quinta-feira, 3 de março de 2022

No Brasil do Guarujá

 


Vladimir, o Terrível

Há uma figura histórica na qual Vladimir Putin se espelha: Ivã, o Terrível, fundador do czarado e primeiro autocrata a assumir o poder como o Czar de Todas as Rússias, em 1547. Explosivo, paranoico e implacável, Ivã IV – seu nome oficial – inspirava terror a outros povos e à sua própria corte.

A ferro e fogo transformou seu país em um estado multiétnico, com um território de quase um bilhão de hectares. O império russo construído por ele tinha como pilar a concepção de que a pequena Rússia (Ucrânia), a Rússia Branca (Belarus) e a Grande Rússia eram constituídas por um mesmo povo e partes indissolúveis de uma mesma nação.


O Império Russo existiu até a vitória da revolução bolchevique de 1917, e seu conceito continuou praticamente intocável na formulação da União Soviética. O mesmo estado forte concentrado nas mãos de um autocrata, no qual a Rússia era a mais igual entre repúblicas teoricamente iguais, se manteve inalterado até o fim da “Pátria-mãe do socialismo”. Não por acaso, Ivã, o Terrível, também era admirado por Stalin.

O fim da União Soviética gerou um mundo unipolar com a divisão do império bolchevique em quinze países independentes. É no quadro de uma Rússia enfraquecida e sem autoestima que surge a figura de Vladimir, o Terrível do terceiro milênio. Sua personalidade tem os mesmos traços de seu ancestral: paranoico e implacável na sua obstinação de reconstruir o antigo Império Russo.


Putin surge em uma Rússia nostálgica e sem cultura democrática. Saiu do czarismo para a ditadura do partido único e do regime bolchevique, constituiu-se em um capitalismo de estado autocrático. Uma pesquisa de 2017 apontou Joseph Stalin e Vladimir Putin como as duas personalidades mais admiradas pelos russos.

Na Rússia pós-socialismo real, a “acumulação primitiva” se deu com membros da antiga burocracia partidária e dos serviços de segurança, que se transformaram, da noite para o dia, em capitalistas, ao comprar a preço de banana antigas empresas estatais. O próprio Vladimir Putin vem daí. O núcleo duro de seu governo também está povoado por ex-membros da KGB e de seu sucedâneo, o FSB.

Na guerra da Ucrânia o presidente russo inicialmente camuflou o seu real objetivo estratégico – a reconstrução do Império Russo – sob o pretexto de se basear em uma reivindicação reconhecida por legítima por muitos especialistas e historiadores.

Quando foi à TV para anunciar a sua guerra, reencarnou o espírito de Ivã, o Terrível ao declarar que a Ucrânia jamais deveria ser um país independente. E ainda criticou Lenin por ter dado o status de república ao país ucraniano.

Como a roda da história não gira para trás, o delírio da reconstrução do antigo Império Russo é impossível. Nem mesmo a “união de todas as Rússias”, que parece ser seu objetivo imediato. O teatro de operações no qual Putin se move não é o mesmo dos primórdios do czarismo.

Falta combinar com os russos, ou melhor, com os ucranianos. E mais ainda com o restante do mundo.

Ao ameaçar apertar o botão da arma nuclear, o Ivan do século 21 deu provas de não ter limites na sua paranoia. Pode ser um blefe, mas não se deve subestimar um autocrata calculista e frio. O uso de bombas fragmentárias e de mísseis termobáricos, ambos com imenso poder de destruição, está no seu cardápio de terror.

Se leu o artigo de Kissinger, “Como o conflito da Ucrânia termina”, Putin parece não ter entendido nada. Se meteu numa guerra que não sabe como termina para seu próprio povo e seu país. Cometeu o mesmo erro de Stalin de 1939, na “guerra de inverno”, entre a União Soviética a Finlândia. O ditador soviético pensava que seria um passeio, uma guerra de poucos dias e indolor. Levou três meses e teve de pagar um preço altíssimo em termos de derramamento de sangue do seu próprio povo.

Inegavelmente os russos enfrentam uma resistência dos ucranianos que não estava nos planos. Podem, ao final, até dominar Kiev, mas a estratégia de uma blitzkrieg entrou em colapso. Batalhas urbanas costumam ter um preço altíssimo. Vide Stalingrado e a batalha de Berlim. O soldado russo é excelente quando trata de defender a sua própria pátria. Derrotaram Napoleão e Hitler, mas, certamente, sua determinação não é a mesma numa guerra onde desempenham o papel de agressor.

