sexta-feira, 20 de dezembro de 2024
Impunidade em crimes bárbaros mina crença na democracia
Os episódios de impunidade em crimes bárbaros se avolumam numa intensidade que, além de desmoralizar o sistema de Justiça, mina a confiança na democracia. Erra quem não enxerga a correlação. Num par de anos, a proporção de brasileiros que creem no regime como melhor forma de governo caiu 10 pontos percentuais, de 79% para 69%, informou o Datafolha após pesquisa com 2.002 eleitores nos últimos dias 12 e 13 de dezembro.
O sistema eleitoral foi testado, e a transição de poder estressada até o golpe tentado em 8 de janeiro de 2023, ainda sob investigação. Mas a confiança na democracia diminuiu. Noves fora o desapontamento de viúvos do ex-presidente que sonhava permanecer no poder mesmo derrotado nas urnas, há motivos para o desencanto. Todo dia sabemos de um. O mais recente veio da anistia, pelo Superior Tribunal Militar, aos assassinos de Evaldo Rosa em 2019. O músico estava com a família a caminho de um chá de bebê, na Zona Norte do Rio, quando seu carro foi alvejado por tiros de fuzil de homens do Exército. Na cena, morreu também o catador de material reciclável Luciano Macedo, que tentou socorrer a vítima.
Na primeira instância, os oito militares foram condenados a até 31 anos de prisão em regime fechado. Na Justiça Militar, as penas foram reduzidas a um décimo. Os acusados cumprirão, no máximo, três anos e dez meses em regime aberto, somente pelo crime culposo (sem intenção de matar) contra Luciano. Pelo fuzilamento de Evaldo, foram absolvidos.
Luciana Nogueira, viúva de Evaldo, foi a Brasília para audiência de recurso. Viajou com o filho, Davi Bruno, que, aos 7 anos de idade, viu o pai morrer na ação dos militares. Ela não escondeu a desapontamento com a decisão do STM. Cogita até não recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), última instância possível:
— Uma decisão horrível, lamentável, triste. Muito complicado. Mas era um pouco de esperar, porque, no país em que a gente vive, a gente sabe que não existe justiça, principalmente para pobre e preto.
O desabafo de Luciana, mais uma mulher feita ativista pelo luto, ecoa em outras vítimas da brutalidade que não encontraram alento em tribunais. Os policiais que assassinaram o menino João Pedro, aos 14 anos, numa operação mal explicada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, em 2020, acabaram sumariamente absolvidos na primeira instância. Nem a julgamento foram.
O tribunal do júri, que representa a sociedade, condenou por homicídio culposo o policial militar que matou com um tiro nas costas o jovem Johnatha de Oliveira Lima, aos 19 anos, na Favela de Manguinhos, dez anos atrás. Na semana passada, o TJ-RJ acolheu o pedido de um novo julgamento. Noutro caso emblemático, o júri absolveu os sete agentes acusados de participação no assassinato do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, também em 2014, na comunidade Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul carioca.
Cinco anos depois do crime, o PM acusado pelo assassinato da menina Ágatha Félix, aos 8 anos, numa comunidade do Complexo do Alemão, também foi absolvido no mês passado. Os jurados consideraram que o policial não teve intenção de matar a menina, alvejada por um tiro de fuzil nas costas, ao lado da mãe, dentro de uma Kombi, na comunidade onde moravam.
Situações recorrentes de abusos — vide a epidemia de violência policial em São Paulo e na Bahia, para ficar em dois estados — e certeza de impunidade para os culpados consolidam a percepção de anistia recorrente para uns e de dor permanente para outros. Não faltam iniciativas nem alertas sobre quanto a injustiça deteriora a confiança nas instituições. Por conseguinte, na democracia.
Ainda ontem, o TJ-RJ fez um aceno ao respeito às tradições religiosas e culturais no país. O machado de Xangô, símbolo de verdade, justiça e equilíbrio, foi entronizado no hall dos auditórios da sede da Justiça fluminense. É a primeira vez que um objeto sagrado para cultos de matriz africana ganha espaço permanente de exibição. O Oxê, machado de dois gumes do orixá da justiça, foi presente de Arethuza Doria, uma filha de Oyá.
A iniciativa foi negociada com o presidente do TJ-RJ, desembargador Ricardo Rodrigues, pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra do Rio. Realizou-se quase simultaneamente ao julgamento do STF sobre laicidade. Em fins de novembro, o Supremo decidiu que a presença de peças sagradas em prédios e órgãos públicos não fere a laicidade do Estado nem a liberdade de crença, princípios constitucionais. A tese de repercussão geral saiu de ação do Ministério Público Federal contra a presença de símbolos religiosos no TRF-SP. O STF entendeu que há valorização de aspectos culturais da sociedade brasileira, não imposição de fé. Assim, cruzes, imagens e peças sagradas de todos os credos estão permitidos. Oxalá a fé inspire a justiça.
O sistema eleitoral foi testado, e a transição de poder estressada até o golpe tentado em 8 de janeiro de 2023, ainda sob investigação. Mas a confiança na democracia diminuiu. Noves fora o desapontamento de viúvos do ex-presidente que sonhava permanecer no poder mesmo derrotado nas urnas, há motivos para o desencanto. Todo dia sabemos de um. O mais recente veio da anistia, pelo Superior Tribunal Militar, aos assassinos de Evaldo Rosa em 2019. O músico estava com a família a caminho de um chá de bebê, na Zona Norte do Rio, quando seu carro foi alvejado por tiros de fuzil de homens do Exército. Na cena, morreu também o catador de material reciclável Luciano Macedo, que tentou socorrer a vítima.
Na primeira instância, os oito militares foram condenados a até 31 anos de prisão em regime fechado. Na Justiça Militar, as penas foram reduzidas a um décimo. Os acusados cumprirão, no máximo, três anos e dez meses em regime aberto, somente pelo crime culposo (sem intenção de matar) contra Luciano. Pelo fuzilamento de Evaldo, foram absolvidos.
