segunda-feira, 8 de março de 2021

As palavras que Bolsonaro nunca pronunciará

O vocabulário do presidente Jair Bolsonaro é muito restrito, talvez porque ele nunca tenha lido. Em seu dicionário pessoal só existem insultos, palavras obscenas, ameaças, zombarias. E as pronuncia sempre gritando, irritado, insultando, ameaçando. Seu vocabulário é o das armas, da guerra, do ódio e da morte.

Em seus discursos e arroubos de loucura não existem palavras de vida, de esperança, de alento, de compaixão. Ou ele desconhece essas palavras com as quais se constrói o mundo, ou elas queimam a sua língua.

Suas palavras, sempre burlescas ou ameaçadoras, evocam mais a linguagem atemorizante das armas que a alegria da vida. Não são palavras que convidem a compartilhar com o próximo seu pedaço de pão, e sim a desprezar a dor e a fragilidade.

Para ele, a vida é um direito apenas dos fortes, dos impassíveis perante a dor alheia. Zomba dos que choram e têm medo da morte. Onde pisa, por onde passa, deixa os rastros da indiferença para com os fracos.Em seu vocabulário não cabem as palavras que constroem pontes de esperança, e sim as que buscam escavar trincheiras de guerra. Odeia falar de democracia e de respeito à natureza. A morte é o seu lema.


Não entende a política do diálogo e do respeito às diferenças, que são os ingredientes com os quais se constrói a paz. Quem, como ele, exalta a tortura e as armas e é incapaz de pronunciar palavras como diálogo, liberdade ou harmonia é porque nunca saboreou o pão quente do encontro, do convívio pacífico, da compaixão com a dor alheia e da alegria compartilhada.

Quem zomba da morte e aboliu do seu dicionário a empatia pelos que sofrem é porque renunciou a saborear o melhor da vida, que é a paz. Para isso, entretanto, é necessário ser um homem de verdade, que não teme a fraqueza e nem os limites impostos pela realidade da vida, e que acredita ser onipotente.

Bolsonaro me lembra aquele militar espanhol, Millán Astray, que em plena guerra civil gritou na Universidade de Salamanca, em 1936: “Morte à inteligência, viva a morte!”.

E, no entanto, as sociedades são construídas com o grito de “Viva a vida”. Um grito que surge das profundezas do amor e da esperança, e que por isso Bolsonaro nunca conseguirá entender. Ele se alimenta com as palavras de morte.

Por isso, a esperança para o Brasil que não renunciou às palavras que geram harmonia em vez de ódios é que Bolsonaro acabe apagado do dicionário para voltar ao esquecimento, e que um dia seja recordado apenas como um pesadelo que turvou nossos sonhos.

A esperança é que o parêntese de negacionismo do capitão e seu desprezo pela vida sejam, na expressão do Quixote, apenas “uma noite ruim passada em uma estalagem ruim”.

Depois das tempestades e dos trovões costuma aparecer o sorriso de um arco-íris, essa beleza que é incapaz de agradar ao capitão que, no dia em que o Brasil registrou o maior número de mortes da pandemia, um dia de luto nacional, foi saborear um banquete com direito a leitão, cerveja e gargalhadas.

Pelo amor que tenho a este país, prefiro pensar que os raios e ameaças do militar frustrado sejam apenas um sinal de sua fragilidade, que acabará se desmanchando como uma bolha de sabão. Só então o Brasil voltará a respirar o ar puro de sua natureza, hoje martirizada e desprezada por ele.

Quando cruzo com um brasileiro, prefiro ver no fundo de seus olhos as imagens de suas origens povoadas pelas belezas naturais de suas florestas e o reflexo de seus mares e rios cristalinos.

O Brasil leva o nome de uma árvore da selva, essa que hoje Bolsonaro tenta transformar em um deserto perante o espanto do mundo. Quem rege os destinos deste país parece, mais que um brasileiro, alguém chegado de um planeta de espinhos e pedras.
Juan Arias

Pensamento do Dia

 


Intervenção na vacinação é atestado de fracasso de Bolsonaro

O Plano Nacional de Imunização está sob intervenção do Congresso Nacional, que quer dividir a tutela com a iniciativa privada. A intervenção é o atestado final de fracasso do governo Jair Bolsonaro em promover a vacinação contra a covid-19. Sem saber o que fazer, o presidente jogou a toalha e aceita de bom grado que Rodrigo Pacheco diga o que deve ser feito e que empresas, se Deus quiser, comprem as vacinas que ele primeiro não quis, e agora não consegue comprar.