O autocrata russo já perdeu uma guerra muito maior: a da opinião pública. Está absolutamente isolado no concerto das nações. Uma guerra é envolve muitos fatores, não só o poderio bélico. Os fatores extra palco de operações pendem desfavoravelmente para Putin. O rublo desvalorizou-se e os juros subiram exponencialmente, já como reflexo das represálias econômicas ao seu país.

Mais dia, menos dia, a opinião pública russa se colocará em sintonia com o sentimento mundial. A guerra não é um bom negócio para ninguém. Se o plano de Putin é reconstruir o império czarista, sua estratégia pode levar a abreviar a sua era.

Volta-se a Ivã, o Terrível, que, em um dos seus surtos paranoicos, matou o próprio filho. Vladimir, o Terrível, pode matar todos os filhos do mundo se apertar o botão nuclear. Impedi-lo passou a ser uma questão de sobrevivência da humanidade.

Em defesa do futuro

A invasão da Ucrânia pela Rússia marca uma guinada na história europeia.

Nas últimas décadas, muitos se iludiram de que a guerra não encontraria mais lugar na Europa. Que os horrores que caracterizaram o século XX eram monstruosidades irrepetíveis. Que a integração econômica e política que buscamos com a União Européia nos protegeria da violência. Em outras palavras, que pudéssemos dar por garantidas as conquistas de paz, segurança, bem-estar que as gerações que nos precederam alcançaram com enormes sacrifícios.

As imagens que nos chegam de Kiev, Kharkiv, Maripol e outras cidades da Ucrânia lutando pela liberdade da Europa marcam o fim dessas ilusões.

A resistência heroica do povo ucraniano e de seu presidente Zelensky colocou uma nova realidade diante de nós, e nos obrigou a fazer escolhas que eram impensáveis ​​até alguns meses atrás.

A agressão – premeditada e sem motivos – da Rússia a um país vizinho remete-nos há mais de oitenta anos, à anexação da Áustria, à ocupação da Checoslováquia e à invasão da Polônia.

Não é apenas um ataque a um país livre e soberano, mas um ataque aos nossos valores de liberdade e democracia e à ordem internacional que construímos juntos.


Como observou o historiador Robert Kagan, a selva da história está de volta, e suas videiras querem envolver o jardim da paz em que estávamos convencidos de que vivíamos.

Agora cabe a todos nós decidir como reagir.

A Itália não pretende virar para o outro lado.

O projeto revanchista do presidente Putin se revela hoje com contornos claros, em suas palavras e atos.

Até agora, os planos de Moscou para uma rápida invasão e conquista de grandes áreas do território ucraniano em poucos dias parecem fracassar, também graças à corajosa oposição do exército e do povo ucraniano e à unidade demonstrada pela União Européia e seus aliados.

As tropas russas continuam seu avanço para tomar posse das principais cidades.

Uma longa coluna de veículos militares está nos arredores de Kiev, onde foram registrados ataques de mísseis e explosões durante a noite, inclusive em detrimento de áreas residenciais.

A Itália respondeu ao apelo do presidente Zelensky por equipamentos militares, armamentos e veículos para se proteger da agressão russa.

O governo democraticamente eleito deve ser capaz de resistir à invasão e defender a independência do país.

A um povo que se defende de um ataque militar e pede ajuda às nossas democracias, não é possível responder apenas com estímulos e atos de dissuasão.

Esta é a posição da Itália, da União Europeia, dos nossos aliados.

A invasão da Rússia não é apenas sobre a Ucrânia. É um ataque à nossa concepção de relações entre Estados baseada em regras e direitos. Não podemos deixar a Europa regressar a um sistema em que as fronteiras são traçadas à força. E onde a guerra é uma forma aceitável de expandir sua área de influência. O respeito pela soberania democrática é um pré-requisito para uma paz duradoura.

A luta que apoiamos hoje e os sacrifícios que faremos amanhã são uma defesa dos nossos princípios e do nosso futuro.
Mario Draghi, primeiro-ministro italiano em discurso no Senado

Como guerra de Putin revela a ignorância no discurso público


Guerras, genocídio, crimes na Europa parecem exercer sobre alguns brasileiros um fascínio especial, o qual os inspira menos à reflexão do que a exibir, com bastante alarde, a própria ignorância








Quando um desses youtubers brasileiros neo-direitistas – o nome dele é Monark – afirmou, simplesmente porque lhe deu na telha, que se devia fundar um partido nazista no Brasil – ou seja, um partido visando o assassinato de adversários políticos, minorias étnicas e deficientes, além de legitimar campos de concentração e guerras ofensivas –, eu considerei tratar-se de mais um sintoma de uma dinâmica que já venho observando há bastante tempo. Sobretudo na internet, mas também nas mídias tradicionais e na política brasileira, estamos sendo confrontados com uma nova geração de ignorantes, prepotentes e burros.


