O país não suporta mais ser enxovalhado e rotulado de vilão ambiental por conta de erros cometidos no passado na ocupação da Amazônia, habilmente orquestrados por grupos políticos e econômicos a quem convém manter o Brasil acossado, na defensiva, tentando justificar suas ações na região, como se fôssemos maus inquilinos da propriedade alheiaHamilton Mourão, general vice-presidente
quarta-feira, 19 de maio de 2021
País de Pilatos de todo tipo
Sair do Brasil
Penso que todo mundo sempre quis sair mais do seu país do que de sua sociedade. Vamos para Paris ou New York, mas sentimos falta da comida e das fofocas, esses símbolos de nossos costumes. Morar é bom, mas viver é uma m...! - como confirmava Tom Jobim.
Muitos deram adeus às suas pátrias por motivos trágicos, e os Estados Unidos são prova de uma coletividade cuja população é feita de milhões de netos e filhos de imigrantes - de nativos que por livre vontade ou por motivos dramáticos foram obrigados a deixar sua terra natal.
No Brasil, este desejo é um paradoxal desabafo, geralmente feito em família ou entre amigos. Ele se amplia e se reduz de acordo com épocas históricas e governos. Nas ditaduras (tanto a de Vargas quanto a militar), muitos deixaram o País por perseguição política.
Ser obrigado a sair da terra onde se nasceu é “perder o chão”. Equivale a morrer ou ser encarcerado. Não se trata apenas de uma cruel punição política. É um assassinato espiritual decretado com o paradoxo de o morto continuar vivo. Veda-se o direito de participação, mas, de fato, esta interdição bloqueia a vida do condenado, impedindo-o de usufruir das muitas dimensões cruciais de todas as vidas. Como um paradoxo, porém, o banido pode retornar com mais potência, como foi o caso modelar do Conde de Monte Cristo e de outros degredados políticos. Antigamente, era a excomunhão que transformava alguém em um leproso social; hoje, Deus foi substituído pela política como credo. Neste sentido, vale lembrar que o exílio, tanto em Roma quanto na Grécia dos velhos tempos, era mais fatal do que a morte.
Neste Brasil polarizado, surge um “cancelamento” - um exílio interno sentenciado por “democratas”. Uma exclusão repleta de desfaçatez na qual um grupo ou uma pessoa são postos no “gelo” (quem sabe siberiano...), em uma vã tentativa de congelar suas opiniões, razões e realizações. A lista, que, como toda lista, tem sempre dois lados, está em vigência. Nela, o inimigo só se descobre como inimigo quando se vê caluniado ou não reconhecido.
Não se pode confundir, sem preconceito, o direito a opinar com crime. Só os nazi-fascistas fazem isso, mas o problema é que, no Brasil, há um nazi-fascismo inconsciente. A perversão nazi-fascista-stalinista acontece justamente quando se criminalizam opiniões e a totalidade (o partido, o grupo ou o coletivo) divide o tecido público ao meio. É como mutilar um corpo seccionando o seu lado direito do seu lado esquerdo.
E o gravíssimo e o absurdo, neste momento, é que quem mais promove tal sectarismo é o presidente da República. O vírus mortal polariza biologicamente e um virulento Jair Bolsonaro polariza moral e ideologicamente.
Sempre ouvi o “quero ir embora do Brasil” mais como um desabado ou uma fantasia. Mas, nestes tempos de “danação”, tenho testemunhado brasileiros deixando efetivamente o Brasil, e muitos adotando e comprando uma dupla cidadania.
A pandemia tem chamado atenção para a premente necessidade de uma corrente mundial de igualdade, solidariedade e abertura - será que nos esquecemos deste conceito generoso e fundamental? Tal corrente torna o mundo mais justo e humano. Mas o que se constata no Brasil é um reacionário fechamento.
Há até quem seja contrário à construção de pontes ou de se criar uma rosiana terceira margem do rio. Um ponto capaz de nos desembaraçar das exigências e dos extremos de modo a vê-los em sua natureza sectária que detesta escolhas. Ora, o escolher é, em condições normais, o avatar do discernimento, da prudência e do democrático.
Não para impedir posicionamentos, mas para evitar o pior que o presidente da República exprime em um absurdo e enlouquecido “Só Deus me tira daqui”. Se as facções invocam igualmente o aval de Deus, o resultado só pode ser o conflito e a destruição das margens e do próprio rio. Um louco não pode justificar a nossa eventual maluquice, ofuscando a nossa lucidez.
O centro, dizem, é o “conhece-te a ti mesmo”. É a vacina contra os arroubos, as hipocrisias, as tentações proféticas e o tirar vantagem das polarizações. A luta é indispensável, mas não se pode deixar de combinar as armas.
Sempre ouvi os surtos de onipotência do clássico “sair do Brasil”. Hoje, um presidente irracional, cercado de filhos radicais de direita e por uma maioria de políticos trêfegos, legalistas, populistas, ressentidos e hipócritas, fez com que a fantasia de “ir embora deste país de m...” virasse mantra. Graças, reitero, a um governo errático e a uma lamentável tradição de governar com malandragem, autoritarismo e roubalheira, esse desmedido brigar com o Brasil como se ele fosse uma pessoa física ganhou legitimidade.
Se acusar negativamente o Brasil era parte da própria cultura “culta” brasileira como testemunho de um “pensamento crítico” sobre um país periférico, colonizado, mestiçado, doente e, ao mesmo tempo, governado por uma elite familística “branca” e educada, criticar e negar o Brasil iam juntos. E o pior é que o governo Bolsonaro, com sua hoje comprovada aliança, confirma essa visada antipatriótica.
