domingo, 19 de maio de 2019

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Lençois (MA)

'Viva la muerte'

Com pouco mais de quatro meses de existência, o governo Bolsonaro já garantiu o favoritismo para empalmar o troféu Millán-Astray de obscurantismo. Millán-Astray é o general das hostes fascistas na Guerra Civil Espanhola celebrizado pelo brado “Abajo la inteligencia, viva la muerte”. O governo Bolsonaro, com sua ofensiva contra a universidade (“Abajo la inteligencia”) e seu festival de licenças e incentivos para que a população desfrute das melhores condições de matar-se entre si (“Viva la muerte”), cumpre à perfeição a dupla palavra de ordem do general.

São essas as duas iniciativas nas quais mais se empenha o governo. A reforma da Previdência não vale; é causa do governo paralelo do ministro Paulo Guedes, à qual Bolsonaro empresta apenas distraído cuidado. A investida contra a universidade ganhou tração com o anúncio de cortes em seus orçamentos, mas responde a uma característica central de Bolsonaro e do bolsonarismo. O antiesquerdismo é a motivação primária, mas alimenta­-se também de um anti-intelectualismo de fundo que a direita brasileira bebeu nas matrizes europeias e na América do modelo Trump. O avanço na batalha conheceu um tropeço na inépcia do primeiro escolhido para o Ministério da Educação, mas parece ter encontrado no atual, Abraham Weintraub, um soldado suficientemente bom de briga para encará-la.

O capítulo do culto à morte, adequado complemento ao desprezo pelo saber, tem merecido empenho ainda mais explícito do governo. Em janeiro Bolsonaro assinou decreto facilitando a posse das armas. O ministro Sergio Moro, sob cujas barbas brotam tais medidas, explicou na ocasião que posse, ou seja, ter armas guardadas em casa, difere de porte, que é circular com elas. “O porte é uma situação diferente, que precisa de análise mais profunda”, disse em entrevista à GloboNews. Mas quem se importa com Moro? Bolsonaro não, e neste mês, com a “análise mais profunda” relegada ao baú dos atropelos ao ministro da Justiça, assinou decreto credenciando diversas categorias profissionais a zanzar com armas na cintura. Tanto quanto o decreto em si, foi eloquente do bangue-bangue acalentado pelo governo o ambiente em que se deu sua assinatura, com deputados e senadores, eufóricos e boçais, a fazer os dedos de revólveres. Pelo grotesco, a cena ficará nos anais da truculência assim como, nos anais da corrupção, ficou a cena da turma de Sérgio Cabral de guardanapo na cabeça num restaurante de Paris.


O general Millán-Astray é lembrado pelo episódio em que contracenou com o então mais respeitado intelectual da Espanha, o filósofo Miguel de Unamuno. No dia 12 de outubro de 1936 comemorava-se no salão nobre da Universidade de Salamanca, da qual Unamuno era reitor, o dia da descoberta da América. Fazia três meses que o levante do general Franco contra o regime de Madri arrastara o país à guerra civil e à divisão em duas zonas, uma sob os franquistas, apoiados por Hitler (ué, ministro Araújo, mas ele não era de esquerda?), e a outra sob a resistência republicana. Salamanca ficava na zona franquista, e naquele dia a universidade estava coalhada de militares e membros da “Falange”, a versão local do nazismo e do fascismo. Millán-­Astray fez um discurso em que atacou o País Basco e a Catalunha como “cânceres no corpo da nação”. Sua fala foi celebrada por um “Viva la muerte” vindo da plateia (era o grito de guerra de Millán-­Astray) e saudações fascistas.

Unamuno, que até então apoiara o levante de Franco contra a bagunça dos governos republicanos e os ardis dos comunistas, tomou a palavra. “Todos me conhecem e sabem que sou incapaz de me calar. Há momentos em que calar é mentir”, começou. “Havia um silêncio cheio de medo”, narra o historiador Hugh Thomas. Unamuno continuou: “Acabei de ouvir um brado necrófilo e insensato”, e acrescentou que a Millán-Astray faltava “grandeza espiritual”. O general cortou-o: “Abajo la inteligencia! Viva la muerte”. Unamuno retomou: “Este é o templo da inteligência, e eu sou seu sacerdote mais alto. Vós profanais este sagrado recinto. Ganhareis, porque possuís a força bruta. Mas não convencereis, porque para convencer é necessário persuadir. E para persuadir é necessário possuir o que vos falta: a razão e o direito, em vossa luta”. Unamuno foi retirado do recinto sob escolta e até morrer, apenas dois meses e meio depois, ficou em prisão domiciliar. Ele tinha razão: ganhou a força bruta. Sobreviveu-lhe, como legado, seu discurso contra a barbárie e a irracionalidade, para ser lembrado onde for que pairem como ameaças.

Gaiato no navio

A aparente desorientação do presidente Jair Bolsonaro, que compartilhou de forma enigmática, na sua rede pessoal de WhatsApp, um texto do economista João Portinho, no qual o autor afirma que o país é ingovernável por causa das corporações, do Congresso e do Judiciário, lembra um velho rock de Os Paralamas do Sucesso, Melô do marinheiro, de Bi Ribeiro e João Barone: “Entrei de gaiato num navio/ Entrei, entrei, entrei pelo cano/ Entrei de gaiato/ Entrei, entrei, entrei por engano”, diz o refrão. É uma analogia quase perfeita com a situação: “Aceitei, me engajei, fui conhecer a embarcação/ A popa e o convés, a proa e o timão/ Tudo bem bonito pra chamar a atenção/ Foi quando eu recebi um balde d’água e sabão/ Tá vendo essa sujeira bem debaixo dos seus pés?/ Pois deixa de moleza e vai lavando esse convés!”

