domingo, 2 de fevereiro de 2020

Brasil de Iemanjá


Humanos como nós

Considerado o pai da antropologia estruturalista, o franco-belga Claude Lévi-Strauss (1908 — 2009), entre 1935 e 1939, dedicou-se a estudar os índios do Brasil Central, base para a publicação de sua tese As estruturas elementares do parentesco, em 1949. Ele rompeu com a ideia de que os índios são apenas índios, porque não concordava com a divisão entre civilizados e selvagens. Lévi-Strauss foi professor da recém-criada Universidade de São Paulo, com sua esposa Dinah Lévi-Strauss, Fernand Braudel, Jean Maugüé e Pierre Monbeig, e realizou pesquisas de campo em Goiás, Mato Grosso e Paraná, que também resultaram no livro Tristes Trópicos (1955). Procurou decifrar as relações entre o ser humano, a natureza e a cultura.

Para o antropólogo, o ser humano se diferencia dos outros animais devido ao uso de símbolos para se comunicar, não importa as particularidades de cada grupo humano. Seu objetivo não era estudar uma sociedade específica, mas identificar o que há nela de universal; por exemplo, sistemas de parentesco e restrições matrimoniais. Graças aos índios, por exemplo, sua compreensão do incesto ultrapassou as explicações biológicas ou morais. A proibição de manter relações sexuais com certas mulheres (como a mãe ou a irmã) e a permissão para tê-las com outras teceram as alianças fundadoras da vida social. O sistema de parentesco é o meio pelo qual se cumpre a transição entre a natureza e a cultura. Explica, por exemplo, como se formou a economia do sertão no Brasil colonial, a partir da miscigenação e do escambo entre os tupis e os portugueses.

Na monumental Mitológicas, de 1960, com mais de 2 mil páginas, Lévi-Straus analisou 813 mitos originários de povos do continente americano, desde os bororos, os jês e os tupi-cavaíbas do Brasil até os hopi, os pueblo, os mohawk e os kwakiutl da América do Norte. No primeiro volume, intitulado O Cru e o Cozido, comparou a análise conjunta dos mitos americanos à audição de uma sinfonia. Os músicos, porém, estão separados no tempo e no espaço, e cada um executa seu fragmento sem saber a partitura completa. Só é capaz de ouvir a música inteira quem estiver a distância. O concerto, segundo Lévi-Strauss, iniciou-se há milênios e hoje poucos músicos remanescentes continuam a tocar na orquestra.

No Maranhão, Karapiru, um indígena Awá, é um dos remanescentes da orquestra. Sobreviveu a um ataque de homens armados e, durante dez anos, morou sozinho, se escondendo na floresta. Agora vive com outros Awá, que são caçadores-coletores e nômades em constante movimento. Em Rondônia, outro índio solitário talvez seja o único sobrevivente de uma tribo massacrada por grileiros que ocuparam a região de Tanuro. Vive em fuga e é conhecido como “homem do buraco”, porque escava grandes covas para se esconder e guardar seus alimentos. Desde 1987, a Fundação Nacional do Índio (Funai) tem um departamento dedicado aos povos indígenas isolados, cuja política é fazer contato somente nos casos em que sua sobrevivência está em risco iminente. Em vez disso, a Funai busca demarcar e proteger suas terras de invasores.

Os povos isolados têm o direito de decidir se preferem viver em isolamento ou não. Para exercer esse direito, porém, precisam de tempo e espaço. É o caso dos Piripkura, ou o “povo borboleta”, como são chamados pelos “Gaviões”, com quem interagem. Eles falam Tupi-Kawahib, o mesmo tronco linguístico de vários outros povos do Brasil. Os Piripkura eram cerca de 20 pessoas quando a Funai fez o primeiro contato no final da década de 1980. Depois, voltaram para a floresta, e mantêm relações esporádicas com os sertanistas. Somente sobreviverão se suas terras forem protegidas. Há centenas de grupos isolados na Amazônia.

