Uma das maiores estranhezas vividas por brasileiros nos Estados Unidos é a da mais absoluta ausência de empregados domésticos. De pessoas que fazem coisas pequenas e rotineiras para nós.
Na América, existem “cleaning ladies” - faxineiras horistas -, mas são raras as empregadas multiúso (babás, cozinheiras, confidentes...) como as nossas, não obstante minha duvidosa certeza de que tudo está sempre mudando!
Na minha longa experiência como estudante e professor visitante nos Estados Unidos, testemunhei alguns casos de bolsistas acompanhados de empregadas que mal cabiam nas modestas moradias disponibilizadas pela universidade a qual se associavam. Os locais se assombravam, mas tais auxiliares são indispensáveis para o nosso estilo de vida, porque são eles que limpam os nossos banheiros, fazem as nossas camas, varrem nossas casas, transformam alimento em comida, lavam nossas roupas e nos servem cafezinho, água e sobremesas, tirando e botando na hora certa os pratos da mesa, quando reproduzem um familismo que é parte do nosso modo de ser. São eles que nos fazem companhia e nos escutam nas nossas atribulações. Esse paciência pessoal e sempre generosa com a qual os subordinados nos ouvem, acalentam, obedecem, aconselham, aliviam, sorriem e perdoam, é parte dessas ocupações e são elas, com certeza, que compensam a enorme desigualdade econômica entre nós.
Família pobre recolhendo o produto do trabalho de uma negra, Jean-Baptiste Debret (1827) |
São esses empregados que mantêm a nossa distância do sujo, garantindo nossa superioridade aos nossos egos que o mundo, apesar de toda a corrupção nascida precisamente nesses abismos de desigualdades tidas como naturais, não acabou, mas está - queira Deus - terminando.
De fato, o que seria do sabido se não fosse o trouxa; do senhor se não fosse o escravo; do patrão se não fosse o empregado e da “dona da casa” feminista e emancipada se não fossem as suas criadas...
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Corria o ano de 1979 em Madison, Wisconsin, onde eu servi como professor visitante graças a um generoso e oportuno convite de Thomas Skidmore, tirando-me de um crônico aperto financeiro.
Estamos pai, mãe, filho mais velho, filha e o rebento mais novo assistindo a um filme quando alguém diz:
- Estou louco para comer um sanduíche. Mamãe, você pega um sanduíche pra mim?
- Não vou perder o filme.
- Então minha irmã, você faz esse favor?
- Estou vendo o filme...
- E aí, meu irmãozinho caçula, você faz o sanduíche?
- Não sou emproado...
Diante da súbita consciência da hierarquia entre pais e filhos, entre gêneros e idades, a qual não podia ser sustentada sem uma empregada, surgiu um riso e, em seguida, um pacto. Aqui, nos Estados Unidos, é a gente mesmo quem faz: somos (não é incrível?) nossos próprios empregados. Vamos pausar a televisão e cada qual faz o seu sanduíche.
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Em Berkeley, Califórnia. Um casal com filhos pequenos chegou, causando rumores, com uma criada.
Lídia era impecável. Cozinhava e era carinhosa com as “crianças”. Logo, porém, aprendeu inglês e começou a namorar um americano que se doutorava em matemática. A rotina americana foi fazendo com que os laços de subordinação fossem sendo substituídos por valores igualitários. Os patrões ficaram menos autoritários e Lídia, mais companheira.
Quando ofereceram um jantar para amigos, ordenaram a Lídia que o preparasse. Receberam como resposta a intrusão do individualismo com igualitarismo americano: “Sinto muito, mas não vou poder. Tenho um date com meu namorado, mas eis aqui R$ 20 para vocês comprarem uma pizza!”.
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“Junto e ao alcance da mão”, relata Luccock, “estava pousado um canjirão[= JARRO] d’água. Em certo momento, a dama interrompeu a conversa para gritar por uma outra escrava, que estava em local diferente da casa. Quando a negra entrou no quarto, a senhora lhe disse: ‘Dê-me o canjirão’. Assim fez ela, sua senhora bebeu e o devolveu; a escrava recolocou o vaso onde estava e retirou-se sem que parecesse ter dado conta da estranheza da ordem, estando talvez a repetir o que já fizera milhares de vezes antes”.
É óbvio que a “estranheza” exprime o etnocentrismo de caráter igualitário do observador, abismado com o que percebia como inércia ou preguiça da dona da casa, incapaz de mexer-se para pegar a botija d’água situada ao alcance de sua mão.
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Já o nosso etnocentrismo toma como natural a presença de alguém que faça coisas para nós, garantindo o eixo superior/inferior que é central para o nosso estilo de vida. Será que criados não sabemos quem somos?
Falar em reforma ou intervenção sem enxergar essa matriz hierárquica e interdependente, que junta protocolos oficiais com elos pessoais, é querer continuar enxugando gelo.
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