Sucesso na voz de Hebbert Vianna, a música prossegue: “Quando eu dei por mim eu já estava em alto-mar/Sem a menor chance nem vontade de voltar/Pensei que era moleza, mas foi pura ilusão/Conhecer o mundo inteiro sem gastar nenhum tostão/Liverpool, Baltimore, Bangkok e Japão/ E eu aqui descascando batata no porão!” A divulgação do texto por Bolsonaro, com um comentário que revelava sua frustração no cargo, provocou boatos e muita confusão política. Fontes palacianas vazaram para a imprensa que o presidente da República, desgostoso com as dificuldades que enfrenta, estaria disposto até a renunciar para não ceder às pressões do Congresso, por mais espaço no governo em troca da aprovação da reforma da Previdência. O vazamento foi atribuído a militares, que estariam em rota de colisão com Bolsonaro.


O diagnóstico foi catastrófico para o governo. Ao ser indagado sobre o texto ontem, em frente ao Palácio da Alvorada, Bolsonaro minimizou sua repercussão: “O texto? Pergunta para o autor. Eu apenas passei para meia dúzia de pessoas”. Entretanto, em linha com a narrativa de Portinho, apoiadores de Bolsonaro estão convocando uma manifestação para o próximo dia 26, cujo objetivo seria “invadir” o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Movimentos cívicos como Vem Pra Rua, liderado por Rogério Chequer, e Movimento Brasil Livre (MBL), de Kim Kataguiri, também nas redes sociais, porém, se manifestaram contra o movimento, que virou um dos assuntos quentes deste fim de semana.

Outro assunto é a quebra do sigilo bancário de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente da República. De janeiro a dezembro de 2016, a conta no Itaú aberta por Queiroz na agência Personnalité Freguesia, no Rio, movimentou R$ 1,23 milhão. Os depósitos em dinheiro representam um terço do total de R$ 605.652 que entraram na conta. Também terão as contas bancárias investigadas a esposa de Flávio, Fernanda Bolsonaro; uma empresa do casal, Bolsotini Chocolates e Café Ltda; as duas filhas de Queiroz, Nathalia e Evelyn; e a esposa do ex-assessor, Marcia. Outros 88 ex-funcionários do gabinete, seus parentes e empresas relacionadas a eles também terão as informações bancárias checadas. Entre os investigados estão Danielle Nóbrega e Raimunda Magalhães, irmã e mãe do ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, o homem-forte do “Escritório do crime”, organização de milicianos suspeitos de envolvimento no assassinato da vereadora carioca Marielle Franco.

O “apelo às massas” é recorrente na política brasileira, quando presidentes se veem em dificuldades com a economia e o Congresso, mas não costuma dar certo. Bolsonaro lembra Jânio Quadros e Collor de Mello, simultaneamente. O primeiro renunciou ao mandato, acreditando que voltaria ao poder nos braços do povo; o segundo, convocou seus apoiadores a vestir verde e amarelo e acabou forçado a renunciar pela campanha do impeachment. A voz rouca das ruas, como dizia o falecido deputado Ulysses Guimarães, se manifestou na semana passada pela primeira vez após as eleições, por causa do contingenciamento de verbas das universidades federais, com forte repercussão no Congresso. A convocação de uma manifestação em apoio ao governo como resposta não vai resolver os problemas do país, apenas eleva a temperatura política e aumenta a radicalização.

O governo tem duas ordens de problemas: uma é estrutural, a crise fiscal, a estagnação econômica e o desemprego em massa demandam reformas econômicas, principalmente a da Previdência; a outra é política, passa por reformas nas instituições, que são contingenciadas pela Constituição, ou seja, pelo Congresso e o Judiciário. A maneira correta de lidar com isso é a apresentação de propostas tecnicamente robustas e politicamente exequíveis, não há outro caminho na democracia. O problema é que Bolsonaro está focado numa revolução conservadora, inspirada em certa nostalgia reacionária.

Houve, no mundo, uma revolução cultural bem-sucedida, com o feminismo, os direitos dos homossexuais e o declínio da autoridade patriarcal, mas não houve uma revolução política. A democracia representativa foi posta em xeque pelo globalismo e o multiculturalismo. É nesse cenário que autores reacionários, como Olavo de Carvalho, encontraram seu público e ajudaram políticos de direita do Ocidente a sair do isolamento e catalisar as insatisfações populares, chegando ao poder em alguns países, entre os quais os Estados Unidos. Toda ideologia, porém, é uma visão distorcida da realidade; diante da objetividade dos nossos problemas, o Brasil precisa é de coesão política para sair do atoleiro.

Suco de laranjas

Uma grande onda de mistificação tolda a realidade do nosso tempo. (...) Todos querem navegar de luzes apagadas. O contrabando da vida faz-se na escuridão.

