sábado, 13 de fevereiro de 2021
'Divide e reina', a estratégia diabólica de Bolsonaro
A estratégia do “divide e reina” remonta ao Império Romano e a frase é atribuída ao imperador Júlio César. Foi também usada pelo cristianismo e atribuída a Satanás, o rei da discórdia e da divisão. Também foi adaptada às guerras e guerrilhas modernas e até mesmo às democracias, para ganhar eleições. Trata-se de criar confusão para confundir e dividir a sociedade enquanto o déspota se fortalece.
Essa tem sido a tática de Bolsonaro, tanto na campanha eleitoral como agora no Governo. Se Satanás é visto como o rei da mentira, Bolsonaro é o melhor expoente das fake news, da mentira sistemática para confundir e desconcertar a população. Bolsonaro confundiu a sociedade e a dividiu com suas ambiguidades na gestão da pandemia, primeiro minimizando-a, depois aconselhando medicamentos que a ciência e a medicina consideram ineficazes e até perigosos.
Dividiu novamente a sociedade sobre a importância da vacina, criando uma corrente contra ela. Com isso, adiou a aquisição do imunizante, politizando-o.
Fomos um dos últimos países a iniciar o processo de vacinação, a única possibilidade de combater a propagação da covid-19 e suas variantes cada vez mais contagiosas. E assim ele dividiu a sociedade. Mentiu descaradamente, jogando por terra todas as promessas feitas durante a campanha eleitoral contra a velha política e contra a corrupção que agora está exposta em sua própria família. Ele se tornou assim o maior cruzado na guerra para encerrar a luta pela moralidade político-empresarial.
E talvez sua estratégia de dividir para reinar tenha ficado mais clara nas eleições para a presidência da Câmara e do Senado. Bolsonaro conseguiu impor seus candidatos, mas à custa de dividir e pôr em confronto os partidos, que saíram desgastados da batalha. Foi uma jogada que fortaleceu seu poder ao mesmo tempo em que frustrou a possibilidade de criar uma frente ampla que poderia derrotá-lo nas eleições presidenciais. Sua tática deu bons resultados para ele, pois os partidos saíram da luta enfraquecidos e estão como baratas tontas tentando, por enquanto em vão, recolher os escombros da batalha perdida.
E ainda tem mais. Bolsonaro também conseguiu criar cizânia e balbúrdia em todas as outras instituições, que parecem cada dia mais divididas e confusas. No Congresso, no Supremo Tribunal Federal e na Justiça, passou da ameaça de fechá-los a dividi-los entre si, acabando por politizá-los ainda mais. Tem sido sua tática diabólica ir contaminando as instituições e a sociedade, aproveitando-se disso para escapar das dezenas de pedidos de impeachment contra si que dormem no Congresso.
Enquanto as forças democráticas não entenderem a política de Bolsonaro de dividir para reinar, acabarão se devorando ao passo que o déspota e golpista vai ficando mais robusto, dando de presente bilhões em dinheiro público para comprá-las e tê-las a seus pés. Será necessário ver como a sua política de colocar uns contra os outros no melhor estilo de sua política negacionista e de desorientar a sociedade terá consequências na recuperação econômica de um país que ele próprio disse que está quebrado e onde as intrigas políticas criadas pelo presidente aumentam cada vez mais a pobreza e até a miséria.
Isso faz com que a imagem do Brasil esteja no seu pior momento em décadas, segundo revelou um estudo realizado pela Curado Consultoria Associados, especializada em gestão de imagem, publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo.
O estudo analisou as informações sobre o Brasil que saíram nas sete publicações consideradas os mais influentes do mundo: The New York Times e The Washington Post. dos Estados Unidos, The Guardian e The Economist da Inglaterra, Le Monde da França, Der Spiegel, da Alemanha e El País global, da Espanha. O resultado do levantamento é devastador. Dos 1.179 textos publicados ao longo de 2020, 92% foram negativos, e isso significa que o Brasil vive uma “crise de reputação”. O estudo destaca que o Governo Bolsonaro tem sido “incompetente e vulnerável”.
O que mais contribuiu para a criação dessa imagem negativa foi, segundo a referida pesquisa, a forma desastrosa com que Bolsonaro conduziu a crise da pandemia, sua política suicida de destruição da Amazônia, a crise econômica que tornou ainda mais aguda a já grave desigualdade social no país e uma política externa desastrosa.
A imagem positiva de que o Brasil desfrutou durante décadas no mundo não excluía suas feridas ainda abertas, como o racismo, a violência e a pobreza. O que acontecia é que o Brasil sempre soube projetar o melhor do país, seus valores mais ancestrais e sua parte lúdica. E não só futebol e Carnaval, mas também sua multicultura, a música popular, com a particularidade do samba e da bossa nova, cujos grandes artistas conquistaram o mundo. E com isso tudo, o caráter acolhedor do brasileiro com os estrangeiros.
Ainda hoje em São Paulo, a maior cidade da América Latina, convivem em paz pessoas de mais de 100 nacionalidades. Lembro-me de que nas viagens que fiz pelo mundo, na companhia de correspondentes de vários países, os mais bem recebidos sempre eram os brasileiros. Recordo-me da expressão de simpatia com que eram recebidos: “Ah, brasileiros!”
Não há dúvida de que muito da imagem de simpatia de que o Brasil desfrutava se devia à sua magnífica política de relações exteriores. Seus ministros sempre foram figuras de grande prestígio e preparo intelectual, e enviavam pelo mundo como embaixadores pessoas de grande empatia e capazes de vender os aspectos mais positivos do país. De fato, a diplomacia brasileira sempre foi considerada uma das melhores do mundo.
