domingo, 28 de julho de 2019

O cordão dos puxa-saco

Minha avó paterna era uma carioca do samba. Adorava entoar marchinhas, com seu vozeirão rouco, a cada vez que um fato lhe chamava a atenção. Nas últimas semanas, me vem à mente dona Alduína cantando uma das suas favoritas, braços erguidos como se estivesse no bloco: “Lá vem/ O cordão dos puxa-saco/ Dando viva aos seus maiorais/ Quem está na frente é passado para trás/ E o cordão dos puxa-saco / Cada vez aumenta mais”.

O puxa-saquismo do Brasil de 2019, que ela não viveu para ver, aceita condescender com patrimonialismo e nepotismo explícitos, ataques à ciência, manifestações de preconceitos variados, desrespeito diário à liberdade de imprensa e tentativas de suprimir atribuições de órgãos, agências e até outros Poderes. Em resumo: exercícios de um crescente autoritarismo para ver se cola. E com muita gente tem colado. Na base da passação de pano, se aperta uma casa no cinto do que passa a ser considerado “o novo normal”.


Jair Bolsonaro só pode avançar de nariz empinado e com a arrogância dos que acham que não devem satisfações a ninguém porque se cercou de acólitos que só lhe dizem amém. Os seis primeiros meses de governo tiveram como uma de suas marcas o banimento de todo aquele que ousou questionar atos, comportamentos e decisões do presidente.

Foram para a Sibéria bolsonarista nomes como Gustavo Bebianno e Carlos Alberto Santos Cruz, no primeiro escalão, e outros menos conhecidos em estamentos inferiores do governo, sempre despachados com direito a esculhambação e destruição de reputações.

A maioria de quem sobrou entendeu que, ou se enquadra, ou dança. A exceção em termos de licença para divergir e tocar seu barco com liberdade, até aqui, tem sido Paulo Guedes, o “PG” na forma carinhosa pela qual é tratado por Bolsonaro. Mesmo quando interveio na seara do titular da Economia, como no caso em que tentou a todo custo arrancar vantagens para os policiais na reforma da Previdência, o presidente o fez com cerimônia e cuidado para não desautorizá-lo.

Por quê? Porque o futuro político do bolsonarismo depende de a economia dar certo. E porque Guedes não precisa do cargo de ministro para ter um futuro. E isso lhe dá liberdade para dizer “não” a Bolsonaro quando acha que deve, hoje em dia um privilégio quase exclusivo no primeiro escalão.

Pegue-se o exemplo de nomes como o general Augusto Heleno e mesmo o ministro Sérgio Moro. O primeiro assumiu com a fama de que seria o conselheiro de Bolsonaro. Exerceu essa missão com desvelo no início, ao dissuadir o presidente de ideias como a transferência da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém e de flertar com a ideia de uma aventura militar na Venezuela. Mas se acanhou diante dos ataques das milícias bolsonaristas aos militares, que ceifou seu amigo Santos Cruz e direcionou suas bazucas contra ele próprio e o porta-voz Rêgo Barros.

Já Moro, tragado para a crise da Vaza Jato, penhorou na loja bolsonarista boa parte do capital político e social que construiu como juiz. Se quando aceitou o ministério havia uma análise de que era indemissível e Bolsonaro dependia mais dele que o contrário, hoje a cada dia o ministro depende mais do presidente e ata seu futuro ao do chefe.

Se formos descer a nomes menos brilhantes, as manifestações de puxa-saquismo são bem mais explícitas e constrangedoras. Aqueles que emprestam suas biografias a justificar até as decisões mais estapafúrdias do chefe deveriam prestar atenção à segunda parte da marchinha da minha avó: “Vossa Excelência / Vossa Eminência/ Quanta referência nos cordões eleitorais / Mas se o ‘doutor’ cai do galho e vai pro chão/ A turma logo evolui de opinião/ E o cordão dos puxa-saco cada vez aumenta mais”.