Enquanto o homem é capaz de se reconhecer nos próprios erros, o mal não é grave. A tragédia começa quando ele, relapso dos vícios e perversões, em consciência se considera um monumento de dignidade e permanência
Miguel Torga, Diário

Chutando paus e barracas

Não é coincidência, muito menos caso impensado. Na mesma semana em que o filho Flávio se enroscou ainda mais nas investigações que apuram movimentações suspeitas em dinheiro vivo dos tempos em que o 01 era deputado estadual, o pai presidente eleva o tom de ódio e recrudesce as relações com o Parlamento, ao qual diz não pretender se “sucumbir”.

Voltou a tratar aliados como inimigos e divulgou entre os seus, com nítido propósito de que vazasse velozmente, um texto de um autor desconhecido, classificando o país como “ingovernável fora de conchavos”. Mais tarde, soube-se que era da lavra de um ex-candidato a vereador, Paulo Portinho, que jurou preferir o anonimato.


Tudo, ao que parece, para ofuscar as apurações do Ministério Público do Rio, que a primeira família atribui a um movimento orquestrado para derrubar o presidente. 

“Estão fazendo esculacho em cima do meu filho”, esbravejou o capitão, com o seu elegantíssimo linguajar.

Flávio, que por duas vezes se negou a comparecer ao MP-RJ para prestar depoimento, mantém o ataque como defesa. Diz-se perseguido por ser filho do pai. Mas não consegue explicar nenhuma das acusações que pesam sobre ele. Nem a que envolve “rachadinhas” do salário de funcionários de seu ex-gabinete estadual e, muito menos, as operações imobiliárias milionárias

Longe do país, em uma viagem inventada não por acaso para o dia da primeira grande manifestação contra o seu governo, Bolsonaro saiu em defesa do filho, chutando paus e barracas para todo lado, enquanto via se materializar o que considerava inimaginável, sua única grande realização até aqui: a ocupação das ruas contra ele.

Gente de esquerda que andava desenxabida se animou. Movimentos de estudantes, há tempos sem bandeira, entoaram palavras de ordem. E outros tantos, decepcionados, foram purgar o arrependimento nas mesmas ruas que ocuparam para expurgar o PT, legenda que continuam rejeitando, mas sem ter o que por no lugar. Um desencanto expresso com todas as letras pelo compositor Lobão, até poucos dias um bolsonarista ferrenho, ativíssimo nas redes sociais: “Esse governo é um desastre”.

Bolsonaro escolheu Dallas, onde foi receber o título de Homem do Ano conferido pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos em um almoço improvisado para 100 convivas, para desancar os manifestantes brasileiros. Lá, mais vexame. Sem agenda de chefe de Estado nem um mero encontro empresarial -, foi cordialmente recebido pelo republicano George Bush, mesmo sem ter sido convidado, como informou o assessor do ex-presidente americano.

Enquanto isso, por aqui o dólar disparava e a Bolsa despencava.

Vereador por dois anos e deputado federal por mais de duas décadas e meia, Bolsonaro pode até inventar uma grande conspiração contra ele para justificar sua coleção de fracassos. Tentar lançar a culpa no Congresso, agora inimigo. É do jogo. Não será nem o primeiro nem o último a fazê-lo.

Mas querer se passar por santo depois de se lambuzar nas benesses da baixa política, ofício que escolheu após se livrar de um inquérito militar e deixar o Exército, e para o qual patrocinou três de seus filhos e empregou uma dúzia de parentes de sua ex-mulher, é ter em conta que todos os brasileiros são idiotas. À exceção, claro, dos “úteis” que o elegeram.

As investigações se aproximam como tsunami. Será inútil tergiversar.
Mary Zaidan

Nova padaria Brasil


Tudo ou nada já?

O governo tem menos de cinco meses, mas os lances da semana que passou, a pior para Jair Bolsonaro desde a posse, mostram que flerta perigosamente com o tudo ou nada, ao estressar as relações institucionais ao mesmo tempo em que tenta medir forças com a oposição nas ruas.

Num intervalo de sete dias, o presidente: 1) disse que fez um acordo com Sérgio Moropara nomeá-lo para o STF, para em seguida recuar; 2) previu um tsumani; 3) viu as investigações sobre o filho Flávio avançarem substancialmente e atingirem o resto do clã político, e reagiu a isso na base da valentia de pai; 4) minimizou os protestos contra a Educação e xingou seus participantes; 5) se enfiou numa viagem caricata a uma cidade desimportante para uma agenda irrelevante para a qual não havia sido convidado; e 6) terminou a semana compartilhando corrente pelo WhatsApp com um texto que diz que sua própria pauta fracassou e que o País é ingovernável. É preciso um talento muito específico para gastar tanta energia assim em um conjunto tão desastroso de ações.

Enquanto Bolsonaro estava em Dallas dando alguns dos tropeços listados acima, seus líderes no Congresso batiam cabeça e complicavam a já delicada situação do governo no Parlamento. Alguns deles decidiram que iam manter o Coaf nas mãos de Moro na marra, no gogó nas redes sociais. O resultado foi que o Centrão sentou em cima das medidas provisórias que estão prestes a caducar, entre elas a que reestrutura o governo nos moldes desejados por Bolsonaro.

O presidente, seus aliados mais ideológicos, os seguidores fanatizados das redes e mesmo alguns ministros bem intencionados, mas não versados nas nuances da política, acusam a imprensa de cobrar duramente o governo e não denunciar o que seria a chantagem do Parlamento.