Luciana Nogueira, viúva de Evaldo, foi a Brasília para audiência de recurso. Viajou com o filho, Davi Bruno, que, aos 7 anos de idade, viu o pai morrer na ação dos militares. Ela não escondeu a desapontamento com a decisão do STM. Cogita até não recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF), última instância possível:
— Uma decisão horrível, lamentável, triste. Muito complicado. Mas era um pouco de esperar, porque, no país em que a gente vive, a gente sabe que não existe justiça, principalmente para pobre e preto.
O desabafo de Luciana, mais uma mulher feita ativista pelo luto, ecoa em outras vítimas da brutalidade que não encontraram alento em tribunais. Os policiais que assassinaram o menino João Pedro, aos 14 anos, numa operação mal explicada no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, em 2020, acabaram sumariamente absolvidos na primeira instância. Nem a julgamento foram.
O tribunal do júri, que representa a sociedade, condenou por homicídio culposo o policial militar que matou com um tiro nas costas o jovem Johnatha de Oliveira Lima, aos 19 anos, na Favela de Manguinhos, dez anos atrás. Na semana passada, o TJ-RJ acolheu o pedido de um novo julgamento. Noutro caso emblemático, o júri absolveu os sete agentes acusados de participação no assassinato do dançarino Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, também em 2014, na comunidade Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul carioca.
Cinco anos depois do crime, o PM acusado pelo assassinato da menina Ágatha Félix, aos 8 anos, numa comunidade do Complexo do Alemão, também foi absolvido no mês passado. Os jurados consideraram que o policial não teve intenção de matar a menina, alvejada por um tiro de fuzil nas costas, ao lado da mãe, dentro de uma Kombi, na comunidade onde moravam.
Situações recorrentes de abusos — vide a epidemia de violência policial em São Paulo e na Bahia, para ficar em dois estados — e certeza de impunidade para os culpados consolidam a percepção de anistia recorrente para uns e de dor permanente para outros. Não faltam iniciativas nem alertas sobre quanto a injustiça deteriora a confiança nas instituições. Por conseguinte, na democracia.
Ainda ontem, o TJ-RJ fez um aceno ao respeito às tradições religiosas e culturais no país. O machado de Xangô, símbolo de verdade, justiça e equilíbrio, foi entronizado no hall dos auditórios da sede da Justiça fluminense. É a primeira vez que um objeto sagrado para cultos de matriz africana ganha espaço permanente de exibição. O Oxê, machado de dois gumes do orixá da justiça, foi presente de Arethuza Doria, uma filha de Oyá.
A iniciativa foi negociada com o presidente do TJ-RJ, desembargador Ricardo Rodrigues, pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra do Rio. Realizou-se quase simultaneamente ao julgamento do STF sobre laicidade. Em fins de novembro, o Supremo decidiu que a presença de peças sagradas em prédios e órgãos públicos não fere a laicidade do Estado nem a liberdade de crença, princípios constitucionais. A tese de repercussão geral saiu de ação do Ministério Público Federal contra a presença de símbolos religiosos no TRF-SP. O STF entendeu que há valorização de aspectos culturais da sociedade brasileira, não imposição de fé. Assim, cruzes, imagens e peças sagradas de todos os credos estão permitidos. Oxalá a fé inspire a justiça.
Justiça Militar dá show de corporativismo diante da viúva
Quantos tiros um grupo de militares pode disparar contra uma família de civis desarmados sem cumprir pena na cadeia? O Superior Tribunal Militar liberou a marca de 257. Na noite de quarta, a corte reduziu a punição dos agentes que mataram o músico Evaldo Rosa e o catador Luciano Macedo, em 2019. Eles passarão três anos em regime aberto.
O julgamento consagrou a tese de que os oficiais, cabos e soldados que participavam da operação no Rio não tinham a intenção de matar ninguém, com tiros dados num contexto de confronto com bandidos. Analisar as circunstâncias de dolo e culpa de agentes de segurança é dever de qualquer juiz. Os ministros vencedores, porém, preferiram tratar os atiradores como vítimas.
O tenente-brigadeiro Carlos Augusto Oliveira, relator do caso, aceitou a defesa dos militares, que dizem ter confundido o carro de Evaldo com um veículo usado por bandidos. Ele afirmou que os agentes tentavam "conter uma ação criminosa, ainda que imaginária". Num exercício de especulação, disse ainda que o músico pode ter sido morto numa troca de tiros com criminosos, sem a certeza de que os disparos partiram dos agentes do Exército.
No voto, o relator fez uma ponderação. Apontou que o grupo de militares errou na identificação do carro, deixou de verificar se Evaldo estava armado e não considerou a opção de ferir o motorista em vez de atirar para matar. Faltou explicar se alguma parte da abordagem estava certa.
Outros ministros encenaram um show de corporativismo diante da viúva e do filho de Evaldo. Revisor do processo, José Coêlho Ferreira descreveu a situação das mortes como "uma grande confusão". O general Lúcio Mário de Barros Góes disse que lamentava sentenciar "pessoas de bem pela trágica ocorrência".
A índole dos agentes não estava em julgamento. A única questão a ser considerada é se um grupamento que ignora as circunstâncias de uma abordagem e dispara 257 tiros assume ou não a intenção de matar. Militares "de bem" podem cometer erros, mas precisam ser responsabilizados na medida de suas ações. A Justiça Militar deu todas as provas de que não tem interesse em submeter os seus a essa provação.
O julgamento consagrou a tese de que os oficiais, cabos e soldados que participavam da operação no Rio não tinham a intenção de matar ninguém, com tiros dados num contexto de confronto com bandidos. Analisar as circunstâncias de dolo e culpa de agentes de segurança é dever de qualquer juiz. Os ministros vencedores, porém, preferiram tratar os atiradores como vítimas.
O tenente-brigadeiro Carlos Augusto Oliveira, relator do caso, aceitou a defesa dos militares, que dizem ter confundido o carro de Evaldo com um veículo usado por bandidos. Ele afirmou que os agentes tentavam "conter uma ação criminosa, ainda que imaginária". Num exercício de especulação, disse ainda que o músico pode ter sido morto numa troca de tiros com criminosos, sem a certeza de que os disparos partiram dos agentes do Exército.
No voto, o relator fez uma ponderação. Apontou que o grupo de militares errou na identificação do carro, deixou de verificar se Evaldo estava armado e não considerou a opção de ferir o motorista em vez de atirar para matar. Faltou explicar se alguma parte da abordagem estava certa.
