplica a “Vida que segue”, expressão popularizada no rádio dos anos 60 por João Saldanha. Definia um certo fatalismo, como o singelo “É isso aí”. Hoje é também sinônimo de “Assunto encerrado!”

Há transmigrações semânticas benignas. “Robusto” é o caso. Até há pouco, designava uma pessoa forte, rija, maciça. De repente, passou a definir também um conjunto de provas capazes de condenar alguém —”Provas robustas”, dizem os magistrados. Pois é o que teremos quando aqueles sujeitos musculosos que fazem a tara de Jair Bolsonaro, associados à produção de fake news, enfrentarem as provas robustas que estão se acumulando contra eles.

As palavras vão e vêm. Impossível ficar hoje mais de cinco minutos sem ouvir alguém dizer “assertivo”, “resiliência” e “empatia”. No passado, já foram palavras de 100 dólares e só os intelectualizados as usavam. Agora saem de graça.

Tudo bem. Temo apenas que, assim como entraram, logo saiam da língua —sem saber por quê.

Ruy Castro