quarta-feira, 14 de março de 2018
Como viver sem criados?
Nós reclamamos dos privilégios, das generosas e imorais aposentadorias e do exagero dos muitos assessores, secretários, motoristas e ajudas de custo ligados a cargos públicos, mas jamais cogitamos dispensar os nossos criados. Um dos meus vizinhos falava com ironia em folha de pagamento, tantos eram os seus serviçais.
Uma das maiores estranhezas vividas por brasileiros nos Estados Unidos é a da mais absoluta ausência de empregados domésticos. De pessoas que fazem coisas pequenas e rotineiras para nós.
Na América, existem “cleaning ladies” - faxineiras horistas -, mas são raras as empregadas multiúso (babás, cozinheiras, confidentes...) como as nossas, não obstante minha duvidosa certeza de que tudo está sempre mudando!
Na minha longa experiência como estudante e professor visitante nos Estados Unidos, testemunhei alguns casos de bolsistas acompanhados de empregadas que mal cabiam nas modestas moradias disponibilizadas pela universidade a qual se associavam. Os locais se assombravam, mas tais auxiliares são indispensáveis para o nosso estilo de vida, porque são eles que limpam os nossos banheiros, fazem as nossas camas, varrem nossas casas, transformam alimento em comida, lavam nossas roupas e nos servem cafezinho, água e sobremesas, tirando e botando na hora certa os pratos da mesa, quando reproduzem um familismo que é parte do nosso modo de ser. São eles que nos fazem companhia e nos escutam nas nossas atribulações. Esse paciência pessoal e sempre generosa com a qual os subordinados nos ouvem, acalentam, obedecem, aconselham, aliviam, sorriem e perdoam, é parte dessas ocupações e são elas, com certeza, que compensam a enorme desigualdade econômica entre nós.
São esses empregados que mantêm a nossa distância do sujo, garantindo nossa superioridade aos nossos egos que o mundo, apesar de toda a corrupção nascida precisamente nesses abismos de desigualdades tidas como naturais, não acabou, mas está - queira Deus - terminando.
De fato, o que seria do sabido se não fosse o trouxa; do senhor se não fosse o escravo; do patrão se não fosse o empregado e da “dona da casa” feminista e emancipada se não fossem as suas criadas...
Corria o ano de 1979 em Madison, Wisconsin, onde eu servi como professor visitante graças a um generoso e oportuno convite de Thomas Skidmore, tirando-me de um crônico aperto financeiro.
Estamos pai, mãe, filho mais velho, filha e o rebento mais novo assistindo a um filme quando alguém diz:
- Estou louco para comer um sanduíche. Mamãe, você pega um sanduíche pra mim?
- Não vou perder o filme.
- Então minha irmã, você faz esse favor?
- Estou vendo o filme...
- E aí, meu irmãozinho caçula, você faz o sanduíche?
- Não sou emproado...
Diante da súbita consciência da hierarquia entre pais e filhos, entre gêneros e idades, a qual não podia ser sustentada sem uma empregada, surgiu um riso e, em seguida, um pacto. Aqui, nos Estados Unidos, é a gente mesmo quem faz: somos (não é incrível?) nossos próprios empregados. Vamos pausar a televisão e cada qual faz o seu sanduíche.
Em Berkeley, Califórnia. Um casal com filhos pequenos chegou, causando rumores, com uma criada.
Lídia era impecável. Cozinhava e era carinhosa com as “crianças”. Logo, porém, aprendeu inglês e começou a namorar um americano que se doutorava em matemática. A rotina americana foi fazendo com que os laços de subordinação fossem sendo substituídos por valores igualitários. Os patrões ficaram menos autoritários e Lídia, mais companheira.
Quando ofereceram um jantar para amigos, ordenaram a Lídia que o preparasse. Receberam como resposta a intrusão do individualismo com igualitarismo americano: “Sinto muito, mas não vou poder. Tenho um date com meu namorado, mas eis aqui R$ 20 para vocês comprarem uma pizza!”.
Impossível esquecer um outro caso. Desta vez, exposto no livro Notas Sobre o Rio de Janeiro, do comandante John Luccock, quando, nos anos 1800, visitava uma casa brasileira e surpreendia, com seu olhar igualitário de inglês, o comportamento de uma dama carioca sentada numa esteira e rodeada por suas escravas:
“Junto e ao alcance da mão”, relata Luccock, “estava pousado um canjirão[= JARRO] d’água. Em certo momento, a dama interrompeu a conversa para gritar por uma outra escrava, que estava em local diferente da casa. Quando a negra entrou no quarto, a senhora lhe disse: ‘Dê-me o canjirão’. Assim fez ela, sua senhora bebeu e o devolveu; a escrava recolocou o vaso onde estava e retirou-se sem que parecesse ter dado conta da estranheza da ordem, estando talvez a repetir o que já fizera milhares de vezes antes”.
É óbvio que a “estranheza” exprime o etnocentrismo de caráter igualitário do observador, abismado com o que percebia como inércia ou preguiça da dona da casa, incapaz de mexer-se para pegar a botija d’água situada ao alcance de sua mão.
Já o nosso etnocentrismo toma como natural a presença de alguém que faça coisas para nós, garantindo o eixo superior/inferior que é central para o nosso estilo de vida. Será que criados não sabemos quem somos?
Falar em reforma ou intervenção sem enxergar essa matriz hierárquica e interdependente, que junta protocolos oficiais com elos pessoais, é querer continuar enxugando gelo.
Uma das maiores estranhezas vividas por brasileiros nos Estados Unidos é a da mais absoluta ausência de empregados domésticos. De pessoas que fazem coisas pequenas e rotineiras para nós.
Na América, existem “cleaning ladies” - faxineiras horistas -, mas são raras as empregadas multiúso (babás, cozinheiras, confidentes...) como as nossas, não obstante minha duvidosa certeza de que tudo está sempre mudando!
Na minha longa experiência como estudante e professor visitante nos Estados Unidos, testemunhei alguns casos de bolsistas acompanhados de empregadas que mal cabiam nas modestas moradias disponibilizadas pela universidade a qual se associavam. Os locais se assombravam, mas tais auxiliares são indispensáveis para o nosso estilo de vida, porque são eles que limpam os nossos banheiros, fazem as nossas camas, varrem nossas casas, transformam alimento em comida, lavam nossas roupas e nos servem cafezinho, água e sobremesas, tirando e botando na hora certa os pratos da mesa, quando reproduzem um familismo que é parte do nosso modo de ser. São eles que nos fazem companhia e nos escutam nas nossas atribulações. Esse paciência pessoal e sempre generosa com a qual os subordinados nos ouvem, acalentam, obedecem, aconselham, aliviam, sorriem e perdoam, é parte dessas ocupações e são elas, com certeza, que compensam a enorme desigualdade econômica entre nós.
Família pobre recolhendo o produto do trabalho de uma negra, Jean-Baptiste Debret (1827) |
São esses empregados que mantêm a nossa distância do sujo, garantindo nossa superioridade aos nossos egos que o mundo, apesar de toda a corrupção nascida precisamente nesses abismos de desigualdades tidas como naturais, não acabou, mas está - queira Deus - terminando.
De fato, o que seria do sabido se não fosse o trouxa; do senhor se não fosse o escravo; do patrão se não fosse o empregado e da “dona da casa” feminista e emancipada se não fossem as suas criadas...
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Corria o ano de 1979 em Madison, Wisconsin, onde eu servi como professor visitante graças a um generoso e oportuno convite de Thomas Skidmore, tirando-me de um crônico aperto financeiro.
Estamos pai, mãe, filho mais velho, filha e o rebento mais novo assistindo a um filme quando alguém diz:
- Estou louco para comer um sanduíche. Mamãe, você pega um sanduíche pra mim?
- Não vou perder o filme.
- Então minha irmã, você faz esse favor?
- Estou vendo o filme...
- E aí, meu irmãozinho caçula, você faz o sanduíche?
- Não sou emproado...
Diante da súbita consciência da hierarquia entre pais e filhos, entre gêneros e idades, a qual não podia ser sustentada sem uma empregada, surgiu um riso e, em seguida, um pacto. Aqui, nos Estados Unidos, é a gente mesmo quem faz: somos (não é incrível?) nossos próprios empregados. Vamos pausar a televisão e cada qual faz o seu sanduíche.
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Em Berkeley, Califórnia. Um casal com filhos pequenos chegou, causando rumores, com uma criada.
Lídia era impecável. Cozinhava e era carinhosa com as “crianças”. Logo, porém, aprendeu inglês e começou a namorar um americano que se doutorava em matemática. A rotina americana foi fazendo com que os laços de subordinação fossem sendo substituídos por valores igualitários. Os patrões ficaram menos autoritários e Lídia, mais companheira.