Pensamento do Dia


Em busca do Nióbio

Terra riquíssima (reserva indígena Ianomami). Se junta com a Raposa Serra do Sol, é um absurdo o que temos de minerais ali. Estou procurando o "primeiro mundo" para explorar essas áreas em parceria e agregando valor. Por isso, a minha aproximação com os Estados Unidos. Por isso, eu quero uma pessoa de confiança minha na embaixada dos EUA
Jair Bolsonaro

Nosso irmão, o bugre

Santa Catarina, via de regra, é um Estado todo bonitinho, cheio de cidades arrumadinhas e bem cuidadas, não importa muito a etnia que as formou no princípio. 

Aqui pelo meu Vale do Itajaí o pessoal gosta mesmo de caprichar: jardins bem cuidados rodeando casas quase sempre caprichosamente pintadas, centenas de donas de casa a usar uma preciosíssima água que deve se acabar em duas décadas para lavar e lavar calçadas que poderiam ser apenas varridas – uma beleza, todo o mundo cuidando da estética e da manutenção de uma terra que foi roubada dos... índios! 

É bem isso aí, gente, toda esta terra do Vale do Itajaí, bem como toda esta terra do continente americano já tinha dono antes que europeus e africanos aqui chegassem (há que se perdoar os africanos, que para cá foram trazidos a força.). E tem gente demais, por aí, dizendo e sentindo barbaridades a respeito do nosso espoliado índio, mais conhecido pelo termo bugre, que tem conotação bem pejorativa.


Eu tenho um amigo índio chamado Edvino. Ele é Xokleng, mas têm os olhos azuis, coisa lá de uns antepassados alemães que ele teve, mas dos quais não faz conta. Decerto são daqueles alemães que furunfaram lá com as antepassadas do Edvino e depois foram para casa cheios de si, a defender ideias de raça pura, essas bobagens assim. O fato é que Edvino é um Xokleng de olhos azuis. Num sábado aí para trás tirei um tempinho para andar pela cidade, e sentei-me numa pracinha onde Edvino justamente estava a vender bonito artesanato. Daí a pouco se senta ao meu lado uma típica dona de casa blumenauense, daquelas que gastam nossa preciosa água com as calçadas, e entabulamos alguma conversa. Disse para ela:

- Vês aquele rapaz ali, de olhos azuis? Ele é um índio!

Se uma dúzia de cobras venenosas tivesse aparecido naquele momento na praça e avançado na mulher ela não teria dado maior pulo. Ficou apavorada, o coração espremido de medo, a dizer-me:

- Aquele? Meu Deus, um selvagem! – e jogou-se embora quase correndo, tamanho seu medo.

Daí eu pergunto: quem é, ou quem foi o selvagem? O índio, antigo dono das nossas terras, era (e é) tão Homo sapiens sapiens quanto qualquer um de nós que lê jornal, e o que nós fizemos com ele? Aconselho que vocês leiam um livro chamado “Índios e brancos no Sul do Brasil”, de autoria de um nosso grande antropólogo, internacionalmente respeitado, Sílvio Coelho dos Santos. Sílvio passou toda a sua vida ligado ao povo Xokleng e conhece como ninguém a sua história. Vou transcrever aqui um pedacinho do livro – é um pedacinho de uma entrevista que o Sílvio fez lá pela década de 60 com um importante fazendeiro catarinense, e está à página 87 do livro. Depois de contar muitas atrocidades sobre como se efetuava o genocídio desse povo a quem roubamos as terras, ele conta o pedacinho seguinte:

“...conheci um indivíduo chamado Júlio Ramos, que participava dessas tropas. Contou-me que uma vez, durante um ataque, uma meninota de mais ou menos 14 anos tentava fugir do acampamento. Ele a alcançou, agarrando-a pelos cabelos, e desceu-lhe o facão. Este penetrou pelos ombros descendo até o estômago, cortando que nem bananeira(...)” 

Duvido que você consiga almoçar bem hoje, se se lembrar de tal fato na hora da comida. E este é apenas um minúsculo pedacinho da História verdadeira. E dificilmente alguém de nós não descende de invasores que fizeram ou mandaram fazer coisa parecida. E ainda está cheio de gente levando susto quando vê índio, pensando na velha fórmula do “selvagem”. Quem é o selvagem? Eles ou nós?
Urda Alice Klueger 

A implosão da Mentira

Fragmento 1
Mentiram-me. Mentiram-me ontem
e hoje mentem novamente. Mentem
de corpo e alma, completamente.
E mentem de maneira tão pungente
que acho que mentem sinceramente.