Claro que isso não viria na forma de um reconhecimento lúcido e de uma tentativa de reverter o imenso estrago. Bolsonaro ainda preferiu oferecer ao Brasil mais cenas vexaminosas de fracasso e inépcia com a excursão tabajara de seu exército Brancaleone a Israel para (não) conhecer a produção de um spray experimental que foi testado em poucas dezenas de pessoas e não é prioridade nem em Israel.

O problema com a intervenção no PNI é que ela não é garantia de que avançaremos na nossa precária e insuficiente cobertura vacinal contra a covid-19. Estamos apenas transferindo o bode da sala: tirando-o do Planalto e instalando-o no Congresso e nas empresas. Pode até ser um refresco para Bolsonaro e Eduardo Pazuello. 

Desde janeiro a conversa da compra de vacinas por empresas vem e vai, como forma de tentar tapar o buraco deixado por Bolsonaro. Nas primeiras especulações se esbarrou em alguns problemas: 1) as farmacêuticas só estavam fechando acordos com governos e coalizões internacionais como o consórcio Covax; 2) não havia doses disponíveis nem para atender a demanda de países, quanto mais para esquemas pouco transparentes com empresas que faziam lobby junto ao governo federal; 3) não estava claro na legislação brasileira se isso seria possível, e como; 4) empresas gostariam de ficar com uma parte dos lotes de vacinas que adquirissem para vacinar seus funcionários fora do PNI.

Na semana passada o Congresso entrou para fazer a coordenação na qual o governo Bolsonaro falhou completamente. Aprovou uma lei que estabelece as regras para que não só as empresas, mas também Estados e municípios possam comprar vacinas, como já havia permitido o STF. Todas as doses adquiridas por empresas têm de ser doadas ao SUS até que estejam vacinados os grupos prioritários. Mesmo depois de encerrada esta fase, metade precisará ser doada ao SUS, e a outra metade não pode ser comercializada.

Trata-se de uma capitulação inédita: nunca antes neste país um governo precisou de muleta da iniciativa privada numa campanha nacional de vacinação. Não há precedente de tamanho fracasso. Clínicas e empresas até vendem vacinas, mas aquelas do calendário regular de vacinas, não as de campanhas para erradicação de doenças, como é o caso da covid-19.

O problema com a entrada do Congresso e das empresas para cobrir a incompetência de Bolsonaro e Pazuello é que será mais uma situação em que o presidente brasileiro tentará se desvencilhar de sua responsabilidade. Daqui para a frente, poderá dizer que queria coordenar a vacinação, mas não deixaram e agora a responsabilidade não é dele.

Se, ao contrário, a cobertura vacinal acelerar para além dos menos de 4% hoje imunizados com ao menos uma dose (o ciclo completo de duas doses não atinge nem 2% dos brasileiros), ele tentará surfar na onda e capitalizar o sucesso dizendo que sempre defendeu a parceria com a iniciativa privada, mas o Congresso é que não o deixava agir antes.

Além da certeza de que vem aí mais narrativa mentirosa do presidente, na prática a intervenção no PNI não garante que mudemos de patamar: as farmacêuticas têm demonstrado pouca disposição a negociar com municípios ou empresas, graças à preocupação jurídica para que não sejam responsabilizadas mundo afora em caso de efeitos adversos das vacinas -- elas têm pressionado por compromissos feitos diretamente com governos nacionais.

A dispersão dos esforços para adquirir vacinas também ameaça a equidade da vacinação pelo território nacional e pode agravar a desigualdade entre Estados ricos e pobres. E como o governo federal jogou a toalha de vez, é meio inútil esperar que atue ao menos para mitigar mais esse efeito colateral de sua inoperância.

Os Estados Unidos precisam fazer uma intervenção sanitária no Brasil

Se a vacinação prosseguir no ritmo previsto, os americanos terão imunizado a inteira população dos Estados Unidos até maio. Na Europa, onde os governos ainda batem a cabeça com a falta de vacinas e planejamento, espera-se que tudo entre logo nos trilhos e que metade da população das diferentes nações da UE esteja imunizada até o final do verão no Hemisfério Norte.

Como o governo brasileiro não encomendou vacinas suficientes quando deveria tê-lo feito, ficamos para trás na fila das vacinas da Pfizer, Moderna e Janssen, as mais efetivas contra o vírus da Covid-19. É esperado que, diante da nossa esqualidez, uma vez que os Estados Unidos tenham atingido a imunidade de rebanho, eles deem atenção ao que ocorre no seu quintal, a América Latina. Seríamos salvos pela Sétima Cavalaria a partir de julho.

A cepa P.1, no entanto, que surgiu em Manaus e agora devasta o Brasil, precisa antecipar a entrada dos Estados Unidos em campo. Já é consenso que, se a propagação do vírus não for contida logo por aqui, cepas mais virulentas poderão se desenvolver, colocando em xeque a efetividade das vacinas já existentes.

