terça-feira, 11 de maio de 2021
Abusos e insanidades
O imperador romano Heliogábalo começou suas loucuras aos 17 anos. Com amantes de ambos os gêneros, usava mulheres nuas para carregá-lo enquanto estava em cima de uma carruagem, de onde as chicoteava. Certa ocasião, seus convidados foram amarrados a uma roda d’água, que girou lentamente e os afogou. O presidente do Turcomenistão, Turkmenbashi, dava seu nome aos dias da semana e, não satisfeito, construiu uma estátua dourada de 24 metros voltada para o sol.
Já o rei Sol, Luis XIV, desfilava no Palácio de Versalhes em um cavalo cravejado de diamantes. Seu compatriota, o rei francês Charles VI, imaginava ser feito de vidro. E Idi Amin Dada, o ditador de Uganda, garantia que conversava com Deus. Outros se consideravam deuses.
E por aí segue o desfile de excentricidades. Entre nós, o que mais se narra é sobre os escândalos da vida privada de um ou outro governante. Sabemos, por exemplo, que Pedro I dava vazão a mexericos. Disfarçado, saía à noite para a farra.
O fato é que, hoje, a estampa das coisas mirabolantes se volta para o cotidiano da política, principalmente na área do disse-que-disse, mentiras, versões e meias verdades. Flagremos a paisagem seca de Brasília. Na quarta-feira, o presidente Jair Bolsonaro chegou a insinuar que o vírus foi um instrumento da “guerra química” para propiciar a um país asiático crescimento econômico: “Qual o país que mais cresceu seu PIB? Não vou dizer para vocês. O que está acontecendo com o mundo todo, com sua gente e com o nosso Brasil?”
Desleixo, falta de sensibilidade, couraça de jacaré, diplomacia no lixo? Essas são expressões atiradas contra Sua Excelência, quando se sabe que a tese defendida por nosso mandatário é contestada por cientistas e pela própria OMS. O que o destampatório pode criar? Os chineses terão paciência para continuar aguentando os tiros do capitão?
Reaparece a recorrente hipótese: e se o presidente, defensor do tratamento precoce contra a Covid 9 à base de cloroquina, for também simpático ao conceito da “imunidade de rebanho”? Quanto mais cedo se chegar a essa imunidade, melhor seria para o governo, eis que as massas estariam naturalmente protegidas e os números de contaminação tenderiam a baixar. É triste ver que esse pensamento seja defendido por pessoas que enxergam os mais de 400 mil mortos como meros “CPFs cancelados”.
Se o presidente insiste em culpar a China nesse momento em que o principal parceiro comercial do Brasil é procurado por países que esperam por insumos e vacinas, é porque deve estar se lixando.
A linguagem presidencial, pelo visto, vai continuar a espalhar fagulhas. A fogueira está acesa. E ele, em vez de apagá-la com muita água, joga querosene. Resta pedir aos quadros do seu entorno que administrem o ímpeto presidencial. O decreto, que sinalizou, proibindo governadores e prefeitos de fechar serviços, é visto como descaso para com o próprio STF. Eles possuem esse direito.
O presidente garantiu que o decreto seria cumprido. E que ninguém ouse desobedecer. Alguma extravagância pela frente?
Vida em luta
Gatis Sluka |
A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vidaMiguel de Cervantes
A subjetividade fascista
A dramática situação do país, onde a democracia se esvai em cada jargão fascista emitido pelos grunhidos presidenciais – em um país afetado pela mortandade da pandemia e pela fome endêmica – exige uma sofisticada estratégia política por parte das forças da oposição democrática para refutá-lo. O “bolsonarismo” dominante conseguiu apartar da reflexão e do diálogo político – necessário para a democracia liberal-representativa funcionar – uma parte significativa e policlassista da sociedade.
Esta foi jogada para um espaço onde o debate não penetra, os argumentos não valem e as mentes funcionam apenas refletindo a palavra autorizada do “mito”. A fragmentação da estrutura de classes da sociedade favorece este isolamento, no qual estes grupos “apartados” criam um mundo próprio, ilusório, no qual a terra pode ser aceita como “plana”. Nela, o comunismo também ronda as famílias “de bem” e a veneração das “pirocas” ocultas nas mamadeiras – como arma política – pode se reproduzir ao infinito. Aproximadamente 1/3 da população está dominada por estes bolsões de ignorância manipulada.
Ao longo da sua história, o fascismo sempre capitalizou as mentiras que se tornaram fundamentos que basearam o seu poder político. A diferença pela qual essa capitalização se processa hoje, em relação aos tempos do século passado, é que ela flui muito mais rapidamente e pode ser isolada em bolhas de inacessibilidade, nas quais as contestações ao mito são bloqueadas na sua “entrada”. E repelidas.
