segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Entendemos...

Estou trabalhando para isso. Venho apoiando todas as iniciativas do presidente, venho procurando facilitar o caminho dele, sendo leal para todas as coisas que ele necessita. Se ele desejar a minha companhia para 2022, marcharemos de passo certo
Hamilton Mourão, general vice-presidente

Trabalhadores abandonados pelo Estado no Brasil

Desde 26 de fevereiro de 2020 o Brasil tenta lidar com a crise que afeta o mundo inteiro: a pandemia da covid-19. O primeiro caso aconteceu na cidade de São Paulo. A partir de então, o registro de contágios e mortes aumentou rapidamente até chegar a mais de quatro milhões de infectados e 128.539 mortos, segundo dados do Ministério da Saúde de 9 de setembro deste ano, que colocam o país como o mais afetado da América Latina e o terceiro do mundo.

A combinação de uma pandemia agressiva e sem precedentes na história recente da humanidade e o caos político a que estamos submetidos dá contornos brasileiros à crise global. A desigualdade que já caracterizava a sociedade deste país determinou quem é mais afetado pelos impactos devastadores da doença e das medidas de isolamento social. Isso porque, além das questões trazidas pelo novo coronavírus, convivemos com os problemas estruturais do país, ou seja, falta de saneamento básico, frágeis estruturas de proteção social e sanitária, insegurança alimentar, racismo, entre outros.





Assim, o cenário global da pandemia no Brasil, nas grandes e pequenas cidades, aponta para resultados muito pessimistas. Enquanto o presidente da República, Jair Bolsonaro, continua dando pouca importância ao vírus, agindo para enfraquecer a credibilidade das medidas de combate à pandemia e insistindo na necessidade de voltar à “normalidade” nas atividades econômicas, o vírus continua avançando no país. Além disso, o presidente tenta convencer a opinião pública e a sociedade brasileira de que já temos um tratamento eficaz para a covid-19, a cloroquina, apesar de a comunidade científica ter apontado os riscos de seu uso e afirmar que, por enquanto, o mais seguro é manter o isolamento social.

No entanto, a ausência de ação do Governo federal não significou uma inação generalizada no país. Desde o primeiro momento, governadores e prefeitos têm sido os principais atores políticos na luta contra a pandemia. Usando as ferramentas institucionais, têm procurado deter a disseminação do vírus e prepararam os sistemas de saúde para receber a população que demanda atendimento hospitalar, financiando-se com recursos próprios já que as ajudas federais prometidas só chegaram em meados de junho.

De acordo com o desenho institucional federal do Brasil, os estados e municípios têm uma série de competências políticas e administrativas. São essas prerrogativas constitucionais que permitiram que lideranças de ordem subnacional implementassem algumas medidas de proteção contra o coronavírus. Além desses Governos subnacionais, a atuação da sociedade civil está sendo importante, principalmente nas periferias urbanas e nos lugares mais vulneráveis.

Mas embora os Governos subnacionais tenham tentado enfrentar a pandemia, não foi o suficiente. A necessidade de coordenação do Governo federal para o efetivo enfrentamento da pandemia (Fernandez e Pinto, 2020) e a baixa capacidade orçamentária dos estados e municípios (Fernandez et al., 2020) configuraram um cenário de crise, tanto sanitária quanto política. Além disso, governadores e prefeitos assumiram o fardo de tomar decisões impopulares, como a imposição do isolamento social.

Embora as ações de solidariedade da sociedade civil estejam se mostrando fundamentais para evitar um caos ainda maior, o Estado é estratégico para evitar o aniquilamento dos brasileiros pobres e negros, seja pelo vírus ou pela fome. E não há Estado sem trabalhadores da linha de frente. Esses profissionais, ao prestar qualquer serviço público, materializam as ações e omissões do Estado. Estes são, em geral, os mais vulneráveis: os que recebem salários mais baixos, os menos valorizados, os que trabalham em condições mais precárias e os que são pressionados pelos cidadãos e pelo Estado na prestação de serviços. Todas as ações definidas pelas elites burocráticas e políticas do país para o enfrentamento da pandemia se concretizam necessariamente na ação dessas pessoas na linha de frente: os profissionais de saúde, os trabalhadores de assistência, os policiais, entre outros.

O Brasil é atualmente o líder mundial no ranking de mortalidade de profissionais de saúde devido à covid-19. Segundo dados do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV), depois da realização de duas pesquisas com mais de 4.000 profissionais de diferentes serviços públicos (saúde, assistência e segurança), o terrível cenário dos primeiros se repete em todos os grupos de trabalhadores da linha de frente que atuam na pandemia (Lotta et al., 2020).