Quando ofereceram um jantar para amigos, ordenaram a Lídia que o preparasse. Receberam como resposta a intrusão do individualismo com igualitarismo americano: “Sinto muito, mas não vou poder. Tenho um date com meu namorado, mas eis aqui R$ 20 para vocês comprarem uma pizza!”.
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“Junto e ao alcance da mão”, relata Luccock, “estava pousado um canjirão[= JARRO] d’água. Em certo momento, a dama interrompeu a conversa para gritar por uma outra escrava, que estava em local diferente da casa. Quando a negra entrou no quarto, a senhora lhe disse: ‘Dê-me o canjirão’. Assim fez ela, sua senhora bebeu e o devolveu; a escrava recolocou o vaso onde estava e retirou-se sem que parecesse ter dado conta da estranheza da ordem, estando talvez a repetir o que já fizera milhares de vezes antes”.
É óbvio que a “estranheza” exprime o etnocentrismo de caráter igualitário do observador, abismado com o que percebia como inércia ou preguiça da dona da casa, incapaz de mexer-se para pegar a botija d’água situada ao alcance de sua mão.
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Já o nosso etnocentrismo toma como natural a presença de alguém que faça coisas para nós, garantindo o eixo superior/inferior que é central para o nosso estilo de vida. Será que criados não sabemos quem somos?
Falar em reforma ou intervenção sem enxergar essa matriz hierárquica e interdependente, que junta protocolos oficiais com elos pessoais, é querer continuar enxugando gelo.
O coração cor-de-rosa
Poucas coisas me parecem tão brasileiras como esse coração cor-de-rosa numa parede azul que encontraram na prisão de Benfica.
Era como se estivesse numa das centenas de pequenos hotéis, de casas do interior, enfim, em todos esses lugares por onde ando com frequência.
Lembrei-me até do “Cabaré Mineiro”, de Carlos Drummond: “A dançarina espanhola de Montes Claros/dança e redança na sala mestiça./Cem olhos morenos estão despindo/seu corpo gordo picado de mosquito./Tem um sinal de bala na coxa direita,/o riso postiço de um dente de ouro,/mas é linda, linda, gorda e satisfeita.”
Dentro de mim condeno esses luxos do presídio de Benfica porque acompanhei as madrugadas dos familiares dos presos comuns esperando o momento de visitar seus entes queridos. Como sofrem para desfrutar tão poucos momentos de união.
Mas a história dos queijos franceses importados por Cabral não me indignou tanto.
Primeiro, por causa do foco: acho que essas peripécias de cadeia, essas pequenas transgressões podem nos distrair do tema principal: onde está o dinheiro que roubaram?
Certamente não se esvaiu nos queijos nem nos beijos das garotas de programa. Há fortunas nas contas dos presos de Benfica. Precisam ser encontradas e devolvidas.
Depois disso, será mais fácil encarar suas pequenas transgressões: o coração cor-de-rosa, um bolero, o piso porcelanato.
Aliás, nem sabia bem o que é isso. Para mim basta um piso firme e limpo. E não escorregadio. Há algum tempo, percebi que o limo das pedras do Arquipélago de Alcatrazes não me deixava ficar em pé.
O governo que ainda detém a máquina no Rio é simplesmente uma parte da quadrilha. Sua tarefa essencial era manter regalias que os presos comuns não têm.
Os procuradores afirmam que o número de suítes para encontros amorosos era grande para o total dos presos de Benfica. O parâmetro é a média do sistema.
Ainda assim acho que não devem ser desmontadas. Como não foi desmontado o chuveiro de água quente em Curitiba. Tudo deve ser usado para transformar o presídio em algo menos tenso.
Conheço os dois problemas: a perda da liberdade e a escassez material. A primeira é a que bate fundo. Muita gente diz: com tudo isso que tiveram lá dentro, até eu gostaria de ser preso.
É engano típico de quem valoriza as coisas diante da liberdade. O grande castigo é a prisão. Muitos só a suportam porque esconderam a grana e esperam um dia desfrutá-la.
Isso não seria justo. O dinheiro tem de voltar. Se depois disso partilharem o coração cor-de-rosa, a luz vermelha e o piso percolado com os outros, não será um desastre.
Muitos leitores vão zangar comigo, pois acham que as condições de prisão devem ser as mais duras possíveis.
Neste momento, estou no Ceará, num trabalho sobre violência urbana e facções criminosas. Três das maiores do Brasil instalaram-se aqui. E surgiu uma local, chamada Grupo de Defensores do Estado, exatamente para rivalizar com as forasteiras.
A impressão que tenho é a de que, quanto mais miseráveis e desprotegidos são os presos, mais facilmente são recrutados pelas facções criminosas, hoje um dos grandes problemas de segurança pública no Brasil.
Que os milionários de Benfica dividam seus leitos e chuveiros, mas parem de esconder o dinheiro roubado.
Está fazendo falta aos verdadeiros donos.
Era como se estivesse numa das centenas de pequenos hotéis, de casas do interior, enfim, em todos esses lugares por onde ando com frequência.
Lembrei-me até do “Cabaré Mineiro”, de Carlos Drummond: “A dançarina espanhola de Montes Claros/dança e redança na sala mestiça./Cem olhos morenos estão despindo/seu corpo gordo picado de mosquito./Tem um sinal de bala na coxa direita,/o riso postiço de um dente de ouro,/mas é linda, linda, gorda e satisfeita.”
Mas a história dos queijos franceses importados por Cabral não me indignou tanto.
Primeiro, por causa do foco: acho que essas peripécias de cadeia, essas pequenas transgressões podem nos distrair do tema principal: onde está o dinheiro que roubaram?
Certamente não se esvaiu nos queijos nem nos beijos das garotas de programa. Há fortunas nas contas dos presos de Benfica. Precisam ser encontradas e devolvidas.
Depois disso, será mais fácil encarar suas pequenas transgressões: o coração cor-de-rosa, um bolero, o piso porcelanato.
Aliás, nem sabia bem o que é isso. Para mim basta um piso firme e limpo. E não escorregadio. Há algum tempo, percebi que o limo das pedras do Arquipélago de Alcatrazes não me deixava ficar em pé.
O governo que ainda detém a máquina no Rio é simplesmente uma parte da quadrilha. Sua tarefa essencial era manter regalias que os presos comuns não têm.
Os procuradores afirmam que o número de suítes para encontros amorosos era grande para o total dos presos de Benfica. O parâmetro é a média do sistema.
Ainda assim acho que não devem ser desmontadas. Como não foi desmontado o chuveiro de água quente em Curitiba. Tudo deve ser usado para transformar o presídio em algo menos tenso.
Conheço os dois problemas: a perda da liberdade e a escassez material. A primeira é a que bate fundo. Muita gente diz: com tudo isso que tiveram lá dentro, até eu gostaria de ser preso.
É engano típico de quem valoriza as coisas diante da liberdade. O grande castigo é a prisão. Muitos só a suportam porque esconderam a grana e esperam um dia desfrutá-la.
Isso não seria justo. O dinheiro tem de voltar. Se depois disso partilharem o coração cor-de-rosa, a luz vermelha e o piso percolado com os outros, não será um desastre.
Muitos leitores vão zangar comigo, pois acham que as condições de prisão devem ser as mais duras possíveis.
Neste momento, estou no Ceará, num trabalho sobre violência urbana e facções criminosas. Três das maiores do Brasil instalaram-se aqui. E surgiu uma local, chamada Grupo de Defensores do Estado, exatamente para rivalizar com as forasteiras.
A impressão que tenho é a de que, quanto mais miseráveis e desprotegidos são os presos, mais facilmente são recrutados pelas facções criminosas, hoje um dos grandes problemas de segurança pública no Brasil.
Que os milionários de Benfica dividam seus leitos e chuveiros, mas parem de esconder o dinheiro roubado.
Está fazendo falta aos verdadeiros donos.
Anarquia aplicada
Os personagens que mandam na vida pública do Brasil de hoje, muitos dos quais não receberam um único voto para exercerem os cargos que ocupam, estão envolvidos até a cabeça, neste momento, numa experiência sem precedentes: governar o país através de decretos judiciários, burocráticos e pessoais, estes últimos baixados basicamente por indivíduos cujo maior mérito é ter acesso ao Diário Oficial da União. Esqueçam os Três Poderes, como está previsto na Constituição, e a obrigatória independência entre eles. Para que isso? O Brasil já está tentando há anos seguir esta regra, e obviamente não deu certo. Ruim por ruim, que tal experimentar um sistema em que as autoridades mais altas, sem maior entendimento entre si próprias, saem por aí tomando as decisões que lhes dão na telha ─ e ficam olhando para ver se o resto do país obedece? Se obedecer, beleza: mais uma vez “as instituições funcionaram”. Se não obedecer, paciência: tenta-se alguma outra coisa, ou deixa-se tudo mais ou menos como está. É uma espécie de anarquia aplicada, algo aparentemente inédito na história das nações. Os anarquistas, no caso, são os próprios governantes agarrados à suas cadeiras nos Três Poderes, boa parte deles em cargos “vitalícios”,“intransferíveis” e “irremovíveis” ─ ou seja, em português claro, o sujeito só sai de lá morto, ou praticamente isso. Têm outra particularidade extraordinária: façam o que fizerem, seus atos não estão sujeitos à apreciação ou revisão de ninguém atualmente vivo sobre a superfície da Terra.