Muitos deram adeus às suas pátrias por motivos trágicos, e os Estados Unidos são prova de uma coletividade cuja população é feita de milhões de netos e filhos de imigrantes - de nativos que por livre vontade ou por motivos dramáticos foram obrigados a deixar sua terra natal.
No Brasil, este desejo é um paradoxal desabafo, geralmente feito em família ou entre amigos. Ele se amplia e se reduz de acordo com épocas históricas e governos. Nas ditaduras (tanto a de Vargas quanto a militar), muitos deixaram o País por perseguição política.
Ser obrigado a sair da terra onde se nasceu é “perder o chão”. Equivale a morrer ou ser encarcerado. Não se trata apenas de uma cruel punição política. É um assassinato espiritual decretado com o paradoxo de o morto continuar vivo. Veda-se o direito de participação, mas, de fato, esta interdição bloqueia a vida do condenado, impedindo-o de usufruir das muitas dimensões cruciais de todas as vidas. Como um paradoxo, porém, o banido pode retornar com mais potência, como foi o caso modelar do Conde de Monte Cristo e de outros degredados políticos. Antigamente, era a excomunhão que transformava alguém em um leproso social; hoje, Deus foi substituído pela política como credo. Neste sentido, vale lembrar que o exílio, tanto em Roma quanto na Grécia dos velhos tempos, era mais fatal do que a morte.
Neste Brasil polarizado, surge um “cancelamento” - um exílio interno sentenciado por “democratas”. Uma exclusão repleta de desfaçatez na qual um grupo ou uma pessoa são postos no “gelo” (quem sabe siberiano...), em uma vã tentativa de congelar suas opiniões, razões e realizações. A lista, que, como toda lista, tem sempre dois lados, está em vigência. Nela, o inimigo só se descobre como inimigo quando se vê caluniado ou não reconhecido.
Não se pode confundir, sem preconceito, o direito a opinar com crime. Só os nazi-fascistas fazem isso, mas o problema é que, no Brasil, há um nazi-fascismo inconsciente. A perversão nazi-fascista-stalinista acontece justamente quando se criminalizam opiniões e a totalidade (o partido, o grupo ou o coletivo) divide o tecido público ao meio. É como mutilar um corpo seccionando o seu lado direito do seu lado esquerdo.
E o gravíssimo e o absurdo, neste momento, é que quem mais promove tal sectarismo é o presidente da República. O vírus mortal polariza biologicamente e um virulento Jair Bolsonaro polariza moral e ideologicamente.
Sempre ouvi o “quero ir embora do Brasil” mais como um desabado ou uma fantasia. Mas, nestes tempos de “danação”, tenho testemunhado brasileiros deixando efetivamente o Brasil, e muitos adotando e comprando uma dupla cidadania.
A pandemia tem chamado atenção para a premente necessidade de uma corrente mundial de igualdade, solidariedade e abertura - será que nos esquecemos deste conceito generoso e fundamental? Tal corrente torna o mundo mais justo e humano. Mas o que se constata no Brasil é um reacionário fechamento.
Há até quem seja contrário à construção de pontes ou de se criar uma rosiana terceira margem do rio. Um ponto capaz de nos desembaraçar das exigências e dos extremos de modo a vê-los em sua natureza sectária que detesta escolhas. Ora, o escolher é, em condições normais, o avatar do discernimento, da prudência e do democrático.
Não para impedir posicionamentos, mas para evitar o pior que o presidente da República exprime em um absurdo e enlouquecido “Só Deus me tira daqui”. Se as facções invocam igualmente o aval de Deus, o resultado só pode ser o conflito e a destruição das margens e do próprio rio. Um louco não pode justificar a nossa eventual maluquice, ofuscando a nossa lucidez.
O centro, dizem, é o “conhece-te a ti mesmo”. É a vacina contra os arroubos, as hipocrisias, as tentações proféticas e o tirar vantagem das polarizações. A luta é indispensável, mas não se pode deixar de combinar as armas.
Sempre ouvi os surtos de onipotência do clássico “sair do Brasil”. Hoje, um presidente irracional, cercado de filhos radicais de direita e por uma maioria de políticos trêfegos, legalistas, populistas, ressentidos e hipócritas, fez com que a fantasia de “ir embora deste país de m...” virasse mantra. Graças, reitero, a um governo errático e a uma lamentável tradição de governar com malandragem, autoritarismo e roubalheira, esse desmedido brigar com o Brasil como se ele fosse uma pessoa física ganhou legitimidade.
Se acusar negativamente o Brasil era parte da própria cultura “culta” brasileira como testemunho de um “pensamento crítico” sobre um país periférico, colonizado, mestiçado, doente e, ao mesmo tempo, governado por uma elite familística “branca” e educada, criticar e negar o Brasil iam juntos. E o pior é que o governo Bolsonaro, com sua hoje comprovada aliança, confirma essa visada antipatriótica.
Governo entra em processo de autofagia na CPI
O processo de decomposição do governo Bolsonaro na CPI da Covid evoluiu para o estágio da autofagia. Nele, os membros da seita do negacionismo comem suas próprias entranhas. Mastigado pelo ex-chanceler Ernesto Araújo num depoimento de quase seis horas, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello vai ao banco da CPI nesta quarta-feira sangrando. Não lhe restaram muitas opções. Ou morde Bolsonaro ou crava os dentes na própria carne.
Na prática, Araújo confessou sua inépcia. Sob seu comando, o Itamaraty comportou-se como se não houvesse pandemia. Culpou a pasta de Pazuello pela imprevidência de comprar a cota mínima de vacinas ofertadas pelo consórcio Covax Facility, da OMS. Jurou que partiu da Saúde também a ordem para a aquisição de cloroquina na Índia. Nesse ponto, quando apertado, Araújo reconheceu a participação de Bolsonaro, que falou por telefone com o primeiro-ministro indiano.