Agora, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, pretende nomear o antropólogo Ricardo Lopes Dias para a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e Recém Contatados. Formado pela Faculdade Teológica Sul Americana, atuou por mais de dez anos para a Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), organização que tem por objetivo evangelizar os indígenas. Lopes Dias terá a missão de tornar o índio cada vez mais “um ser humano igual a nós”, para usar a expressão do presidente Jair Bolsonaro.

Voltemos à antropologia, que explica muitas coisas. Papa do estudo das religiões, o escocês Victor Turner (1920 — 1983) também bebeu das águas das sociedades primitivas. Tendo por base os Lunda-Ndembus, na região Noroeste da antiga Rodésia do Norte, atual Zâmbia, entre 1950 e 1954, viveu na aldeia e estudou o papel dos ritos, dos símbolos e das metáforas nos dramas sociais. Nesse período, de tempos em tempos, eclodiram conflitos, nos quais Turner identificou um padrão universal:

Primeiro, uma crise irrompia no cotidiano, expondo as tensões existentes; depois, os envolvidos acionavam suas redes de parentela, relações de vizinhança e amizade, e a crise se ampliava; a seguir, surgia a turma do deixa disso, que buscava a conciliação e soluções em rituais coletivos; finalmente, havia um rearranjo e as posições e relações eram redefinidas, ou não se chegava a um acordo e a cisão se tornava inevitável, seguindo a clivagem de parentesco e suas alianças, o que daria origem a uma nova aldeia. Qualquer semelhança com o que também acontece nas religiões e na política não é mera coincidência.

Divulgação falha e parcial de dados entre em choque com discurso de transparência do governo

No mês em que completou um ano de mandato, o presidente Jair Bolsonaro recebeu reprimenda da Transparência Internacional por, segundo estudos da ONG, intervir nos mecanismos de fiscalização do país. O relatório divulgado em 23 de janeiro revelou que a percepção sobre corrupção no Brasil aumentou ao redor do mundo. Entre um dos fatores apontados pelo levantamento está a ingerência governamental nos órgãos de controle, como substituições em chefias da Polícia Federal e da Receita e a nomeação de um Procurador-Geral da República (Augusto Aras) fora da lista tríplice. Além das instituições anticorrupção, o diagnóstico indica que o Governo Bolsonaro segue a esteira de enfraquecimento dos instrumentos federais em prol da transparência, com acúmulo de episódios recentes de falhas ou divulgação parcial de dados.

Nesta sexta-feira, o EL PAÍS publicou uma reportagem em que mostra que o Governo não explica o tamanho real da fila de espera do programa Bolsa Família. O Ministério da Cidadania fala apenas em “uma média nacional” de 494.229 famílias à espera do programa em 2019, mas não disponibiliza os números absolutos mês a mês de entrada e saída de famílias e nem o número de habilitados a receber o benefício, mas que ainda estão sem a bolsa. Cálculos realizados pelo EL PAÍS, com base em dados públicos, estimam que 1,7 milhão de famílias, ou cerca de 5 milhões de pessoas, estariam atualmente aptas a ingressar no programa, ou seja, preenchem todos os critérios para receber o auxílio antimiséria —um valor três vezes maior do que o número divulgado pela pasta.


Desgastado pela repercussão negativa dos problemas no Enem, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela aplicação do exame, se recusou a recalcular o peso de questões após corrigir o gabarito de 6.000 provas que tiveram erro na gráfica, informou o jornal Folha de S.Paulo. O órgão argumentou que, por se tratar de uma amostra pequena de candidatos afetados, o cálculo não seria alterado por uma nova revisão, mas para fontes ouvidas pelo jornal, isso poderia afetar a entrada de candidatos na universidade. O contratempo motivou o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) a apresentar requerimentos para convocar o ministro da Educação, Abraham Weintraub, a prestar esclarecimentos a respeito dos critérios de atribuição das notas.