Cabe tudo nessa anarquia. O doutor Zé, ou a doutora Mané, vão decidir na prática, conforme a roda da fortuna, se o ex-presidente Lula cumpre ou não cumpre a pena de cadeia a que foi legalmente condenado (por nove juízes diferentes, até agora). Outros, também ao acaso, resolvem se o Código Florestal, em vigor há seis anos, vale ou não vale. Podem exigir de uma empresa a apresentação do CPF do compositor Johannes Brahms, sepultado em Viena há 121 anos, ou eliminar o brasão da República nas capas dos passaportes. Decidem, cada um segundo o que acha “mais certo” na sua própria cabeça, sobre o envio de tropas do Exército ao Rio de Janeiro, a legalidade do ovo frito ou a precessão dos equinócios. Levam-se psicoticamente a sério. Acreditam que governam o Brasil, quando apenas mandam nele; imaginam-se garantidores da lei, quando garantem apenas o caos. O mais notável é que não pensam nem agem numa mesma direção ─ cada um, ou cada grupo, é um governo no seu terreiro, e a toda hora estão metidos em horrendas brigas de rua entre si. Se houvesse algum nexo entre o que fazem, isso aqui, pelo menos, funcionaria como uma ditadura ─ que sempre tem a vantagem de tomar decisões previsíveis e seguir a uma lógica. Assim, do jeito que está, criaram um angu que não é nada.
A democracia brasileira, mais de trinta anos após o último governo militar, deu errado. Caiu rapidamente no abismo que os políticos e as elites de todos os tipos, com o apoio da “sociedade”, começaram a cavar já em 1988, com a nova “Constituição Cidadã” ─ seguramente uma das mais estúpidas jamais criadas em qualquer país do mundo, uma espécie de pacto de suicídio coletivo capaz de travar o funcionamento das mais poderosas, ricas e eficazes nações que já se organizaram na história da humanidade. Com exceção dos artigos fundamentais para as democracias, que já estão há mais de dois séculos escritos em qualquer constituição que se preze, e portanto não conferem mérito nenhum à Assembleia Constituinte de 88, quase todo o restante é um monumento ao triunfo do interesse particular sobre o interesse da maioria. Cada um enfiou lá o que quis, e todos tiraram uma fatia do pernil para si próprios. Some-se os poderes frequentemente insanos que foram atribuídos a juízes, desembargadores, ministros, promotores, procuradores, ouvidores, mais tribos inteiras de barões da burocracia ─ e eis aí, prontinha, uma receita infalível para o fracasso de qualquer empreitada humana.
Cabe tudo nessa anarquia. O doutor Zé, ou a doutora Mané, vão decidir na prática, conforme a roda da fortuna, se o ex-presidente Lula cumpre ou não cumpre a pena de cadeia a que foi legalmente condenado (por nove juízes diferentes, até agora). Outros, também ao acaso, resolvem se o Código Florestal, em vigor há seis anos, vale ou não vale. Podem exigir de uma empresa a apresentação do CPF do compositor Johannes Brahms, sepultado em Viena há 121 anos, ou eliminar o brasão da República nas capas dos passaportes. Decidem, cada um segundo o que acha “mais certo” na sua própria cabeça, sobre o envio de tropas do Exército ao Rio de Janeiro, a legalidade do ovo frito ou a precessão dos equinócios. Levam-se psicoticamente a sério. Acreditam que governam o Brasil, quando apenas mandam nele; imaginam-se garantidores da lei, quando garantem apenas o caos. O mais notável é que não pensam nem agem numa mesma direção ─ cada um, ou cada grupo, é um governo no seu terreiro, e a toda hora estão metidos em horrendas brigas de rua entre si. Se houvesse algum nexo entre o que fazem, isso aqui, pelo menos, funcionaria como uma ditadura ─ que sempre tem a vantagem de tomar decisões previsíveis e seguir a uma lógica. Assim, do jeito que está, criaram um angu que não é nada.
A democracia brasileira, mais de trinta anos após o último governo militar, deu errado. Caiu rapidamente no abismo que os políticos e as elites de todos os tipos, com o apoio da “sociedade”, começaram a cavar já em 1988, com a nova “Constituição Cidadã” ─ seguramente uma das mais estúpidas jamais criadas em qualquer país do mundo, uma espécie de pacto de suicídio coletivo capaz de travar o funcionamento das mais poderosas, ricas e eficazes nações que já se organizaram na história da humanidade. Com exceção dos artigos fundamentais para as democracias, que já estão há mais de dois séculos escritos em qualquer constituição que se preze, e portanto não conferem mérito nenhum à Assembleia Constituinte de 88, quase todo o restante é um monumento ao triunfo do interesse particular sobre o interesse da maioria. Cada um enfiou lá o que quis, e todos tiraram uma fatia do pernil para si próprios. Some-se os poderes frequentemente insanos que foram atribuídos a juízes, desembargadores, ministros, promotores, procuradores, ouvidores, mais tribos inteiras de barões da burocracia ─ e eis aí, prontinha, uma receita infalível para o fracasso de qualquer empreitada humana.
Viracopos, PCC e Lava Jato
Por mais de uma década tive a oportunidade de fazer reportagens policiais. Um aprendizado incrível, com histórias sensacionais. Mas raras das investigações que pude acompanhar diziam respeito a um crime tão cinematográfico como o assalto ocorrido na semana passada no aeroporto internacional de Viracopos. Como nos melhores filmes do gênero, em um carro camuflado os bandidos invadiram a pista do aeroporto e interceptaram uma carga de um avião da Lufthansa, que fazia escala em Campinas antes de voar rumo à Suíça. Foram direto ao alvo: US$ 5 milhões em espécie, que estavam sob a guarda de uma empresa de transporte de valores. Saíram como entraram, sem ferir ninguém e sem deixar pistas.
Saindo do cinema e olhando o assalto de Viracopos sob a luz da realidade, alguma reflexão se faz necessária. Uma delas é obvia. Não há dúvida de que faz parte da gangue funcionários ou ex-funcionários da transportadora de valores e/ou da Lufthansa e do aeroporto. Não fosse assim, como os bandidos saberiam que naquele avião, naquela hora e naquele lugar estava a dinheirama? Como saberiam que essa carga, embarcada em São Paulo, seria desembarcada em Campinas para depois seguir à Europa no mesmo avião? São perguntas elementares e que deverão ser respondidas por uma investigação competente.
Há, no entanto, um mistério no assalto de Viracopos que precisa ser esclarecido rapidamente e que pode também levar aos bandidos. O que faziam em um avião US$ 5 milhões em espécie? Logo depois de consumado o assalto, a transportadora de valores e a Receita Federal se posicionaram, dizendo que a remessa do dinheiro para o exterior estava devidamente declarada e, portanto, era legal. Não informaram, porém, a quem pertence o dinheiro e nem explicaram o que leva alguém, seja pessoa física ou jurídica, a remeter US$ 5 milhões em espécie. Em off, funcionários da Receita disseram que não é raro casas de câmbio usarem esse método. Mas, nesse caso, seria razoável imaginar que uma casa de câmbio na Europa precisaria de Reais em papel moeda e não de dólares mandados do Brasil.
Responder a essas questões pode ajudara a chegar aos bandidos e também poderá confirmar ou desmentir uma história que circula em diversos corredores da Polícia Federal. Diz essa história que o PCC teria descoberto que corruptos do Petrolão estariam usando empresas de transporte de valores para enviar ao exterior a propina recebida no Brasil. Em posse dessa informação, o crime organizado passou a atacar essas empresas para roubar o dinheiro roubado da Petrobras. Se for assim, o assalto de Viracopos pode virar uma nova frente da Lava Jato.
Há, no entanto, um mistério no assalto de Viracopos que precisa ser esclarecido rapidamente e que pode também levar aos bandidos. O que faziam em um avião US$ 5 milhões em espécie? Logo depois de consumado o assalto, a transportadora de valores e a Receita Federal se posicionaram, dizendo que a remessa do dinheiro para o exterior estava devidamente declarada e, portanto, era legal. Não informaram, porém, a quem pertence o dinheiro e nem explicaram o que leva alguém, seja pessoa física ou jurídica, a remeter US$ 5 milhões em espécie. Em off, funcionários da Receita disseram que não é raro casas de câmbio usarem esse método. Mas, nesse caso, seria razoável imaginar que uma casa de câmbio na Europa precisaria de Reais em papel moeda e não de dólares mandados do Brasil.