"Não houve plano único, uma política" para o gerenciamento da crise sanitária, declarou o ex-chanceler, sem se dar conta de que mordia a língua de Bolsonaro. Como "o Itamaraty não age de maneira autônoma", submeteu-se às demandas do ministério de Pazuello, comandado na base do "um manda e o outro obedece."
Na negociação sobre a vacina de Oxford-AstraZeneca, o Itamaraty apenas deu "apoio secundário, logístico, operacional." No colapso hospitalar de Manaus, enquanto o time de Pazuello receitava cloroquina a quem precisava respirar, a diplomacia brasileira fingiu não ver a doação de cilindros de oxigênio feita pela Venezuela. Araújo não pediu nem agradeceu o socorro. Estava envenenado pela "ideologia", acusou o presidente da CPI, Omar Aziz, eleito pelo Amazonas.
Enquanto triturava Pazuello, submetendo-o a uma forma de canibalismo típica dos caetés, que comeram o bispo Sardinha, Araújo atingiu uma espécie de cume do cinismo. Declarou várias vezes que nunca fez declarações ofensivas à China, que fornece o insumo usado pelo Butantan e pela Fiocruz na fabricação de vacinas.
Pior do que a presunção de Araújo de que ninguém se lembraria da sua insanidade retórica é a conclusão e que não havia razão para preocupação. Mesmo sabendo que todos conhecem seus ataques ao maior parceiro comercial do Brasil, o ex-chanceler acha que pode dizer o que bem entender no vácuo sanitário a que chegou o Brasil. Tudo, afinal, pode ser dito e feito quando ninguém se incomoda de ser chamado de "mentiroso" na frente das crianças.
Kátia prosseguiu: "O senhor é um negacionista compulsivo, omisso. O senhor no MRE [Ministério das Relações Exteriores] foi uma bússola que nos direcionou para o caos, para um iceberg, bússola que nos levou para o naufrágio da política internacional, da política externa brasileira. Foi isso o que o senhor fez."
Depois que Ernesto Araújo executou na CPI o segundo ato da ópera da autofagia — o primeiro havia sido encenado na semana passada, com o depoimento do ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten —, os senadores da CPI aguardam o depoimento de Pazuello mais ou menos como quem espera pela entrada no palco de uma soprano opulenta escalada para cantar no penúltimo ato.
É como se os inquiridores aguardassem um sinal claro de que a confusão final poderia estar próxima. Um fato que resumisse tudo o que a plateia deseja expressar quando diz: "Não é possível!" Muitos imaginam que o melhor sinal seria a imagem de Pazuello comendo o fígado de Bolsonaro: "Ele mandou, eu apenas obedeci." O mais provável, entretanto é que o ex-ministro, em estágio hemorrágico, saia da CPI acorrentado a um novo lema: "Um manda e o outro se lasca."
Na prática, Araújo confessou sua inépcia. Sob seu comando, o Itamaraty comportou-se como se não houvesse pandemia. Culpou a pasta de Pazuello pela imprevidência de comprar a cota mínima de vacinas ofertadas pelo consórcio Covax Facility, da OMS. Jurou que partiu da Saúde também a ordem para a aquisição de cloroquina na Índia. Nesse ponto, quando apertado, Araújo reconheceu a participação de Bolsonaro, que falou por telefone com o primeiro-ministro indiano.
"Não houve plano único, uma política" para o gerenciamento da crise sanitária, declarou o ex-chanceler, sem se dar conta de que mordia a língua de Bolsonaro. Como "o Itamaraty não age de maneira autônoma", submeteu-se às demandas do ministério de Pazuello, comandado na base do "um manda e o outro obedece."
Na negociação sobre a vacina de Oxford-AstraZeneca, o Itamaraty apenas deu "apoio secundário, logístico, operacional." No colapso hospitalar de Manaus, enquanto o time de Pazuello receitava cloroquina a quem precisava respirar, a diplomacia brasileira fingiu não ver a doação de cilindros de oxigênio feita pela Venezuela. Araújo não pediu nem agradeceu o socorro. Estava envenenado pela "ideologia", acusou o presidente da CPI, Omar Aziz, eleito pelo Amazonas.
Enquanto triturava Pazuello, submetendo-o a uma forma de canibalismo típica dos caetés, que comeram o bispo Sardinha, Araújo atingiu uma espécie de cume do cinismo. Declarou várias vezes que nunca fez declarações ofensivas à China, que fornece o insumo usado pelo Butantan e pela Fiocruz na fabricação de vacinas.
Pior do que a presunção de Araújo de que ninguém se lembraria da sua insanidade retórica é a conclusão e que não havia razão para preocupação. Mesmo sabendo que todos conhecem seus ataques ao maior parceiro comercial do Brasil, o ex-chanceler acha que pode dizer o que bem entender no vácuo sanitário a que chegou o Brasil. Tudo, afinal, pode ser dito e feito quando ninguém se incomoda de ser chamado de "mentiroso" na frente das crianças.
"Eu imagino que o senhor tenha uma memória seletiva, para não dizer uma memória leviana", bateu a senadora Kátia Abreu. "O senhor não se lembra de nada do que importa e do que ocorreu efetivamente; e se lembra de questões mínimas, supérfluas e até mesmo não verdadeiras, como o senhor vem fazendo aqui todo esse momento. A impressão que se tem é que existe um Ernesto que fala conosco, de que nós ouvimos a voz, e um outro Ernesto que eu não sei onde fica, nas redes, na internet, nos artigos, nos blogs, falando coisas totalmente diferentes."