Mentem, sobretudo, impune/mente.
Não mentem tristes. Alegremente
mentem. Mentem tão nacional/mente
que acham que mentindo história afora
vão enganar a morte eterna/mente.

Mentem.Mentem e calam. Mas suas frases
falam. E desfilam de tal modo nuas
que mesmo um cego pode ver
a verdade em trapos pelas ruas.

Sei que a verdade é difícil
e para alguns é cara e escura.
Mas não se chega à verdade
pela mentira, nem à democracia
pela ditadura.
Affonso Romano de Sant’Anna, "Poesia Reunida"

Destruir o INPE é abrir mão de nossa soberania

De uma janela do avião é possível ver o solo passar lá embaixo. Um avião comercial voa a 900 km/h a 10 quilômetros do solo. Agora imagine se você estivesse em um dos satélites usados pelo Inpe para monitorar o desmatamento da Amazônia. Eles estão a 500 quilômetros de altura e viajam a 20.000 km/h. Lá de cima, telescópios poderosos fotografam continuamente o solo e enviam as imagens por meio de sinais de rádio. Os cientistas do Inpe comparam imagens do mesmo local obtidas em diferentes datas, identificam as áreas em que a floresta foi cortada, somam, e calculam o total. O conceito é simples, mas o diabo está nos detalhes.

Pela janela do avião, você vai perceber que grande parte do solo está coberto por nuvens. Sabemos que a cada instante mais de 50% da superfície do planeta esta coberta por nuvens. Pior: algumas áreas na Amazônia passam a maior parte do tempo cobertas por nuvens.


Você deve ter percebido que no Google Maps não existe uma nuvem sequer sobre o Brasil. Como é possível se metade do país esta sempre coberta por nuvens? Fácil, basta emendar imagens coletadas em datas diferentes, todas obtidas com o céu azul. De forma simplificada, é isso que o Inpe tenta fazer no projeto Prodes. Ao longo do ano, o Inpe seleciona as imagens da Amazônia com menos nuvens obtidas no período das secas. Com elas, o Inpe constrói uma espécie de fotomontagem da Amazônia. Aí ele compara essa montagem com a do ano anterior e determina as áreas que foram desmatadas.

As áreas desmatadas são então mascaradas para não se correr o risco de serem identificadas novamente nos anos seguintes. Como cada desmate é identificado diretamente nas imagens de satélite, e só são computadas áreas onde o corte foi total, o número obtido é muito confiável. A principal incerteza no Prodes é a estimativa das áreas desmatadas em regiões onde não foi possível obter imagens sem nuvens.

Essa estimativa é feita usando a taxa de desmatamento em áreas vizinhas em que não havia nuvens. E esses números são bem menos confiáveis. O problema é causado pelo fato de os satélites utilizados pelo Inpe somente sobrevoarem uma mesma área uma vez a cada 16 dias, o que diminui a chance de obter imagens sem cobertura de nuvens. Já há satélites que revisitam cada área com maior frequência e sua utilização provavelmente diminuiria muito a incerteza inerente à tecnologia usada hoje.

Os dados do Prodes permitem acompanhar o ritmo de desmatamento ano a ano, mas não servem para alertar os órgãos de fiscalização. Quando uma área desflorestada é identificada pelo Prodes, os culpados estão longe e a madeira já foi retirada da Amazônia.

Para resolver esse problema, o Inpe criou um sistema de alerta rápido, que informa o governo quando um desmatamento esta ocorrendo ou acabou de ocorrer. Esse sistema, o Deter, emite boletins diários e funciona de maneira diferente. Cada foto sem nuvens recebida é analisada e comparada com a última foto dessa área que existe no arquivo. Quando um novo desmatamento é detectado, o Inpe envia localização da área para os órgãos de fiscalização. O sistema é rápido e permite a atuação dos fiscais antes de a madeira desaparecer e o dinheiro chegar no bolso do dono do motosserra.