Outros ministros encenaram um show de corporativismo diante da viúva e do filho de Evaldo. Revisor do processo, José Coêlho Ferreira descreveu a situação das mortes como "uma grande confusão". O general Lúcio Mário de Barros Góes disse que lamentava sentenciar "pessoas de bem pela trágica ocorrência".
A índole dos agentes não estava em julgamento. A única questão a ser considerada é se um grupamento que ignora as circunstâncias de uma abordagem e dispara 257 tiros assume ou não a intenção de matar. Militares "de bem" podem cometer erros, mas precisam ser responsabilizados na medida de suas ações. A Justiça Militar deu todas as provas de que não tem interesse em submeter os seus a essa provação.
Congresso, o dinheiro acabou!
A festa acabou, o povo sumiu e anoite esfriou, parafraseando Carlos Drummond de Andrade. Entretanto, o Congresso Nacional continua coma faca no pescoço do ministro da Fazenda, na busca por mais e mais emendas parlamentares e benesses. É preciso aprovar as ações de ajuste fiscal e retomar a responsabilidade com o dinheiro público.
A farra com as emendas parlamentares chegou ao limite de ensejara atuação do próprio Supremo Tribunal Federal( STF ), a partir da correta decisão do ministro Flávio Dino. Ela obriga à transparência e delimita os parâmetros para organizar o coreto. Contudo, em plena votação do pacote de ajuste fiscal, as lideranças do Congresso partilham na penumbra vultosos recursos públicos – antes, vale dizer, bloqueados pela atuação do STF.
A falta de republicanismo é flagrante. Mas nãoé só um problema ético, mora leque ameaça a democracia, no sentido de abalar o processo orçamentário típico. É também o sintoma de um sistema político doente ecada vez mais distante das reais necessidades do povo brasileiro. Veja-se, por exemplo, a matéria do programa Fantástico, da TV Globo, que mostrou orecapeamento asfáltico financiado por emendas, em determinadas localidades, em condições mais parecidas com um “chiclete”. Para onde foi o dinheiro?
A lambança promovida pelo Congresso tem consequências sobre a economia, para além do mau uso do recurso público, cada vez mais escasso em um contexto de dívida pública crescente. O mercado precifica a irresponsabilidade fiscal nos juros e dólar mais caros. Não tem nada a ver com o maquiavelismo do mercado sugerido por lideranças petistas nos últimos dias. Ora, vejam, não temos hoje no Banco Central diversos diretores apontados pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Como vão culpar, agora, o competente Roberto Campos Neto? Sinuca de bico para a retórica de boteco adotada por esse setor da política que, aliás, compõe a própria base governista.
O País precisa urgentemente de um choque fiscal. A dívida pública vai alcançar os 80% do Produto Interno Bruto (PIB), rapidamente, e a tarefa de estabilizar esse indicador poderá transformar-se em missão impossível. Tudo depende da elite política do País e de sua consciência. O dinheiro acabou, nobres parlamentares. Já rasparam o tacho, já distorceram a reforma tributária do consumo enfiando mais benefícios para a Zona Franca de Manaus e diversos setores amigos do rei. O que mais os senhores pretendem?
Agora, desidratam os projetos e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enviada pelo Executivo para providenciar um ajuste fiscal mínimo. Atuam como se Brasília fosse uma espécie de bolha apartada da sociedade brasileira e da economia. Enquanto a pobreza e a miséria ainda envergonham a Nação, o Congresso dá-se ao luxo de praticar o proselitismo, mas não por ele mesmo; pior, tendo em vista mascarar seus reais objetivos de disparar mais e mais recursos por meio de emendas, descumprindo a decisão do STF.
Até quando o País aguentará que certas saúvas sigam trabalhando para acabar com a prosperidade, o crescimento econômico e a normalidade dos mercados? Estamos chegando a um limite preocupante. O ministro da Fazenda parece voz isolada. O presidente da República tem de entrar no jogo e mostrar de que lado está: do populismo barato, com medidas impensadas para ampliar a isenção do Imposto de Renda, ou do ajuste das contas e da responsabilidade que ele mesmo chegou a defender e a praticar?
Deixar nas mãos do Banco Central a tarefa de restabelecer a normalidade na economia nacional vai significar juros nas alturas e crescimento econômico no chão. A elevação da Selic é o instrumento de que a autoridade monetária dispõe, bem como as intervenções no mercado de dólar. Mas o uso dessa caixa de ferramentas não servirá para muita coisa se o Congresso não avançar na direção do ajuste fiscal proposto pelo governo.
É hora de apoiar o programa de contenção de gastos. Mais do que isso, de aprimorá-lo e de ampliá-lo. A dívida pública não vai se estabilizar apenas com as ações anunciadas. Sobretudo, não estacionará na presença de juros ainda mais elevados, já contratados em 14,25% ao ano após a última decisão do Comitê de Política Monetária (Copom).
Para ter claro, o déficit primário projetado para o ano que vem, mesmo sob os efeitos do novo pacote, tende a ficar acima de R$ 90 bilhões. A meta zero, como se vê, está muito distante. Pior, para estabilizar a dívida/PIB, é preciso produzir superávit primário. Com juros reais de 10%, nível para o qual estamos caminhando sem atalhos, mesmo que a economia cresça em torno de 3%, seria preciso gerar superávit primário de mais de 5,5% do PIB. É impraticável. A conta evidencia o tamanho do pesadelo em que nos metemos por pura inépcia.
O governo tem culpa na demora para enviar as medidas de ajuste, na contratação de gastos desnecessários desde o início do mandato atual e na falta de foco na tesoura. Entretanto, tomou uma decisão correta, agora, ao enviar um pacote de contenção de gastos. O Congresso tem de acordar para a realidade e deixar de lado a mesquinharia que parece ter dominado o Plenário Ulysses Guimarães.
Felipe Salto
A farra com as emendas parlamentares chegou ao limite de ensejara atuação do próprio Supremo Tribunal Federal( STF ), a partir da correta decisão do ministro Flávio Dino. Ela obriga à transparência e delimita os parâmetros para organizar o coreto. Contudo, em plena votação do pacote de ajuste fiscal, as lideranças do Congresso partilham na penumbra vultosos recursos públicos – antes, vale dizer, bloqueados pela atuação do STF.