Responder a essas questões pode ajudara a chegar aos bandidos e também poderá confirmar ou desmentir uma história que circula em diversos corredores da Polícia Federal. Diz essa história que o PCC teria descoberto que corruptos do Petrolão estariam usando empresas de transporte de valores para enviar ao exterior a propina recebida no Brasil. Em posse dessa informação, o crime organizado passou a atacar essas empresas para roubar o dinheiro roubado da Petrobras. Se for assim, o assalto de Viracopos pode virar uma nova frente da Lava Jato.
Visita imprópria: o investigado Temer na casa da juíza Cármen
A ministra Cármen Lúcia sempre demonstrou cuidado com sua imagem pública. Por isso, é difícil entender o que ela esperava ao receber Michel Temer para uma conversa privada. A presidente do Supremo Tribunal Federal abriu a própria casa para o mais ilustre investigado da Corte. O encontro ocorreu num dia de folga, sem testemunhas e fora das agendas oficiais.
A visita já seria imprópria em tempos de calmaria. Está longe de ser o caso. Temer voltou à mira da Lava-Jato. Sob pressão, tem aproveitado todas as oportunidades para reclamar do Supremo.
Em quatro dias, o presidente sofreu duas derrotas no tribunal. O ministro Luís Roberto Barroso quebrou seus sigilos no inquérito dos portos, que investiga o favorecimento de uma empresa do setor. O ministro Edson Fachin o incluiu no inquérito da Odebrecht, que apura o repasse de dinheiro sujo a seu partido.
O poderoso chefão do PMDB esbravejou duplamente. Seus aliados dizem que não havia motivo para a abertura das contas e que ele não poderia ser investigado por fatos anteriores à posse. As duas queixas revelam uma tentativa de colocar o presidente acima da lei.
No caso dos portos, Barroso seguiu o roteiro de toda investigação de corrupção. Se quebrou o sigilo dos coadjuvantes, não teria por que blindar o protagonista. Isso não significa que ele espere encontrar propina depositada na conta do presidente. Como diz o ministro Moreira Franco, não há amadores no Planalto.
No inquérito da Odebrecht, Fachin também fez o básico: atendeu a um pedido da procuradora-geral da República. Nomeada por Temer, ela entendeu que a Constituição impede que ele seja denunciado, e não investigado, por “atos estranhos ao exercício de suas funções”.
Para evitar constrangimentos, Cármen deveria ter evitado o encontro do último sábado. Se o investigado insistisse, a juíza poderia marcar uma reunião em dia útil e em local público, com registro na agenda oficial.
Seu colega Ricardo Lewandowski mostrou como se faz em 2015, quando Eduardo Cunha tentava emparedar o Supremo e interferir no rito do impeachment. O ministro recebeu o deputado, mas abriu as portas do gabinete e convidou a imprensa para ouvir a conversa.
Para evitar constrangimentos, Cármen deveria ter evitado o encontro do último sábado. Se o investigado insistisse, a juíza poderia marcar uma reunião em dia útil e em local público, com registro na agenda oficial.
Seu colega Ricardo Lewandowski mostrou como se faz em 2015, quando Eduardo Cunha tentava emparedar o Supremo e interferir no rito do impeachment. O ministro recebeu o deputado, mas abriu as portas do gabinete e convidou a imprensa para ouvir a conversa.
Misteriosos mundos de sócios
O crime organizado é um sistema que se aproveita das certezas erradas do sistema de valores do Estado de Direito. Para ambos, a civilização é uma obra-prima em perigo. Já o povo é o peão desse jogo de xadrez.
Os dois sistemas são contaminados pela fartura. Um usa a liberdade sem limite, o outro quer limite na defesa da liberdade. A promiscuidade não os ameaça de extinção. Os dois querem moderação, como se a alta violência entre nós fosse fruto de falta, e não de excesso. Quando o governo acerta, e a maioria aplaude, o mal aciona o desafeto e impõe a lentidão.
A resistência humana é feita pela maioria silenciosa, que sabe ser necessário enfrentar o crime, devolver a liberdade ao cidadão, libertar jovens da cilada, bloquear o engajamento da boa-fé no erro. O sabe-tudo usa a negatividade para deter a esperança.
O crime na política liquidou a inteligência e projetou a patologia da desinfecção no País. É hora de enfrentar a onda de destruição da autoridade feita por má autoridade, pelo autoritário e pela falsa limpeza do sujo.
O niilismo gangrena a sociedade democrática. Há cada vez menos políticos universalistas, humanistas, progressistas, liberais. Prospera quem for de gueto, famiglia, facção. O mal fala bem com o sectário, azeda diálogo, provoca infelicidade no círculo dos livres. A manipulação é seu roteiro de alucinação. Afogar o povo na infecção mortal do pessimismo.
O Brasil não está erigido sobre contratos formais respeitados. Todos os interesses são esquartejados pela mais primitiva exaltação do individualismo. Ninguém é informado de que ultrapassou o porcentual de bobagem que pode dizer em público e, pasmo, a mixórdia no Supremo é de deixar Abraão descrente. Um feudalismo judicial provinciano domina a cena da Alta Corte, descomprometida com a norma que a regula. É um abre-fecha, multitarefa, cria lei como quem rola pedra. Há ministro que quer o País vestido com a sua fantasia. Parece autor dessas novelas para quem não resta mais protegida nenhuma partícula privada do destino do cidadão. A transparência do mal e sua obsessão pela lascívia.
No caso da segurança pública, quando um manipulador diz recear alguma coisa, esteja certo de que é isso mesmo que ele deseja provocar. Mas podemos apostar, pela alta qualidade do silêncio das ruas, que surge nova geração de militantes da cultura da paz, outros procedimentos e horizontes se abrem.
O poder do crime não aceita ser reversível, como o poder democrático. Opera por contatos e intimidações, não é uma instituição, é um campo de força gravitacional. Sua infiltração magnética na sociedade é infinita. Balada insana, domina tudo, invade a tela, corrompe igreja, empolga especialista. Não encontra mais resistência. Não pode ser derrubado sem ver o fundo da doença, sua imantação social, o ciclo monetário e legal que o sustenta.
Conseguiu misturar sentimentalidade com terror, sigilo com cumplicidade, praia com arrastão, descontração carioca com domínio do medo. Tudo sobre segurança pública vaza para os seus alvos numa fuga ao pudor do Estado.
O que os opositores da prontidão no Rio talvez pressintam é o fato de que a esperança que desperta não é da ordem da força, nem do poder. Ela desacumula o real viciado e privilegia sua unilateralidade fora do poder, dos partidos, das instituições dominadoras. É a porta-voz dos costumes adormecidos, que é pensar livremente. O apoio da massa silenciosa à política acertada de um governo sob ataque de um arrepia-cabelo na má consciência nacional.
O vazio por trás do poder assusta os que pretendem ser donos da ilusão do povo, das massas inertes, indiferentes aos interesses do poder. A elevada motivação das operações de paz, o voluntarismo neutro e generoso, a cruz vermelha que surge na hora certa no lugar necessário, o médico sem fronteira que não cobra nada para cuidar dos que acolhe estão acima da conversa fiada dos donos de poder. A fascinação pela paz e pela vida tranquila é uma catástrofe para quem fez da miséria e da violência mercado lucrativo nesse misterioso mundo de sócios.
O crime revela a tramoia que se tornaram a ideologia e seus personagens dominadores. Sempre impulsiona pela direita gigolôs de quartéis, pela esquerda, gigolôs de pobres. O pessimista, que alimenta os dois espectros, sempre atrasado, se abraça ao realista. Na fase terminal que vivemos, quando a confusão e o contágio atingiram tudo, é impossível deter o surgimento dos messias em todas as instituições. É que a forma de atuar do demagogo, em sua maratona circular, o atravessa para o outro lado, onde se encontra o criminoso.
A indiscriminação de tudo, o pode tudo, é como um vírus contagioso. Um ciclo inteiro, falador, perverso, completou-se. A cultura que o impulsiona é a da irradiação, o triunfo do artificial, do iludir o pobre e saquear o rico. Exacerbada pelo jogo fanático do poder sobre o território dominado, o mesmo apetite de controle do cargo ocupado. Um sistema excessivo que alimenta a epidemia do mal, cujo excedente produzido é a criminalidade em geral.
O maior desafio no controle do crime é o que fazer ao desvendar seu mistério. Quando o tráfico deixa de ser um poder do crime para se tornar um poder político, com sua estratégia de dominação social, começa a se desfazer a verdade do Estado. O que está em jogo é o atalho que o crime organizado usou para se infiltrar e se beneficiar da improvisação da política do País nos últimos anos. Sem estancar as miragens e os abismos que ainda nos dominam não será fácil controlar a farra cultural que produziu tanta intimidade entre dinheiro-poder-delito. Se o social é usado para melhor gravitar na orbita do capital, quem vale mais? Desagregados os valores, tudo se contamina, o positivo não expulsa o negativo.