Segundo o pesquisador Manoel Pires, economista do IBRE/FGV e organizador do Observatório de Política Fiscal, a qualidade e a frequência de informações estatísticas prestadas pelo Governo Federal tem apresentado queda nos últimos três anos. Ele salienta que o ponto de inflexão surge a partir da gestão de Michel Temer, reflexo da crise financeira que passou a afetar a prestação de serviços nos órgãos federais. Porém, a falta de transparência teria se acentuado no Governo Bolsonaro pela combinação de outros dois fatores ao cenário econômico. O primeiro tem a ver com as mudanças de pessoal promovidas pela administração, sobretudo pelo recrutamento de gestores oriundos do setor privado, pouco afeitos às práticas de governança pública. E o segundo, pelo apelo ideológico do Governo, com postura resistente à prestação de contas e a demandas da imprensa.

“Ainda é cedo para avaliar se a redução da transparência pelo Governo Federal será ou não uma tendência, mas, nos últimos anos, uma série de ocorrências nesse sentido tem se tornado cada vez mais comum, em vários órgãos”, afirma Pires. Como exemplo, ele cita os dados sobre gastos públicos, que não são atualizados desde março de 2018 pela Secretaria do Orçamento Federal, e os de carga tributária, que eram anualmente divulgados pela Receita Federal, mas pararam de ser publicados em 2017, tal qual o anuário estatístico da Previdência Social. Para o pesquisador, as informações são fundamentais em discussões em torno de reformas como a tributária e a administrativa, que estão na pauta do Congresso para este ano. “No aspecto doméstico, a falta de transparência dificulta a avaliação das propostas e políticas no debate público. Já do ponto de vista internacional, pode prejudicar alguns pleitos do país, como a intenção de ingressar na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico).”

Dados sobre o funcionalismo público ainda não foram destrinchados pelo Governo Federal. Neste mês, o presidente Bolsonaro destacou em seu perfil no Twitter a divulgação em dados abertos dos pagamentos aos servidores aposentados e pensionistas, como parte de um suposto compromisso para “fortalecer a transparência em defesa do interesse público e combate à corrupção”. No entanto, a publicação das informações só aconteceu por determinação do Tribunal de Contas da União (TCU), que julgou procedente uma ação de 2017 protocolada pela agência de dados Fiquem Sabendo. De acordo com a entidade independente, “o atual Governo agiu contra a transparência ao tentar barrar a divulgação dos dados, apresentando recursos que atrasaram a decisão final do TCU”.

Na mesma semana, Bolsonaro reafirmou a pretensão de tornar seu Governo mais transparente, garantindo ter recomendado providências a todos os ministros e que deu mostras nesse sentido ao lançar painéis eletrônicos com informações relacionadas ao pagamento de benefícios do Bolsa Família e do INSS. “Nosso Governo tem o compromisso de apurar e sanar quaisquer irregularidades detectadas ou denunciadas e, acima de tudo, dar transparência às despesas públicas com o intuito de engajar nossa sociedade na fiscalização contínua dos recursos públicos”, disse o presidente.

Comparado a 2018, houve crescimento de 4,5% nas solicitações de dados federais, que podem ser feitas por qualquer cidadão, no primeiro ano de gestão bolsonarista, mas abaixo da média progressiva anual (5,1%) registrada desde a efetivação da Lei de Acesso à Informação (LAI), em 2012. Entretanto, segundo levantamento da Controladoria-Geral da União (CGU), o sistema ainda não é garantia de acesso irrestrito à prestação de contas dos órgãos públicos. Cerca de 8% dos pedidos são negados pelas instituições —a maioria por alegação de dados sigilosos—, enquanto 79% retornam aos solicitantes com atraso e 36% com informações incompletas.
Breiller Pires

Sem vergonha, sem respeito

Quando os que comandam perdem a vergonha, os que obedecem perdem o respeito
Georg Lichtenberg (1742-1799)

E se um filho de Bolsonaro estivesse lá na China

O coronavírus produz um desses episódios que fazem com que o contribuinte tenha vergonha do serviço público que sustenta. Há na China brasileiros que desejam retornar ao seu país. Coisa de três dezenas de pessoas. O desejo desse grupo é tratado pelas autoridades de Brasília com a sensibilidade de um cubo de gelo.