E agora? Passamos para o outro extremo com um ministro de Relações Exteriores que sempre cria problemas com os outros países e que esteve à ponto de azedar gravemente as relações com as grandes potências mundiais, ao mesmo tempo em que fazia de Trump seu ídolo pessoal. E quando o então presidente dos Estados Unidos perdeu as eleições, o Brasil foi o último país do G20 a parabenizar o vencedor Joe Biden, enquanto Bolsonaro continuava a defender que Trump havia vencido as eleições.
Tudo isso e mais a desastrosa política para a educação e o desprezo pela cultura, humilhando artistas e intelectuais, criaram no exterior uma política de rejeição do Brasil que pode ter custos muito sérios, afastando os empresários estrangeiros de investir no país. E é sabido que quando um país começa a ser visto no exterior em contínua crise política e de valores, precisará de muitos anos para recuperar sua face positiva e atraente.
Tudo isso vai destruindo internacionalmente a imagem positiva do país do futuro de que o Brasil desfrutava. Nada na política está separado da prosperidade econômica e das relações positivas com as outras nações. O resultado é sempre a perda não só de prestígio, mas também de credibilidade internacional que não pode deixar de afetar sua política econômica, empobrecendo ainda mais o país.
Hoje, em um mundo globalizado e conectado a todo instante, não cabem mais nem as muralhas da China nem os muros entre o México e os Estados Unidos nem a ressurreição das fronteiras europeias. O mundo está mudando com tal velocidade que tentar se fechar em sua casca como o Governo fascista de Bolsonaro tenta fazer é ficar fora da história.
Até os conceitos de tempo e espaço estão mudando no mundo. Dentro de pouco tempo será possível viajar do Brasil para a Europa ou EUA em 20 minutos. Um empresário de São Paulo poderá tomar o café da manhã em casa, ir a Londres dar uma palestra e voltar para almoçar com a família. E não se trata de ficção científica, mas de uma realidade que já está em experimentação.
Por tudo isso, pretender que o Brasil, quinto maior país do mundo, permaneça fechado, envenenando suas relações com o restante do planeta em prol de uma política petrificada e empobrecida, é querer voltar às cavernas. Para recuperar o prestígio perdido, o Brasil merece algo mais do que essa política destrutiva e negacionista.
Vírus e a Praga
Tudo o que tem o Brasil a fazer hoje é livrar-se da Coronavirus-19 e do Bolsonavirus-22 (e por este último entendo toda a corja que acompanha o nosso "presidemente"). Um vírus mata. O outro imbecilizaAugusto de Campos, poeta que completa 90 anos
Mapinguari
Noite de lua, no terreiro, os homens procuram se esquecer do assunto eterno que é a falta de chuva e recordam histórias do Amazonas. Recordam é modo de dizer: desses todos que estão aí nenhum foi do tempo em que se ia para o Amazonas, e o que sabem ouviram de pais e avós. Contam os casos clássicos de boto e curupira, e hoje saiu em cena um bicho pouco falado, o mapinguari.
Bicho não, que o mapinguari tem a figura de um caboclo gigante, 3 metros de altura, pés espalhados e braços enormes. Anda nu, o corpo azeitão e pelado é liso, sem o menor arranhão de mato. Cabelo só tem na cabeça, curto e ruivo, deixando à vista as orelhas pontudas.
Mapinguari só come coisa viva. O gosto dele é morder na carne quente e sentir o sangue esguichar. Come guariba e outros macacos que apanha nas árvores, com muita fome, é capaz de se agachar à beira d'água tentando pegar algum peixe de couro; de escama não gosta. Mas a comida predileta do mapinguari é mesmo gente e, só quando lhe falta carne de homem, come a dos bichos. Quando caça, imita pio de pássaro e voz humana; mas só sabe dar uma fala fininha, esquisita, que mal engana a distância.
Pois um dia saíram para o mato dois seringueiros, e um deles se chamava Luís. Pouco além se separaram, tomando cada um a sua estrada de trabalho. Mas não estavam afastados, tanto que um ouvia a machadinha do outro a abrir o corte do leite na seringueira.
Passou-se um tempo, e o que não se chamava Luís reparou que já não escutava a batida do companheiro. Prestou atenção - nada. Por um momento, teve a impressão de que ouvia a pisada de bicho grande quebrando o mato, mas devagar, cuidadoso. Teve medo e gritou: "Luís!"
E como se viesse de longe, uma vozinha fina respondeu:"Luíííís!"
Ai, por que tão fina a voz de Luís? E por que dizia Luís em resposta, se ele que chamara não se chamava Luís? Assustado, insistiu: "Luís!" E de novo o gritinho, como um eco: "Luís! Luíííííís!"
O caboclo aí compreendeu que era o mapinguari imitando a sua voz. Não quis saber mais de nada e, morrendo de medo, meteu-se pelo mato, trepou numa árvore alta e se escondeu entre os galhos.
Foi em tempo. Porque lá vinha o mapinguari pela vereda, vagaroso, olhando de um lado para o outro, caçando. Caçando a ele! Debaixo do braço o bruto trazia o pobre do Luís e, de vez em quando, baixava a boca sobre o desgraçado e lhe arrancava uma dentada, um naco da cara, a orelha, uma lasca do peito. Mas entre um mastigo e outro o mapinguari continuava a caçada - parava, escutava e soltava o seu gritinho: "Luíííííííís!"
Afinal desistiu, deu nova dentada no Luís, que ainda estrebuchava, e se afundou na mata. O outro esperou muitas horas, encolhido lá em cima, até o sol do meio-dia ficar bem alto; então escorregou da árvore e saiu correndo em procura de casa.