Aliados de Bolsonaro convocam, com o beneplácito da primeira-família e de assessores cruzados com assento no Planalto, o “homem comum” para ir às ruas se insurgir contra o Legislativo, o Supremo ou quem mais ousar se interpor no caminho das pretensões de Bolsonaro – como se o simples fato de ele ter vencido as eleições lhe outorgasse carta branca para agir à revelia dos demais Poderes e sobrepujando uma parcela significativa da sociedade que não concorda com essa pauta.

Acontece que medir forças nas ruas tendo como currículo de cinco meses de governo investidas sistemáticas contra educação, cultura, diversidade social, meio ambiente e direitos humanos, baseado na crença de que o Brasil se transformou subitamente num País de extrema-direita e que todos esses assuntos são de interesse apenas da esquerda, é uma prova a mais de completa desconexão com a realidade, e pode fazer com que o desgaste do governo escale alguns degraus rapidamente.

Quando aponta que a superação da grave crise do País depende de equilíbrio institucional, da aprovação das reformas estruturantes, da abertura econômica e da segurança jurídica, a imprensa não está apostando na manutenção do establishment corrupto e investindo contra os homens de bem, como devaneiam os neocruzados de Twitter.

Está apenas constatando o óbvio: presidentes que, por teimosia e péssimo assessoramento, optaram por esticar a corda com as instituições e governar no grito se deram mal. Uns tentaram insuflar o “povo" a ir às ruas em sua defesa (Collor, 1992), Outros denunciaram forças ocultas que conspiravam contra o bem (Jânio, 1961). Houve ainda quem quisesse duelar com o Parlamento suprimindo a matemática elementar (Dilma, 2016).

É muito cedo para Bolsonaro enveredar pelo tudo ou nada. A insistência nesse caminho pode ter o efeito de evidenciar um desgaste que cresce a cada dia – é sempre bom repetir – por iniciativa exclusiva do próprio governo.

Chinelos falantes


E esse movimento do pessoalzinho aí que eu cortei verba, o que vocês acharam? É uma minoria que manda na escola. Pessoal faz aí porque alguns (professores) (estavam) oferecendo pontos, facilidades. E o pessoal (os alunos) nem sabe o que foi fazer nas ruas. São idiotas úteis. É verdade
Jair Bolsonaro, de chinelos, recebendo estudantes no Alvorada

Boatólogos e boateiros

Ouvi pelo rádio do carro que o Tuma recebeu ordem de identificar os boatos e prender os boateiros. A notícia é verdadeira ou é mais um boato? No sinal, parou um carro na minha frente. Trazia no vidro um adesivo: “Duende, eu acredito.” Placa de carro de São Paulo. Onde terá começado essa mania dos duendes – no Rio ou em São Paulo? Duende, como se sabe, é boato. Difícil identificar a origem de uma onda assim.

Não sei até onde o Tuma entende de boato. Pode ser um fino psicólogo e ter altos conhecimentos sociológicos. Será então um boatólogo. Mas deve ter um largo tempo ocioso para pôr de lado tantos crimes e tamanhas bandalheiras para correr atrás do boato. É uma tarefa ingrata, como amarrar o vento ao pé da árvore. Ou encaixotar nuvem. Útil nesta época é também medir as sombras, dobrá-las e armazená-las. Sabe-se lá se um dia não vai faltar sombra!

Se o Tuma aceitou a missão convoque o Instituto Histórico. Pode começar pela história do boato. Estando para a notícia assim com a erva-de-passarinho está para a árvore, o boato consegue se infiltrar na história. Até hoje se discute se o descobrimento do Brasil foi por acaso ou não. Outro exemplo? Está aí pertinho de nós a renúncia do Jânio: nela, o que é verdade e o que é boato? A memória humana falha. Falha a nossa visão de testemunha ocular. Somos objetivos ou subjetivos?


Entre o fato e a versão, há um vácuo. No vácuo se aninha o boato. Quem entre os mortais não é um pouco mitomaníaco? Vamos analisar a propaganda oficial e separar o joio do trigo. O que é boato pra cá, o que é verdade pra lá. Epa, olha a montanha dos boatos! Boato é subproduto da verdade, ou véspera da verdade? Não vai haver confisco dos ativos financeiros! No dia seguinte, há. Boato será a antecipação da mentira oficial?

Amanhã falarei sobre a mentira, disse o vigário. Os fiéis leiam em caso o capítulo 17 de São Marcos. Virão assim bem preparados. No dia seguinte: quem leu? Todos leram, mão no ar. E o vigário: não existe o capítulo 17 de São Marcos. Então, caríssimos irmãos, vamos falar do que vocês entendem e praticam. Dito isto, Pilatos ousou perguntar, mas não ousou responder: “Quid veritas?” Hoje, a arrogância sabe o que é a verdade e ainda vai dar ordem de prisão ao boato. Assim morremos todos sufocados. Vou impetrar habeas corpus. Como podemos viver no Brasil de hoje sem uma dose de mentira?
Otto Lara Resende (Folha SP, 20 de fevereiro de 1992)