O presidente e a reeleição

É inevitável a antecipação da campanha para as eleições presidenciais de 2022. O presidente Jair Bolsonaro lançou-se candidato à reeleição ao iniciar o governo. Renegou compromisso de campanha quando declarou que não tentaria reeleger-se. Seria honesto, mas tolo ou fracassado, se deixasse de fazê-lo. Ninguém abdica do poder, escreveu Maquiavel.

Ademais, promessa de candidato só compromete quem ouve. A frase, cujo autor ignoro, corresponde ao que há de mais mesquinho na política brasileira. Como os partidos não passam de legendas sem ideologia, promessas e programas de governo são redigidos para dar ao povo crédulo a sensação de que serão executados. Prometer algo que não se vai cumprir é estelionato eleitoral. Fosse punido, a maioria da classe política estaria na cadeia.

Jair Bolsonaro será candidato em 2022. Por qual partido ou coligação partidária não interessa. Será candidato graças ao instituto da reeleição, enxertado no Direito Constitucional brasileiro pela Emenda n.º 16, de 5 de junho de 1996, promulgada no primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Não subestimem o capitão. Apesar de autoritário e rústico é esperto. Em seus planos deve estar o de filiação a legenda inexpressiva. Precisará apenas da legenda. Recursos e adesões serão obtidos pelo exercício abusivo do poder. Terá o apoio da ultradireita conservadora. Em cada quartel, clube de tiro e loja de armas encontrará aguerrido comitê eleitoral.


Quem busca a reeleição disputa uma corrida de obstáculos, com larga vantagem sobre os demais competidores. Ao ser dada a partida, terá a favor parcela apática do eleitorado. O elevado número de candidatos provoca, entretanto, dispersão dos votos e torna inevitável a segunda rodada de votação. No primeiro turno, os eleitores votam no candidato preferido. No segundo as possibilidades se igualam, pois a escolha é determinada pela rejeição.

São vários os nomes em circulação na bolsa de valores eleitorais. A quase certeza da derrota não evitará que partidos nanicos disputem com candidatura própria, ou em coligação.

Entre os grandes, no PSDB se apresenta o governador João Doria, mas depende da direção nacional, pois corre por fora o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. O insistente Ciro Gomes tentará pelo PDT. Fernando Haddad deve ser o preferido do PT, salvo se Lula resolver o problema da inelegibilidade. Guilherme Boulos virá pelo PSOL ou como vice do PT. O outrora poderoso MDB terá dificuldade para encontrar alguém apto a participar da prova. O melhor nome, deputado Baleia Rossi, é jovem e foi derrotado como candidato à presidência da Câmara dos Deputados.

Sergio Moro e Luciano Huck produzem ruído, mas falta-lhes cacife para jogar o pôquer eleitoral. Com os espaços congestionados, não será fácil para eles encontrar legenda, salvo se concordarem em concorrer à Vice-Presidência ou ao Senado.

Sob que panorama econômico e social serão disputadas as eleições de 2022? Essa é a questão. A vacinação em massa, boicotada por Jair Bolsonaro, será decisiva para o controle da pandemia. Não bastará, porém, para resolver os problemas da desindustrialização, do desemprego, da expansão da informalidade, do empobrecimento da classe média e da crescente miséria.

É possível e desejável que até o segundo semestre do próximo ano a pandemia tenha sido debelada. Dela, porém, ficarão terríveis marcas da morte de centenas de milhares de infectados. O tempo e o esquecimento cobrirão de silêncio a destrambelhada política do negacionista defensor das aglomerações e da cloroquina? Creio que não.

A política suicida do presidente Jair Bolsonaro, exposta pela maneira como conduziu o Ministério da Saúde, ao nomear para dirigi-lo general intendente do Exército, será relembrada por familiares dos mortos, infectados e precariamente tratados por falta de vacinas, de oxigênio, de vagas hospitalares.

Quanto à economia, dizem os pesquisadores ser provável que haja deterioração ainda maior neste e no próximo ano. A responsabilidade, na opinião de especialistas, cabe à falta de foco do governo e à incapacidade de avançar com agenda econômica liberal destinada a destravar os obstáculos enfrentados pelo País.

Como a oposição lidará com o problema e se organizará em frente única, é difícil saber. Afinal, os adversários do presidente Jair Bolsonaro revelaram, nos dois primeiros anos de mandato, total incapacidade de comunicação com a opinião pública. Não se ouviu na Câmara dos Deputados e no Senado um só discurso viril contra a criminosa maneira de o governo se conduzir diante da pandemia.

Há em curso projeto de permanência no poder a qualquer preço. À semelhança da ditadura chavista, tudo será feito para repetir o regime militar, desta vez com segunda eleição. Fica a advertência.