Bicho não, que o mapinguari tem a figura de um caboclo gigante, 3 metros de altura, pés espalhados e braços enormes. Anda nu, o corpo azeitão e pelado é liso, sem o menor arranhão de mato. Cabelo só tem na cabeça, curto e ruivo, deixando à vista as orelhas pontudas.
Mapinguari só come coisa viva. O gosto dele é morder na carne quente e sentir o sangue esguichar. Come guariba e outros macacos que apanha nas árvores, com muita fome, é capaz de se agachar à beira d'água tentando pegar algum peixe de couro; de escama não gosta. Mas a comida predileta do mapinguari é mesmo gente e, só quando lhe falta carne de homem, come a dos bichos. Quando caça, imita pio de pássaro e voz humana; mas só sabe dar uma fala fininha, esquisita, que mal engana a distância.
Pois um dia saíram para o mato dois seringueiros, e um deles se chamava Luís. Pouco além se separaram, tomando cada um a sua estrada de trabalho. Mas não estavam afastados, tanto que um ouvia a machadinha do outro a abrir o corte do leite na seringueira.
Passou-se um tempo, e o que não se chamava Luís reparou que já não escutava a batida do companheiro. Prestou atenção - nada. Por um momento, teve a impressão de que ouvia a pisada de bicho grande quebrando o mato, mas devagar, cuidadoso. Teve medo e gritou: "Luís!"
E como se viesse de longe, uma vozinha fina respondeu:"Luíííís!"
Ai, por que tão fina a voz de Luís? E por que dizia Luís em resposta, se ele que chamara não se chamava Luís? Assustado, insistiu: "Luís!" E de novo o gritinho, como um eco: "Luís! Luíííííís!"
O caboclo aí compreendeu que era o mapinguari imitando a sua voz. Não quis saber mais de nada e, morrendo de medo, meteu-se pelo mato, trepou numa árvore alta e se escondeu entre os galhos.
Foi em tempo. Porque lá vinha o mapinguari pela vereda, vagaroso, olhando de um lado para o outro, caçando. Caçando a ele! Debaixo do braço o bruto trazia o pobre do Luís e, de vez em quando, baixava a boca sobre o desgraçado e lhe arrancava uma dentada, um naco da cara, a orelha, uma lasca do peito. Mas entre um mastigo e outro o mapinguari continuava a caçada - parava, escutava e soltava o seu gritinho: "Luíííííííís!"
Afinal desistiu, deu nova dentada no Luís, que ainda estrebuchava, e se afundou na mata. O outro esperou muitas horas, encolhido lá em cima, até o sol do meio-dia ficar bem alto; então escorregou da árvore e saiu correndo em procura de casa.
Rachel de Queiroz
O esgotamento da democracia de clientela e os perigos que se avizinham
Falar no esgotamento da democracia de clientela após duas vitórias sucessivas do Centrão, nas eleições municipais de 2020 e nas mesas do Congresso Nacional, pode parecer totalmente despropositado, mas não é. Já há praticamente um consenso, entre muitos analistas políticos, de que a Nova República se esgotou, ela, que não obstante os sinais vindos da luta democrática dos anos 1970-1980, se desenrolou, a partir dos anos 1990, como um movimento transformista que, sob o impulso da luta pelo governo representativo (presidencialismo de coalizão), instaurou, de fato, um regime semi-representativo (presidencialismo de cooptação).
Mas é preciso discutir mais detidamente de qual esgotamento estamos falando. Não se trata apenas, pelo alto, de como a degeneração e a fragmentação partidária erodiram o sistema de representação, mas também, por baixo, de como o eleitorado foi levado a participar, por meio da velha cultura (coronelismo), da política de clientela – que, no nosso caso, apenas em parte se parece com a política de clientela norte-americana, baseada em ativismo social (grupos de pressão) e em modelo partidário horizontal (primárias/caucus) emulado por sistema eleitoral majoritário.
Não apenas isto, mas é preciso entender ambos os fenômenos em chave com o modo de produção predominante no país, no caso, um capitalismo reprimarizado, baseado em exportação de commodities e importação de manufaturados ou seus componentes, com forte participação do setor de serviços e baixa qualificação da mão de obra. Tal modelo, semi-estagnacionista e dependente, não é compatível com o Estado de Bem-Estar e, portanto, com a tão almejada equalização social, e por um motivo básico: sua cadeia de produção/valorização não gera renda compatível, na forma de lucros, impostos e salários, capaz de sustentar tal pretensão. Assim, só resta o endividamento público como viga de sustentação das amplas expectativas sociais e dos interesses privados, a par de porto seguro para o emprego da classe média e de auxílio aos miseráveis, em condições crescentemente gravosas, dado o pesado custo dos juros imposto pelo sistema financeiro nacional – setor hegemônico do bloco histórico em crise.
Claro está que, sem a mudança deste modo de produção – que só pode ser viabilizado por coalizão política ampla de forças político-sociais, o que não se confunde com bloco parlamentar ou simples coalizão eleitoral –, a crise atual não tem solução efetiva, quando muito pode ser rolada e sempre em condições mais críticas. Ocorre que, como historicamente sabemos, são muitas as rotas para a mudança, o que, por si só, não garante que ela seja de fato alcançada, nem mesmo em seu modo mínimo – para não falar do ótimo.
O Governo Bolsonaro encarna a mais nova tentativa de mudança desde que o PT abdicou, de fato, desta postulação, em 2002, em prol de um “lugar ao sol” no sistema de domínio, com a diferença de que a extrema-direita sequer tinha um programa digno do nome e que chegou ao poder pela inusitada, embora prenunciada (junho de 2013), revolta de uma população apartada de instrumentos institucionais (partido político) para operar efetivas mudanças políticas.