Num instante em que outros países resgatam seus cidadãos do confinamento chinês, Jair Bolsonaro e sua equipe entoam um lero-lero glacial. A turma oscila entre o desrespeito e a crueldade.

O blá-blá-blá soa desrespeitoso quando Bolsonaro declara não dispor de verba para recambiar poucas dezenas de nativos. "Se você me arranjar recursos e meios a gente começa a providenciar a partir de agora", disse ele, irritado, a um repórter.

O palavrório se torna cruel quando o risco de contágio serve de pretexto para justificar o abandono: "Se lá temos algumas dezenas de vidas, aqui temos 210 milhões de brasileiros.".


Bolsonaro falou sobre o problema como se aguardasse por uma solução caída do céu. Primeiro, empilhou as dificuldades: da falta de aval do Congresso para realizar a despesa até a ausência de lei para impor uma quarentena aos resgatados.

Recordou-se ao presidente que para casos assim, urgentes e relevantes, a Constituição dá ao inquilino do Planalto o poder de editar medidas provisórias.

O capitão não se deu por achado: "Vamos discutir isso daí, porque pode a MP chegar lá e simplesmente alguém julgá-la inconstitucional, numa ação judicial. Vocês sabem que nosso Judiciário é bastante rápido nessas questões."

Infectados pelo descaso do chefe, os ministros ecoaram Bolsonaro. "Não temos voo direto", declarou Henrique Mandetta, da Saúde. "Sai da China e faz conexão. Paris, Frankfurt..." Bolsonaro reforçou: "Temos que negociar essas escalas também".

Puxado por Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo expressou-se como se desejasse confirmar a superstição segundo a qual diplomatas detestam os patrícios que lhes pagam o contracheque:

"A região da China que está mais sujeita [à proliferação do coronavírus] está fechada para qualquer pessoa sair. É preciso negociar com o governo chinês primeiro para que deixe sair os brasileiros, como outros países fizeram. Não é uma coisa óbvia e imediata."

Enquanto o linguajar de Araújo rodopia como parafuso espanado, outros países agem. Na terça-feira, um avião enviado pelos Estados Unidos resgatou 195 americanos na província de Hubei, onde fica a cidade chinesa de Wuhan, epicentro do surto de coronavírus.

Na quarta, o Japão levou embora 206 cidadãos, dos quais cinco tiveram que ser isolados porque tinham febre. Equipavam-se para resgatar seus nacionais na China: Alemanha, França, Coréia do Sul, Marrocos, Cazaquistão, Canadá, Rússia, Holanda, Mianmar, Austrália.

No início da semana, ao retornar da Índia, Bolsonaro já havia sinalizado que trataria com desapreço os nacionais em apuros no oriente. "Pelo que parece, tem uma família na região onde o vírus está atuando. Não seria oportuno retirar de lá, com todo o respeito. É o contrário. Não vamos colocar em risco nós aqui por uma família apenas."

O presidente se referia "apenas" ao drama de um casal brasileiro que amargava um isolamento hospitalar nas Filipinas porque a filha de dez anos apresentava os sintomas do coronavírus. O contágio da garota não se confirmou. Mas o surto de insensibilidade de Bolsonaro dispensa exames laboratoriais.

No ano passado, quando cogitou indicar o filho Eduardo Bolsonaro para o posto de embaixador do Brasil em Washington, o capitão deixou claro que não mede esforços para favorecer seus rebentos. "Pretendo beneficiar filho meu, sim. Pretendo! Se puder dar filé mignon, eu dou."

Cabe perguntar: o que faria Bolsonaro se "apenas" um filho seu estivesse confinado num hospital filipino ou na cidade chinesa de Wuhan? Decerto já teria providenciado o resgate, com jato da Força Aérea Brasileira.