Com as vantagens asseguradas pelo exercício do cargo, controle do Tesouro Nacional e pacto com o “Centrão”, não será impossível nova emenda ao artigo 14, parágrafo 5.º, da Constituição.

Uma bandeira destruída

Não sou de me ufanar, mas é difícil segurar a emoção quando vejo um atleta receber uma medalha olímpica enquanto nosso hino toca e a bandeira do país é hasteada. Nesses momentos, sou tomada de um orgulho raro, já que são poucas as vitórias do Brasil e muitas as suas derrotas. Uma delas foi quando permitimos que um bando de alucinados tomassem a nossa bandeira como símbolo de sua ignorância e desse governo que de patriota não tem nada.

Arredondando, foram 57 milhões de pessoas que votaram neste homem que aí está. É muita gente, e entre elas estão os que votaram por identificação e com os quais não há o que conversar, é um voto autoexplicativo que tende a se repetir.

No entanto, há milhões de homens e mulheres corretos, sensatos, de boa índole, que não desejaram votar nele, mas que entraram na onda de blindar a esquerda a qualquer custo, preferindo apostar em terra arrasada. Não são homofóbicos, nem racistas, nem fascistas, nem milicianos, nem fanáticos religiosos. São boas pessoas que, embaladas pelo endeusamento do Moro (pois é) e por medo do socialismo (!!!), deram seu voto a uma criatura que torceram para que fosse apenas um bravateiro, enquanto tapavam o nariz.


Dois anos de nariz tapado deu em asfixia, não só metafórica. Os que tentaram evitar o cheiro de podre que viria do Planalto contribuíram para que hoje contabilizemos uma quantidade trágica de vítimas do coronavírus, esgotando os profissionais de saúde e a capacidade de atendimento dos hospitais. Não quiseram enxergar o que era nítido, transparente, perceptível. Não houve enganação: ele nunca fingiu que era outra coisa que não um homem sem responsabilidade social, sem ideias, sem projeto, sem visão de mundo, sem cultura, sem compaixão, sem educação, sem inteligência, sem humor, sem amigos. Todos pressentiram o perigo, mas taparam o nariz, fecharam os olhos e cá estamos.

Nossa bandeira foi desonrada por quem não tem compromisso com o país. Nossa bandeira virou símbolo de desrespeito à nação, uma contradição que só mesmo amalucados conseguem promover. O presidente não usa máscara, despreza a vacina, dá péssimos exemplos e ergue a bandeira como se amasse os brasileiros.

Só uma corriola fanática ainda diz amém. Esses estão abduzidos, mas se você foi um dos que votaram tapando o nariz dois anos atrás, tem o dever cívico de ajudar o Brasil a respirar melhor e a recuperar o orgulho pátrio. É hora de construirmos uma transição para longe de quem transformou nossa bandeira num trapo sujo. Em qualquer governo, de qualquer país, coisas dão certo e dão errado, mas o que está acontecendo conosco não se enquadra em certo e errado. É uma monstruosidade que temos, juntos, a obrigação de reparar.

Vírus made in Brazil

 


Os oportunistas

Crise, no ideograma japonês, significa também oportunidade, de onde se extrai a ideia de que elas abrem novos caminhos, oferecem soluções criativas aos problemas. Tem sido a lição de empreendedores sobre os afazeres do cotidiano, principalmente nos negócios. É “fazer do limão uma limonada”, transformar o negativo em positivo, sair da tempestade para a bonança.

Muitos povos, graças a uma cultura forjada em tempos amargos, criaram respostas e alternativas, exigindo sacrifícios e mudança em estilos de vida. Conta-se, por exemplo, que o japonês, de tanto padecer as agruras de guerras, não costuma deixar sobras no prato. Os anglo-saxões aprenderam a não desperdiçar tempo e a responder sim ou não.

Já o talvez, mais ou menos, quem sabe, se encaixam em nossa cultura. A imprecisão se faz presente. Em Petrolina não há petróleo e a Bahia de Todos os Santos tem mais jeito de baía de todos os pecados. O senhor é católico? “Sim, mas não vou à missa aos domingos”. Quantas horas trabalha por semana? “Mais ou menos umas 40 horas”.

A flexibilidade é traço do nosso caráter para “amaciar” situações. Do trabalho duro muitos fogem. É comum se ouvir: “trabalhei demais; estou arrebentado”. Nosso DNA é cultivado na festa, no divertimento. Ascenso Ferreira, poeta pernambucano, parodiava: “Hora de comer – comer. Hora de dormir - dormir. Hora de vadiar – vadiar. Hora de trabalhar? Pernas pro ar que ninguém é de ferro”. Vejam o discurso do brigadeiro Eduardo Gomes em seu primeiro comício da campanha presidencial de 1946. “Brasileiros, precisamos trabalhar”. Do meio do povão, uma voz gritou: “Ih, começou a perseguição”. Bagunça geral no comício.