Governo da guerra, pela guerra e para a guerra

Governo sem desavenças não existe. Mas Jair Bolsonaro exagera. Preside um governo da guerra, pela guerra e para a guerra. O apreço do capitão pelo conflito leva o governo a guerrear sobretudo consigo mesmo. Os apologistas do capitão podem considerar o argumento exagerado. Pois deveriam desperdiçar um pedaço do domingo tentando identificar uma política pública —apenas uma— capaz de aproximar ou distanciar os seguintes personagens:
— Jair Bolsonaro, presidente da República;
— Hamilton Mourão, vice-presidente;
— Olavo de Carvalho, guru e polemista;
— Flávio, Carlos e Eduardo Bolsonaro, filhos do presidente.
— Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil;
— Major Vitor Hugo, líder do governo na Câmara;
— Joice Hasseumann, líder do governo no Congresso;
— Fernando Bezerra, líder do governo no Senado


Desde a estreia do governo do capitão essas dez pessoas percorrem a conjuntura vinculadas a conflitos —provocando-os, atiçando-os ou fugindo deles. Nenhuma política pública animou o surto de animosidade. Guerreou-se por ideologia e frações de poder. Nem sinal de programa governamental. Nada que impulsionasse uma reforma estrutural. Apenas a guerra pela guerra.

Bolsonaro implica com Mourão porque é um ser humano inseguro. E aprendeu com Michel Temer que os vices, como os ciprestes, costumam crescer à beira dos túmulos. Mourão oferece aos gravadores e microfones um punhado de contrapontos sóbrios aos despautérios do titular porque, embora tivesse solicitado, Bolsonaro não lhe confiou nenhuma missão capaz de preencher-lhe a ociosidade, mãe de todos os vices.

Flávio, o Zero Um, dedica-se a empurrar para dentro do governo do pai um escândalo que enferruja qualquer discurso baseado na ética. Carlos, o príncipe Zero Dois, exerce a função de intérprete do pensamento do rei. Esforça-se para provar que a melhor maneira de sair de um buraco é cavando um buraco ainda maior nas redes sociais. Eduardo, o Zero Três, estarrece o Itamaraty com seu desempenho como chanceler extraoficial.

Na articulação política, Onyx dá caneladas no Major Vitor Hugo para mostrar quem é que manda na tropa do Legislativo. O Major dá de ombros para o ministro para realçar que é Bolsonaro quem dá as cartas. Joice se achega a Rodrigo Maia e à turma do centrão porque percebeu que o importante é saber embaralhar, não distribuir as cartas. E Fernando Bezerra, egresso do ministério de Dilma, com um pé na Lava Jato, frequenta o palco como evidência de que o MDB não se retirou do pôquer.

Incapaz de administrar a troca de tiros doméstica, Bolsonaro declara guerra ao mundo. Em sua penúltima incursão, o capitão distribuiu pelo WhatsApp um texto sobre o Brasil terrível e "ingovernável" que ele ganhou das urnas de 2018. Pela lógica, um governante deveria buscar aliados e evitar brigas. Mas a única lógica que Bolsonaro conhece é a lógica do confronto.

Essa obsessão pela guerra tem suas raízes nos 28 anos de exercício de mandato parlamentar. O problema é que, na Câmara, o custo do destempero e dos xingamentos de Bolsonaro limitava-se ao desperdício de verbas públicas com o pagamento do seu contracheque e com a estrutura do seu gabinete. No governo, o custo é mais alto.

Suprimindo-se do enredo dos primeiros quatro meses do governo a brigalhada inútil, sobram a conversa fiada, a perda de tempo, a frustração das expectativas econômicas e a alta do desemprego. O que torna o Brasil ingovernável é um sujeito que se elege como a solução de 57 milhões de eleitores e vira um problema antes do quinto mês de mandato.

Pensamento do Dia


Saúde só para ricos no Brasil

Hospitais e médicos têm sido responsabilizados pela escalada de custos da saúde. Existem métodos para conter despesas, ajustar preços e qualidade. Reembolsos de atividades assistenciais, que evitam carregamentos indevidos de contas, foram implementados pelo SUS e mediante negociações individualizadas entre algumas empresas de planos e hospitais privados. Assim, a briga entre a Amil e o grupo D’Or poderia, em tese, ser contornada pela aplicação de um princípio geral e práticas já testadas.

Grupos econômicos de planos ou hospitalares têm interesses divergentes. Os primeiros procuram controlar acesso e pagar menos pela assistência; os segundos, dependendo dos incentivos, tendem a facilitar a utilização de procedimentos. O ponto de equilíbrio entre as partes requer acordos para retirar barreiras para diagnósticos e terapias caras e preços justos. Mas essa regra não se aplica, sem adaptações, a planos privados verticalizados —quando a empresa do plano é proprietária de hospitais e laboratórios —e a grupos hospitalares e unidades de diagnóstico oligopolizados. O modelo também perde validade perante a permanência de hierarquias pré-modernas, prévias aos cânones liberais dos mercados, tais como atendimento muito diferenciado para ricos, remediados e pobres.


Portanto, o anúncio de descredenciamento de hospitais da rede D’Or, no Rio de Janeiro e Região Metropolitana de São Paulo, pela Amil (UnitedHealth) tem a intenção de contenção de despesas, mas vem misturado com manobras costumeiras de reorientação de demandas. Quem tem contratos tipo “plano gargalhada AAA” não será afetado, e os clientes AA possivelmente serão desviados para unidades verticalizadas. O movimento da maior empresa de planos no Brasil antecipa uma assistência mais segregada.