Kátia prosseguiu: "O senhor é um negacionista compulsivo, omisso. O senhor no MRE [Ministério das Relações Exteriores] foi uma bússola que nos direcionou para o caos, para um iceberg, bússola que nos levou para o naufrágio da política internacional, da política externa brasileira. Foi isso o que o senhor fez."
Depois que Ernesto Araújo executou na CPI o segundo ato da ópera da autofagia — o primeiro havia sido encenado na semana passada, com o depoimento do ex-secretário de Comunicação Fábio Wajngarten —, os senadores da CPI aguardam o depoimento de Pazuello mais ou menos como quem espera pela entrada no palco de uma soprano opulenta escalada para cantar no penúltimo ato.
É como se os inquiridores aguardassem um sinal claro de que a confusão final poderia estar próxima. Um fato que resumisse tudo o que a plateia deseja expressar quando diz: "Não é possível!" Muitos imaginam que o melhor sinal seria a imagem de Pazuello comendo o fígado de Bolsonaro: "Ele mandou, eu apenas obedeci." O mais provável, entretanto é que o ex-ministro, em estágio hemorrágico, saia da CPI acorrentado a um novo lema: "Um manda e o outro se lasca."
‘Um manda, outro obedece, leva Bolsonaro à CPI
Se adotar a estratégia do silêncio ou das meias-palavras na CPI da Covid, o general Eduardo Pazuello passará a bola, inevitavelmente, para o presidente Jair Bolsonaro. O gesto do ex-ministro da Saúde de não colaborar com a comissão e não falar pode ser interpretado, sob certo ângulo, também como postura de alguém que rejeita defender o presidente. Nesse caso, o oficial da ativa se comportará em benefício de sua própria sobrevivência e não em prol de um governo.
É uma mensagem que o próprio general e toda a equipe de estrategistas do Planalto não conseguem controlar. Toda vez que deixar uma pergunta sem resposta e selecionar o que pretende rebater, Pazuello demonstrará que não tem nada a falar, pois, como deixou claro, algumas vezes apenas cumpriu ordens. Logo, quem tem de prestar contas aos senadores e ao País é seu ex-chefe no governo e atual chefe militar, o presidente da República.
O governo atuou oficialmente para garantir o silêncio de Pazuello. A pedido da Advocacia-Geral da União, o Supremo concedeu habeas corpus para o general não responder a perguntas que possam levantar provas contra ele. Em suma, Pazuello não sairá preso do Senado.
Se optar mesmo por não falar, o general forçará a lembrança de uma frase decisiva que disse em outubro. Numa “live” ao lado de Bolsonaro, ele foi direto ao ponto: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Era uma reação à atitude do presidente de desautorizá-lo ao mandar cancelar a compra de doses da Coronavac. A frase, que entrou para o anedotário, é o que pode agora salvar o general. Ele tem um álibi: o presidente.
A estratégia do silêncio pode trazer consequências históricas também para a caserna. Por ser um general da ativa, Pazuello pregará nas Forças Armadas a imagem de uma instituição que não tinha resposta, no calor da hora, à denúncia grave de ter colaborado para uma política desastrosa de governo no combate à doença. Até a noite de ontem, o vírus tinha matado 439.379 brasileiros.
É uma mensagem que o próprio general e toda a equipe de estrategistas do Planalto não conseguem controlar. Toda vez que deixar uma pergunta sem resposta e selecionar o que pretende rebater, Pazuello demonstrará que não tem nada a falar, pois, como deixou claro, algumas vezes apenas cumpriu ordens. Logo, quem tem de prestar contas aos senadores e ao País é seu ex-chefe no governo e atual chefe militar, o presidente da República.
O governo atuou oficialmente para garantir o silêncio de Pazuello. A pedido da Advocacia-Geral da União, o Supremo concedeu habeas corpus para o general não responder a perguntas que possam levantar provas contra ele. Em suma, Pazuello não sairá preso do Senado.
Se optar mesmo por não falar, o general forçará a lembrança de uma frase decisiva que disse em outubro. Numa “live” ao lado de Bolsonaro, ele foi direto ao ponto: “É simples assim: um manda e o outro obedece”. Era uma reação à atitude do presidente de desautorizá-lo ao mandar cancelar a compra de doses da Coronavac. A frase, que entrou para o anedotário, é o que pode agora salvar o general. Ele tem um álibi: o presidente.
A estratégia do silêncio pode trazer consequências históricas também para a caserna. Por ser um general da ativa, Pazuello pregará nas Forças Armadas a imagem de uma instituição que não tinha resposta, no calor da hora, à denúncia grave de ter colaborado para uma política desastrosa de governo no combate à doença. Até a noite de ontem, o vírus tinha matado 439.379 brasileiros.
O vírus mais contagiante
Seria bom escrever que o vírus mais contagiante é o da esperança. Ou o da solidariedade universal. Talvez até seja verdade – haja vista a melhora no ânimo das esquerdas desde o momento em que Lula despontou como candidato apto a derrotar Bolsonaro em todas as pesquisas.
Só que não. Mais contagiante que a esperança, que a alegria, que o desejo ou o amor, é o vírus da violência – com sua gama de cepas variantes a provocar vários tipos de sofrimento físico e mental: medo, angústia, desespero, traumas. E mortes, mortes, mortes. A intensidade dos sintomas depende do CEP do infectado: favelas, periferias e prisões revelam altos índices de contaminação, somados a baixos índices de imunidade. A polícia brasileira, militarizada desde o período da Ditadura de 1964-85 e nunca mais desmilitarizada age como se estivesse em uma guerra.[1] Fique tranquilo, leitor de classe média, o inimigo não é você. Nem eu. É a população pobre.