A falta de republicanismo é flagrante. Mas nãoé só um problema ético, mora leque ameaça a democracia, no sentido de abalar o processo orçamentário típico. É também o sintoma de um sistema político doente ecada vez mais distante das reais necessidades do povo brasileiro. Veja-se, por exemplo, a matéria do programa Fantástico, da TV Globo, que mostrou orecapeamento asfáltico financiado por emendas, em determinadas localidades, em condições mais parecidas com um “chiclete”. Para onde foi o dinheiro?
A lambança promovida pelo Congresso tem consequências sobre a economia, para além do mau uso do recurso público, cada vez mais escasso em um contexto de dívida pública crescente. O mercado precifica a irresponsabilidade fiscal nos juros e dólar mais caros. Não tem nada a ver com o maquiavelismo do mercado sugerido por lideranças petistas nos últimos dias. Ora, vejam, não temos hoje no Banco Central diversos diretores apontados pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva? Como vão culpar, agora, o competente Roberto Campos Neto? Sinuca de bico para a retórica de boteco adotada por esse setor da política que, aliás, compõe a própria base governista.
O País precisa urgentemente de um choque fiscal. A dívida pública vai alcançar os 80% do Produto Interno Bruto (PIB), rapidamente, e a tarefa de estabilizar esse indicador poderá transformar-se em missão impossível. Tudo depende da elite política do País e de sua consciência. O dinheiro acabou, nobres parlamentares. Já rasparam o tacho, já distorceram a reforma tributária do consumo enfiando mais benefícios para a Zona Franca de Manaus e diversos setores amigos do rei. O que mais os senhores pretendem?
Agora, desidratam os projetos e a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) enviada pelo Executivo para providenciar um ajuste fiscal mínimo. Atuam como se Brasília fosse uma espécie de bolha apartada da sociedade brasileira e da economia. Enquanto a pobreza e a miséria ainda envergonham a Nação, o Congresso dá-se ao luxo de praticar o proselitismo, mas não por ele mesmo; pior, tendo em vista mascarar seus reais objetivos de disparar mais e mais recursos por meio de emendas, descumprindo a decisão do STF.
Até quando o País aguentará que certas saúvas sigam trabalhando para acabar com a prosperidade, o crescimento econômico e a normalidade dos mercados? Estamos chegando a um limite preocupante. O ministro da Fazenda parece voz isolada. O presidente da República tem de entrar no jogo e mostrar de que lado está: do populismo barato, com medidas impensadas para ampliar a isenção do Imposto de Renda, ou do ajuste das contas e da responsabilidade que ele mesmo chegou a defender e a praticar?
Deixar nas mãos do Banco Central a tarefa de restabelecer a normalidade na economia nacional vai significar juros nas alturas e crescimento econômico no chão. A elevação da Selic é o instrumento de que a autoridade monetária dispõe, bem como as intervenções no mercado de dólar. Mas o uso dessa caixa de ferramentas não servirá para muita coisa se o Congresso não avançar na direção do ajuste fiscal proposto pelo governo.
É hora de apoiar o programa de contenção de gastos. Mais do que isso, de aprimorá-lo e de ampliá-lo. A dívida pública não vai se estabilizar apenas com as ações anunciadas. Sobretudo, não estacionará na presença de juros ainda mais elevados, já contratados em 14,25% ao ano após a última decisão do Comitê de Política Monetária (Copom).
Para ter claro, o déficit primário projetado para o ano que vem, mesmo sob os efeitos do novo pacote, tende a ficar acima de R$ 90 bilhões. A meta zero, como se vê, está muito distante. Pior, para estabilizar a dívida/PIB, é preciso produzir superávit primário. Com juros reais de 10%, nível para o qual estamos caminhando sem atalhos, mesmo que a economia cresça em torno de 3%, seria preciso gerar superávit primário de mais de 5,5% do PIB. É impraticável. A conta evidencia o tamanho do pesadelo em que nos metemos por pura inépcia.
O governo tem culpa na demora para enviar as medidas de ajuste, na contratação de gastos desnecessários desde o início do mandato atual e na falta de foco na tesoura. Entretanto, tomou uma decisão correta, agora, ao enviar um pacote de contenção de gastos. O Congresso tem de acordar para a realidade e deixar de lado a mesquinharia que parece ter dominado o Plenário Ulysses Guimarães.
Felipe Salto
2024, vai e não voltes
Olho para 2024 e vejo uma galeria de horrores.
A guerra da Ucrânia continuou e até se intensificou, com soldados norte-coreanos servindo de carne para canhão de Putin e ataques ucranianos dentro das fronteiras russas. O conflito Israel e Hamas tornou-se um conflito também com o Hezbollah no Líbano e, em baixa intensidade (pelo menos oficialmente), com o Irã. Cerca de cem reféns continuam aprisionados e maltratados em Gaza, incluindo um bebé de um ano, uma criança e a mãe de ambos. Gaza foi praticamente terraplanada e as mortes e as consequências para a população, também incluindo crianças, e mesmo descontando as contas aldrabadas do Hamas e das ONG amigas, são de gelar o coração.
Um agressor sexual foi eleito (pela segunda vez) para a Casa Branca. A Síria depôs um ditador sanguinário, expôs involuntariamente a fraqueza russa e iraniana, mas dificilmente terá um futuro político risonho à espreita.
No meio deste vendaval internacional, dois acontecimentos mais específicos, mais micro, mostram um contínuo preocupante entre a amoralidade individual, a comunitária e a transnacional. O primeiro foi de Lily Phillips. (Não sei como a descrever. Influencer sexual? Estrela de pornografia na plataforma Only Fans? ‘Trabalhadora do sexo’, eufemismo para mulher que se prostitui?) Esta jovem adulta, com centenas de milhares de seguidores no Only Fans, promoveu um evento onde teve sexo pago com 100 homens num dia. E agora prepara-se para o ainda mais apoteótico acontecimento de ter sexo com 1000 homens num dia.