Em julho, cinco meses depois do início da pandemia, essas pessoas continuam com medo e desprotegidas e sem apoio ou orientação para trabalhar. Em áreas como a saúde e a assistência social, as taxas de medo chegam a 90%. Um medo que não é infundado: apenas 12% dos agentes penitenciários e 17% dos profissionais de assistência social receberam capacitação para enfrentar a crise.

Em relação aos equipamentos de proteção individual (EPIs), insumos essenciais para a ação durante a pandemia, a negligência do Estado também é evidente: 50% dos profissionais de saúde, assistência e agentes penitenciários receberam EPIs, o que além de afetar esses trabalhadores os coloca no lugar de se tornarem vetores da doença. Apenas 35% dos profissionais de saúde tiveram acesso a testes para detectar a covid-19, taxa que cai para 23% entre os agentes penitenciários e 10% entre os de assistência.

Muitos trabalhadores estão sofrendo de esgotamento mental: 75% dos entrevistados relataram estresse e ansiedade. Menos de 30% se sentem preparados para trabalhar durante a pandemia. Portanto, fazem falta diretrizes, insumos e apoio para eles.

É claro que esse cenário foi construído por uma ação irresponsável do Governo federal e, principalmente, do presidente. Desde o início Bolsonaro negou a crise: chamou a Covid-19 de “gripezinha”, afirmou que quem morre é um idiota, perguntou “e daí?” quando o país atingiu dezenas de milhares de mortos. O Governo federal criou um falso dilema entre a economia e a saúde e decidiu não tomar decisões para prevenir a doença. Em julho, o Ministério da Saúde tinha gastado apenas 30% do orçamento para a pandemia.

As políticas de saúde e assistência são estruturadas de maneira federativa e cabe ao Governo federal coordenar e definir as diretrizes de ação; deixando os estados e municípios sozinhos na luta, em um cenário de descoordenação. A situação vivida pelos profissionais da linha de frente é um reflexo dessa combinação de caos, falta de coordenação e conflito criada pelo presidente.

O Governo federal provocou uma situação de abandono generalizado, embora não uniforme, no país. As pesquisas também mostram que há regiões que tiveram ainda menos apoio estatal do que outras. No Norte, por exemplo, nenhum dos trabalhadores entrevistados em abril declarou ter recebido capacitação para enfrentar a crise, tanto entre os profissionais sociais quanto entre os funcionários das prisões.

Os dados mostram uma ausência de decisões das altas esferas de poder para enfrentar a crise e a dura realidade dos trabalhadores estatais. A proteção e a qualificação desses profissionais não foram priorizadas em um contexto de maior demanda por trabalho. Se a isso se soma a exigência de novos procedimentos para prevenir a propagação do vírus, o resultado é o aumento da pressão sobre esses trabalhadores.

Para ter acesso aos serviços de saúde, assistência social e segurança, os cidadãos precisam dos profissionais da linha de frente. Ao não apoiá-los, o Estado inviabiliza as portas de acesso a serviços essenciais à sobrevivência dos cidadãos. Diante da negligência do Estado, especialmente na implementação de políticas, os órgãos representativos das categorias profissionais, os grupos de trabalhadores e as organizações da sociedade civil carregam o ônus de suprir essa ausência. Essas condições de vulnerabilidade tornam as respostas do Estado ainda mais frágeis para reduzir os impactos negativos da pandemia na população, especialmente entre os mais vulneráveis. O Estado não apenas abandona seus trabalhadores. Ao fazer isso com os que estão na linha de frente, abandona toda a sociedade.
Michele Fernández / Gabriela Lotta/ Giordano Magri

Os zumbis

O calendário gregoriano garante: estamos em 2020. Somos sobreviventes (ainda) de uma pandemia avassaladora que infectou quase 30 milhões de pessoas no mundo, matou 911 mil, 130 mil delas no Brasil. Mas os protagonistas políticos tropicais – e outra meia dúzia de neopopulistas resistentes – teimam em ressuscitar pragas do século passado e de antes disso. De um lado e de outro, nos extremos de direta e esquerda.

Quem imaginaria questionar a teoria darwiniana da evolução ou falar de terraplanismo fora das anedotas? Ser reapresentado a uma “ameaça comunista”, frequente no repertório bolsonarista, ou à “colaboração secreta de organismos de inteligência norte-americanos” para impedir que o ex Lula acabasse com a miséria no Brasil?