O bloqueio das contestações às mentiras é feito com argumentos diretos e simples, erigidos para satisfazer não só as mentes mais simplórias assediadas pela crise social e pela insegurança, mas também para repousarem nas consciências pervertidas de grande parte dos estratos mais altos da população. No plano da subjetividade pública, o fascismo é a revelação da preguiça mental dos oprimidos, combinada com a perversão consentida, presente na má consciência das “classes altas”.
Qual é a “sofisticação” a que me refiro como necessária, para a oposição tornar-se eficaz? A unidade das partes fragmentárias da proposta fascista é feita pelo “mito”, que se desloca de uma “bolha” fechada para outra, de um fragmento para outro, com protocolos simples de rejeição da modernidade ilustrada. Particularmente essa “rejeição” se contrapõe às possibilidades humanas de liberação dos sujeitos das influências dos preconceitos religiosos e a sua superação – pela verdade – dos anátemas políticos produzidos pela grande mídia, em relação à esquerda.
Os contestadores dos valores do fascismo são atacados a partir da moralidade aparente das castas do “medievo”, moralidade constituída para o bloqueio mental de tudo que estiver fora dos padrões da família patriarcal, frequentemente ampliada como ideia de nação. Para isso o fascismo aposta na cegueira pelo ódio, que essas liberdades individuais ou grupais podem provocar no senso comum, sempre apresentadas como “contrárias” à vida ordeira, que é instabilizada por estes “desvios”.
A ideologia fascista transforma, assim, a perversão e a intolerância em virtude da ordem e em projeto de nação: é a ideologia dos frustrados, dos ressentidos excluídos da boa vida dos dominadores que se voltam, então, contra todos que toleram a desordem e geram instabilidade nas famílias. A verdade do que é o mito não interessa ao fascista, pois o que o seduz é sua própria inverdade tornada símbolo para a redenção da mediocridade mergulhada na infelicidade coletiva.
A superação desta subjetividade não ocorrerá sem a derrota do mito e a derrota do mito não ocorrerá sem que possamos quebrar a unidade daquela parte das classes dominantes com ele, produzida para os seus fins específicos de dominação. Esta dominação, em primeiro lugar, usa o “mito” para promover reformas e acentuar a privatização do Estado, tanto pelo aumento do poder das milícias, como pela privatização de ativos públicos.
A futura Frente política que deverá governar o país deve ser composta pelos quatro movimentos de uma sinfonia política, que apontem para uma retomada da ordem republicana de 1988: no primeiro, derrotar o “bolsonarismo” e expulsá-lo do poder, unindo o que tem de democrático na nação contra ele; no segundo movimento, preparando um programa de transição comum, para uma economia produtivista, não rentista e inclusiva no emprego e na atividade; um terceiro movimento, organizando a esquerda para ser o pivô de uma frente política de natureza eleitoral – que vá além da esquerda para governar –; e um quarto movimento, com a força do poder institucional, reformar o sistema político para abrir novas perspectivas de reformas sociais e institucionais que reforcem a soberania nacional e coesionem a América Latina em torno da democracia e da solidariedade continental.
Até quando o Brasil será o país do até quando?
Errado. Voltamos à estaca zero. Estamos outra vez no território do até quando. Com as costas viradas para a nação, entre zombarias e bebedeiras com vinhos caríssimos, as diferentes facções em Brasília destruíram a Lava Jato, recolocando Lula no caminho das nossas vidas, blindaram ladrões de diferentes partidos e agora assistem à matança promovida do vírus da Covid, ao manter um sociopata no poder, em troca de bilhões de reais em emendas e outros toma lá dá cá despudorados. Para dar aspecto de responsabilidade e decoro onde eles não existem, promovem o teatro de uma CPI que só serve para aumentar o preço cobrado, com parlamentares decentes como coadjuvantes involuntários. Quisessem mesmo salvar vidas e o país da bancarrota, essa gente parlamentares teria aberto um processo de impeachment sumário de Jair Bolsonaro. Mas não. Bufunfa no bolso, a CPI da Covid ainda lhes garante um presidente que sangrará eleitoralmente até 2022, não importa se literalmente com o sangue de centenas de milhares de brasileiros e um rombo gigantesco no Tesouro.
Além de comprar a sua permanência no poder à custa de dinheiro público, como escancara ainda mais o escândalo do orçamento secreto de 3 bilhões de reais, revelado pelo Estadão e que é uma espécie de mensalão, o sociopata faz uso político da Polícia Federal, a fim de garantir a impunidade dos seus filhos e dele próprio no mercado varejista da corrupção. Mais: utiliza a Agência Brasileira de Informação, a Abin, para tentar atingir governadores adversários, como revelou a Crusoé na sua última edição semanal, com o objetivo de desviar o foco na CPI da Covid — que, repita-se, não resultará no impeachment de Bolsonaro, como já avisaram muitos senadores, mas tem apenas o intuito político de aumentar o preço da manutenção do sociopata no Planalto, na condição de pato manco. Do seu lado, o desvio de foco serviria a Bolsonaro para tentar minar oponentes em 2022, o que é demonstração suplementar da sua desconexão com a realidade.