Desde que senti urgência em escrever sobre o aumento exponencial da brutalidade num Brasil que nunca foi exemplo de respeito aos Direitos Humanos, venho procrastinando. O tema, angustiante para todos nós, vinha bloqueando meu texto. Pensei pela primeira vez nesse artigo dia 8 de março, quando li a notícia do assassinato do menino Henry Borel. O menino de quatro anos sofria frequentes surras do padrasto, o vereador carioca Doutor Jairinho. A mãe não reagia porque também era espancada pelo companheiro – mas tampouco tentou fugir de casa com o filho. A funcionária da casa relatou à polícia que, no dia do crime, tinha visto Henry “apavorado”. Se a mãe não fez nada imaginem o medo, mas também e a coragem da babá que delatou – ainda que não tenha conseguido impedir – o assassinato da criança.
A perspectiva de escrever sobre o martírio da criança me paralisou durante dois meses.
Pouco mais de um mês após o assassinato de Henry, no dia 16 de abril, Kaio Guilherme da Silva Baraúna, também de oito anos, foi atingido na cabeça por “bala perdida”, durante uma festa em Vila Aliança. Kaio morreu no dia seguinte.
Nenhuma bala é perdida. Em primeiro lugar, elas não se “perdem” nos Jardins (SP). Nem em Ipanema. Costumam se desencaminhar do suposto alvo “correto” quando são disparadas pelos cantos mais vulneráveis e abandonados das grandes cidades. Além da bala, quem costuma “se perder” frequentemente das vistas da justiça e das testemunhas é o responsável pelo tiro. Sobretudo quando veste a farda que o designa como responsável por preservar a segurança da população.
O adolescente João Pedro, de 14 anos, também foi morto a tiros pela polícia do Rio durante uma festa em sua escola. Me parece que ninguém mais pergunta se a PM tinha mandato para entrar atirando na Vila Aliança. Provavelmente não – e daí? Mandato é burocracia requerida apenas para agir nos bairros da Zona Sul.
Oito dias depois do assassinato de Kaio, no dia 24 de abril, mãe e madrasta de Ketelen Vitória espancaram e torturaram com chicote e pedaços de fio elétrico a criança de seis anos. Ketelen agonizou, sem socorro, até o amanhecer. Seu corpo foi jogado num matagal, de uma altura de sete metros.
Aos quatro anos de idade, a menina Maria Clara foi assassinada pela mãe e pelo padrasto que mentiram, no hospital, que a causa da morte teria sido um engasgo com miolo de pão. Maria Clara teve traumatismo craniano e apresentava hematomas pelo corpo todo. Parece que o padrasto não participou do crime – mas preferiu não interferir.
No dia 4 e maio um rapaz de dezoito anos, Fabiano Kepper Mai, invadiu portando um facão uma escola infantil em Santa Catarina e matou uma professora, um agente educacional e três crianças com menos de dois anos. É possível que Fabiano seja doente mental: mas o eventual laudo de esquizofrenia, ou de paranoia, não basta para entendermos por que seu sofrimento psíquico produziu justamente este sintoma: assassinar gente.
Um psicótico é, com frequência, extremamente sensível ao ambiente social em que vive. Bem, isso pode se aplicar a qualquer um de nós. A questão é que o psicótico interpreta à sua maneira os mandatos que circulam na sociedade: estes que nos afetam, nos angustiam e amedrontam, mas que também nos enchem de raiva e indignação. Nem todos os psicóticos – é vital que se diga – respondem com fúria quando são afetados por incitações à violência. Alguns reagem a isso com atos de extrema gentileza. Outros se investem da convicção de que sua missão na terra seja a agir como anjos da paz: espalhar o bem, proteger os indefesos, salvar crianças maltratadas. Há também os que vivem assustados e sofrem com fantasias paranoicas. “Paranoico é quem se sabe perseguido”, diz o verso de Aldir Blanc em parceria musical com João Bosco. São minoria os que reagem ao ambiente violento com mais violência.
Então tivemos Jacarezinho. A orgia da PM. A operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro.[2] O Rio, onde muitas comunidades começaram e cresceram em morros situados na chamada “Zona Sul”, tem um longo histórico de violência policial contra os pobres. Jacarezinho é na Zona Norte: o pretexto da invasão não foi o de proteger a burguesia carioca da suposta bandidagem. A polícia chegou atirando, tanto faz em quem. Preto pobre é tudo igual. Matou vinte e sete moradores (um agente policial foi morto).
Os depoimentos dos sobreviventes, parentes e amigos das vítimas, estão nos jornais. A cor da pele é a mesma dos moços torturados e executados pela PM de Salvador, acusados de roubar carne em um supermercado. Acusados de passar fome. Acusados de passar fome desesperada. Acusados de desamparo. Acusados de ser vítimas de descaso do Estado. Acusados de serem, no dizer do compositor Itamar Assumpção, “iscas de polícia”.
Nada disso é novo no Brasil. A novidade, desde a redemocratização, é que as execuções policiais nesse momento de nossa história têm o DNA do presidente. O mesmo que homenageou, em uma sessão da Comissão da Verdade na câmara dos Deputados, o pior torturador da Ditadura Militar: Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. O mesmo que, em campanha, imitava armas com o polegar e o indicador, como uma criança que brinca de cowboy; e para mostrar que não estava brincando, depois de eleito costuma posar para fotos ostentando fuzis. O mesmo que ameaça de estupro uma deputada da oposição para depois afirmar que só não fará isso porque ela é “feia”.