Como não poderia deixar de ser, inclusive por suas idiossincrasias, tudo aconteceu de maneira mais rápida e atabalhoada com Bolsonaro, até mesmo se comparado à FCM. Já na largada, JMB expôs a fragilidade de sua coalizão eleitoral na crise com os Ministros Bebiano e Cruz, e embora tenha aprovado a Reforma da Previdência, esta se deveu mais a um consenso social, enquanto o Presidente iniciava sua luta desesperada pela própria sobrevivência. Em certa medida, o Governo foi “salvo” pela pandemia, que se transformou em álibi de sua anomia política, ao fim remediada pelo “porto seguro” do Centrão. É verdade que existem dúvidas fundadas sobre tal “segurança”, sobretudo diante de um governo tão frágil quanto atabalhoado. Mas é preciso olhar também para a crise do sistema, onde Bolsonaro se agarra.
Não se pode descartar que o liberalismo radical de Guedes tenha encontrado sua mediação clássica no Brasil neopatrimonial com a “nova” coalizão, o que possibilitará ao bolsonarismo, pelo menos em tese, por meio de sua ala militar, neutralizá-lo enquanto utopia burguesa e convertê-lo de obstáculo à catapulta de um novo arranjo nacional-desenvolvimentista, como já vislumbrado no PAEG em contexto histórico distinto, num cavalo de pau de difícil compreensão, inclusive para os observadores da história que ignoram as implicações da via prussiana em nosso longo processo de modernização.
O PAEG, é verdade, se desenvolveu sob a tutela militar, tutela que hoje seria esmaecida, o que pode comprometer o enquadramento dos atores políticos envolvidos na trama e, consequentemente, seus fins, caso não demonstrem a exata noção do que estão fazendo e em quais circunstâncias. Não obstante, a crise aguda força os atores a uma consciência diferenciada na luta pela própria sobrevivência, como nos ensinou Lênin, o que implica, hoje, em se observar e responder ao desespero social que se anuncia. Não apenas isto, será preciso também tratar da retomada econômica para garantir a renda do trabalho após a emergência, estimulando a esperança dos trabalhadores por dias melhores. Para que tal retomada aconteça, de outro lado, as reformas em discussão no Congresso deverão englobar medidas que contemplem a reindustrialização do país, a começar pelos setores que já dominamos e os que impliquem em enfrentamento da pandemia, como a indústria farmacêutica.
Se isto tiver sequência no âmbito do programa econômico da coalizão bolso-militar-centrista, restará observar a cena político-judiciária, ainda mais incerta em razão das pressões sociais que afetam os aparatos de justiça desde o Mensalão (2005). Mais especificamente, será preciso verificar se um eventual clima de otimismo econômico extra-Mercado será capaz de neutralizar o previsível aumento do mau humor dos cidadãos com seus representantes e a burocracia pública, em meio ao novo cenário de conforto projetado com o fim da Lava-Jato e a possível reabilitação jurídica de vários de suas “vítimas” de colarinho branco, que podem ensejar, a partir de agora, uma ida aos cofres com ímpeto represado, capaz de abalar a credibilidade que resta da reputação anti-sistêmica do bolsonarismo, além de acumular mais combustível sobre mata ressecada.
A própria blindagem de Bolsonaro pelas elites, em função, principalmente, do estancamento da sangria e seus supostos efeitos distensionistas sobre a política e a economia, é aposta inflamável no pior cenário. Nada disso deve passar desapercebido pelos estrategistas do bolsonarismo, que mantém na manga a carta do “auto-golpe”, que, no caso do bolsonarismo, como se sabe, está longe do inverossímil e brancaleônico “exército do Stédile”, configurando, de fato, perigo tangível.
Diante disso e da incrível capacidade interpelatória das narrativas bolsonaristas – cuja diferença essencial em relação às narrativas lulopetistas reside tão somente em sua maior facilidade assimilatória pela massa –, é possível que o ônus deum eventual insucesso da coalizão bolsocentrista, em meio às frustrações econômicas e/ou o pipocar de escândalos de corrupção, possa ser jogado, com grandes chances de êxito, nas costas do STF, do próprio Centrão – da qual Bolsonaro conseguiu se distanciar pela ótica popular, não obstante as rachadinhas – e da esquerda, por conta das manobras de anulação processual que podem favorecer LILS – sob o beneplácito de Bolsonaro, diga-se de passagem – e, em sequência, outros apenados, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, entre outros.
Tudo isto estará sobre a mesa na campanha eleitoral de 2022, que se inicia agora, fora do controle do TSE, não devendo haver dúvidas sobre a disposição, inclusive já insinuada, de Bolsonaro entrar neste jogo com a intenção de “fazer o diabo para se reeleger” (DR), o que, na prática, projeta sua intenção de aceitar apenas o resultado que lhe beneficie. Isto, naturalmente, não dependerá apenas de sua vontade, mas também exigirá conjuntura favorável, como uma crise que conjugasse colapso social com desespero econômico e desmoralização das instituições republicanas, abrindo caminho para greves de caminhoneiros, alguma inquietação nos quartéis e apelos para a restauração da ordem, cenário em parte visto no pré-1964.
Um conflito desta envergadura não só é possível, como pode acontecer antes da suposta “fraude eleitoral”, em meio ao desarranjo de seu “novo” governo. Outra variável importante a considerar, é como a radicalização política e a frustração das massas com as instituições vai se manifestar, inclusive nos meios militares, já que desde 1930, como nos ensinou José Murilo de Carvalho[i], as FFAA se movimentam na cena política com vistas a conter as ameaças de ruptura vindas de baixo – como a de Prestes, em 1930/1935, e a de Jango/Brizola, em 1964. No contexto atual, todavia, a ameaça potencial vem do baixo-clero bolsonarista, o que tornaria o desenlace ainda mais complexo e incerto.