Considerando a totalidade da oferta de planos e hospitais privados, a segmentação se acentua. Ricos vão para antigos e novos hospitais seis estrelas com direito a intervenções robóticas, medicamentos de última linha, prescritos por orientação de médicos assistentes e chefs de cozinha franceses, ou pelo menos nomes afrancesados. Clientes de planos menos que básicos são internados em estabelecimentos com quartos coletivos, por vezes sem ar-condicionado, nos quais a realização de uma simples e essencial broncoscopia precisa de autorização, que demora a ser liberada. Ricos, remediados e menos que remediados com igual caso clínico e contratos da mesma empresa ficam expostos a padrões assistenciais distintos.

Estabelecimentos de internação para ricos são muito caros, exigem contratação adicional de pessoal para manter hospedagem super-personalizada e equipamentos, frequentemente ociosos, em função de um volume relativamente pequeno de demanda. Não existem hospitais exclusivos para uma determinada classe social em países desenvolvidos. Nos EUA e Canadá, é possível pagar por quartos particulares, mas os hospitais têm corpo clínico próprio e se destinam ao atendimento da população. O parque hospitalar para ricos pode até ser bom para o marketing, mas pressiona os custos totais da saúde. Portanto, a redução dos gastos médico-hospitalares e a melhoria da qualidade do atendimento não encontram defensores genuínos em componentes do setor privado nacional. A construção de mais hospitais custosos e exclusivos nos posicionam na contramão das tendências internacionais. A era do ninguém tem que se meter em negócios privados da saúde é página virada.

A matriz da UnitedHealth está enredada no debate central sobre a sustentabilidade de sistemas de saúde. As críticas de seu principal executivo à proposta do democrata Bernie Sanders — de restringir a atuação de seguradoras privadas — provocaram queda do valor das ações da empresa. É muito cedo para prever resultados das eleições americanas e suas consequências sobre gigantescas seguradoras de saúde. Mas a ideia de seguro universal sob um único plano administrado pelo governo e financiado pelos contribuintes ganhou adesões e emitiu alertas para investidores. Grupos econômicos que fixam desigualdades concentram sentimentos polares: antipatia social e atração por dividendos financeiros, extremos que não convergem para a melhoria da saúde.

Uma gestão movida à base de bilhetinhos

Em data indeterminada de 1961, o secretário particular do presidente Jânio Quadros, José Aparecido de Oliveira, recebeu do chefe um dos bilhetinhos manuscritos que eram marca do autor desde sua época de prefeito de São Paulo. "Leio a um jornal que o ministério está em crise... Veja se a localiza para mim", pedia, irônico, o presidente.

E prosseguia: "Leio, também, que recebi, da Fazenda, um bilhete "enérgico". Desminta. O ministro é educado, bastante, para não escrevê-lo ao presidente. E o presidente não é educado, bastante, para receber tal bilhete". Em 10 de março de 1961, o ministro da Fazenda, Clemente Mariani, registrou uma ordem datilografada - e inusitada - de Jânio."1) Recolher ao Tesouro cédula em anexo, de um dólar, enviada pelo estudante Carlos Alberto Allgayer, do Rio Grande do Sul. 2) Já agradeci."


Tanto o bilhete escrito à caneta azul, em papel da Presidência, sem data nem assinatura, como o texto batido à máquina e assinado com o característico "J. Quadros" hoje integram o acervo do governo Jânio Quadros recolhido ao Arquivo Público Mineiro, como parte do Fundo José Aparecido, em Belo Horizonte. O material foi passado à instituição pela família de Aparecido após sua morte em 2007. São centenas de mensagens, algumas tratando de assuntos importantes, como obras, medidas econômicas e relações com outros países , outras abordando questões pequenas - pedidos de funcionários, reclamações, notícias de jornal. Pouco mais de 20 estão escritas na caligrafia de Jânio; a maioria é formada por cópias dos memorandos, batidas à máquina.

"Usar bilhetes não era exclusividade de Jânio, Getúlio Vargas também fazia isso", explica a pesquisadora Maria Celina D"Araújo, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). "A novidade era que a mídia ficava correndo atrás (dos bilhetes). Jânio descobriu isso. E a mídia começava a tratar a política de outra forma, como um produto a ser vendido, feito por celebridades."

Aparentemente, as mensagens, muitas vezes, não respeitavam os trâmites usuais - o presidente se dirigia diretamente a uma autarquia, por exemplo, sem passar pelo ministro. Uma delas sem data, era dirigida ao Instituto Brasileiro do Café (IBC). "Excelência. 1. Rever a norma que manda distribuir somente às torrefações o café do IBC destinado aos municípios do Pará. Estou seguramente informado de que são as torrefações que desviam o café em grão para o contrabando e o mercado negro, onde alcança o preço de até Cr$ 10.000,00 o saco. O povo paga o quilo a Cr$ 400,00. (...)

"Denúncia idônea". Os assuntos dos bilhetes eram os mais diferentes. Um determinava que o ministro do Trabalho, Francisco Castro Neves, enviasse uma equipe de fiscais do ministério e do Instituto de Previdência e Assistência dos Industriários (IAPI) a Caraguatatuba (SP). O objetivo seria checar "denúncia idônea" de violação de leis trabalhistas". "2. Quero informações precisas e notícia das providências adotadas", determina o presidente, que arremata: "3.Prazo de dez dias." Outro ordenava ao ministro da Educação, Brígido Tinoco, a nomeação do crítico José Roberto Teixeira Leite como diretor do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), "para renová-lo e dinamizá-lo".