O mesmo que celebra a devastação da Amazônia e do Pantanal incentivada por seu desprezo pelas populações originárias, pelas reservas ambientais, pelas as águas dos rios que haverão de secar, pelas mudanças climáticas (coisa de “comunista”), e pelo país que supostamente governa. O mesmo que rompe, sem sofrer as consequências diante de uma Câmara dos Deputados venal, todos os limites do decoro imposto por sua posição ao mandar a oposição “tomar no cu” no caso do escândalo das latas de leite condensado. Pelo visto até aqui, com raras exceções, a oposição obedeceu. Não se falou mais no assunto.
Só que muito antes da eleição de 2018 o Brasil já era violento: contra os negros, contra os índios, contra os pobres. O que mudou nos últimos três anos é que todas as manifestações de maldade se banalizaram. Uso propositalmente o conceito de “banalidade”, mas atribuo a ele um sentido um pouco diferente daquele criado pela filósofa Hannah Arendt, diante do julgamento do carrasco Eichmann em Jerusalém. Arendt empregou a expressão “banalidade do mal” para se referir à ausência de implicação subjetiva daquele que mandou milhares de pessoas morrer nas câmaras de gás sob a alegação de ter cumprido ordens.
No caso brasileiro, o mandatário responsável pela explosão de violência que o país atravessa não “cumpre ordens” de ninguém, assim como não respeita ninguém além dos filhos e de um grupo cada vez menor de bajuladores. O mal se banaliza na fala de Bolsonaro a cada vez que ele diz – “e daí?” para os efeitos da violência que ele próprio promove. A cada vez que diz “não sou coveiro”! em vez de lamentar a mortandade que, por culpa de seu desleixo em relação as vacinas, hoje coloca o Brasil no topo dos países mais afetados pela Covid 19.
São frágeis os recursos subjetivos que nos separam dos piores psicopatas. O inconsciente, essa espécie de depositário de nossas memórias esquecidas, de nossas fantasias infantis, de nossos desejos inconfessáveis, é a mesma instância psíquica que abriga vestígios da violência que o laço social nos força, desde a infância, a conter. Quem já presenciou uma birra infantil incontida foi capaz de perceber quanta fúria existe na criança que esperneia, que se joga no chão, que as vezes diz “eu te odeio!” ao adulto que frustrou um desejo seu. A sorte dos pais e educadores é que a criança não tem força de fazer contra nós o que sua raiva e sua frustração incitam. Crescer é, por um lado, conquistar permissão e capacidade para fazer o que até então os pais consideravam arriscado ou além de suas capacidades. Por outro lado, desenvolver recursos para barrar as manifestações de seu ódio e substituir a birra pela argumentação.
O atual presidente, quando contrariado, reage como uma criança. Seria uma gracinha – se não se tratasse de um marmanjo com passagem pelo Exército (de onde foi expulso por insubordinação) e pela Câmara dos Deputados até chegar, with a litlle help from some fake news jamais apuradas, ao posto de líder da nação. Sua maldade, explicitada em palavras e incontáveis ações, tem arruinado não apenas a economia e os rumos da democracia: tem contribuído para a deterioração desse mínimo de civilidade que a sociedade brasileira luta todos os dias para defender.
Não se quebram certos tabus impunemente. A incitação a violência por parte do principal mandatário da nação tem força para inutilizar nosso esforço cotidiano em direção à consolidação de um laço social baseado no respeito, na compreensão das diferenças e na solidariedade. A sociedade, perplexa e ferida – sim, a propagação da maldade nos fere quase tanto quanto a violência sofrida na própria pele – ainda não sabe reagir a isso.
Desencantados, atemorizados, os brasileiros têm se tornado cada vez mais propensos a crises de violência. Às vezes, uma explosão de fúria pode ser apenas a expressão mais extrema da angústia. Mas quando essa fúria se manifesta em atos de pessoas armadas que buscam um bode expiatório para algo que as frustra ou oprime, a criminalidade explode, como tem explodido nos últimos dois anos e meio.
Isso não explica por que, em tantos casos, sejam as crianças – inclusive os próprios filhos de alguns assassinos de ocasião – as vítimas da violência doméstica. O que essas pequenas vítimas representam – isto é, representavam – a ponto de se tornarem intoleráveis para seus pais, mães, padrastos de madrastas?
Representavam a ternura, a candura, a inocência. Mesmo chatinhas, como muitas vezes as crianças são, mesmo teimosas ou birrentas, as crianças ainda manifestam uma capacidade de amar e perdoar seus pais – seus piores pais – com uma grandeza que poucos preservam na vida adulta. As crianças perturbam nossos esforços para nos adaptar sem muita dor ao novo estado deteriorado em que vivemos. Não se trata, nos casos de violência contra elas, de tentativas de matar o mensageiro que nos traz más notícias. As crianças só nos trazem boas notícias. Trata-se, sim, do desejo de eliminar estes pequenos seres que nos fazem lembrar que já fomos melhores. Esses pequenos seres que continuam nos amando ainda, apesar de nossa deterioração.
Devo dizer aqui: este foi o artigo mais penoso que já me escrevi. Peço perdão aos leitores se algumas passagens lhes parecerem bruscas, incompletas ou atropeladas.
[1] A desmilitarização das polícias foi uma das recomendações feitas no relatório final da Comissão da Verdade (2012-2014), criada por empenho da presidenta Dilma Roussef para investigar os crimes cometidos por agentes do Estado contra cidadãos brasileiros.
[2] Esta observação limita-se ao Rio: em São Paulo, sempre à frente do país inteiro, tivemos os cento e onze do Carandiru.
Só que não. Mais contagiante que a esperança, que a alegria, que o desejo ou o amor, é o vírus da violência – com sua gama de cepas variantes a provocar vários tipos de sofrimento físico e mental: medo, angústia, desespero, traumas. E mortes, mortes, mortes. A intensidade dos sintomas depende do CEP do infectado: favelas, periferias e prisões revelam altos índices de contaminação, somados a baixos índices de imunidade. A polícia brasileira, militarizada desde o período da Ditadura de 1964-85 e nunca mais desmilitarizada age como se estivesse em uma guerra.[1] Fique tranquilo, leitor de classe média, o inimigo não é você. Nem eu. É a população pobre.