Os negócios do mal, a atual escravidão do brasileiro. “Andrada, arranca este pendão dos ares. Colombo, fecha a porta dos seus mares”.
Os dois sistemas são contaminados pela fartura. Um usa a liberdade sem limite, o outro quer limite na defesa da liberdade. A promiscuidade não os ameaça de extinção. Os dois querem moderação, como se a alta violência entre nós fosse fruto de falta, e não de excesso. Quando o governo acerta, e a maioria aplaude, o mal aciona o desafeto e impõe a lentidão.
A resistência humana é feita pela maioria silenciosa, que sabe ser necessário enfrentar o crime, devolver a liberdade ao cidadão, libertar jovens da cilada, bloquear o engajamento da boa-fé no erro. O sabe-tudo usa a negatividade para deter a esperança.
O crime na política liquidou a inteligência e projetou a patologia da desinfecção no País. É hora de enfrentar a onda de destruição da autoridade feita por má autoridade, pelo autoritário e pela falsa limpeza do sujo.
O Brasil não está erigido sobre contratos formais respeitados. Todos os interesses são esquartejados pela mais primitiva exaltação do individualismo. Ninguém é informado de que ultrapassou o porcentual de bobagem que pode dizer em público e, pasmo, a mixórdia no Supremo é de deixar Abraão descrente. Um feudalismo judicial provinciano domina a cena da Alta Corte, descomprometida com a norma que a regula. É um abre-fecha, multitarefa, cria lei como quem rola pedra. Há ministro que quer o País vestido com a sua fantasia. Parece autor dessas novelas para quem não resta mais protegida nenhuma partícula privada do destino do cidadão. A transparência do mal e sua obsessão pela lascívia.
No caso da segurança pública, quando um manipulador diz recear alguma coisa, esteja certo de que é isso mesmo que ele deseja provocar. Mas podemos apostar, pela alta qualidade do silêncio das ruas, que surge nova geração de militantes da cultura da paz, outros procedimentos e horizontes se abrem.
O poder do crime não aceita ser reversível, como o poder democrático. Opera por contatos e intimidações, não é uma instituição, é um campo de força gravitacional. Sua infiltração magnética na sociedade é infinita. Balada insana, domina tudo, invade a tela, corrompe igreja, empolga especialista. Não encontra mais resistência. Não pode ser derrubado sem ver o fundo da doença, sua imantação social, o ciclo monetário e legal que o sustenta.
Conseguiu misturar sentimentalidade com terror, sigilo com cumplicidade, praia com arrastão, descontração carioca com domínio do medo. Tudo sobre segurança pública vaza para os seus alvos numa fuga ao pudor do Estado.
O que os opositores da prontidão no Rio talvez pressintam é o fato de que a esperança que desperta não é da ordem da força, nem do poder. Ela desacumula o real viciado e privilegia sua unilateralidade fora do poder, dos partidos, das instituições dominadoras. É a porta-voz dos costumes adormecidos, que é pensar livremente. O apoio da massa silenciosa à política acertada de um governo sob ataque de um arrepia-cabelo na má consciência nacional.
O vazio por trás do poder assusta os que pretendem ser donos da ilusão do povo, das massas inertes, indiferentes aos interesses do poder. A elevada motivação das operações de paz, o voluntarismo neutro e generoso, a cruz vermelha que surge na hora certa no lugar necessário, o médico sem fronteira que não cobra nada para cuidar dos que acolhe estão acima da conversa fiada dos donos de poder. A fascinação pela paz e pela vida tranquila é uma catástrofe para quem fez da miséria e da violência mercado lucrativo nesse misterioso mundo de sócios.
O crime revela a tramoia que se tornaram a ideologia e seus personagens dominadores. Sempre impulsiona pela direita gigolôs de quartéis, pela esquerda, gigolôs de pobres. O pessimista, que alimenta os dois espectros, sempre atrasado, se abraça ao realista. Na fase terminal que vivemos, quando a confusão e o contágio atingiram tudo, é impossível deter o surgimento dos messias em todas as instituições. É que a forma de atuar do demagogo, em sua maratona circular, o atravessa para o outro lado, onde se encontra o criminoso.
A indiscriminação de tudo, o pode tudo, é como um vírus contagioso. Um ciclo inteiro, falador, perverso, completou-se. A cultura que o impulsiona é a da irradiação, o triunfo do artificial, do iludir o pobre e saquear o rico. Exacerbada pelo jogo fanático do poder sobre o território dominado, o mesmo apetite de controle do cargo ocupado. Um sistema excessivo que alimenta a epidemia do mal, cujo excedente produzido é a criminalidade em geral.
O maior desafio no controle do crime é o que fazer ao desvendar seu mistério. Quando o tráfico deixa de ser um poder do crime para se tornar um poder político, com sua estratégia de dominação social, começa a se desfazer a verdade do Estado. O que está em jogo é o atalho que o crime organizado usou para se infiltrar e se beneficiar da improvisação da política do País nos últimos anos. Sem estancar as miragens e os abismos que ainda nos dominam não será fácil controlar a farra cultural que produziu tanta intimidade entre dinheiro-poder-delito. Se o social é usado para melhor gravitar na orbita do capital, quem vale mais? Desagregados os valores, tudo se contamina, o positivo não expulsa o negativo.
Os negócios do mal, a atual escravidão do brasileiro. “Andrada, arranca este pendão dos ares. Colombo, fecha a porta dos seus mares”.
Tá osso
Como dizem os motoristas de aplicativos: hoje tá osso. É cada tapa na cara. Paciência, tu tens? Hoje vai ser difícil de entender, porque eu também não estou entendendo nada. E vou te levar comigo.
Oh (edição – TT, não põe exclamação depois do meu oh nem vírgula – meu oh é assim mesmo, no seco e sem entonação). Refaço. Oh que falso e inútil poder esse de te levar comigo nessa viagem minha das quintas-feiras, tão rapidinha, engolida com café preto. Corremos vendados no tiroteio. Uma colega com baixa visão contou-me que já perdeu duas bengalas no centro histórico da minha Poa. Foi atropelada por pedestres que nem pararam pra ajudar ou alcançar-lhe as bengalas. Sério, gente, tenho às vezes vontade de descer com o mundo andando mesmo, não precisa nem parar.
Uma empresa da Noruega, a Noruega aquela, sabe, toda limpinha, mineradora de alumínio no Pará, descarta dejetos tóxicos direto no meio ambiente e diz não saber de nada. Depois, contou que, tá, sabíamos, mas não admitimos. Então, sabendo realmente o que (não) vai acontecer, por fim, admitiu. Garante que “vai estar analisando”…
Na Síria, genocídio que não gera notícia. No Rio, intervenção militar nas favelas. Como se a cúpula do crime organizado não estivesse nos gabinetes de Brasília. Aqui pelos pagos (pasmem), estão a desmanchar escolas e bibliotecas pra venderem seus terrenos aos amigos. O Júnior quer acabar com o Adote um Escritor, projeto de incentivo à leitura que é sucesso há vinte anos. Daí pra incendiarem livros é só dizer quero ler. Na boa, alguém me traz um Fontol?
Enquanto isso, no Maranhão, o governador comuna, descarado, pagando quase seis pau aos professores. Deusulivre (assim mesmo, TT, uma palavra só). Deusulivre. Criminoso. Tá osso, gente, até pra motoristas de aplicativos, meu amigo disse que tá dormindo dentro do carro. Garante que tem gente em situação bem pior: “outro colega, foi pra baixo do viaduto”. E o Hulk, vai pro pleito? E o Lula, vai em cana? O Neymar, vai à Copa? Você, vai às urnas? Pois devia. Antes que elas sejam suspensas por tempo indeterminado.
Senhores, vocês senhores, que já mostraram suas caras de pau nas votações da CCJ, já viram a cara das ruas? Estamos com fome, senhores, sem moradia, trabalho não temos, as contas, senhores, estão vencidas, saiam às ruas. Eu queria dizer que é mentira. Eu queria dizer que inventei isso tudo só pra terminar essa crônica. Queria dizer bons futuros. Dizer uma prece. Dormir um semestre, eu queria. Mas escuta, não tá dando.
Aliás, queria mas não posso, entrei na UERGS pra estudar letras, licenciatura. Talvez eu aprenda. Daí, te levo comigo outras vezes nessas minhas viagens, em outros dias, com mais polidez, quem sabe. Lembrei do Lenine: “tendo tudo contra e nada me transtorna/ dentro do meu peito/ um desejo martelo/ uma vontade bigorna”.
E a gente querendo ser feliz, aff… Tu tens paciência? A minha tá acabando.