Até quando o Brasil será o país do até quando?
A política do ódio de Jair Bolsonaro
Quem é amigo ou inimigo, isso é igualmente objeto de definições flutuantes, tudo depende das circunstâncias, dos humores presidenciais e da instabilidade emocional de sua equipe mais direta de assessores. Não sem razão, foi ela intitulada de “gabinete do ódio”, tendo em vista que a destruição a orienta, num tipo de pulsão de morte que por tudo se propaga. Para que opere, o inimigo deve sempre estar lá, independentemente de quem ele o seja em determinado momento. Os ex-ministros Gustavo Bebianno e Santos Cruz, entre outros, mostram a volatilidade daqueles que passam a ser considerados alguém a ser eliminado, e isso sem nenhuma consideração por amizades e afinidades passadas.
Acontece, agora, que esse tipo de concepção da política do ódio está inserida num contexto de morte que se alastra por toda a sociedade, com a pandemia dizimando vidas, alastrando a doença e piorando as condições econômicas e sociais. É a política da morte potencializando uma morte pandêmica que já ganha conotações políticas, porque o atual governo optou por não combatê-la, menosprezando-a, considerando a covid-19 algo passageiro e desprezível, uma “gripezinha”. Estamos rumando para meio milhão de mortes, e não para 2 mil, como alguns de seus “assessores” previam.
Isso se fez por omissões, não compra de vacinas nos momentos adequados, falta de previsão, inobservância de cuidados sanitários como isolamento social, uso de máscaras e álcool em gel, além do “receituário” de “poções mágicas” como cloroquina e assemelhadas, em que foram gastos, inutilmente, milhões de reais. Só se pode concluir que o Palácio do Planalto está repleto de pesquisadores e doutores do mais alto gabarito e competência! Os mortos agradecem…
A CPI, entre outras virtudes, está trazendo novamente todos esses atos irresponsáveis, diria até criminosos, à tona. Ela reatualiza o que o governo gostaria que fosse relegado, passado, expondo o desgoverno reinante. Achar que ela seria apenas repetitiva significa desconsiderar seu efeito político, contínuo durante toda a sua vigência, podendo estender-se por seis meses. Ela opera cumulativamente, fazendo a memória coletiva encontrar uma explicação para o sofrimento dos brasileiros, relembrando a incúria governamental.
A morte do ator Paulo Gustavo por covid, por exemplo, termina fortalecendo a CPI e sua repercussão ao estabelecer um nexo causal entre o seu infortúnio e a irresponsabilidade presidencial. Eis por que as redes sociais, ao repercutirem o decesso desse notável ator, puseram o próprio presidente Bolsonaro em xeque. Mas a política do ódio pode ter efeito bumerangue, quando a sociedade passa a ter consciência do valor da vida, do diálogo e da pacificação das relações políticas.
A política da morte não se preocupa com incoerências e contradições. Ao contrário, delas se alimenta, porque a destruição desconhece limites, incluídos os lógicos, os do cálculo. O presidente Bolsonaro ora diz uma coisa, ora diz outra, ora avança, ora recua, seguindo apenas suas estimativas e as de sua família e equipe do que é melhor para eles no cenário almejado de reeleição. O Brasil, a vida, o bem-estar, a saúde, a educação, o emprego, a fome não entram em suas considerações. Exigir aqui racionalidade é pura perda de tempo. Enganam-se os políticos e partidos que os apoiam achando que poderão corrigir esses “excessos”. Eles são elementos constitutivos de suas ações. A narrativa do ódio não deixa de ser coerente.
Nesse sentido, o trabalho da CPI já começa a produzir os seus efeitos. Dentre eles, assinale-se a importância que Bolsonaro e sua família e equipe lhe estão atribuindo, mesmo que digam que ela nada significa. O seu próprio dizer negativo mostra a sua valorização. Um dia destes, o presidente afirmou, no seu cercadinho preferido, onde fanáticos repercutem a suas falas destrutivas, entre os seus amigos ocasionais, que os opositores da cloroquina são “canalhas” e a China está conduzindo uma “guerra bacteriológica” ou algo similar.
Embora tente o contrário, Bolsonaro exibe, aos gritos, a importância da CPI. Ao reiterar a relevância “médica” da cloroquina, procura expor os brasileiros ainda mais à doença e à morte, incentivando-a, ao mesmo tempo que provoca o maior parceiro comercial, sanitário e médico do País, para que nos retalie. Qual o seu objetivo? Reduzir a importação de vacinas e dos seus insumos para a produção nacional? Alastrar ainda mais a morte, num contexto de fome e desemprego?