Mas há desvantagens. Ele não monitora toda a Amazônia a cada dia, mas somente as áreas sem nuvem fotografadas naquele dia e isso dificulta comparações e extrapolações. Imagine que em janeiro de 2017 as áreas sem nuvens se concentravam no centro da Amazônia, enquanto Rondônia estava coberta de nuvens. Como no centro da Amazônia ocorrem menos desmatamentos, o desmate medido em janeiro de 2017 é pequeno. Já em janeiro de 2018 as áreas sem nuvens se concentram em Rondônia, um local com muitos desmatamentos, e o centro da Amazônia é que agora está encoberto.

Assim, em janeiro de 2017 uma área pequena de desmatamento é detectada, já em janeiro de 2018 a área é maior Se compararmos desmatamento detectada pelo Deter em janeiro de 2018 com a de janeiro de 2017 o aumento vai ser enorme. Mas essa não é uma comparação válida pois estamos comparando peras com maças: Rondônia com o centro da Amazônia. Essa característica do Deter, e o cuidado que devemos ter com comparações entre dados do Deter, estão descritas nos documentos técnicos do programa. Apesar disso, essas comparações são divulgadas mensalmente e causam grande confusão, pois os níveis de desmate flutuam loucamente de um mês para o outro. Parece ser o caso agora: o Deter detectou aumento brutal no desmatamento em junho de 2019. Pode ou não ser representativo do que está ocorrendo em toda a Amazônia. Vamos ter que esperar os dados do PRODES para ter certeza.

Ao longo dos anos, a tecnologia dos satélites melhorou muito e os métodos de detecção nas imagens também. O Inpe tentou acompanhar esse progresso. Os satélites usados inicialmente só conseguiam detectar áreas desmatadas maiores que 30 hectares (um hectare é equivalente a um quarteirão em São Paulo: 100 metros por 100 metros). Essa é uma área enorme e pequenos desmatamentos passavam despercebidos.

Hoje o Inpe usa imagens de satélites melhores e pode detectar desmatamentos de 6 hectares. Mas é possível melhorar. Há satélites que detectam desmatamentos de 10 m² (algumas árvores) e revisitam uma mesma área quase diariamente. Entretanto, o número de imagens que precisam ser analisadas se um satélite como esse for usado é enorme. Essas imagens tampouco são gratuitas, como as usadas hoje pelo Inpe. Além de só detectar áreas grandes, o Inpe não consegue detectar de modo consistente desmatamentos parciais (onde só as grandes árvores são cortadas) e tampouco se preocupa em monitorar as áreas que são reflorestadas por plantio ou por terem sido abandonadas. No sistema atual, uma vez desmatada, essa área deixa de ser monitorada. No caso dessa área ser novamente tomada pela floresta, ela deveria ser reincorporada na conta da floresta em pé.

Os últimos 10 anos trouxeram duas importantes mudanças que ainda não foram incorporadas nas análises do Inpe. A primeira é o novo Código Florestal, lei aprovada em 2012 que regula a proteção das florestas. No caso da Amazônia, ela permite que um proprietário desmate até 20% da área de sua propriedade. Para tanto, tem de possuir uma autorização do governo. Os outros 80% da área têm de ser preservadas como Reserva Legal. Essa lei também exige que certas áreas, como beiras de rios, jamais sejam desmatadas, são as Áreas de Proteção Permanente (APPs). No Brasil, parte dos desmatamentos é legal e foi autorizado pelo governo e parte do desmatamento é ilegal. É preciso que as áreas de desmate legal sejam computadas de maneira separada dos desmates ilegais. Conhecer os dois números e como evoluem ao longo do tempo é imprescindível e isso ainda não é feito. O que necessita ser combatido é o desmate ilegal. A divulgação dos dados brutos de desmate dá a falsa impressão de que todos os desmatamentos são ilegais, o que não é verdade.