Desde que senti urgência em escrever sobre o aumento exponencial da brutalidade num Brasil que nunca foi exemplo de respeito aos Direitos Humanos, venho procrastinando. O tema, angustiante para todos nós, vinha bloqueando meu texto. Pensei pela primeira vez nesse artigo dia 8 de março, quando li a notícia do assassinato do menino Henry Borel. O menino de quatro anos sofria frequentes surras do padrasto, o vereador carioca Doutor Jairinho. A mãe não reagia porque também era espancada pelo companheiro – mas tampouco tentou fugir de casa com o filho. A funcionária da casa relatou à polícia que, no dia do crime, tinha visto Henry “apavorado”. Se a mãe não fez nada imaginem o medo, mas também e a coragem da babá que delatou – ainda que não tenha conseguido impedir – o assassinato da criança.
A perspectiva de escrever sobre o martírio da criança me paralisou durante dois meses.
Pouco mais de um mês após o assassinato de Henry, no dia 16 de abril, Kaio Guilherme da Silva Baraúna, também de oito anos, foi atingido na cabeça por “bala perdida”, durante uma festa em Vila Aliança. Kaio morreu no dia seguinte.
Nenhuma bala é perdida. Em primeiro lugar, elas não se “perdem” nos Jardins (SP). Nem em Ipanema. Costumam se desencaminhar do suposto alvo “correto” quando são disparadas pelos cantos mais vulneráveis e abandonados das grandes cidades. Além da bala, quem costuma “se perder” frequentemente das vistas da justiça e das testemunhas é o responsável pelo tiro. Sobretudo quando veste a farda que o designa como responsável por preservar a segurança da população.
O adolescente João Pedro, de 14 anos, também foi morto a tiros pela polícia do Rio durante uma festa em sua escola. Me parece que ninguém mais pergunta se a PM tinha mandato para entrar atirando na Vila Aliança. Provavelmente não – e daí? Mandato é burocracia requerida apenas para agir nos bairros da Zona Sul.
Oito dias depois do assassinato de Kaio, no dia 24 de abril, mãe e madrasta de Ketelen Vitória espancaram e torturaram com chicote e pedaços de fio elétrico a criança de seis anos. Ketelen agonizou, sem socorro, até o amanhecer. Seu corpo foi jogado num matagal, de uma altura de sete metros.
Aos quatro anos de idade, a menina Maria Clara foi assassinada pela mãe e pelo padrasto que mentiram, no hospital, que a causa da morte teria sido um engasgo com miolo de pão. Maria Clara teve traumatismo craniano e apresentava hematomas pelo corpo todo. Parece que o padrasto não participou do crime – mas preferiu não interferir.
No dia 4 e maio um rapaz de dezoito anos, Fabiano Kepper Mai, invadiu portando um facão uma escola infantil em Santa Catarina e matou uma professora, um agente educacional e três crianças com menos de dois anos. É possível que Fabiano seja doente mental: mas o eventual laudo de esquizofrenia, ou de paranoia, não basta para entendermos por que seu sofrimento psíquico produziu justamente este sintoma: assassinar gente.
Um psicótico é, com frequência, extremamente sensível ao ambiente social em que vive. Bem, isso pode se aplicar a qualquer um de nós. A questão é que o psicótico interpreta à sua maneira os mandatos que circulam na sociedade: estes que nos afetam, nos angustiam e amedrontam, mas que também nos enchem de raiva e indignação. Nem todos os psicóticos – é vital que se diga – respondem com fúria quando são afetados por incitações à violência. Alguns reagem a isso com atos de extrema gentileza. Outros se investem da convicção de que sua missão na terra seja a agir como anjos da paz: espalhar o bem, proteger os indefesos, salvar crianças maltratadas. Há também os que vivem assustados e sofrem com fantasias paranoicas. “Paranoico é quem se sabe perseguido”, diz o verso de Aldir Blanc em parceria musical com João Bosco. São minoria os que reagem ao ambiente violento com mais violência.
Então tivemos Jacarezinho. A orgia da PM. A operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro.[2] O Rio, onde muitas comunidades começaram e cresceram em morros situados na chamada “Zona Sul”, tem um longo histórico de violência policial contra os pobres. Jacarezinho é na Zona Norte: o pretexto da invasão não foi o de proteger a burguesia carioca da suposta bandidagem. A polícia chegou atirando, tanto faz em quem. Preto pobre é tudo igual. Matou vinte e sete moradores (um agente policial foi morto).
Os depoimentos dos sobreviventes, parentes e amigos das vítimas, estão nos jornais. A cor da pele é a mesma dos moços torturados e executados pela PM de Salvador, acusados de roubar carne em um supermercado. Acusados de passar fome. Acusados de passar fome desesperada. Acusados de desamparo. Acusados de ser vítimas de descaso do Estado. Acusados de serem, no dizer do compositor Itamar Assumpção, “iscas de polícia”.
Nada disso é novo no Brasil. A novidade, desde a redemocratização, é que as execuções policiais nesse momento de nossa história têm o DNA do presidente. O mesmo que homenageou, em uma sessão da Comissão da Verdade na câmara dos Deputados, o pior torturador da Ditadura Militar: Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. O mesmo que, em campanha, imitava armas com o polegar e o indicador, como uma criança que brinca de cowboy; e para mostrar que não estava brincando, depois de eleito costuma posar para fotos ostentando fuzis. O mesmo que ameaça de estupro uma deputada da oposição para depois afirmar que só não fará isso porque ela é “feia”.
