sábado, 18 de dezembro de 2021

Pensamento do Dia

 


Brasil passa por empobrecimento de sua sociabilidade

Diversos episódios de violência contra pessoas indefesas e frágeis revelam um aspecto problemático da realidade social brasileira. São aqueles casos que poderiam ter sido evitados se tomados alguns cuidados autoprotetivos em relação às vítimas potenciais. Se uma desconfiada prudência fosse adotada pelas famílias em face dos perigos da modernidade.

A falta desses cuidados revela-nos uma sociedade ignorante em relação ao que é o mundo moderno. Por isso destituída de uma consciência crítica imprescindível para viver e sobreviver participativamente nos dias de hoje.

Quanto a isso, nos países civilizados as ciências humanas são decisivas na formação da personalidade tanto dos pais quanto dos filhos. Principalmente quanto à consciência social em relação ao que é a sociedade que nos forma e nos conforma.

O mundo atual é o mundo que perdeu ou está perdendo de modo socialmente desigual os valores sociais da tradição e das identidades coletivas e a consciência dos limites e condições do que é e não é possível ser e fazer. O Brasil é um país que passa por acentuado empobrecimento de sua sociabilidade, o que se evidencia nas manifestações de violência autodestrutiva daí decorrente.


Demoramos na resposta à crise social, na elaboração e difusão de uma cultura substitutiva de identificação, localização do risco às vítimas potenciais das situações de distanciamento social invisível no interior dos grupos tradicionalmente de proximidade, como a família e a vizinhança.

Amplia-se uma patológica sociabilidade de pessoas reduzidas à condição de indivíduos, mediada por sua coisificação. Regride e encolhe a historicamente e decisiva sociabilidade comunitária, que, mesmo com a modernização, é socialmente decisiva no equilíbrio das relações sociais. A sociedade está em perigo, ameaçada pela anomia e pela anulação sem inovação das normas sociais.

Essas transformações, na vida cotidiana e interativa, se manifestam na concreta ameaça aos frágeis, como crianças, adolescentes, velhos e, não raro, a mulheres. São as situações em que a vítima e o algoz vivem juntos ou próximos, mas separados pelo desconhecimento da hierarquia social própria da diferença de idade, de posição social e até de gênero, uma questão cultural que facilita sua vitimação.

Vítima e algoz não só estão em tempos desencontrados. A vítima está no lugar errado e na hora errada, em face de pessoas erradas. Não raro de modo permanente, como nos casos de estupro de filhas por pais e padrastos, cada vez mais frequentes entre nós como causa de linchamentos. São situações de convivência marcadas pela banalização do outro e pela supressão da responsabilidade social de cada um quanto aos demais.

Em artigo recente, analisei o caso do jovem negro, pobre e quilombola que, numa cidade interiorana do Rio Grande do Norte, foi amarrado, surrado e pisoteado por um comerciante branco, já envolvido em episódio precedente de racismo. O autor da violência ainda pautado por valores depreciativos da pessoa próprios do regime de escravidão.

Em 2014, Fabiane Maria de Jesus, uma mãe de família, foi brutalmente linchada num bairro em que morava no Guarujá, SP. Fora confundida com a imagem forjada de suposta sequestradora de crianças, divulgada pelas redes sociais. A multidão foi atiçada por uma mulher que dera o grito de que ela estava tentando sequestrar uma criança.

Na verdade, ela estava saindo de uma frutaria e, vendo o menino chorar na calçada, deu-lhe uma fruta. Em poucos minutos, mais de mil pessoas estavam arrastando-a pela rua. Apedrejada, derrubada e espancada, foi morta como se não fosse um ser humano.

Em 2003, num sítio abandonado de Embu-Guaçu, um casal de adolescentes de um colégio de São Paulo acampava quando foi rendido por um pequeno grupo de roceiros liderado por Champinha, menor de idade, morador na região. Durante cinco dias, foram prisioneiros do grupo, seviciados, a moça foi violentada e acabaram mortos.

É possível fazer uma leitura antropológica do que ocorreu. Os jovens de classe média urbana estavam fazendo algo que no mundo rústico dos agressores significava apenas que eram pessoas disponíveis para a violência que as vitimaria. Pessoas supostamente desumanizadas pela liberdade de fazer o que contrariava a cultura repressiva de grupos atrasados.

A própria concepção de vizinhança está substancialmente alterada em relação ao que ela era na geração de nossos avós. Uma indicação nesse sentido é que os linchamentos, forma violenta e não raro cruenta de justiçar alguém, até por motivos banais, ocorrem cada vez mais nos bairros. E pelas mãos dos moradores, que definem como perigo e inimigo o estranho, o recém-chegado, o arredio, o diferente.

Maldições históricas

Quem observa a política e a realidade social no presente, tem razão dese assustar com as maldições que pesam sobre nossa história, é preciso olhar adiante para perceber o potencial que temos, se formos capazes de reorientar nosso destino nacional.

Por sua estupidez e maldade no tratamento da epidemia, pela desmoralização do país no exterior, pela desconstrução de nosso sistema científico, pela desconfiança sobre a as eleições e ameaças à democracia, a presidência de Bolsonaro será vista como uma maldição na história do Brasil. Mas não será a única que caracteriza nossa história, e de fato ela é consequência de outras anteriores que amarram há séculos nossa evolução civilizatória.