Outro grande progresso nos últimos anos foi a criação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), um mapa digital de cada propriedade que é feito usando um GPS. O CAR delimita o perímetro da propriedade e dentro dela o perímetro das áreas de Reserva Legal, das APPs, e das áreas desmatadas. Além disso, contém o nome, CPF ou CNPJ do proprietário. A beleza do CAR é que, combinado às imagens de satélite, ele é o instrumento perfeito fiscalizar o cumprimento do Código. O CAR de cada propriedade pode ser sobreposto facilmente às fotos de satélite, da mesma maneira que o Google Maps desenha as ruas e indica os restaurantes sobre seus mapas.

Com isso, quando o Inpe detectar um desmatamento saberá imediatamente o dono da área, se o desmatamento foi em reserva legal ou em área de proteção permanente e se foi feito sem autorização. Assim, a cada ano não somente poderemos saber quantos quilômetros quadrados foram desmatados na Amazônia, mas quem desmatou e se foi ilegal. Com esses dados, multar desmatamentos ilegais é um passo automático. Da mesma maneira que a integração de radares, câmaras fotográficas e a identificação das chapas dos veículos permite a identificação de carros em alta velocidade, imagens de satélites acopladas aos cadastros do CAR permitirão identificar automaticamente os desmates ilegais na Amazônia, com o bônus de não criar suspeitas sobre proprietários rurais que cumprem a lei.

O Brasil foi um dos primeiros países a usar satélites para monitorar suas florestas, possui agora legislação rígida que regula o desmate e um cadastro em que as áreas a serem protegidas estão mapeadas. O próximo passo é juntar essas ferramentas em um sistema que realmente permita abolir o desmate ilegal no Brasil.

O governo, no lugar de criticar o Inpe, deveria investir na atualização e melhora do sistema. Se nosso sistema de monitoramento for abandonado ou destruído, não tenham dúvida, organizações internacionais assumirão essa tarefa e aí o governo vai ter de justificar dados de desmate coletados por terceiros. Isso sim é abrir mão de parte da soberania nacional.
Fernando Reinach

Imagem do Dia

Tam Coc (Vietnã)

Locais abandonados que a natureza reocupou

Senti sempre um grande fascínio por aqueles locais abandonados que a natureza reocupou: Chernobyl, 33 anos após o acidente nuclear; Kolmanskop, uma cidade fantasma, erguida por colonos alemães no início do século passado, em plena febre de exploração de diamantes, e que hoje se vai afundando melancolicamente entre as dunas do deserto do Namibe, ou a incrível cidade submersa de Chiseng, na China.


Vale a pena visitar lugares como estes, primeiro como forma de combater a nossa comum arrogância humana — afinal, estamos de passagem e não deixaremos saudades; segundo, porque esses lugares nos mostram como a vida é capaz de superar as agressões mais cruéis e de ressurgir em novas e surpreendentes formas de beleza. A natureza triunfa repondo a harmonia dos espaços.

Gosto tanto de imagens da natureza ocupando e reciclando a sucata da civilização industrial que as uso como papel de parede do meu computador: a carcaça ferrugenta de um grande navio seminaufragado, algures numa praia do Oceano Índico, de onde irrompe agora um pequeno bosque muito verde; uma velha bicicleta sendo engolida por uma árvore; uma cadeira coberta de musgo.

Certa manhã, há muitos anos, viajando pelo sul de Angola, encontrei um caminhão abandonado na savana. A cabine emergia por entre o capim alto e dourado. Flores amarelas irrompiam, como versos de Manoel de Barros, das pesadas entranhas mecânicas. No assento do motorista havia um ninho com ovos. Fiz uma foto do ninho, e abandonei a cabine como quem sai de uma catedral. A natureza apoderara-se da carcaça do caminhão com tanta autoridade e carinho que ela não parecia ter sido largada ali por mão humana, e sim misteriosamente segregada da terra vermelha pela própria savana.