A flexibilidade e a expressão jocosa impregnam a índole brasileira. Nesse momento de pico da pandemia, com mortes de milhares de brasileiros, ainda se criam piadas com protagonistas diversos, a partir dos governantes. Como um povo que aprecia tanto a galhofa pode tomar atitudes sérias, adotar comportamentos condizentes com a gravidade desse momento?


Esclareçamos. A comunidade nacional costuma entrar no terreno do desrespeito quando se sente ludibriada, numa corrente alimentada por um grupo invasor das redes sociais para exacerbar o comportamento social. Motivam leitores e ouvintes a privilegiar o impropério. Mais: os protagonistas políticos se aproveitam do clima para adornar seu ego, emitindo opiniões estapafúrdias, tentando compor uma identidade falsa.

Alguns mudam de visão em programas de rádio e TV só com o intuito de fazer marketing, sem o amparo de bases racionais, mas com carimbo populista.

Esse vício joga os políticos no lodaçal do oportunismo. Voltemos ao início do texto. Não se faz da crise um exercício de busca de oportunidades, mas uma chance para oportunistas. Esquecem, porém, que exibem na testa a marca de medíocres, figuras de baixa expressão, mercadores de benefícios e recompensas. A dignidade não os conhece.

Do escritor argentino José Ingenieros, em "O Homem Medíocre": Ser digno significa não pedir o que se merece: nem aceitar o imerecido. Enquanto os servis sobem, por entre as malhas do favoritismo, os austeros ascendem pela escadaria das suas virtudes”.
Gaudêncio Torquato

Luta para se construir

Alfredo Martirena (Cuba)

A América Latina é desigual devido à sua história. É uma sociedade criada por um pequeno grupo de elites coloniais para explorar a vasta maioria das pessoas. Devemos lutar contra esse legado histórico para construir igualdade, para construir justiça, para construir liberdade
Daron Acemoğlu, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), e James A. Robinson, da Universidade de Harvard, autores de "Por que as Nações Fracassam"

O ataque dos vírus e a extinção dos portugueses estúpidos

Mahnaz Yazdani (Iran)
As empresas farmacêuticas, localizadas em países com valores morais e éticos mais elevados do que Portugal – e que são por isso mais desenvolvidos social e economicamente e também do ponto de vista civilizacional (leiam o sociólogo Norbert Elias) -, deviam desenvolver vacinas específicas para serem aplicadas nos portugueses estúpidos. Porquê? A razão é que a sociedade portuguesa foi (e continua a ser) contaminada por vírus muito especiais e seletivos; portanto, para combatê-los, é necessário criar vacinas específicas para cada grupo. Então vejamos:

Corruptioelecti-vac: desenvolvida para combater o vírus que ataca as pessoas corruptas, mas não aquelas ligadas às corrupçõezinhas, mas sim as da alta corrupção. Ou seja, atua contra o vírus que contagia principalmente a elite económica, financeira, política e jurídica.

Nummulariis-vac: destinada principalmente aos ex-líderes e dirigentes do BPN e, principalmente, do BES/Novo Banco e outras ramificações – EDP, Portugal Telecom, TAP, etc. Esses ‘notáveis’ devem ser protegidos para continuarem a desviar fortunas e deixarem a conta para os outros pagarem; ou seja, os poucos totós que produzem riqueza e pagam impostos. Aqui pode também ser incluída a CGD, que fez chorudos empréstimos aos grandes clientes, amigos do regime, sabendo, de antemão, que eles nunca iriam pagar. Para cobrir o prejuízo, a ‘criativa’ solução dos ‘competentes’ dirigentes do banco é pagar juro zero aos pequenos depositantes e aumentar as comissões bancárias dos clientes.

Civilibus-vac: os políticos estão (sempre) numa posição de destaque, pois (muitos deles) promovem e/ou protegem a grande corrupção. Esta vacina é destinada a pessoas que ocupam altos cargos do Estado e do governo.

Magistratus-vac: é a vacina dos parlamentares (com uma grande percentagem de juristas), que utilizam o Parlamento para criarem leis que defendem, nomeadamente, os interesses dos grupos citados acima: corruptioelecti, nummulariis e civilibus.

Iudicialis-vac: combate o vírus que ataca especificamente o sistema judiciário. Pensam vocês que a venda nos olhos da Justiça (mitologia grega) significa imparcialidade, uma não distinção entre os que estão a ser julgados? Puro engano: é para não ver a atuação danosa e criminosa dos mesmos grupos protegidos pelos políticos: corruptioelecti, nummulariis e civilibus.