Fator decisivo para tal evolução da situação é como as massas reagiriam ao caos social. Não se pode descartar a hipótese de que um descontentamento geral se misture à anomia já instalada nas periferias das metrópoles, que, embora de difícil assimilação pelas elites intelectuais (liberais e socialistas) – tendentes a traduzí-la como questão ética –, segue sendo vivenciada pela população sitiada como desafio à sobrevivência, a exigir solução de força (desarmamento) sob os auspícios da lei, que, não acontecendo, escancara as portas para o puro arbítrio da força ilegal, alimentada pelas facções bolsonaristas. Em tal contexto, a politização da crise pela extrema direita poderia catalizar o desejo geral de estabilização e ordem, o que praticamente forçaria uma ação convergente por parte do Alto Comando das FFAA, embora ainda dentro da lei (GLO).
Tudo isto nos coloca questões para muito além da ideia de resistência democrática experimentada nos anos 1960-1970, ideias que fossem capazes de neutralizar a perspectiva tutelar dos militares sobre a República, perspectiva esta que é a pedra angular do intervencionismo militar desde 1889 e que teve no Gen. Góis Monteiro, nos idos de 1930, um arguto articulador que a traduzia como a expressão institucionalizada da nacionalidade, em cuja sombra poderiam “se organizar as demais forças da nacionalidade”[ii].
À rigor, na posologia deste velho remédio, Bolsonaro não teria lugar, mas tampouco estaríamos à salvo de seus conhecidos efeitos colaterais. O mais sábio, à luz da história, seria reconhecer tais riscos e buscar evitá-los pela franca assunção da crise de nossa democracia (clientelista), articulando, sob o signo da reconstrução nacional, uma saída democrático-desenvolvimentista para a crise em diálogo com os militares.
De novo, pode não ser o ideal, mas é o que nos cabe em meio aos perigos que se avizinham.
Hamilton Garcia de Lima
[i] Forças Armadas e Política no Brasil, ed. Todavia/SP, 2019.
[ii] Apud Carvalho, p. 120.
[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.
Mas é preciso discutir mais detidamente de qual esgotamento estamos falando. Não se trata apenas, pelo alto, de como a degeneração e a fragmentação partidária erodiram o sistema de representação, mas também, por baixo, de como o eleitorado foi levado a participar, por meio da velha cultura (coronelismo), da política de clientela – que, no nosso caso, apenas em parte se parece com a política de clientela norte-americana, baseada em ativismo social (grupos de pressão) e em modelo partidário horizontal (primárias/caucus) emulado por sistema eleitoral majoritário.
Não apenas isto, mas é preciso entender ambos os fenômenos em chave com o modo de produção predominante no país, no caso, um capitalismo reprimarizado, baseado em exportação de commodities e importação de manufaturados ou seus componentes, com forte participação do setor de serviços e baixa qualificação da mão de obra. Tal modelo, semi-estagnacionista e dependente, não é compatível com o Estado de Bem-Estar e, portanto, com a tão almejada equalização social, e por um motivo básico: sua cadeia de produção/valorização não gera renda compatível, na forma de lucros, impostos e salários, capaz de sustentar tal pretensão. Assim, só resta o endividamento público como viga de sustentação das amplas expectativas sociais e dos interesses privados, a par de porto seguro para o emprego da classe média e de auxílio aos miseráveis, em condições crescentemente gravosas, dado o pesado custo dos juros imposto pelo sistema financeiro nacional – setor hegemônico do bloco histórico em crise.
Claro está que, sem a mudança deste modo de produção – que só pode ser viabilizado por coalizão política ampla de forças político-sociais, o que não se confunde com bloco parlamentar ou simples coalizão eleitoral –, a crise atual não tem solução efetiva, quando muito pode ser rolada e sempre em condições mais críticas. Ocorre que, como historicamente sabemos, são muitas as rotas para a mudança, o que, por si só, não garante que ela seja de fato alcançada, nem mesmo em seu modo mínimo – para não falar do ótimo.
O Governo Bolsonaro encarna a mais nova tentativa de mudança desde que o PT abdicou, de fato, desta postulação, em 2002, em prol de um “lugar ao sol” no sistema de domínio, com a diferença de que a extrema-direita sequer tinha um programa digno do nome e que chegou ao poder pela inusitada, embora prenunciada (junho de 2013), revolta de uma população apartada de instrumentos institucionais (partido político) para operar efetivas mudanças políticas.
Como não poderia deixar de ser, inclusive por suas idiossincrasias, tudo aconteceu de maneira mais rápida e atabalhoada com Bolsonaro, até mesmo se comparado à FCM. Já na largada, JMB expôs a fragilidade de sua coalizão eleitoral na crise com os Ministros Bebiano e Cruz, e embora tenha aprovado a Reforma da Previdência, esta se deveu mais a um consenso social, enquanto o Presidente iniciava sua luta desesperada pela própria sobrevivência. Em certa medida, o Governo foi “salvo” pela pandemia, que se transformou em álibi de sua anomia política, ao fim remediada pelo “porto seguro” do Centrão. É verdade que existem dúvidas fundadas sobre tal “segurança”, sobretudo diante de um governo tão frágil quanto atabalhoado. Mas é preciso olhar também para a crise do sistema, onde Bolsonaro se agarra.