Aos 20 anos fui ativista ambiental. Conheci bem a rede de movimentos ecologistas que, naquela época, já alertavam para o aquecimento global e outros desastres. O mais radical desses grupos, nascido nos EUA, chamava-se Earth First! (Primeiro a Terra ), e distinguia-se de todos os outros por um certo desprezo com que encarava as ações não violentas e o pensamento pacifista, e por uma descrença amarga na humanidade. Mais tarde, uma ala ainda mais extremista do mesmo grupo criou a Earth Liberation Front (Frente de Libertação da Terra), que defendia, e creio que continua defendendo, métodos violentos, como a sabotagem de empresas ligadas ao derrube das florestas tropicais. Lembro-me de atravessarmos noites tentando convencer os militantes destes grupos de que o recurso à violência, além de ir contra tudo o que defendíamos, era uma completa estupidez, dificultando a implantação do ideal ecologista na sociedade. Alguns dos primeiros dirigentes da Frente de Libertação da Terra estão hoje na cadeia, nos EUA, acusados de ecoterrorismo.

Abandonei a militância ecologista pela pior das razões: por preguiça. E também porque me doía testemunhar de perto tanta destruição. Continuo sendo pacifista. Porém, vendo o estado do planeta, chego por vezes a concordar com os Earth First. Talvez a humanidade seja realmente uma doença, um vírus cego, que nem sequer compreende que matando o corpo do hospedeiro também ele morrerá.

A batalha contra a realidade

Já é sabido que o presidente Jair Bolsonaro não nutre especial apreço por dados estatísticos e científicos quando estes contrariam as suas próprias crenças, seja qual for o assunto. O problema é que os fatos se impõem por si mesmos e, ao fim e ao cabo, a desmoralização recai sobre aqueles que os negam. E quando não nega dados que lhe desagradam, o presidente Bolsonaro trata de desqualificar os métodos de trabalho para sua obtenção, baseando-se em especulações e preconceitos. Não é um bom caminho. A batalha contra a realidade é inglória.

Em pouco mais de 200 dias, o governo de Bolsonaro já desacreditou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) quando o órgão de insuspeita reputação divulgou dados sobre o desemprego. Já desqualificou pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre o flagelo das drogas. Agora, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), instituição científica de grande prestígio dentro e fora do Brasil, é que está sob ataque.

Em café da manhã com correspondentes estrangeiros na sexta-feira passada, o presidente Jair Bolsonaro contestou dados do Deter, sistema de alerta de desmatamento do Inpe, que mostrou que em junho houve um aumento de 57% da área desmatada na Amazônia em relação ao mesmo período no ano passado. De acordo com o Deter, 769 km² na região amazônica foram desmatados no mês passado. Há um ano, foram 488 km².


O presidente Jair Bolsonaro não só desacreditou os dados, mas o próprio Inpe, seu corpo de servidores e o presidente do instituto, Ricardo Magnus Osório Galvão. Aos jornalistas estrangeiros, Bolsonaro insinuou que Galvão estaria “a serviço de alguma ONG”.

Em entrevista ao Estado,o presidente do Inpe afirmou que Bolsonaro fez “comentários impróprios” e “ataques inaceitáveis”, que mais pareceram “conversa de botequim”. Ricardo Galvão disse ainda que a atitude do presidente da República foi “pusilânime e covarde”. Por fim, o presidente do Inpe afirmou que não pedirá demissão do cargo.

Por meio de nota, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, fez coro às críticas de seu chefe ao Inpe e disse “compartilhar a estranheza” do presidente Bolsonaro sobre a variação do porcentual de desmatamento na Amazônia no último ano. O ministro Pontes, a quem o Inpe está subordinado, disse que irá requerer “mais dados” ao instituto e que convocará Ricardo Galvão a ir a Brasília para “esclarecimentos e orientações”.

Marcos Pontes, embora militar, é um homem com origem na comunidade científica. Dele era esperado que soubesse que, em Ciência, dados são refutados por outros dados, não por especulações, sobretudo as de natureza política. Ao chancelar, na prática, a “tese” do presidente Jair Bolsonaro, segundo a qual as informações sobre desmatamento apuradas pelo Inpe são “mentirosas” e se prestam apenas a “desgastar a imagem do País no exterior”, o ministro faz clara opção por uma política de baixa extração.

Jair Bolsonaro requereu que os dados apurados pelo Inpe passem a ser submetidos a ele antes de serem divulgados. O que pretende o presidente com essa medida? Caso se depare novamente com dados que não estejam a seu gosto irá alterá-los ou, no limite, proibir sua divulgação? Seria inútil, pois os dados de satélite do Deter são acessíveis por uma série de instituições científicas mundo afora. O País, afinal, é pioneiro nesse tipo de monitoramento do meio ambiente.