Duceslocales-vac: é destinada a combater o vírus que ataca os autarcas, que têm uma função específica – promover e proteger a pequena corrupção. Deste grupo, saiu uma nova variante do vírus, denominada misericordiae.

Misericordiae-vac: é uma vacina específica para os dirigentes das misericórdias, cujas interesses políticos e económicos cruzam-se com os dos duceslocales; ou seja, o vírus circula entre os autarcas locais e os provedores.

–Populuscaptiosus-vac (vulgo povo chico-esperto): vacina destinada a todos os portugueses, sem exceção. Mas principalmente àqueles que tentam tirar vantagem em tudo, não respeitando as leis, os regulamentos e os direitos dos outros: passam à frente na fila, para receber a vacina contra o Covid-19, por exemplo, conseguem empregos por cunhas e não pela competência, consultas médicas no sector público, etc.

O problema é que, ao contrário da vacina contra o Covid 19, que (quase) todos tentam (e os mais bem posicionados conseguem) passar à frente dos que realmente deveriam ser vacinados em primeiro lugar, esses grupos mencionados nunca iriam aceitar receber essas vacinas. Porquê? Exterminar esses vírus iria acabar com os seus privilégios. Por isso, Portugal vai continuar como sempre foi, desde a origem da sua fundação até hoje: com falta de civismo e civilizacionalmente atrasado.

Uma visita à mansão Bolsonaro

Flávio Bolsonaro comprou mansão de R$ 6 milhões em Brasília. Raramente me interesso por pessoas cujas casas têm banheiros com mármore de Carrara, espaço gourmet, iluminação LED na piscina, home theater e toda essa papagaiada.

No entanto os teóricos do bolsonarismo, entre eles Steve Bannon e o chanceler Ernesto Araújo, sempre afirmam que sua luta é contra o materialismo decadente, que dará lugar a uma sociedade dominada pelos símbolos e povoada por sacerdotes.

Uma das formas de combater essa posição é apontar a distância entre as palavras e a realidade. Bannon vive como um homem rico, e a mansão do primogênito de Bolsonaro é mais uma demonstração de que seu grande projeto na vida é enriquecer.

Existem, no entanto, outras formas de contestar os teóricos do bolsonarismo, embora quase ninguém se importe com isso, por achar que eles são autoconstestáveis.


Gosto dessas discussões, pois, afinal, são parte da minha vida. Nas poucas visitas a Londres, sempre dedicava meu tempo a passear na querida Charing Cross Road, rua famosa por suas livrarias, que talvez nem existam mais como antes.

Foi na Charing Cross que comprei cinco volumes de uma pesquisa realizada pela Fundação Europeia de Ciência, sob o título de “Crenças no governo”. O quarto deles foi o que mais me interessou. Chama-se “O impacto dos valores”.

Toda vez que vejo teóricos da “alt-right” afirmarem que vivemos numa sociedade materialista decadente, lembro-me desse livro.

Segundo ele, os pontos da decadência materialista que mais incomodam, o feminismo, a luta contra o racismo, a ecologia, são na verdade valores que surgiram precisamente no pós-materialismo, a partir dos anos 60.

A passagem dos valores materialistas para uma nova fase significa a superação dos anos de dificuldades econômicas e inseguranças, abrindo espaço para as necessidades de autoexpressão, pertencimento, satisfação estética, cuidados ambientais, nesse caso uma ética para com as novas gerações.

Tudo isso surgiu de mudanças profundas na sociedade. Não houve um processo de perda de valores, mas sim de câmbio de valores.

As feministas questionam valores patriarcais, os negros questionam a supremacia branca, tão cara à alt-right, os intelectuais pós-materialistas condenam uma ideia de felicidade que consiste na acumulação de riquezas.

Os teóricos do bolsonarismo, ao se apegar a uma religiosidade popular, são apenas nostálgicos, pois não examinam as próprias mudanças no interior da religião, provocadas pelo avanço da racionalidade ocidental, aquilo que os sociólogos chamam de desencantamento do mundo.

Steve Bannon dá a impressão de que leu Heidegger. Duvido que tenha feito bom proveito. Segundo o filosofo alemão, somos um ser no mundo, impossível descuidar dele.

Trump e Bolsonaro destroem o meio ambiente em nome de um materialismo vulgar, que supõe que somos senhores do mundo e o controlamos de uma posição exterior.

Não quero dizer que as lutas modernas são perfeitas, nem negar que às vezes se excedem. Também não acredito que a questão identitária possa substituir uma consciência que envolva o problema de todos.