Não se pode descartar que o liberalismo radical de Guedes tenha encontrado sua mediação clássica no Brasil neopatrimonial com a “nova” coalizão, o que possibilitará ao bolsonarismo, pelo menos em tese, por meio de sua ala militar, neutralizá-lo enquanto utopia burguesa e convertê-lo de obstáculo à catapulta de um novo arranjo nacional-desenvolvimentista, como já vislumbrado no PAEG em contexto histórico distinto, num cavalo de pau de difícil compreensão, inclusive para os observadores da história que ignoram as implicações da via prussiana em nosso longo processo de modernização.
O PAEG, é verdade, se desenvolveu sob a tutela militar, tutela que hoje seria esmaecida, o que pode comprometer o enquadramento dos atores políticos envolvidos na trama e, consequentemente, seus fins, caso não demonstrem a exata noção do que estão fazendo e em quais circunstâncias. Não obstante, a crise aguda força os atores a uma consciência diferenciada na luta pela própria sobrevivência, como nos ensinou Lênin, o que implica, hoje, em se observar e responder ao desespero social que se anuncia. Não apenas isto, será preciso também tratar da retomada econômica para garantir a renda do trabalho após a emergência, estimulando a esperança dos trabalhadores por dias melhores. Para que tal retomada aconteça, de outro lado, as reformas em discussão no Congresso deverão englobar medidas que contemplem a reindustrialização do país, a começar pelos setores que já dominamos e os que impliquem em enfrentamento da pandemia, como a indústria farmacêutica.
Se isto tiver sequência no âmbito do programa econômico da coalizão bolso-militar-centrista, restará observar a cena político-judiciária, ainda mais incerta em razão das pressões sociais que afetam os aparatos de justiça desde o Mensalão (2005). Mais especificamente, será preciso verificar se um eventual clima de otimismo econômico extra-Mercado será capaz de neutralizar o previsível aumento do mau humor dos cidadãos com seus representantes e a burocracia pública, em meio ao novo cenário de conforto projetado com o fim da Lava-Jato e a possível reabilitação jurídica de vários de suas “vítimas” de colarinho branco, que podem ensejar, a partir de agora, uma ida aos cofres com ímpeto represado, capaz de abalar a credibilidade que resta da reputação anti-sistêmica do bolsonarismo, além de acumular mais combustível sobre mata ressecada.
A própria blindagem de Bolsonaro pelas elites, em função, principalmente, do estancamento da sangria e seus supostos efeitos distensionistas sobre a política e a economia, é aposta inflamável no pior cenário. Nada disso deve passar desapercebido pelos estrategistas do bolsonarismo, que mantém na manga a carta do “auto-golpe”, que, no caso do bolsonarismo, como se sabe, está longe do inverossímil e brancaleônico “exército do Stédile”, configurando, de fato, perigo tangível.
Diante disso e da incrível capacidade interpelatória das narrativas bolsonaristas – cuja diferença essencial em relação às narrativas lulopetistas reside tão somente em sua maior facilidade assimilatória pela massa –, é possível que o ônus deum eventual insucesso da coalizão bolsocentrista, em meio às frustrações econômicas e/ou o pipocar de escândalos de corrupção, possa ser jogado, com grandes chances de êxito, nas costas do STF, do próprio Centrão – da qual Bolsonaro conseguiu se distanciar pela ótica popular, não obstante as rachadinhas – e da esquerda, por conta das manobras de anulação processual que podem favorecer LILS – sob o beneplácito de Bolsonaro, diga-se de passagem – e, em sequência, outros apenados, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, entre outros.
Tudo isto estará sobre a mesa na campanha eleitoral de 2022, que se inicia agora, fora do controle do TSE, não devendo haver dúvidas sobre a disposição, inclusive já insinuada, de Bolsonaro entrar neste jogo com a intenção de “fazer o diabo para se reeleger” (DR), o que, na prática, projeta sua intenção de aceitar apenas o resultado que lhe beneficie. Isto, naturalmente, não dependerá apenas de sua vontade, mas também exigirá conjuntura favorável, como uma crise que conjugasse colapso social com desespero econômico e desmoralização das instituições republicanas, abrindo caminho para greves de caminhoneiros, alguma inquietação nos quartéis e apelos para a restauração da ordem, cenário em parte visto no pré-1964.
Um conflito desta envergadura não só é possível, como pode acontecer antes da suposta “fraude eleitoral”, em meio ao desarranjo de seu “novo” governo. Outra variável importante a considerar, é como a radicalização política e a frustração das massas com as instituições vai se manifestar, inclusive nos meios militares, já que desde 1930, como nos ensinou José Murilo de Carvalho[i], as FFAA se movimentam na cena política com vistas a conter as ameaças de ruptura vindas de baixo – como a de Prestes, em 1930/1935, e a de Jango/Brizola, em 1964. No contexto atual, todavia, a ameaça potencial vem do baixo-clero bolsonarista, o que tornaria o desenlace ainda mais complexo e incerto.
Fator decisivo para tal evolução da situação é como as massas reagiriam ao caos social. Não se pode descartar a hipótese de que um descontentamento geral se misture à anomia já instalada nas periferias das metrópoles, que, embora de difícil assimilação pelas elites intelectuais (liberais e socialistas) – tendentes a traduzí-la como questão ética –, segue sendo vivenciada pela população sitiada como desafio à sobrevivência, a exigir solução de força (desarmamento) sob os auspícios da lei, que, não acontecendo, escancara as portas para o puro arbítrio da força ilegal, alimentada pelas facções bolsonaristas. Em tal contexto, a politização da crise pela extrema direita poderia catalizar o desejo geral de estabilização e ordem, o que praticamente forçaria uma ação convergente por parte do Alto Comando das FFAA, embora ainda dentro da lei (GLO).