O século 21, para o qual alimentamos sonhos, utopias e fantásticas expectativas, não comportaria gente que depois de 56 anos coloca em dúvida se o golpe de 1964 foi golpe e se a ditadura que torturou e matou existiu. Tampouco abraçaria a rasura do discurso de Lula sobre a culpa das oligarquias, as mesmas que o mantiveram no poder, reclassificadas agora como inimigas figadais.

É pouco crível que um temário tão ultrapassado, batido e suado, possa encantar corações e mentes. E assombrosamente incrível a ausência de lideranças capazes de derrubar esse filme de terror barato.

Na semana que passou, tanto o presidente Jair Bolsonaro quanto Lula, seu opositor predileto e agora candidato declarado em 2022, abusaram na reanimação de fantasmas, exacerbando a habilidade já conhecida de ambos para destruir. No 7 de setembro os dois derramaram antigas sandices no palanque eleitoral, elevando o tom de campanha, a única coisa que sabem fazer.

>Mas o passadismo em voga não se limita a Bolsonaro e Lula. Ao centro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso causou frisson com o mea-culpa sobre a reeleição que o beneficiou. A “novidade” seria substituí-la por um mandato de cinco anos, mesmo tempo dado ao ex-presidente José Sarney entre 1985-1989. Prova simbólica de que os centristas continuam perplexos, estáticos, sem saber o que fazer.

Também não caberiam na agenda do século 21 o alívio e a alegria colhidos com as declarações explícitas de Bolsonaro em prol da democracia, que, até por dever constitucional, seria obrigação. Mas neste país torto, com um presidente que cotidianamente flerta com os demônios da ditadura que ele chama de heróis, comemora-se sua rendição à democracia, ainda que só no discurso.

Aplaudiu-se também a defesa enfática anticorrupção feita pelo ministro Luiz Fux ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal. Ora, há algo muito estranho quando um magistrado recebe elogios por incluir o combate à corrupção e a manutenção da Lava-Jato em seu discurso de posse na direção da Corte. Mais ainda quando muitos acham que a presença de Fux na condução do STF poderá complicar a vida de Bolsonaro e de sua prole, e a de Lula.

Bolsonaro se diverte reacendendo crises tidas como superadas desde o século passado. E o faz deliberadamente, retirando holofotes dos temas que o perturbam. Basta a pressão aumentar – as investigações sobre seus filhos Flávio e Carlos, ambos enrolados com apropriação indébita de salários de funcionários públicos e milícias fluminenses são um bom exemplo – para Bolsonaro inventar uma polêmica nova sobre velhos temas.

Assim foi com a vacina, quando disse que não obrigaria ninguém a tomar o antídoto contra a Covid-19 – “você não pode amarrar o cara e dar vacina nele” –, e com o trabalho infantil. Questões extemporâneas e cruéis.

A proibição do trabalho para menores de 14 anos, definida pela Organização Internacional do Trabalho em 1919, recebeu aval do Brasil em 1947. Foi suspensa pelos militares e restabelecida na Constituição de 1988. Associada à oferta de educação, impedir o trabalho infantil é o mínimo que uma nação civilizada pode fazer por suas crianças. E pelos pais delas, que no Brasil engrossam a fila dos 12,8 milhões de desempregados.

No caso da vacina, Bolsonaro extrapolou na dose de irresponsabilidade em um país que já foi modelo e vê sua cobertura vacinal ser reduzida ano a ano. Em 2019, pela primeira vez na série histórica de 25 anos, o país não atingiu a meta para os 15 imunizantes infanto-juvenis. Neste ano, quase 50% das crianças e jovens estão a descoberto, expostos a doenças como sarampo e poliomielite, que ressurgiram e voltaram a crescer depois de ser tidas como erradicadas.

Fora alguns memes nas redes sociais e declarações formais de repúdio de uma ou outra autoridade, ninguém reage com seriedade à vida dada aos esqueletos do passado, verdadeiros zumbis que pairam sob a política brasileira.

Ainda que por vezes torça o nariz, a esquerda continua refém de Lula, aprisionada a dogmas centenários e obsoletos. Por seu turno, Bolsonaro desenterrou a direita radical, sedenta para derrotar os marcos de civilidade. A reação cabe à maioria, que não está nem de um lado nem de outro. Do contrário, o passado continuará fazendo sucesso diante de um presente duríssimo e um futuro sombrio.