Oh (edição – TT, não põe exclamação depois do meu oh nem vírgula – meu oh é assim mesmo, no seco e sem entonação). Refaço. Oh que falso e inútil poder esse de te levar comigo nessa viagem minha das quintas-feiras, tão rapidinha, engolida com café preto. Corremos vendados no tiroteio. Uma colega com baixa visão contou-me que já perdeu duas bengalas no centro histórico da minha Poa. Foi atropelada por pedestres que nem pararam pra ajudar ou alcançar-lhe as bengalas. Sério, gente, tenho às vezes vontade de descer com o mundo andando mesmo, não precisa nem parar.
Na Síria, genocídio que não gera notícia. No Rio, intervenção militar nas favelas. Como se a cúpula do crime organizado não estivesse nos gabinetes de Brasília. Aqui pelos pagos (pasmem), estão a desmanchar escolas e bibliotecas pra venderem seus terrenos aos amigos. O Júnior quer acabar com o Adote um Escritor, projeto de incentivo à leitura que é sucesso há vinte anos. Daí pra incendiarem livros é só dizer quero ler. Na boa, alguém me traz um Fontol?
Enquanto isso, no Maranhão, o governador comuna, descarado, pagando quase seis pau aos professores. Deusulivre (assim mesmo, TT, uma palavra só). Deusulivre. Criminoso. Tá osso, gente, até pra motoristas de aplicativos, meu amigo disse que tá dormindo dentro do carro. Garante que tem gente em situação bem pior: “outro colega, foi pra baixo do viaduto”. E o Hulk, vai pro pleito? E o Lula, vai em cana? O Neymar, vai à Copa? Você, vai às urnas? Pois devia. Antes que elas sejam suspensas por tempo indeterminado.
Senhores, vocês senhores, que já mostraram suas caras de pau nas votações da CCJ, já viram a cara das ruas? Estamos com fome, senhores, sem moradia, trabalho não temos, as contas, senhores, estão vencidas, saiam às ruas. Eu queria dizer que é mentira. Eu queria dizer que inventei isso tudo só pra terminar essa crônica. Queria dizer bons futuros. Dizer uma prece. Dormir um semestre, eu queria. Mas escuta, não tá dando.
Aliás, queria mas não posso, entrei na UERGS pra estudar letras, licenciatura. Talvez eu aprenda. Daí, te levo comigo outras vezes nessas minhas viagens, em outros dias, com mais polidez, quem sabe. Lembrei do Lenine: “tendo tudo contra e nada me transtorna/ dentro do meu peito/ um desejo martelo/ uma vontade bigorna”.
E a gente querendo ser feliz, aff… Tu tens paciência? A minha tá acabando.
Exclusivo para pobres
O neoliberalismo existe, mas só para os pobres. O mercado livre é para eles, não para nós. Essa é a história do capitalismo. As grandes corporações empreenderam a luta de classes, são autênticos marxistas, mas com os valores invertidos. Os princípios do livre mercado são ótimos para ser aplicados aos pobres, mas os muito ricos são protegidos. As grandes indústrias de energia recebem subvenções de centenas de milhões de dólares, a economia de alta tecnologia se beneficia das pesquisas públicas de décadas anteriores, as entidades financeiras obtêm ajuda maciça depois de afundar… Todas elas vivem com um seguro: são consideradas muito grandes para cair e são resgatadas se têm problemas.
No fim das contas, os impostos servem para subvencionar essas entidades e com elas, os ricos e poderosos. Mas além disso se diz à população que o Estado é o problema e se reduz seu campo de ação. E o que ocorre? Seu espaço é ocupado pelo poder privado, e a tirania das grandes corporações fica cada vez maiorNoam Chomsky
Michel Temer exilou-se no mundo da hipocrisia
Michel Temer exilou-se no mundo da hipocrisia. Comporta-se como um presidente cenográfico. Encena a peça de um perseguido político (mais um!). Já nem se importa com os fatos que desmentem sua ficção. Nesta terça-feira, falava sobre reforma da Previdência para uma plateia de empresários quando, de repente, ergueu o timbre para enfatizar o seguinte:
''Vocês acompanharam a guerra que eu pessoalmente recebi em razão dos setores interessados nisso. Eu denuncio, eu acuso, eu aponto o dedo. Porque hoje tem que apontar o dedo. Se você não fizer isso, você não reinstitucionaliza o país. E o país perdeu inteiramente a ideia de liturgia, a ideia de autoridade, a ideia de uma certa hierarquia, responsabilidade''.
Horas antes do desabafo teatral, uma novidade tóxica ganhara o noticiário. Ficou-se sabendo que a Polícia Federal fizera uma batida no terceiro andar do Palácio do Planalto na semana passada. Os agentes federais procuravam um computador que guardasse na memória os e-mails trocados por um ex-auxiliar de Temer: Rodrigo Rocha Loures, o homem filmado quando recebia a mala com propina de R$ 500 mil da JBS.
Descontado o cinismo, Temer só pode ser compreendido às avessas. A pose de Émile Zola não orna com sua realidade. Ele não denuncia, foi denunciado criminalmente duas vezes. Não acusa, é acusado de corrupção num par de inquéritos que estão em andamento. Não aponta o dedo, é dedurado por uma penca de corruptos confessos. A liturgia foi para o beleléu quando Temer converteu a sede do governo num bunker que oferece foro privilegiado a auxiliares denunciados.
''…Tentaram degradar-me moralmente”, declarou Temer. “E eu tenho dito com muita frequência que não vou mais tolerar isso. Eu digo que agora vou combater isso, até porque meus detratores, hoje, ou estão na cadeia ou estão desmoralizados.''
Para ser tolerado no Planalto, Temer comprou com cargos, verbas e privilégios a fidelidade dos deputados que congelaram na Câmara as denúncias da Procuradoria. São três os principais delatores que o presidente chama de “detratores”: Marcelo Odebrecht e os irmãos Joesley e Wesley Batista. Já deixaram a cadeia. Usufruem do conforto da prisão domiciliar.
Quem continua atrás das grades é o pedaço da “Turma do Charuto” que perdeu a proteção do foro privilegiado. Gente como Eduardo Cunha e Geddel Vieira Lima, cujo encarceramento impede de comparecer aos jantares do Jaburu —seguidos de articulações urdidas na varanda da residência oficial de Temer, em meio à fumaça de bons cubanos.
Solto, Temer compõe o bloco dos “desmoralizados”. No momento, é varejado por duas investigações. Numa, apura-se a propina de R$ 10 milhões da Odebrecht. Coisa negociada num jantar do Jaburu. Noutra, verifica-se a denúncia sobre a troca de propinas por um decreto da área de portos. Com o sigilo bancário quebrado, Temer prometeu entregar os extratos aos repórteres. Já desistiu da ousadia.
A grande pose de Temer não é para a mulher Marcela, o filho Michelzinho, os cúmplices palacianos, os aliados no Congresso ou os ministros do Supremo Luís Roberto Barosso e Edson Fachin. Nada disso. Temer simula as melhores virtudes para o seu próprio julgamento.
No mundo real, Temer é o primeiro presidente da história denunciado por corrupção no exercício do cargo. Ou, por outra, é um réu esperando na fila para acontecer depois que perder as prerrogativas do cargo. No universo da hipocrisia, Temer é um mandatário de mostruário. ''Deixando a modéstia de lado, este será o melhor governo que o país já conheceu”, declarou no discurso para empresários.
''Vocês acompanharam a guerra que eu pessoalmente recebi em razão dos setores interessados nisso. Eu denuncio, eu acuso, eu aponto o dedo. Porque hoje tem que apontar o dedo. Se você não fizer isso, você não reinstitucionaliza o país. E o país perdeu inteiramente a ideia de liturgia, a ideia de autoridade, a ideia de uma certa hierarquia, responsabilidade''.
Descontado o cinismo, Temer só pode ser compreendido às avessas. A pose de Émile Zola não orna com sua realidade. Ele não denuncia, foi denunciado criminalmente duas vezes. Não acusa, é acusado de corrupção num par de inquéritos que estão em andamento. Não aponta o dedo, é dedurado por uma penca de corruptos confessos. A liturgia foi para o beleléu quando Temer converteu a sede do governo num bunker que oferece foro privilegiado a auxiliares denunciados.
''…Tentaram degradar-me moralmente”, declarou Temer. “E eu tenho dito com muita frequência que não vou mais tolerar isso. Eu digo que agora vou combater isso, até porque meus detratores, hoje, ou estão na cadeia ou estão desmoralizados.''
Para ser tolerado no Planalto, Temer comprou com cargos, verbas e privilégios a fidelidade dos deputados que congelaram na Câmara as denúncias da Procuradoria. São três os principais delatores que o presidente chama de “detratores”: Marcelo Odebrecht e os irmãos Joesley e Wesley Batista. Já deixaram a cadeia. Usufruem do conforto da prisão domiciliar.