Tudo isto nos coloca questões para muito além da ideia de resistência democrática experimentada nos anos 1960-1970, ideias que fossem capazes de neutralizar a perspectiva tutelar dos militares sobre a República, perspectiva esta que é a pedra angular do intervencionismo militar desde 1889 e que teve no Gen. Góis Monteiro, nos idos de 1930, um arguto articulador que a traduzia como a expressão institucionalizada da nacionalidade, em cuja sombra poderiam “se organizar as demais forças da nacionalidade”[ii].
À rigor, na posologia deste velho remédio, Bolsonaro não teria lugar, mas tampouco estaríamos à salvo de seus conhecidos efeitos colaterais. O mais sábio, à luz da história, seria reconhecer tais riscos e buscar evitá-los pela franca assunção da crise de nossa democracia (clientelista), articulando, sob o signo da reconstrução nacional, uma saída democrático-desenvolvimentista para a crise em diálogo com os militares.
De novo, pode não ser o ideal, mas é o que nos cabe em meio aos perigos que se avizinham.
Hamilton Garcia de Lima
[i] Forças Armadas e Política no Brasil, ed. Todavia/SP, 2019.
[ii] Apud Carvalho, p. 120.
[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.
O impeachment, o novo poder e a vida de gado
O impeachment é sempre um processo traumático de interrupção de um governo escolhido democraticamente. É um movimento de muitos interesses, no qual o detalhe jurídico, aos olhos do eleitor leigo, está muito mais no processo do que na imputação do crime de responsabilidade.
Com sua previsão constitucional, o impedimento é parte do jogo. Se for seguido o processo legal, deve ser acatado. Alguns podem até achar que é injusto, mas, respeitado o rito, não pode ser considerado ilegal, ou até mesmo um golpe. Apesar de a Constituição trazer o amparo para o enquadramento e o rito processual, a base dessa decisão é totalmente política. Se perder o apoio político, o mandatário será afastado pelos representantes do povo.
Nos últimos dias, esse tema tem sido pauta nacional. O debate sobre o impedimento do presidente da República está colocado. Alguns entendem que as condições estão presentes; outros, que não há ambiente político ou condições objetivas para essa decisão. Mas todos os debates giram em torno do olhar político do Planalto Central para o Brasil. Na verdade, as ruas definem os rumos. Em uma democracia, presidente com apoio popular tem a proteção política para se manter no cargo. O povo é quem decide a sua permanência, ou não, por meio da pressão sobre seus representantes.
A manipulação da população para a pressão pelo impeachment é parte do jogo político e sempre está presente nessa decisão. No passado, quem detinha o poder da formação de opinião era quem estimulava a sociedade a dar voz às ruas e fazer ecoar nos gabinetes de Brasília a vontade do povo pela interrupção de um mandato. Esses formadores de opinião centralizavam o poder, definindo o momento da mobilização do povo, aproveitando possíveis fragilidades na popularidade do governo. A pressão popular passou a ser arma que era disparada por poucos que detinham os canais para a mobilização popular.
Mas, o mundo contemporâneo trouxe a novidade dos canais digitais, que revolucionaram as relações humanas e, como consequência, minaram (ou atenuaram) o controle da ação dos formadores de opinião. A informação chega mais rápida e de forma mais direta ao cidadão. Quanto mais alinhamento entre a pauta colocada e a necessidade e interesse do povo, maior será o engajamento e sua repercussão. Quanto mais conectividade com a sociedade, maior o poder de mobilização. Nem sempre o início de uma mobilização popular finaliza como planejada, porque, nos canais digitais, o povo comandará a mobilização conforme seu próprio interesse, apoiando ou cancelando os protagonistas e as pautas debatidas. Esse é o chamado “novo poder”, assim bem definido por Henry Timms e Jeremy Heimans no livro de mesmo nome.
Isso não quer dizer que a sociedade esteja livre da manipulação no mundo digital. Ao contrário, a inteligência artificial e a psicologia comportamental foram utilizadas para a mudança no comportamento das pessoas, como comprovado pelo trabalho da empresa britânica Cambridge Analytica. Essa manipulação produziu a grande mudança político-ideológica no mundo, fato também bem visível aqui no Brasil. Foram criados exércitos ideológicos nesse mundo digital, que, muitas vezes, sem perceber, assim como gados nas fazendas, obedecem seus peões cegamente e muitas vezes inconscientemente.
Em 1979, Zé Ramalho traduzia em acordes a definição dessa manipulação popular com a música Admirável Gado Novo. Nela, o compositor anuncia a “vida de gado, povo marcado êh, povo feliz!” Quando se agrupa o gado na fazenda, ele passa a ter como referência o fazendeiro que os controla e passa a viver uma falsa ideia de felicidade, de satisfação. O gado marcado traduz a lógica do povo alienado, manipulado, sob qualquer bandeira, sob a cor ideológica de preferência, sempre com o mantra “do nós contra eles”. Se, antes, a liderança popular era construída por formadores de opinião, hoje, a forma de manipulação está na inteligência artificial e na conectividade com o povo. É assim que o gado marcado de Zé Ramalho, sendo ele de que cor for, responderá ao estímulo da mobilização nacional que reflete o novo poder.
Quem define a possibilidade de um impeachment sempre foi, e sempre será, o povo, com sua pressão. É ele que condena ou protege seu líder, exercendo o grito das ruas. Mas, esse povo, assim como o gado de Zé Ramalho, pode estar a serviço do interesse de outros, sem que ele mesmo perceba. Um gado marcado poderá ser a massa de manobra do interesse de poucos. Assim, quanto mais informação tiver o povo, maior a possibilidade de o “novo poder” das mídias digitais fazer a vontade popular vencer a manobra da inteligência artificial, mostrando que a cancela da fazenda pode ser aberta e fazer o gado livre para pensar, agir e decidir.