Uma das mensagens mais curiosas, dirigida ao ministro Tinoco, mandava constituir um grupo de trabalho para traduzir palavras de uso corrente "em diversos ramos do conhecimento científico e técnico, até hoje sem correspondentes na língua portuguesa". A comissão, explicou, poderia organizar um glossário, para ser oficializado pelo MEC. "2.Inclua no grupo os escritores e filólogos Antenor Nascentes, Paulo Rónai, Aurélio Buarque de Holanda e Cavalcanti Proença", determinou.

Em outro, de 28 de março de 1961, o presidente determinava a revisão de verbetes supostamente ofensivos a "raças, povos e religiões". Quis saber, também, que o minisgtro da Agricultura instaurasse sindicância na Escola Naconal de Veterinária, para apurar as causas na mudança de seu horário de funcionamento.

Em 3 de março, depois de ler no Correio Braziliense uma notícia sobre um médico com dois empregos públicos, dirigiu-se ao prefeito de Brasília. "Verifique se a notícia é verdadeira. Se o for, o médico escolha: trabalha em um lugar, trabalha em outro, ou não trabalha em nenhum."

Wilson Tosta (O Estado de S.Paulo -14 de agosto de 2011)

O louco da casa



Trump despertou o pior de cada país e os loucos de cada casa
Pedro Almodóvar

Legado do marechal Rondon está ameaçado por governo Bolsonaro

"Depois de lidar com o poder civil, Rondon se concentrou em obter o consentimento das demais autoridades na região que estava prestes a atravessar: seus habitantes in­dígenas. Eles eram Bororo, vivendo ao longo do rio São Lourenço e talvez até mesmo com algum parentesco com a família de sua mãe, que nascera em uma comunidade a norte dessa área. (...) Assim, mais uma vez seguiu o protocolo e cavalgou sozinho para a aldeia de Kejare (buraco de morcego), para se encontrar com Oarine Ecureu (ou Andorinha Amarela), chefe do maior aldeamento Bororo na bacia do São Lourenço. Uma vez lá, foi recebido com abraços calorosos e cantos rituais que diziam: 'Nosso grande chefe chegou! Salve o grande chefe Bororo!'."
Neste trecho de Rondon - Uma Biografia, livro lançado neste mês pelo jornalista americano Larry Rohter, o marechal Cândido Rondon visita os Bororo para pedir sua autorização: parte de uma linha telegráfica de 2 mil km, da qual ele é encarregado, passará pelo território da tribo no Mato Grosso.

Depois do encontro, que aconteceu nos primeiros anos do século 20 e foi marcado por agrados mútuos, os Bororo não apenas permitiram o avanço da linha como ajudaram o militar a construí-la, quando seus soldados caíram doentes.


Cândido Rondon dá nomes a praças, escolas e até a um Estado, Rondônia, mas pouco se discute sobre o papel que teve para a preservação das tribos indígenas e da Amazônia. Mais do que um militar patriota, homenageado por todo o país, Rondon foi um pesquisador dos povos brasileiros e um pacifista nas questões ligadas à floresta e a seus habitantes.

No curso da construção da linha telegráfica, que tomou quase dez anos da sua vida, ele estabeleceu contato com tribos isoladas, ajudando a mapeá-las e difundir sua cultura. A Comissão Rondon, como ficou conhecida a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, publicou mais de cem artigos científicos sobre suas descobertas, com assuntos que iam do clima aos costumes locais.

O mesmo mergulho foi feito nas outras duas dúzias de expedições do militar, que chegou a guiar o ex-presidente americano Theodore Roosevelt pela Amazônia em 1914, numa ação bilateral que documentou o Rio da Dúvida, então desconhecido.

"Foi uma aventura descobrir que suas experiências ainda têm relevância para o Brasil do século 21", diz Rohter, que foi o correspondente da revista Newsweek e do jornal The New York Times no país.

"Por exemplo, (podemos aprender) a lidar com os povos indígenas e a reconciliar o desenvolvimento econômico do norte com a preservação das riquezas da região, especialmente a amazônica."
Rejeição histórica a lições colhidas

Apesar de terem mais de cem anos, as lições colhidas por Rondon nos seus 40 mil km pelo Brasil não foram aprendidas pelo atual governo, diz o biógrafo.

Ele vê na gestão de Jair Bolsonaro uma ameaça ao legado de Rondon, que foi fundador do Serviço de Proteção aos Índios (antecessor da Funai), e até sua morte, em 1958, trabalhou para proteger suas tradições.

"Como candidato, Bolsonaro falou em medidas que iriam contra a linha histórica estabelecida pelo Rondon. Como presidente, nesses cem dias dá para ver claramente ameaças às políticas históricas criadas por Rondon e perpetuadas pelos vários governos depois da primeira república", diz.

Até agora, entre as ações anunciadas pelo governo Bolsonaro para o meio ambiente estão a transferência da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura - revertida após decisão da comissão de reforma ministerial - e a extinção da Secretaria de Mudanças Climáticas.

Além disso, o presidente defende a liberação de atividades de mineração e agropecuária dentro de reservas e a concessão de parques nacionais à iniciativa privada. Na opinião de ambientalistas, as medidas devem representar mais riscos do que vantagens monetárias.