Para celebrar tal feito, fez-se o documentário (traduzo) ‘Dormi com 100 homens num dia”. Neste, Lily Phillips termina a chorar contando a sua experiência. Foi mais ‘intenso’ do que estava à espera, diz e começa a chorar. ‘Não é para as fracas’ e ‘’não sei se recomendo’ – outras expressões que nos ofereceu. Também assevera que ‘foi duro’ e que estava ‘robótica’. Não quero desta vez entrar na discussão da prostituição ser um ‘trabalho sexual’ ou uma exploração de mulheres pobres (que não é o caso de Lily Phillips).
Uma coisa é certa: Lily Phillips, com ‘robótica’, ‘foi duro’ e ‘não sei se recomendo’, não estava a descrever nenhuma experiência sexual agradável. Na verdade, descreve algo parecido com o que contam as mulheres que se prostituem por não terem outra alternativa. Vários homens não pararam a interação sexual depois dos poucos minutos alocados a cada um. Phillips só se recorda de seis a dez homens dos cem com quem teve sexo. Se não houvesse vídeos, não teria registo no cérebro do que aconteceu. Ora isto é a típica memória fragmentada (ou apagada) dos eventos traumáticos.
Donde, o apoteótico feito de Lily Phillips não tem nada que ver com libertação e a liberdade sexual das mulheres, que pretende tirar a sexualidade feminina só dos casamentos e da procriação, tornar menos espartilhada a relação das mulheres com o seu corpo e o sexo mais frequente e prazenteiro. Não há neste feito de Phillips, e menos ainda no documentário, nada de empoderador ou libertador para as mulheres.
E, se devemos torcer o nariz aos homens que acedem participar em sexo nestes termos, também não podemos isentar Phillips de críticas pelos seus atos, de resto publicitados. Imaginemos o escândalo (justificado) se um misógino do calibre de Andrew Tate tivesse sexo com cem mulheres num dia e fizesse documentário a seguir. Lily Phillips pode ter questões de saúde mental. Porém saltam igualmente perguntas sobre a necessidade patológica de fama neste mundo digital e sobre ideias cada vez mais absurdas e arrepiantes para sobressair (porque o que é moderado é banal). De qualquer maneira, é perturbador.
O segundo acontecimento: o assassínio de Brian Thompson CEO da seguradora de saúde americana United Healthcare, aparentemente por Luigi Mangione, jovem de Baltimore proveniente de uma família endinheirada. Muita gente nas redes sociais acorreu a celebrar este assassínio e o seu provável autor. É certo: as redes sociais potenciam a polarização e a radicalização. Contudo, a apologia de violência gráfica e mortal é todo um outro nível – e revela como a esquerda vai por caminhos de extremismo tal qual a direita.
Mas pior que as reações populares a este assassínio foram as reações de políticos. Elizabeth Warren, senadora democrata, comentou ‘people can only be pushed so far’. Ou seja, as pessoas só podem ser atropeladas até certo ponto. Além desse ponto a reação é sempre ao som de tambores. Warren tem a sua razão. Sobretudo – como em temas de saúde – se se trata de assuntos de dignidade humana e de respeito (ou desrespeito) básico por outro ser humano. Os torcionários talentosos, digamos assim, têm essa noção: os abusos têm de ficar ali numa área q.b., ou geram reação incontrolável.
Bernie Sanders veio defender o comentário de Warren. Ambos sancionaram tacitamente, portanto, um assassínio ideológico. A partir de agora deve-se bater palmas quando um executivo de uma empresa poderosa for assassinado.
A solidariedade assassina de Warren e Sanders é tanto mais indecorosa quanto a distópica política de saúde americana, assente em seguros de saúde e empresas com pouca regulação quanto ao que têm de cobrir e ao que podem recusar, é responsabilidade dos políticos – tanto republicanos como democratas –, e inclusive dos eleitores (de ambos os partidos) preferindo pagar impostos mais baixos que aumentá-los para acomodar gastos públicos significativos com saúde, não de um executivo – mesmo se de seguradora abutre. Os Estados Unidos têm uma mortalidade materna mais alta que qualquer país desenvolvido. Caso único no mundo fora guerras, a esperança média de vida à nascença tem decrescido. Tudo resultado dos deficientes cuidados de saúde. Diria eu que são problemas de magnitude para governantes e legisladores resolverem; empresas – e pouco reguladas – não conseguem (nem têm de).
Aplaudir assassinatos e assassinos. Celebrar a prostituição de mulheres. Confesso-me desalinhada com o estado de espírito do mundo nos finais de 2024. Boa notícia neste fim de ano só mesmo a do aumento da leitura entre os mais jovens. Ler ficção é um instrumento perfeito para desenvolver empatia. Talvez evitasse Luigi Mangione e os seus adoradores. Já a falta de amor próprio de Lily Phillips vai além do poder da leitura.
Maria João Marques
A guerra da Ucrânia continuou e até se intensificou, com soldados norte-coreanos servindo de carne para canhão de Putin e ataques ucranianos dentro das fronteiras russas. O conflito Israel e Hamas tornou-se um conflito também com o Hezbollah no Líbano e, em baixa intensidade (pelo menos oficialmente), com o Irã. Cerca de cem reféns continuam aprisionados e maltratados em Gaza, incluindo um bebé de um ano, uma criança e a mãe de ambos. Gaza foi praticamente terraplanada e as mortes e as consequências para a população, também incluindo crianças, e mesmo descontando as contas aldrabadas do Hamas e das ONG amigas, são de gelar o coração.
Um agressor sexual foi eleito (pela segunda vez) para a Casa Branca. A Síria depôs um ditador sanguinário, expôs involuntariamente a fraqueza russa e iraniana, mas dificilmente terá um futuro político risonho à espreita.
No meio deste vendaval internacional, dois acontecimentos mais específicos, mais micro, mostram um contínuo preocupante entre a amoralidade individual, a comunitária e a transnacional. O primeiro foi de Lily Phillips. (Não sei como a descrever. Influencer sexual? Estrela de pornografia na plataforma Only Fans? ‘Trabalhadora do sexo’, eufemismo para mulher que se prostitui?) Esta jovem adulta, com centenas de milhares de seguidores no Only Fans, promoveu um evento onde teve sexo pago com 100 homens num dia. E agora prepara-se para o ainda mais apoteótico acontecimento de ter sexo com 1000 homens num dia.