Quero apenas acentuar que os líderes espirituais da extrema-direita buscam reviver um passado que não existe mais e, mesmo quando essa ilusão leva a uma vitória eleitoral, é completamente incapaz de conduzir o presente. Por isso, volto à mansão do senador Flávio Bolsonaro e encontro nela um espaço mais adequado para traduzir os anseios de um grupo político que apenas se aproveita da religiosidade popular para atender aos anseios de acumular riquezas.

Não é por acaso que o grande líder mundial dessa corrente é Donald Trump. E seu correspondente tropical entope o país com armas, em confronto com a própria religião.

Escassez de vacinas contra a covid-19 na América Latina escancara desigualdade brutal entre países ricos e pobres

A América Latina e o Caribe não têm a quantidade de vacinas necessárias contra a covid-19. Até esta sexta-feira, 5 de março, os países da região haviam recebido 37 milhões de doses, que deverão ser distribuídas entre 630 milhões de pessoas. A cifra é suficiente para administrar menos de seis doses para cada 100 habitantes. Mantendo-se um critério de duas doses por pessoa, hoje a região pode imunizar 2,8% de sua população. Nos Estados Unidos, enquanto isso, quase um em cada quatro cidadãos já recebeu o imunizante. As desigualdades na distribuição global desenham um mapa das diferenças entre países ricos e pobres, como denunciou em janeiro a Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Dois terços das vacinas foram destinadas aos 50 países mais poderosos, e 0,1% aos 50 países mais pobres”, adverte Diego Tipping, presidente da Cruz Vermelha Argentina. O México levou a demanda por maior equidade na distribuição ao Conselho de Segurança da ONU. E somou o apoio da Argentina, país com o qual se comprometeu a fabricar 250 milhões de doses até julho em parceria com a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca. A produção, no entanto, está atrasada por falta de embalagens. Ante a emergência, aumentou o “salve-se quem puder”, como também pode acontecer na Europa.

O resultado é que a cifra total de doses pode ser enganosa quanto à capacidade da América Latina e do Caribe de atender às suas populações, pois 87% das doses estão nas mãos de apenas quatro países: Brasil (15 milhões), Chile (8,6 milhões), México e Argentina (4 milhões). Os quatro integram o grupo das cinco maiores economias da região, com a única ausência da Colômbia. Já países como Cuba (que prepara sua própria fórmula) e Honduras não receberam nem uma dose sequer. Outros, como Paraguai (4.000), Equador (73.000) e El Salvador (20.000) contam com apenas alguns milhares. As diferenças entre ricos e pobres são evidentes.

A pressão interna sofrida pelos Governos para superar os vizinhos, somada à restrição atual do lado da oferta, transformou numa miragem a ideia da distribuição baseada na solidariedade entre os países. E o modelo de compras fez o resto. Com base na lógica do livre mercado, não numa estratégia sanitária global, os países com fluidos vínculos comerciais têm tido mais sucesso que os demais. O Chile é o melhor exemplo disso: 30 tratados comerciais em vigor e uma madura cultura de negociação permitiram que o país andino selasse contratos de 60 milhões de doses em três anos, das quais já recebeu quase 9 milhões para distribuir entre 16 milhões de habitantes. “As discussões internas sobre a vacina concentram-se no âmbito local, em comparar como estamos em relação ao vizinho. E devemos entender que o acesso à vacina não é só uma questão humanitária; relaciona-se também com uma estratégia bem-sucedida contra a pandemia. De nada adianta alguns países vacinarem a totalidade de sua população se outros não puderam começar, pois o vírus continuará circulando”, diz Tipping.

A maioria dos países da América Latina e do Caribe hoje depende do Covax, o mecanismo conjunto da OMS e da Aliança Global para Vacinas e Imunização (GAVI) para distribuir de forma equitativa 281 milhões de doses. As primeiras 117.000 chegaram na segunda-feira passada à Colômbia, país que, como tantos outros, ficou de fora da primeira rodada de entregas por parte dos laboratórios privados. O vazio abriu caminho para que a Rússia e a China introduzissem suas próprias vacinas na região.

Enquanto a farmacêutica americana Pfizer cumpriu 1,6% de seus contratos com a região e a britânica AstraZeneca somente 0,26%, as entregas da vacina russa Sputnik V e da empresa chinesa Sinopharm giram em torno de 5% do que foi acordado. “Laboratórios como Pfizer e AstraZeneca tinham também grandes compromissos na Europa e nos EUA, mas as vacinas russa e chinesa não tinham esses compromissos. Os países latino-americanos que compraram da Rússia ou da China receberam vacinas primeiro, pois é mais fácil estar na frente na lista desses laboratórios que na dos que têm compromissos com os EUA e a Europa”, explica o colombiano Johnattan García Ruiz, pesquisador do think tank Dejusticia e professor de Direito e Saúde Global da Universidade de Los Andes. “Uma coisa é fechar a negociação. Outra é que o laboratório cumpra com as entregas.”