Quem continua atrás das grades é o pedaço da “Turma do Charuto” que perdeu a proteção do foro privilegiado. Gente como Eduardo Cunha e Geddel Vieira Lima, cujo encarceramento impede de comparecer aos jantares do Jaburu —seguidos de articulações urdidas na varanda da residência oficial de Temer, em meio à fumaça de bons cubanos.
Solto, Temer compõe o bloco dos “desmoralizados”. No momento, é varejado por duas investigações. Numa, apura-se a propina de R$ 10 milhões da Odebrecht. Coisa negociada num jantar do Jaburu. Noutra, verifica-se a denúncia sobre a troca de propinas por um decreto da área de portos. Com o sigilo bancário quebrado, Temer prometeu entregar os extratos aos repórteres. Já desistiu da ousadia.
A grande pose de Temer não é para a mulher Marcela, o filho Michelzinho, os cúmplices palacianos, os aliados no Congresso ou os ministros do Supremo Luís Roberto Barosso e Edson Fachin. Nada disso. Temer simula as melhores virtudes para o seu próprio julgamento.
No mundo real, Temer é o primeiro presidente da história denunciado por corrupção no exercício do cargo. Ou, por outra, é um réu esperando na fila para acontecer depois que perder as prerrogativas do cargo. No universo da hipocrisia, Temer é um mandatário de mostruário. ''Deixando a modéstia de lado, este será o melhor governo que o país já conheceu”, declarou no discurso para empresários.
Lava Jato: 'Quo vadis?'
Tenho procurado ler e ouvir, tanto quanto posso, experiências de combate à corrupção, sobretudo – é claro – o caso italiano Mani Pulite.
E ando desassossegada.
Em segundo lugar, porque repartem-se em mil pedaços os casos a cargo dos procuradores da Lava Jato. Parece que, cansados da figura meio dândi de Dallagnol, grupos outros fazem coletivas e mais coletivas ora sobre um, ora sobre outro fato investigável, envolvendo empreiteiras que teriam tido ramificações na Lava Jato. Há casos complexos demais como os das universidades federais – cada uma delas por uma razão –, a primeira das quais com o trágico desfecho do suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Depois veio a condução coercitiva na UFMG e agora a operação na UFJF. Recentemente, teve início a investigação sobre coleta de lixo na cidade de São Paulo, o caso do Paulo Preto, envolvendo José Serra, senador por São Paulo, e, ainda relacionado à Odebrecht e à OAS, os supostos desvios milionários do ex-governador da Bahia. Isso sem contar a operação Acrônimo aqui, em Minas, a Zelotes envolvendo fraudes fiscais junto ao Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda. Ufa!!! – será que me esqueci de alguma delas?
Ah, e ainda vem agora o caso Delfim Netto, que o MPF terá de provar ter sido agente público ao tempo de Lula e Dilma...
Posso eventualmente estar cometendo um tremendo erro, mas sempre me acostumei a pensar que problemas devam ser resolvidos um a um. Como numa guerra: se você abre frentes diversas, acaba encurralado, como ocorreu com Hitler com a frente leste-oeste ao mesmo tempo.
Parece-me que tudo está virando uma barafunda, a confundir tudo e todos e num ano de eleições gerais. Somando-se a isso o intrincado panorama do processo penal brasileiro, com seus inúmeros recursos, suas idas e vindas, posso agora afirmar com certeza: por enquanto, só estão ganhando os advogados de renome, aqueles que são lembrados porque possuem as duas qualidades imprescindíveis num defensor: conhecem um a um os magistrados das Cortes superiores e têm capacidade especializada excepcional. Para esses, não fossem também cidadãos deste país infeliz, estariam gozando momentos insuperáveis.
Espero que tenham também consciência cívica!
Sandra Starling
E ando desassossegada.
Uma, pela demora do relator no Supremo, ministro Fachin, que anda a uma velocidade de carroça, no turbilhão de acontecimentos da vida atual. Ao que me consta, até hoje Sua Excelência continua lendo e mandando investigar a montanha de processos relaciona dos ao caso inicial, o dos escândalos na Petrobras. Gente morreu, gente adoeceu, gente continua vivíssima e dando entrevistas a três por dois, enquanto Fachin medita sobre os processos que dependem dele ou de que ele os leve à turma ou ao plenário. Tudo isso contrasta com a rapidez de Joaquim Barbosa ao tempo da Ação 470 e até mesmo do expedito Teori Zavascki, que, num piscar de olhos, levou ao pleno o caso Eduardo Cunha. Agora é um nhe-nhe-nhém que irrita quem quer respirar um pouco, mesmo com o ar irrespirável que paira sobre o Brasil (e o mundo...).
Em segundo lugar, porque repartem-se em mil pedaços os casos a cargo dos procuradores da Lava Jato. Parece que, cansados da figura meio dândi de Dallagnol, grupos outros fazem coletivas e mais coletivas ora sobre um, ora sobre outro fato investigável, envolvendo empreiteiras que teriam tido ramificações na Lava Jato. Há casos complexos demais como os das universidades federais – cada uma delas por uma razão –, a primeira das quais com o trágico desfecho do suicídio do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina. Depois veio a condução coercitiva na UFMG e agora a operação na UFJF. Recentemente, teve início a investigação sobre coleta de lixo na cidade de São Paulo, o caso do Paulo Preto, envolvendo José Serra, senador por São Paulo, e, ainda relacionado à Odebrecht e à OAS, os supostos desvios milionários do ex-governador da Bahia. Isso sem contar a operação Acrônimo aqui, em Minas, a Zelotes envolvendo fraudes fiscais junto ao Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda. Ufa!!! – será que me esqueci de alguma delas?
Ah, e ainda vem agora o caso Delfim Netto, que o MPF terá de provar ter sido agente público ao tempo de Lula e Dilma...
Posso eventualmente estar cometendo um tremendo erro, mas sempre me acostumei a pensar que problemas devam ser resolvidos um a um. Como numa guerra: se você abre frentes diversas, acaba encurralado, como ocorreu com Hitler com a frente leste-oeste ao mesmo tempo.
Parece-me que tudo está virando uma barafunda, a confundir tudo e todos e num ano de eleições gerais. Somando-se a isso o intrincado panorama do processo penal brasileiro, com seus inúmeros recursos, suas idas e vindas, posso agora afirmar com certeza: por enquanto, só estão ganhando os advogados de renome, aqueles que são lembrados porque possuem as duas qualidades imprescindíveis num defensor: conhecem um a um os magistrados das Cortes superiores e têm capacidade especializada excepcional. Para esses, não fossem também cidadãos deste país infeliz, estariam gozando momentos insuperáveis.
Espero que tenham também consciência cívica!
Sandra Starling
Gilmar Mendes, o Neymar do Supremo
Lembra a escalação daquele STF de 2012? Aquele que julgou o mensalão. Barbosa e Gilmar no ataque; Ayres Britto e Celso de Mello no meio de campo; Lewandowski e Dias Toffoli na defesa. Lembra quando Fux deixou o gol para ir matar aquela bola no peito como ponta direita? Ninguém entendia as jogadas de Marco Aurélio. Rosa Weber e Cármen Lúcia discretas, quase sumidas em campo; Peluso no fim da carreira, pegando os atalhos do campo. Eram tempos de ousadia e alegria na Corte Suprema, que vinha de aprovar populares pautas impopulares, como a união civil entre homossexuais e o aborto de anencéfalos.
Seis anos depois, essas e outras pautas encampadas pelo Supremo Tribunal Federal, como questões ligadas à maconha, não foram apreciadas pelo Congresso Nacional— uma exceção é a cota racial, aprovada posteriormente pelo parlamento. Desde então, a ousadia segue como regra entre os ministros da Corte, mas não se pode mais falar exatamente em alegria. Convocados para atuar em praticamente todas as questões da política nacional, eles demonstram muita disposição, mas não podem mais viajar tranquilos de avião.
O craque segue sendo Gilmar Mendes. É o Neymar da Corte. Individualista, abusado, debochado, parte pra cima, não respeita adversário, provoca a torcida, ataca pela esquerda cortando para o meio. Amante da liberdade, joga para si mesmo e distribui habeas corpus pelo campo como se os estivesse colocando com as mãos. Indisciplinado, ele desafia a autoridade da capitã Cármen Lúcia sem se constranger, não respeita esquema tático, não recompõe a lateral, não volta para marcar, mas como joga bonito! Quando disse que a Lei da Ficha Limpa tinha sido escrita por bêbados, foi tido por defensor de bandidos. Hoje, que estão todos embriagados, sem entender como resolver o caso do ex-presidente Lula, Gilmar levanta o cartaz do “eu já sabia”. Foi ele também que alertou para os exageros impraticáveis das Dez Medidas Contra a Corrupção — pelo jeito, só ele podia fazê-lo.