Para celebrar tal feito, fez-se o documentário (traduzo) ‘Dormi com 100 homens num dia”. Neste, Lily Phillips termina a chorar contando a sua experiência. Foi mais ‘intenso’ do que estava à espera, diz e começa a chorar. ‘Não é para as fracas’ e ‘’não sei se recomendo’ – outras expressões que nos ofereceu. Também assevera que ‘foi duro’ e que estava ‘robótica’. Não quero desta vez entrar na discussão da prostituição ser um ‘trabalho sexual’ ou uma exploração de mulheres pobres (que não é o caso de Lily Phillips).
Uma coisa é certa: Lily Phillips, com ‘robótica’, ‘foi duro’ e ‘não sei se recomendo’, não estava a descrever nenhuma experiência sexual agradável. Na verdade, descreve algo parecido com o que contam as mulheres que se prostituem por não terem outra alternativa. Vários homens não pararam a interação sexual depois dos poucos minutos alocados a cada um. Phillips só se recorda de seis a dez homens dos cem com quem teve sexo. Se não houvesse vídeos, não teria registo no cérebro do que aconteceu. Ora isto é a típica memória fragmentada (ou apagada) dos eventos traumáticos.
Donde, o apoteótico feito de Lily Phillips não tem nada que ver com libertação e a liberdade sexual das mulheres, que pretende tirar a sexualidade feminina só dos casamentos e da procriação, tornar menos espartilhada a relação das mulheres com o seu corpo e o sexo mais frequente e prazenteiro. Não há neste feito de Phillips, e menos ainda no documentário, nada de empoderador ou libertador para as mulheres.
E, se devemos torcer o nariz aos homens que acedem participar em sexo nestes termos, também não podemos isentar Phillips de críticas pelos seus atos, de resto publicitados. Imaginemos o escândalo (justificado) se um misógino do calibre de Andrew Tate tivesse sexo com cem mulheres num dia e fizesse documentário a seguir. Lily Phillips pode ter questões de saúde mental. Porém saltam igualmente perguntas sobre a necessidade patológica de fama neste mundo digital e sobre ideias cada vez mais absurdas e arrepiantes para sobressair (porque o que é moderado é banal). De qualquer maneira, é perturbador.
O segundo acontecimento: o assassínio de Brian Thompson CEO da seguradora de saúde americana United Healthcare, aparentemente por Luigi Mangione, jovem de Baltimore proveniente de uma família endinheirada. Muita gente nas redes sociais acorreu a celebrar este assassínio e o seu provável autor. É certo: as redes sociais potenciam a polarização e a radicalização. Contudo, a apologia de violência gráfica e mortal é todo um outro nível – e revela como a esquerda vai por caminhos de extremismo tal qual a direita.
Mas pior que as reações populares a este assassínio foram as reações de políticos. Elizabeth Warren, senadora democrata, comentou ‘people can only be pushed so far’. Ou seja, as pessoas só podem ser atropeladas até certo ponto. Além desse ponto a reação é sempre ao som de tambores. Warren tem a sua razão. Sobretudo – como em temas de saúde – se se trata de assuntos de dignidade humana e de respeito (ou desrespeito) básico por outro ser humano. Os torcionários talentosos, digamos assim, têm essa noção: os abusos têm de ficar ali numa área q.b., ou geram reação incontrolável.
Bernie Sanders veio defender o comentário de Warren. Ambos sancionaram tacitamente, portanto, um assassínio ideológico. A partir de agora deve-se bater palmas quando um executivo de uma empresa poderosa for assassinado.
A solidariedade assassina de Warren e Sanders é tanto mais indecorosa quanto a distópica política de saúde americana, assente em seguros de saúde e empresas com pouca regulação quanto ao que têm de cobrir e ao que podem recusar, é responsabilidade dos políticos – tanto republicanos como democratas –, e inclusive dos eleitores (de ambos os partidos) preferindo pagar impostos mais baixos que aumentá-los para acomodar gastos públicos significativos com saúde, não de um executivo – mesmo se de seguradora abutre. Os Estados Unidos têm uma mortalidade materna mais alta que qualquer país desenvolvido. Caso único no mundo fora guerras, a esperança média de vida à nascença tem decrescido. Tudo resultado dos deficientes cuidados de saúde. Diria eu que são problemas de magnitude para governantes e legisladores resolverem; empresas – e pouco reguladas – não conseguem (nem têm de).
Aplaudir assassinatos e assassinos. Celebrar a prostituição de mulheres. Confesso-me desalinhada com o estado de espírito do mundo nos finais de 2024. Boa notícia neste fim de ano só mesmo a do aumento da leitura entre os mais jovens. Ler ficção é um instrumento perfeito para desenvolver empatia. Talvez evitasse Luigi Mangione e os seus adoradores. Já a falta de amor próprio de Lily Phillips vai além do poder da leitura.
Maria João Marques
O Natal que se perdeu
Sou de uma geração, a do fim da Segunda Guerra Mundial, que ainda conheceu o Natal cristão. Nós não sabíamos, mas era um Natal agônico e residual, que se transfigurava lentamente. Era uma celebração, uma festa de família, que juntava ainda mais o que já estava junto. Era um momento de comunhão no almoço natalino que seguia tradições de família até nos ingredientes à mesa. Cada alimento do almoço de Natal era um alimento ritual.
Mesmo a taça de vinho tinto, feito em casa por meu avô, que se recusava a servir e a tomar vinho comercial. Temia os vinhos “batizados”, os que, dizia, haviam recebido acréscimos indevidos que afetavam a pureza da bebida.
Mesmo as crianças recebiam sua pequena porção de vinho, misturado com um pouco de água e um pouco de açúcar. Para que aprendessem a consumi-lo, como alimento que era na cultura camponesa de meus pais e avós.
Ainda criança, via meu avô, em determinada época do ano, ficar de ceroulas, lavar os pés e as pernas, as mãos e os braços, entrar na pipa em que depositara a uva e pisá-la em roda, numa espécie de dança, em que ia e voltava.
