sábado, 18 de dezembro de 2021

Pedras da fome

Guardo da semana que passou duas imagens fortes. A primeira, a de uma estante com livros, erguendo-se solitária em meio a um cenário de absoluta devastação, após a passagem de um tornado, em Mayfield, nos Estados Unidos da América. A estante está intacta. Os livros continuam alinhados, uns ao lado dos outros, disponíveis para quem os quiser consultar. Na segunda imagem vêem-se seis girafas mortas, fotografadas a partir do céu, como bailarinas caídas num palco. As girafas morreram de sede, perto da aldeia de Eyrib, no Quênia, vítimas de uma das piores secas já registradas naquele país da África Oriental.

A primeira imagem é uma metáfora pronta, de uma perfeição milagrosa, sobre o papel e a capacidade de resistência da maior invenção da Humanidade — o livro. Depois que tudo desmorona, aquilo que nos resta, e que nos ajuda a responder à angústia do recomeço do mundo, é a literatura.

Como escritor fico sempre assustado quando alguém me diz “seu livro mudou minha vida”, ou, numa versão ainda mais dramática, “seu livro me salvou”. Assusta-me a responsabilidade. Reconheço, contudo, o poder redentor dos livros. Alguns deles também mudaram a minha vida. Estou a pensar, por exemplo, num dos títulos clássicos de Bertrand Russel, “Porque não sou cristão”, ou num dos grandes romances fundadores da literatura sul-africana, “Chora terra bem-amada”, de Alan Paton. Li ambos em plena adolescência. O primeiro fez de mim um pacifista radical e um agnóstico obcecado pelo divino. O segundo ajudou-me a compreender e a combater o apartheid e, de forma mais geral, todas as formas de injustiça racial.


A segunda imagem forte que guardei da semana não permite nenhuma metáfora de esperança. Uma girafa viva, dançando na savana, é a ilustração da graciosidade, da elegância improvável e do extraordinário poder e imaginação da mãe natureza. Uma girafa morta é a própria morte — a humilhação da vida.

As duas imagens, a da estante e a das girafas, retratam uma tragédia comum. Ambas expressam a situação de colapso ambiental que o planeta atravessa. Enquanto certas paisagens são castigadas por ciclones e cheias, outras definham de sede. A destruição das florestas tropicais ou do permafrost, um tipo de solo característico das regiões árticas, ameaça libertar vírus muito mais perigosos do que aqueles que hoje combatemos. Já não temos sequer a desculpa da ignorância. Sabemos exatamente o que é necessário fazer, e não fazer, para atenuar o aquecimento global e evitar a nossa própria extinção.

Lendo “Underland”, de Robert Macfarlane, escritor britânico que escreve sobre paisagens e tudo aquilo que elas ocultam, encontrei outra metáfora assustadora: “Na República Tcheca, os níveis estivais do rio Elba desceram de tal maneira que foram descobertas “pedras da fome”, pedregulhos esculpidos, usados ao longo de séculos para recordar secas e alertar para as suas consequências. Uma destas pedras revelou a seguinte inscrição: se me vires, chora”.

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