Todos os presidentes têm uma responsabilidade inédita, que é pensar uma estratégia global contra a pandemia sem que os países olhem para si mesmos e se comparem com o do lado
Diego Tipping, presidente da Cruz Vermelha Argentina

O Brasil é um bom exemplo dos problemas relacionados com os envios. A maior economia da região reservou 415 milhões de doses (mais da metade delas da AstraZeneca), mas só recebeu 15 milhões para uma população de 210 milhões de pessoas. “O Brasil não comprou a tempo a quantidade adequada” diz Marcio Sommer Bittencourt, médico e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP). Bittencourt atribui a demora à imperícia do Governo de Jair Bolsonaro, que “não aceitou a oferta das empresas feitas antes da finalização dos estudos clínicos, criou obstáculos jurídicos, não facilitou a aquisição de vacinas por parte dos Estados e não buscou alianças.”

À primeira vista, o Brasil reservou mais vacinas do que necessita, mas até agora só conseguiu vacinar cerca de 4% da população, e isso considerando o total de pessoas que recebeu somente uma das duas doses dos imunizantes. “Obviamente, é mais difícil para um país pobre comprar vacinas, mas o Brasil é um país intermediário, como Chile, Marrocos e Turquia, que estão na frente na vacinação”, afirma. Assim como Argentina e México, o Brasil apostou na produção local de vacinas em parceria com laboratórios internacionais, com o Instituto Butantan (Coronavac) e a Fiocruz (em parceria com a AstraZeneca e a Oxford) na linha de frente. Mas o pesquisador da USP lamenta que o país não esteja desenvolvendo sua própria vacina contra a covid-19, embora tenha a tecnologia necessária. Gonzalo Vecina, ex-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), lembra que o Brasil “exporta a vacina contra a febre amarela”, por exemplo.

Em 23 de dezembro passado, o México foi o primeiro país latino-americano a receber a vacina contra a covid-19. E, assim como o Brasil, está muito atrasado por problemas de escassez. O Governo de Andrés Manuel López Obrador fechou a compra de mais de 234 milhões de doses de cinco imunizantes diferentes, mas recebeu apenas 1,7% “O México fez o que pôde”, diz Mauricio Meschoulam, professor da Universidade Iberoamericana. Meschoulam explica que a margem de ação é muito reduzida para os países de renda média e baixa, porque o fator determinante nas negociações com as farmacêuticas é o financiamento para o desenvolvimento de suas vacinas. Desse modo, os países ricos pediram mais vacinas do que necessitam, e os laboratórios ofereceram mais do que podem produzir, deixando as demais nações no limbo.

“Estamos diante de uma desigualdade brutal na distribuição de vacinas no mundo”, diz Meschoulam. Uma realidade que serviu para que os governos justificassem as demoras nas campanhas locais. O protesto mexicano na ONU vai nesse sentido. “O Governo tenta explicar que ‘estamos lentos na vacinação e gostaríamos de ter mais vacinas, mas veja o que está acontecendo no contexto internacional’”, afirma Meschoulam. Os problemas se agravam à medida que diminui o poder de compra nacional ou que a situação política se torna mais frágil. É o caso do Peru, nas mãos de um Governo de transição após a saída antecipada do presidente Martín Vizcarra pela via parlamentar.

O Peru recebeu em fevereiro um milhão de frascos da chinesa Sinopharm, uma compra que foi manchada pelo chamado vacunagate, escândalo que envolve mais de 450 pessoas que se imunizaram irregularmente entre setembro e janeiro com doses que a empresa ofereceu ao Governo peruano em agosto. O diretor do Centro Bartolomé de las Casas de Cusco, Carlos Herz, chama a atenção para esses problemas adicionais, frutos da “frágil institucionalidade do Estado e da pouca capacidade de gestão”. “O ineficiente aparato público faz com que tenhamos essa quantidade de vacinas, mas os interesses políticos particulares agregam um fator de demora. Isso vai de encontro à capacidade de relacionamento para comprar”, diz Herz.

Os países da América Latina e do Caribe, sem exceção, devem resolver o quanto antes o gargalo existente na cadeia produtiva. Têm pouco ou nulo poder de fogo contra as maiores economias. Tipping, da Cruz Vermelha Argentina, diz que a situação é muito grave, mas que também há uma oportunidade. “Todos os presidentes têm uma responsabilidade inédita, que é pensar uma estratégia global contra a pandemia sem que os países olhem para si mesmos e se comparem com o do lado”, afirma.