Afigura-se um padrão de comportamento. O tempo irá dizer se a atitude de negação será uma marca deste governo. Dados que consubstanciem teses “de esquerda”, como supostamente seria a defesa do meio ambiente, não seriam por si sós confiáveis.

A construção de uma realidade paralela pode funcionar muito bem para manter acesa a chama dos núcleos de apoio mais aferrados ao governo. Mas Jair Bolsonaro não preside nichos. Como presidente do Brasil, deve-se ater aos problemas reais e dar-lhes soluções. Um bom começo é admitir que eles existem.

Tudo bem. Talkei?

Não há caos político no Brasil. Vai tudo muito bem, obrigado
Paulo Guedes em palestra, na sexta-feira, de mais de duas horas sem parar para um auditório lotado na Associação Comercial do Rio

A raivosa atualidade da Idade Média

A Idade Média se transformou em um assunto de intenso debate político. Não todo o período histórico, claro, ninguém discute sobre Excalibur e os Cavaleiros da Távola Redonda. O que está sobre a mesa é o momento das invasões muçulmanas, uma época de intensas mudanças políticas em uma Europa cujas fronteiras estavam sendo forjadas.

Nos últimos tempos, a ultradireita nacionalista transformou em uma espécie de totem esses séculos obscuros —são chamados assim pela notável ausência de documentos da queda do Império Romano até mais ou menos o ano 1.000, quando a economia e a administração começaram a se recuperar—. A visão atual sobre esse período tem muito a ver com o presente e muito pouco com um passado que é quase totalmente desconhecido. E é surpreendente ver a segurança com que descrevem aquela época os apologistas desse momento supostamente mítico de defesa da cristandade contra a invasão islâmica. Diversos movimentos de ultradireita agora se aferram a esses relatos para dizer que o fenômeno invasor está se repetindo na atualidade. Não ocorreu no passado e não ocorre agora. E, evidentemente, o que aconteceu não foi como dizem: foram séculos nos quais, basicamente, todo mundo invadia todo mundo.

Esse é um debate que aparece em alguns casos como farsa, por exemplo, quando recentemente foi retirada uma estátua de Abderramão III na cidade espanhola de Cadrete (nome árabe), como primeira medida de uma prefeitura comandada pelo Vox. Mas em outras ocasiões emerge como tragédia: o assassino que em março matou 50 pessoas em duas mesquitas da Nova Zelândia era obcecado com heróis míticos medievais da luta contra o Islã —do espanhol don Pelayo ao sérvio Milos Obilic—, e escreveu seus nomes nos carregadores com os quais realizou a matança.

“Não somente na Espanha, como em toda a Europa, a história da Idade Média se transformou em um foco de debate cada vez mais intenso”, diz Maribel Fierro, professora pesquisadora do CSIC e especialista em Al-Andalus. “A ideia da recuperação de uma suposta identidade imutável dos povos voltou a ressurgir. Os períodos que reivindicam são momentos em que ocorreram batalhas contra os muçulmanos. Sua ideia, totalmente infundada, é que o Islã é o inimigo da Europa”.

As batalhas que aparecem repetidamente nesse imaginário são Poitiers em 732, Covadonga em 722 (ou 718, 737 ou 754, de acordo com as diferentes versões), Kosovo em 1389 e, muito mais tarde, Viena em 1683. As duas primeiras foram confrontos com as tropas árabes e berberes procedentes do norte da África e da península Arábica; as segundas, contra os turcos. O problema com Poitiers, Covadonga e Kosovo é que são acontecimentos em que a história se mescla ao mito e sobre os quais os especialistas têm poucos dados, dispersos, tardios e duvidosos. Não se conservou o relato de uma testemunha contemporânea de nenhuma dessas batalhas. Todos esses mitos também foram reinterpretados nos séculos XIX e XX quando ocorreu a explosão dos Estados nacionais na Europa e se transformaram em relatos fundacionais.