No entanto, lembra Rohter, esta não é a primeira vez que as ideias de Rondon são ignoradas. Retrocesso semelhante teria acontecido na ditadura militar, quando o nome do marechal foi usado de forma distorcida para batizar um programa que pretendia colonizar a Amazônia e explorar seus recursos. Na época, difundia-se a imagem do explorador destemido e nacionalista, não a do humanista.

"Sua herança foi desmantelada durante a ditadura, nos anos 1970. Mas o valor de suas políticas ressurgiu com a volta da democracia", diz o escritor.

Também durante o regime, o Serviço de Proteção aos Índios foi extinto e substituído pela Funai que, embora continuasse a homenagear Rondon, tinha ordens de "integrar os índios rapidamente", independentemente de seus desejos.

O que o marechal poderia dizer para evitar esses erros?, a reportagem pergunta. Afinal, além de ser descendente dos Bororo por parte de mãe e falar línguas indígenas, ele conheceu profundamente o Norte do país, onde percorreu milhares de quilômetros em suas viagens.

Para Rohter, seu biografado daria uma dica simples ao governo Bolsonaro.

"Ele diria as mesmas coisas que disse na Primeira República, na ditadura varguista e até seu falecimento: respeite o índio, os direitos dos povos indígenas, o meio ambiente e o povo do interior", afirma.

"Antes de mais nada, o Brasil tem um compromisso moral com os povos indígenas. E precisa cumprir sua palavra. Ela não pode mudar de um governo para outro, é um compromisso de nação."

Em vida, Rondon foi interlocutor de vários presidentes. Foi amigo de alguns, como Afonso Pena (1906-1909), um grande apoiador do projeto da linha telegráfica, mas sofreu pressões sob outras gestões. Durante o governo de Hermes da Fonseca (1910-1914), por exemplo, enfrentou acusações de que suas expedições à Amazônia, para instalação da linha e pesquisa do território, estavam "gastando dinheiro público à toa".

Em boa parte de sua carreira, teve que brigar por verbas.

"Ele precisou lutar contra forças econômicas e políticas poderosas. Na época, queriam até exterminar o índio", diz.

"Essas forças queriam explorar o interior do país do jeito que bem entendessem, sem levar em conta os povos da região. Claro que isso leva a um conflito que persiste até hoje. As declarações de Jair Bolsonaro não são inéditas. Em suas falas, ouço ecos do passado."

Bolsonaro se interessa mais por teorias conspiratórias, país fica em segundo plano

O texto do “país ingovernável” já foi esmiuçado de todas as formas pelos analistas da mídia. Mas alguns aspectos devem ser destacados. O mais importante é o fato concreto e inquestionável de que o presidente Jair Bolsonaro continua alvo fácil das teorias conspiratórias. Chega a ser uma fixação, que a partir das eleições vem contaminando toda a família Bolsonaro. No próprio Palácio do Planalto, desde a posse há um indisfarçável clima de constrangimento, que se agravou com a desmotivada demissão de Gustavo Bebianno, por ter aceitado receber em agenda o diretor institucional da Rede Globo.

Este foi o verdadeiro motivo, nada a ver com as candidatas laranjas do PSL em Minas Gerais e Pernambuco, nem com irregularidades que não eram da alçada de Bebianno como presidente do partido, ele não se envolvera em nenhuma irregularidade.

Instigado pelos filhos e por Olavo de Carvalho, o presidente decidiu demitir o ministro, que nada tinha a ver com o problema, era seu amigo pessoal e até advogado gratuito. Quando foi alertado por outros ministros para o fato de não haver motivo, porque nas democracias os governantes recebem normalmente representantes e membros da sociedade civil, o presidente caiu em si e ofereceu a Bebianno uma diretoria na Itaipu Binacional ou as Embaixadas em Roma e Lisboa, a escolher. Bebianno não aceitou e foi cuidar da vida.

A partir daí, foi uma bola de neve e Bolsonaro passou a viver por conta do golpe. Esse raciocínio conduz, logicamente, ao contragolpe. E são duas hipóteses absurdamente antidemocráticas, das quais não se pode nem cogitar.

Ao apoiar o texto do “autor desconhecido” Paulo Portinho, que exibe um “país ingovernável”, sem dúvida Bolsonaro está tácita e taticamente apoiando um contragolpe, que significa a derrocada das instituições.

Bolsonaro não prima pela inteligência, talvez nem perceba o que está fazendo. Mas o fato é que ele se dedica mais intensamente às teorias conspiratórias do que às necessidades de governo. Com isso, sua gestão está imobilizada, à espera das decisões do Congresso.

O amadorismo e a infantilidade de Bolsonaro causam espanto. Ele acha que, culpando o Judiciário e o Legislativo, estará preservando sua própria imagem e também a do Executivo. Mas não é assim que a coisa funciona.

Seu principal auxiliar, o ministro Paulo Guedes, também não sabe o que fazer e defende premissas falsas. Diz que a reforma da Previdência não somente vai aliviar o problema da dívida pública, como atrairá investimentos externos que reduziram o desemprego, e nada isso não e verdade.

Guedes não percebe que, com um governante instável como Bolsonaro, jamais haverá corrida de investidores, porque eles exigem exatamente o contrário – a estabilidade.