Costumam ser pessoas que, em razão de uma projeção alcançada por caminhos duvidosos, se sentem com autoridade para dizer as maiores imbecilidades, sem pudor nem moderação. Eles se consideram corajosos por dizer coisas supostamente provocadoras ou tabus, ou que simplesmente soam bem aos seus ouvidos.

Na realidade, eles só têm uma boca deste tamanho, mas nenhuma informação. Fazem barulho, mas nunca leram um livro. Consideram-se espertos, mas seus raciocínios são de uma simploriedade arrepiante. Sabem o preço de tudo mas o valor de nada. São pessoas que nada qualifica a manifestar suas ideias ao grande público. Fazem muita confusão, mas por trás não há nada além de ar quente. São aqueles concidadãos sobre quem o filósofo britânico Bertrand Russel certa vez advertiu: "O problema com o mundo é que os estúpidos são excessivamente confiantes, e os inteligentes são cheios de dúvidas."

Pode-se observar esse fenômeno por toda parte, seja no YouTube, no rádio ou na televisão. Mas é também na política onde alardeiam suas opiniões, baseadas menos em saber do que, acima de tudo, numa crença prepotente nas próprias convicções.

Infelizmente há exemplos disso aos montes. Seja o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, afirmando que a escravidão foi "benéfica" para os escravos; ou Mário Frias, o secretário especial da Cultura, qualificado pelo próprio primo, o historiador Raul Milliet, como "inculto", "folgado" e "bajulador" – um julgamento que Frias faz todo possível para confirmar.

Ou o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, segundo quem Jair Bolsonaro evitou a Terceira Guerra Mundial e merecia o Nobel da Paz porque a visita do mandatário brasileiro ao ditador russo o fez "recuar" da invasão na Ucrânia. Pouco depois, Putin marchava sobre o país vizinho.

E assim chegamos ao tema: a ofensiva russa contra a Ucrânia, sobre a qual circulam no Brasil as mais diversas opiniões e teorias. O que mais me apavora é quanta ressonância a propaganda russa na internet encontra justamente entre certos esquerdistas brasileiros.

Movidos por um reflexo anti-imperialista, eles acreditam e partilham toda opinião em que os Estados Unidos, a Otan e a União Europeia sejam declarados verdadeiros culpados por todo o mal do mundo. Eles justificam o assalto de Putin repetindo o argumento do ditador de que haveria na Ucrânia neonazistas que até mesmo definem a política do país (embora o próprio presidente ucraniano seja judeu). Com o argumento da existência de neonazistas, se poderia invadir e bombardear quase todo país do mundo, inclusive a Alemanha e o Brasil.

Especialmente peculiar é também a admiração do anticomunista ferrenho Jair Bolsonaro pelo ex-agente da KGB Vladimir Putin. Ao declarar a neutralidade do Brasil na guerra na Ucrânia, Bolsonaro alinha o país com as ditaduras socialistas da Venezuela, Cuba, Nicarágua, Belarus, China e Coreia do Norte. E assim, por uma vez na vida, o presidente e uma parte da esquerda brasileira estão de acordo.

Uma prova dos distúrbios intelectuais e hormonais que a guerra na Ucrânia desencadeia no Brasil é a reação do deputado estadual e pré-candidato ao governo de São Paulo, Arthur do Val (Podemos-SP), que está a caminho da fronteira da Ucrânia com a Eslováquia, junto com o coordenador nacional do MBL, Renan Santos. Segundo este, a dupla viajou para relatar o que está ocorrendo na região.

Fico muito curioso sobre o que os dois vão relatar. Pergunto-me se algum deles fala ucraniano ou russo, eslovaco ou polonês? Qual é seu conhecimento prévio sobre a região, com que especialistas falaram, que livros leram? Parece-me uma empreitada cuja meta não é realmente descobrir e relatar algo sobre a guerra, mas sim se colocar em cena, se aproveitar da guerra como palco.

Assim como Monark, para se fazer de importante, usou um acontecimento pavoroso da Europa, do qual não entendia nada e com que não tinha qualquer relação, os dois jovens políticos pretendem transformar o assalto militar da Rússia à Ucrânia num trampolim para suas próprias carreiras.
Philipp Lichterbeck