Depois, levá-la, rodando-a, para o escuro cômodo de fundo de quintal, que era também o de sua oficina de carpinteiro. Acompanhado dos dois netos, visitava-o todos os dias de manhã para ouvir o som da fermentação e avaliar o ponto em que se encontrava.
Em determinado dia, com um copo na mão, abria uma torneira da parte inferior da pipa, a uns 20 centímetros acima da base, para reter no fundo a borra da fermentação. Recolhia um pouco do vinho em processo de fabricação, sentia o aroma, olhava o copo atentamente contra a luz várias vezes e voltava para dentro de casa. Comentava com minha avó o resultado da verificação.
Até a manhã em que o vinho já estava com uma cor rubi, lindíssima. Punha um gole na boca, demorava provando-o e dizia a meu irmão e a mim, de 3 e 5 anos idade: “Está pronto”.
Nessa altura já havia fervido as rolhas e lavado com água fervente as garrafas em que o vinho seria engarrafado. Era o vinho de dois Natais depois. O do Natal daquele ano fora feito dois anos antes. As garrafas eram devidamente enterradas na areia do porão da casa para evitar a oxidação do vinho.
O Natal, portanto, começava dois anos antes, ciclos natalinos de datas diversas sobrepondo-se, fluindo aos poucos, conforme o ritmo da natureza. Era o tempo litúrgico da tradição e do respeito pelo sagrado.
O dia a dia não era profano. O sagrado regulava o cotidiano. À noite, após o jantar, meus avós e os netos, quando estávamos com eles, rezavam o terço. Ao deitarem eles e os netos rezavam o “Com Deus me deito e com Deus me levanto”.
Minha avó ia à missa todos os dias, logo cedo. Confessava e comungava. Foi assim na segunda-feira em que após o café da manhã levantou-se para lavar a louça e começar a fazer o almoço. Deu o primeiro passo e caiu morta. Estava preparada segundo as regras daquele mundo em que não havia separação entre profano e sagrado, o lento e cauteloso mundo da tradição.
Aquele mundo terminava. Vi isso com a chegada do Papai Noel, um ser de importação, a trazer consigo neve artificial feita de algodão. Ele era o agente de transformação dos brasileiros em estrangeiros. Usurpara o lugar dos Reis Magos, símbolos do ciclo natalino, o da transição do ano velho para o ano novo.
Os pais tentavam infiltrar no tradicionalismo dos costumes a estranhíssima figura de velho barbudo. Entrava em casa sorrateiramente, durante a noite de 24 de dezembro, para premiar cada criança com o brinquedo que havia pedido ou castigá-la com brinquedo diferente do solicitado.
Curiosamente, os filhos das famílias de operários, a maioria do bairro fabril em que eu morava, um bairro de muitas e grandes fábricas, nunca recebiam o que haviam pedido que os pais encomendassem de Papai Noel. Os filhos da meia dúzia de pequenos comerciantes do bairro recebiam exatamente o que pediram. Não raro, mais de um presente.
Aos 5 anos de idade, eu desconfiava que Papai Noel não gosta de quem trabalha e que quem trabalha se torna pobre. Para mim era difícil aceitar que meu presente fosse, portanto, um castigo.
Minha mãe, que tinha 3 meses de idade quando a família de meus avós imigrou para o Brasil, na imigração subvencionada para trabalhar como colonos em fazenda de café do interior, ainda conheceu antigos escravos que continuavam a trabalhar nos cafezais.
Ela cresceu convencida de que as pessoas ficavam negras por trabalhar no café. Tinha pavor de tomar café e em consequência tornar-se negra como os antigos escravos. Nunca me disse nada, mas me dava a impressão de que ela achava que o café continha a mandinga da escravidão.
José de Souza Martins
Mesmo a taça de vinho tinto, feito em casa por meu avô, que se recusava a servir e a tomar vinho comercial. Temia os vinhos “batizados”, os que, dizia, haviam recebido acréscimos indevidos que afetavam a pureza da bebida.
Mesmo as crianças recebiam sua pequena porção de vinho, misturado com um pouco de água e um pouco de açúcar. Para que aprendessem a consumi-lo, como alimento que era na cultura camponesa de meus pais e avós.
Ainda criança, via meu avô, em determinada época do ano, ficar de ceroulas, lavar os pés e as pernas, as mãos e os braços, entrar na pipa em que depositara a uva e pisá-la em roda, numa espécie de dança, em que ia e voltava.
Depois, levá-la, rodando-a, para o escuro cômodo de fundo de quintal, que era também o de sua oficina de carpinteiro. Acompanhado dos dois netos, visitava-o todos os dias de manhã para ouvir o som da fermentação e avaliar o ponto em que se encontrava.
Em determinado dia, com um copo na mão, abria uma torneira da parte inferior da pipa, a uns 20 centímetros acima da base, para reter no fundo a borra da fermentação. Recolhia um pouco do vinho em processo de fabricação, sentia o aroma, olhava o copo atentamente contra a luz várias vezes e voltava para dentro de casa. Comentava com minha avó o resultado da verificação.
Até a manhã em que o vinho já estava com uma cor rubi, lindíssima. Punha um gole na boca, demorava provando-o e dizia a meu irmão e a mim, de 3 e 5 anos idade: “Está pronto”.
Nessa altura já havia fervido as rolhas e lavado com água fervente as garrafas em que o vinho seria engarrafado. Era o vinho de dois Natais depois. O do Natal daquele ano fora feito dois anos antes. As garrafas eram devidamente enterradas na areia do porão da casa para evitar a oxidação do vinho.
O Natal, portanto, começava dois anos antes, ciclos natalinos de datas diversas sobrepondo-se, fluindo aos poucos, conforme o ritmo da natureza. Era o tempo litúrgico da tradição e do respeito pelo sagrado.
O dia a dia não era profano. O sagrado regulava o cotidiano. À noite, após o jantar, meus avós e os netos, quando estávamos com eles, rezavam o terço. Ao deitarem eles e os netos rezavam o “Com Deus me deito e com Deus me levanto”.
Minha avó ia à missa todos os dias, logo cedo. Confessava e comungava. Foi assim na segunda-feira em que após o café da manhã levantou-se para lavar a louça e começar a fazer o almoço. Deu o primeiro passo e caiu morta. Estava preparada segundo as regras daquele mundo em que não havia separação entre profano e sagrado, o lento e cauteloso mundo da tradição.