O mesmo que celebra a devastação da Amazônia e do Pantanal incentivada por seu desprezo pelas populações originárias, pelas reservas ambientais, pelas as águas dos rios que haverão de secar, pelas mudanças climáticas (coisa de “comunista”), e pelo país que supostamente governa. O mesmo que rompe, sem sofrer as consequências diante de uma Câmara dos Deputados venal, todos os limites do decoro imposto por sua posição ao mandar a oposição “tomar no cu” no caso do escândalo das latas de leite condensado. Pelo visto até aqui, com raras exceções, a oposição obedeceu. Não se falou mais no assunto.
Só que muito antes da eleição de 2018 o Brasil já era violento: contra os negros, contra os índios, contra os pobres. O que mudou nos últimos três anos é que todas as manifestações de maldade se banalizaram. Uso propositalmente o conceito de “banalidade”, mas atribuo a ele um sentido um pouco diferente daquele criado pela filósofa Hannah Arendt, diante do julgamento do carrasco Eichmann em Jerusalém. Arendt empregou a expressão “banalidade do mal” para se referir à ausência de implicação subjetiva daquele que mandou milhares de pessoas morrer nas câmaras de gás sob a alegação de ter cumprido ordens.
No caso brasileiro, o mandatário responsável pela explosão de violência que o país atravessa não “cumpre ordens” de ninguém, assim como não respeita ninguém além dos filhos e de um grupo cada vez menor de bajuladores. O mal se banaliza na fala de Bolsonaro a cada vez que ele diz – “e daí?” para os efeitos da violência que ele próprio promove. A cada vez que diz “não sou coveiro”! em vez de lamentar a mortandade que, por culpa de seu desleixo em relação as vacinas, hoje coloca o Brasil no topo dos países mais afetados pela Covid 19.
São frágeis os recursos subjetivos que nos separam dos piores psicopatas. O inconsciente, essa espécie de depositário de nossas memórias esquecidas, de nossas fantasias infantis, de nossos desejos inconfessáveis, é a mesma instância psíquica que abriga vestígios da violência que o laço social nos força, desde a infância, a conter. Quem já presenciou uma birra infantil incontida foi capaz de perceber quanta fúria existe na criança que esperneia, que se joga no chão, que as vezes diz “eu te odeio!” ao adulto que frustrou um desejo seu. A sorte dos pais e educadores é que a criança não tem força de fazer contra nós o que sua raiva e sua frustração incitam. Crescer é, por um lado, conquistar permissão e capacidade para fazer o que até então os pais consideravam arriscado ou além de suas capacidades. Por outro lado, desenvolver recursos para barrar as manifestações de seu ódio e substituir a birra pela argumentação.
O atual presidente, quando contrariado, reage como uma criança. Seria uma gracinha – se não se tratasse de um marmanjo com passagem pelo Exército (de onde foi expulso por insubordinação) e pela Câmara dos Deputados até chegar, with a litlle help from some fake news jamais apuradas, ao posto de líder da nação. Sua maldade, explicitada em palavras e incontáveis ações, tem arruinado não apenas a economia e os rumos da democracia: tem contribuído para a deterioração desse mínimo de civilidade que a sociedade brasileira luta todos os dias para defender.
Não se quebram certos tabus impunemente. A incitação a violência por parte do principal mandatário da nação tem força para inutilizar nosso esforço cotidiano em direção à consolidação de um laço social baseado no respeito, na compreensão das diferenças e na solidariedade. A sociedade, perplexa e ferida – sim, a propagação da maldade nos fere quase tanto quanto a violência sofrida na própria pele – ainda não sabe reagir a isso.
Desencantados, atemorizados, os brasileiros têm se tornado cada vez mais propensos a crises de violência. Às vezes, uma explosão de fúria pode ser apenas a expressão mais extrema da angústia. Mas quando essa fúria se manifesta em atos de pessoas armadas que buscam um bode expiatório para algo que as frustra ou oprime, a criminalidade explode, como tem explodido nos últimos dois anos e meio.
Isso não explica por que, em tantos casos, sejam as crianças – inclusive os próprios filhos de alguns assassinos de ocasião – as vítimas da violência doméstica. O que essas pequenas vítimas representam – isto é, representavam – a ponto de se tornarem intoleráveis para seus pais, mães, padrastos de madrastas?
Representavam a ternura, a candura, a inocência. Mesmo chatinhas, como muitas vezes as crianças são, mesmo teimosas ou birrentas, as crianças ainda manifestam uma capacidade de amar e perdoar seus pais – seus piores pais – com uma grandeza que poucos preservam na vida adulta. As crianças perturbam nossos esforços para nos adaptar sem muita dor ao novo estado deteriorado em que vivemos. Não se trata, nos casos de violência contra elas, de tentativas de matar o mensageiro que nos traz más notícias. As crianças só nos trazem boas notícias. Trata-se, sim, do desejo de eliminar estes pequenos seres que nos fazem lembrar que já fomos melhores. Esses pequenos seres que continuam nos amando ainda, apesar de nossa deterioração.
Devo dizer aqui: este foi o artigo mais penoso que já me escrevi. Peço perdão aos leitores se algumas passagens lhes parecerem bruscas, incompletas ou atropeladas.
[1] A desmilitarização das polícias foi uma das recomendações feitas no relatório final da Comissão da Verdade (2012-2014), criada por empenho da presidenta Dilma Roussef para investigar os crimes cometidos por agentes do Estado contra cidadãos brasileiros.
[2] Esta observação limita-se ao Rio: em São Paulo, sempre à frente do país inteiro, tivemos os cento e onze do Carandiru.
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