Zé Ramalho já cantava, nessa mesma música, a esperança de um gado livre, dizendo que o povo sonha com melhores tempos, fora da cancela. E, no final de tudo, dizia o cantor, esperam nova possibilidade de ver esse mundo se acabar. O desgaste de “dar muito mais que receber”, como diz a canção, pode fazer o gado se rebelar. É o sonho do encerramento de um ciclo para o início de um novo mundo. É nesse sentimento que o povo vai decidir se deve ou não apoiar a interrupção de um mandato. Se o gado souber que ele pode mudar a sua história, poderá ser o dono da fazenda e, de forma consciente, decidir os rumos da sociedade, com a manutenção ou impedimento do governo que elegeu.
Com sua previsão constitucional, o impedimento é parte do jogo. Se for seguido o processo legal, deve ser acatado. Alguns podem até achar que é injusto, mas, respeitado o rito, não pode ser considerado ilegal, ou até mesmo um golpe. Apesar de a Constituição trazer o amparo para o enquadramento e o rito processual, a base dessa decisão é totalmente política. Se perder o apoio político, o mandatário será afastado pelos representantes do povo.
Nos últimos dias, esse tema tem sido pauta nacional. O debate sobre o impedimento do presidente da República está colocado. Alguns entendem que as condições estão presentes; outros, que não há ambiente político ou condições objetivas para essa decisão. Mas todos os debates giram em torno do olhar político do Planalto Central para o Brasil. Na verdade, as ruas definem os rumos. Em uma democracia, presidente com apoio popular tem a proteção política para se manter no cargo. O povo é quem decide a sua permanência, ou não, por meio da pressão sobre seus representantes.
A manipulação da população para a pressão pelo impeachment é parte do jogo político e sempre está presente nessa decisão. No passado, quem detinha o poder da formação de opinião era quem estimulava a sociedade a dar voz às ruas e fazer ecoar nos gabinetes de Brasília a vontade do povo pela interrupção de um mandato. Esses formadores de opinião centralizavam o poder, definindo o momento da mobilização do povo, aproveitando possíveis fragilidades na popularidade do governo. A pressão popular passou a ser arma que era disparada por poucos que detinham os canais para a mobilização popular.
Mas, o mundo contemporâneo trouxe a novidade dos canais digitais, que revolucionaram as relações humanas e, como consequência, minaram (ou atenuaram) o controle da ação dos formadores de opinião. A informação chega mais rápida e de forma mais direta ao cidadão. Quanto mais alinhamento entre a pauta colocada e a necessidade e interesse do povo, maior será o engajamento e sua repercussão. Quanto mais conectividade com a sociedade, maior o poder de mobilização. Nem sempre o início de uma mobilização popular finaliza como planejada, porque, nos canais digitais, o povo comandará a mobilização conforme seu próprio interesse, apoiando ou cancelando os protagonistas e as pautas debatidas. Esse é o chamado “novo poder”, assim bem definido por Henry Timms e Jeremy Heimans no livro de mesmo nome.
Isso não quer dizer que a sociedade esteja livre da manipulação no mundo digital. Ao contrário, a inteligência artificial e a psicologia comportamental foram utilizadas para a mudança no comportamento das pessoas, como comprovado pelo trabalho da empresa britânica Cambridge Analytica. Essa manipulação produziu a grande mudança político-ideológica no mundo, fato também bem visível aqui no Brasil. Foram criados exércitos ideológicos nesse mundo digital, que, muitas vezes, sem perceber, assim como gados nas fazendas, obedecem seus peões cegamente e muitas vezes inconscientemente.
Em 1979, Zé Ramalho traduzia em acordes a definição dessa manipulação popular com a música Admirável Gado Novo. Nela, o compositor anuncia a “vida de gado, povo marcado êh, povo feliz!” Quando se agrupa o gado na fazenda, ele passa a ter como referência o fazendeiro que os controla e passa a viver uma falsa ideia de felicidade, de satisfação. O gado marcado traduz a lógica do povo alienado, manipulado, sob qualquer bandeira, sob a cor ideológica de preferência, sempre com o mantra “do nós contra eles”. Se, antes, a liderança popular era construída por formadores de opinião, hoje, a forma de manipulação está na inteligência artificial e na conectividade com o povo. É assim que o gado marcado de Zé Ramalho, sendo ele de que cor for, responderá ao estímulo da mobilização nacional que reflete o novo poder.
Quem define a possibilidade de um impeachment sempre foi, e sempre será, o povo, com sua pressão. É ele que condena ou protege seu líder, exercendo o grito das ruas. Mas, esse povo, assim como o gado de Zé Ramalho, pode estar a serviço do interesse de outros, sem que ele mesmo perceba. Um gado marcado poderá ser a massa de manobra do interesse de poucos. Assim, quanto mais informação tiver o povo, maior a possibilidade de o “novo poder” das mídias digitais fazer a vontade popular vencer a manobra da inteligência artificial, mostrando que a cancela da fazenda pode ser aberta e fazer o gado livre para pensar, agir e decidir.
Zé Ramalho já cantava, nessa mesma música, a esperança de um gado livre, dizendo que o povo sonha com melhores tempos, fora da cancela. E, no final de tudo, dizia o cantor, esperam nova possibilidade de ver esse mundo se acabar. O desgaste de “dar muito mais que receber”, como diz a canção, pode fazer o gado se rebelar. É o sonho do encerramento de um ciclo para o início de um novo mundo. É nesse sentimento que o povo vai decidir se deve ou não apoiar a interrupção de um mandato. Se o gado souber que ele pode mudar a sua história, poderá ser o dono da fazenda e, de forma consciente, decidir os rumos da sociedade, com a manutenção ou impedimento do governo que elegeu.
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