Gilmar brilha tanto que ofusca os companheiros. Marco Aurélio, vez ou outra, dá uma canelada, um bico para fora do estádio, e chama a atenção da torcida. Mas o arrojo de Gilmar só encontra paralelo no tribunal atualmente em Luís Roberto Barroso, que ocupa a parte oposta do gramado, puxando a orelha de diretores-gerais da Polícia Federal, quebrando o sigilo de presidentes da República e provocando o avanço do time sem medir as consequências de possíveis contra-ataques. Barroso faz o processo rolar bonito, mas dá passes arriscados, ousa sem necessidade, faz firula, cruza a bola na frente da própria área. Barroso joga para a torcida, dá carrinho depois que a bola já saiu pela lateral e, assim como Gilmar, costuma esquecer o time. Eles são o contrário de Edson Fachin, um clássico volante injustiçado.
O relator da Lava Jato no Supremo joga para o time. Sem vaidade — os corneteiros dirão que falta-lhe coragem —, Fachin divide as decisões mais importantes com os colegas. Vestiu a camisa da operação, como o finado Teori Zavascki, e não tenta jogadas irresponsáveis, enquanto o colega Luiz Fux passa o jogo todo se olhando no telão, à la Cristiano Ronaldo, e Celso de Mello conta seus últimos dias na Corte oferecendo a bola de segurança, fazendo o pivô e segurando os zagueiros adversários para o resto do time subir ao ataque.
O veterano Celso é a antítese da eterna promessa Dias Toffoli, o errático ponta esquerda que só descobriu que batia na bola com o pé errado depois de entrar em campo como profissional. Nas tabelas com Gilmar Mendes, o prodígio ainda pode chegar a se tornar um Philippe Coutinho, mas joga sob a sombra do estrelato frustrado do ex-corintiano Lulinha. Seu vigor juvenil compete agora com a disposição do novato Alexandre de Moraes para armar jogadas.
Para fechar a escalação atual, faltam apenas Lewandowski, que se acostumou a jogar de peito aberto, sem conseguir esconder o jogo; a capitã relutante Cámen Lúcia, no melhor estilo Thiago Silva; e Rosa Weber, que dá a impressão de ser a única capaz de se constranger genuinamente na Corte na hora de cometer uma falta para matar o contra-ataque adversário.
Os saudosistas dirão que as escalações antigas do STF eram melhores, mas quem as viu jogar? A primeira sessão televisionada do Supremo ocorreu em 23 de setembro de 1992, quando o então presidente Fernando Collor de Mello questionava o início de seu processo de impeachment. Desde então, a Corte, que foi anulada por Getúlio Vargas e pelo Governo militar, virou protagonista da política nacional. O STF se vangloria de ter sido o primeiro tribunal do mundo a transmitir suas sessões por canal próprio, em 2002, e se transformaria no reality show preferido dos brasileiros durante o julgamento do mensalão, quase final de Copa do Mundo.
Hoje, o Brasil tem 210 milhões de presidentes do Supremo, que sabem exatamente como cada ministro joga — ou como deveriam jogar — e que assuntos devem ser pautados pelo tribunal. É saudável, argumenta um pedaço da torcida, enquanto a outra parte da arquibancada grita que a hiperexposição prejudicou a Justiça brasileira na última década. O STF realmente deixou de ser um tribunal estabilizador — ou acomodador — para tumultuar ainda mais o meio de campo. Mas como reclamar dessas aulas públicas de direito ao custo de módicos auxílios-moradia?
Nos últimos 10 anos, a torcida brasileira aprendeu que um único ministro do Supremo pode segurar o quanto quiser a decisão sobre questões decisivas para o país — ou decidir sozinho sobre a mesma questão. Eles também podem mudar o entendimento sobre leis, passando por cima do poder Legislativo. Quanto mais há para aprender? Que os juízes supremos sigam, portanto, deferindo suas liminares, infringindo seus embargos, negando as aparências e disfarçando as evidências diante dos nossos olhos. Por pior que seja para eles e para a própria Justiça, pelo menos a gente pode xingar enquanto acompanha os lances.
O craque segue sendo Gilmar Mendes. É o Neymar da Corte. Individualista, abusado, debochado, parte pra cima, não respeita adversário, provoca a torcida, ataca pela esquerda cortando para o meio. Amante da liberdade, joga para si mesmo e distribui habeas corpus pelo campo como se os estivesse colocando com as mãos. Indisciplinado, ele desafia a autoridade da capitã Cármen Lúcia sem se constranger, não respeita esquema tático, não recompõe a lateral, não volta para marcar, mas como joga bonito! Quando disse que a Lei da Ficha Limpa tinha sido escrita por bêbados, foi tido por defensor de bandidos. Hoje, que estão todos embriagados, sem entender como resolver o caso do ex-presidente Lula, Gilmar levanta o cartaz do “eu já sabia”. Foi ele também que alertou para os exageros impraticáveis das Dez Medidas Contra a Corrupção — pelo jeito, só ele podia fazê-lo.
Gilmar brilha tanto que ofusca os companheiros. Marco Aurélio, vez ou outra, dá uma canelada, um bico para fora do estádio, e chama a atenção da torcida. Mas o arrojo de Gilmar só encontra paralelo no tribunal atualmente em Luís Roberto Barroso, que ocupa a parte oposta do gramado, puxando a orelha de diretores-gerais da Polícia Federal, quebrando o sigilo de presidentes da República e provocando o avanço do time sem medir as consequências de possíveis contra-ataques. Barroso faz o processo rolar bonito, mas dá passes arriscados, ousa sem necessidade, faz firula, cruza a bola na frente da própria área. Barroso joga para a torcida, dá carrinho depois que a bola já saiu pela lateral e, assim como Gilmar, costuma esquecer o time. Eles são o contrário de Edson Fachin, um clássico volante injustiçado.
O relator da Lava Jato no Supremo joga para o time. Sem vaidade — os corneteiros dirão que falta-lhe coragem —, Fachin divide as decisões mais importantes com os colegas. Vestiu a camisa da operação, como o finado Teori Zavascki, e não tenta jogadas irresponsáveis, enquanto o colega Luiz Fux passa o jogo todo se olhando no telão, à la Cristiano Ronaldo, e Celso de Mello conta seus últimos dias na Corte oferecendo a bola de segurança, fazendo o pivô e segurando os zagueiros adversários para o resto do time subir ao ataque.
O veterano Celso é a antítese da eterna promessa Dias Toffoli, o errático ponta esquerda que só descobriu que batia na bola com o pé errado depois de entrar em campo como profissional. Nas tabelas com Gilmar Mendes, o prodígio ainda pode chegar a se tornar um Philippe Coutinho, mas joga sob a sombra do estrelato frustrado do ex-corintiano Lulinha. Seu vigor juvenil compete agora com a disposição do novato Alexandre de Moraes para armar jogadas.
Para fechar a escalação atual, faltam apenas Lewandowski, que se acostumou a jogar de peito aberto, sem conseguir esconder o jogo; a capitã relutante Cámen Lúcia, no melhor estilo Thiago Silva; e Rosa Weber, que dá a impressão de ser a única capaz de se constranger genuinamente na Corte na hora de cometer uma falta para matar o contra-ataque adversário.
Os saudosistas dirão que as escalações antigas do STF eram melhores, mas quem as viu jogar? A primeira sessão televisionada do Supremo ocorreu em 23 de setembro de 1992, quando o então presidente Fernando Collor de Mello questionava o início de seu processo de impeachment. Desde então, a Corte, que foi anulada por Getúlio Vargas e pelo Governo militar, virou protagonista da política nacional. O STF se vangloria de ter sido o primeiro tribunal do mundo a transmitir suas sessões por canal próprio, em 2002, e se transformaria no reality show preferido dos brasileiros durante o julgamento do mensalão, quase final de Copa do Mundo.
Hoje, o Brasil tem 210 milhões de presidentes do Supremo, que sabem exatamente como cada ministro joga — ou como deveriam jogar — e que assuntos devem ser pautados pelo tribunal. É saudável, argumenta um pedaço da torcida, enquanto a outra parte da arquibancada grita que a hiperexposição prejudicou a Justiça brasileira na última década. O STF realmente deixou de ser um tribunal estabilizador — ou acomodador — para tumultuar ainda mais o meio de campo. Mas como reclamar dessas aulas públicas de direito ao custo de módicos auxílios-moradia?
Nos últimos 10 anos, a torcida brasileira aprendeu que um único ministro do Supremo pode segurar o quanto quiser a decisão sobre questões decisivas para o país — ou decidir sozinho sobre a mesma questão. Eles também podem mudar o entendimento sobre leis, passando por cima do poder Legislativo. Quanto mais há para aprender? Que os juízes supremos sigam, portanto, deferindo suas liminares, infringindo seus embargos, negando as aparências e disfarçando as evidências diante dos nossos olhos. Por pior que seja para eles e para a própria Justiça, pelo menos a gente pode xingar enquanto acompanha os lances.
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