As primeiras versões da batalha de Covadonga, com a qual começou a chamada Reconquista, vêm da Crônica de Alfonso III, por volta do ano 900, ainda que esse relato só tenha se popularizado no século XIII. É possível dizer a mesma coisa da batalha de Kosovo, o grande mito nacional sérvio, explorado até a última gota pelo nacionalismo balcânico. Na verdade, como afirma o historiador Noel Malcolm em Kosovo: A Short History (Kosovo: Curta História), ignora-se quase tudo sobre esse combate, não se sabe com certeza nem mesmo quem ganhou: a tradição diz que os sérvios perderam seu Estado aos turcos e construíram seu nacionalismo sobre a nostalgia e a derrota. O cavaleiro Milos Obilic, entretanto, que segundo a lenda matou o sultão Murad, é venerado quase religiosamente e fazia parte do avariado universo mental do assassino de Christchurch na Nova Zelândia.

Sobre a batalha de Poitiers, em que Carlos Martel supostamente derrotou os muçulmanos impedindo seu avanço ao norte, o medievalista da Universidade St. Andrews James T. Palmer escreveu um ensaio muito interessante. O artigo foi publicado no The Washington Post com o título de A história falsa que impulsionou o acusado da matança de Christchurch. No texto o professor mostra como a interpretação do confronto foi mudando: para Edward Gibbon, no século XVIII, simbolizava a perda da herança da Grécia e Roma; para Jules Michelet, no XIX, não era muito importante porque o problema estava nas invasões germânicas do norte; segundo Steve Bannon, um dos ideólogos do pensamento ultradireitista atual, ex-assessor da Casa Branca, essa batalha representa um convite a defender o Ocidente contra o Islã. “Não existem novas fontes históricas e sim uma nova agenda”, escreve Palmer. “Ao invocar o legado de Carlos Martel, o assassino de Christchurch abusa da história para justificar a violência. Ele se baseou na maneira em que esse acontecimento aparece descrito em muitos livros e sites, de modo que não se trata somente de um problema de ignorância. O que precisamos entender e combater é como momentos históricos como Poitiers receberam um significado através da política”.

Por trás dessa visão nacionalista do medievo se escondem vários pressupostos contraditórios com a pesquisa científica contemporânea. Primeiro, que os habitantes da Europa no século XXI são os herdeiros dos que habitavam esse mesmo lugar há séculos. Essa afirmação ignora que as unidades políticas são completamente diferentes, para não falar das migrações e misturas que marcam a história. Segundo, que podem ser estabelecidos paralelismos entre sociedades de séculos atrás e as atuais, sem levar em consideração as abismais diferenças que as separam em inúmeros assuntos, da escravidão à tecnologia. E, por último, que, mesmo admitindo essa herança, ela não precisa condicionar o presente.

“Essa mobilização reivindicando o passado é sempre ligada a tensões do presente, à necessidade de certas comunidades, ideologias e projetos políticos de encontrar suas justificativas”, diz Eduardo Manzano Moreno, pesquisar do CSIC, especialista em Al-Andalus, que recém-publicou La Corte del Califa (A Corte do Califa). “A simples regra de maior ou menor proximidade em relação a esse passado nem sempre funciona: os romanos e os mongóis puderam cometer todo o tipo de massacres e ninguém se importa, mas no caso dos muçulmanos, o discurso conservador tenta colocar a ideia de uma similitude exata entre o que ocorreu na Idade Média e o presente, algo que os próprios radicais islâmicos também alimentam”.

O historiador Jean-Paul Demoule estudou o assunto em seu livro Les dix millénaires oubliés qui ont fait l’histoire (Os Dez Milênios Esquecidos que Fizeram a História), e explica como os nacionalismos que explodem após a Primeira Guerra Mundial exploram a ideia de um povo que se manteve imutável ao longo dos séculos submergindo-se até mesmo na pré-história. “Foi preciso garantir a cada um desses Estados um passado glorioso, que se remonta aos confins dos tempos e que garante a existência da nação através da eternidade”, escreve o professor de Sorbonne. Seu ensaio acaba com uma pergunta: “A história não é muito mais interessante quando os seres humanos a escolhem do que quando a padecem?”.