A estrutura escravocrata por quase toda nossa história, submetendo parte de nossa população ao trabalho escravo deixou a maldição que até hoje pesa provocando racismo, aceitação da desigualdade, da corrupção e da violência. Como irmão da escravidão, o latifúndio, imposto desde as capitanias hereditárias, deixou a maldição da terra como reserva de valor nas mãos de especuladores e não como fator de produção nas mãos dos trabalhadores.

O Brasil sofre a maldição do desrespeito aos limites dos recursos nacionais: ecológicos, fiscais, urbanos, sociais. Aceitando-se depredar os patrimônios como se fossem infinitos. O resultado é a degradação ambiental, as cidades transformadas em “monstrópoles”, a moeda desvalorizada sistematicamente por inflação.

Em parte, isto foi uma exigência da maldição do desenvolvimento industrial baseado sobretudo na indústria automobilística. Esta opção exigiu concentrar renda, endividar o Estado e as famílias, degradar o meio ambiente, desorganizar as finanças públicas e individuais.

Esta maldição foi possível por causa da aliança maldita entre políticos populistas e economistas irresponsáveis, incapazes de adaptar teorias importadas à nossa realidade cultural.

Talvez a maior e mais permanente maldição esteja no desprezo à educação de base. Por séculos temos descuidado de implantar um sistema educacional que assegure escola com máxima qualidade a cada criança brasileira, independente da renda e do endereço de sua família. Esta opção histórica levou à formação de uma economia com baixa produtividade, e uma sociedade desigual, violenta, sujeita à política corrupta e populista. A maldição da deseducação é a mãe de todas as maldições históricas que caracterizam o Brasil, de Cabral a Bolsonaro.

Da mesma maneira, é na observação do desafio educacional que podemos encontrar otimismo para o futuro do Brasil. Se o païs se une em torno a uma revolução que assegure educação de qualidade para todas nossas crianças, no prazo de uma geração, o Brasil poderá mobilizar o maior de nossos recursos: os cérebros de nossa população. Neste século do Conhecimento, com nossa imensa riqueza natural, com o ativo econômico já implantado apesar dos erros, aliados à população educada, o Brasil pode dar o salto civilizatório que vem sendo impedido pelas maldições do passado

Mediocridade criminosa

 Rucke Souza

Não é tempo de violência, não é tempo de sentimentos menores

Antônio Barra Torres, presidente da Anvisa  

Pedras da fome

Guardo da semana que passou duas imagens fortes. A primeira, a de uma estante com livros, erguendo-se solitária em meio a um cenário de absoluta devastação, após a passagem de um tornado, em Mayfield, nos Estados Unidos da América. A estante está intacta. Os livros continuam alinhados, uns ao lado dos outros, disponíveis para quem os quiser consultar. Na segunda imagem vêem-se seis girafas mortas, fotografadas a partir do céu, como bailarinas caídas num palco. As girafas morreram de sede, perto da aldeia de Eyrib, no Quênia, vítimas de uma das piores secas já registradas naquele país da África Oriental.

A primeira imagem é uma metáfora pronta, de uma perfeição milagrosa, sobre o papel e a capacidade de resistência da maior invenção da Humanidade — o livro. Depois que tudo desmorona, aquilo que nos resta, e que nos ajuda a responder à angústia do recomeço do mundo, é a literatura.

Como escritor fico sempre assustado quando alguém me diz “seu livro mudou minha vida”, ou, numa versão ainda mais dramática, “seu livro me salvou”. Assusta-me a responsabilidade. Reconheço, contudo, o poder redentor dos livros. Alguns deles também mudaram a minha vida. Estou a pensar, por exemplo, num dos títulos clássicos de Bertrand Russel, “Porque não sou cristão”, ou num dos grandes romances fundadores da literatura sul-africana, “Chora terra bem-amada”, de Alan Paton. Li ambos em plena adolescência. O primeiro fez de mim um pacifista radical e um agnóstico obcecado pelo divino. O segundo ajudou-me a compreender e a combater o apartheid e, de forma mais geral, todas as formas de injustiça racial.


A segunda imagem forte que guardei da semana não permite nenhuma metáfora de esperança. Uma girafa viva, dançando na savana, é a ilustração da graciosidade, da elegância improvável e do extraordinário poder e imaginação da mãe natureza. Uma girafa morta é a própria morte — a humilhação da vida.

As duas imagens, a da estante e a das girafas, retratam uma tragédia comum. Ambas expressam a situação de colapso ambiental que o planeta atravessa. Enquanto certas paisagens são castigadas por ciclones e cheias, outras definham de sede. A destruição das florestas tropicais ou do permafrost, um tipo de solo característico das regiões árticas, ameaça libertar vírus muito mais perigosos do que aqueles que hoje combatemos. Já não temos sequer a desculpa da ignorância. Sabemos exatamente o que é necessário fazer, e não fazer, para atenuar o aquecimento global e evitar a nossa própria extinção.

Lendo “Underland”, de Robert Macfarlane, escritor britânico que escreve sobre paisagens e tudo aquilo que elas ocultam, encontrei outra metáfora assustadora: “Na República Tcheca, os níveis estivais do rio Elba desceram de tal maneira que foram descobertas “pedras da fome”, pedregulhos esculpidos, usados ao longo de séculos para recordar secas e alertar para as suas consequências. Uma destas pedras revelou a seguinte inscrição: se me vires, chora”.