Aquele mundo terminava. Vi isso com a chegada do Papai Noel, um ser de importação, a trazer consigo neve artificial feita de algodão. Ele era o agente de transformação dos brasileiros em estrangeiros. Usurpara o lugar dos Reis Magos, símbolos do ciclo natalino, o da transição do ano velho para o ano novo.
Os pais tentavam infiltrar no tradicionalismo dos costumes a estranhíssima figura de velho barbudo. Entrava em casa sorrateiramente, durante a noite de 24 de dezembro, para premiar cada criança com o brinquedo que havia pedido ou castigá-la com brinquedo diferente do solicitado.
Curiosamente, os filhos das famílias de operários, a maioria do bairro fabril em que eu morava, um bairro de muitas e grandes fábricas, nunca recebiam o que haviam pedido que os pais encomendassem de Papai Noel. Os filhos da meia dúzia de pequenos comerciantes do bairro recebiam exatamente o que pediram. Não raro, mais de um presente.
Aos 5 anos de idade, eu desconfiava que Papai Noel não gosta de quem trabalha e que quem trabalha se torna pobre. Para mim era difícil aceitar que meu presente fosse, portanto, um castigo.
Minha mãe, que tinha 3 meses de idade quando a família de meus avós imigrou para o Brasil, na imigração subvencionada para trabalhar como colonos em fazenda de café do interior, ainda conheceu antigos escravos que continuavam a trabalhar nos cafezais.
Ela cresceu convencida de que as pessoas ficavam negras por trabalhar no café. Tinha pavor de tomar café e em consequência tornar-se negra como os antigos escravos. Nunca me disse nada, mas me dava a impressão de que ela achava que o café continha a mandinga da escravidão.
José de Souza Martins
Nós somos mesmos é um bando de ladrões
Admito que a afirmação acima é um tanto forte e pode indignar os leitores, que, em sua esmagadora maioria, tenho certeza, nunca furtaram nada na vida. Ao mesmo tempo, manda o diabinho que sopra besteiras nos ouvidos de escritores e malucos correlatos que eu pense duas vezes, antes de ter essa certeza toda. De perto, ninguém é normal, disse Caetano, não sem razão. E, segundo me contam, disse Nélson Rodrigues, coberto de razão, que, se todo mundo soubesse da vida sexual de todo mundo, ninguém se dava com ninguém. Não sabemos com certeza o que os outros fazem. Podemos saber ou achar que sabemos muito, mas geralmente não sabemos nada. É até bem frequente está aí a turma analisante/analisanda que não me deixa mentir – que nós mesmos não saibamos, ou não lembremos, o que fazemos ou fizemos.
Além disso, sempre me manifesto contra a mania – que parece que estamos perdendo um pouco nos últimos tempos, mas pode ser somente impressão – de nos referirmos a nós próprios na terceira pessoa: “os brasileiros” isso e aquilo, “o brasileiro” isso e aquilo. É como se não tivéssemos nada a ver com as barbaridades que costumamos denunciar ou ridicularizar. Trata-se de um povo do qual não fazemos parte. Não posso concordar com isso, ainda mais escrevendo para jornal. Não dá para me ver como um observador destacado de uma realidade à qual pertenço – e claro, não alego originalidade quando repito que serei sempre, ao mesmo tempo, de várias formas, sutis ou claríssimas, sujeito e objeto dessa observação.
E, vamos e venhamos, pode ser chato para nossa famosa autoestima, mas a sensação que dá, quando a gente fica a par do noticiário, não é a de que aqui absolutamente todo mundo rouba, de uma maneira ou de outra? Não vou hierarquizar, nem mesmo qualificar nada, vou só olhar aqui à toa. Mais um assalto na Lagoa, no Rio. Entre os assaltantes, um inspetor da Polícia Civil. Mais um assalto na madrugada, em São Paulo. Entre os assaltantes, um delegado. E o Tribunal de Contas da União? Está certo, seus quadros não são compostos de anjos tampouco, mas logo o Tribunal da Contas da União, uma espécie de símbolo institucional (pode até nunca ter passado muito de símbolo, mas é símbolo, isso tem valor) da seriedade com o dinheiro público?
De vez em quando fico pensando que há uma grande força-tarefa, ou uma vasta organização de forças-tarefas, dedicada em regime exclusivo à bolação e estruturação de falcatruas. Vamos pensar que seria possível para um governo, especialmente esse governo, conceber um mecanismo inteiramente novo de distribuição de benefícios para os carentes. No dia seguinte, já teria sido montado um esquema para fraudar tudo. Não existe área em que a roubalheira não funcione. Policial rouba. Juiz rouba. Deputado rouba. Senador rouba. Governador rouba. Prefeito rouba. Vereador rouba. Procurador rouba. Fiscal rouba. Jornalista (não sei de nenhum no momento, mas claro que não somos exceção) rouba. E não é só o dinheiro público que é abiscoitado, é o particular também, pois noticiaram qualquer coisa como um prejuízo médio de cinco por cento, nas empresas que funcionam no Brasil (agora se diz “corporações” – por que não trocam a língua de uma vez, em lugar de ficarmos nesta promiscuidade depravada?), causado por roubalheiras ou fraudes cometidas pelos empregados. E a solução é bem brasileira – esses brasileiros são muito criativos. A solução é incluir o prejuízo nos custos da empresa.
Ou seja, quem paga o roubo somos nós mesmos e, portanto, eu tinha razão. Pelo menos de nós mesmos somos todos ladrões, não há um só que escape. Como ícone nacional, não mais o Jeca Tatu, anquilosado e ultrapassado, mas Ali Babá, próspero e intimorato. Antigamente, eu achava exagero dizer-se que o dinheiro dos impostos no Brasil não dá para as despesas porque se rouba muito. Pensava que era uma taxa pequena, cifra relativamente marginal. Agora, me vejo obrigado a mudar de ideia. Os impostos obscenamente altos e abundantes que pagamos são insuficientes para a roubalheira. A reforma fiscal, que, como as outras, dizem que fizeram mas não fizeram, certamente empaca nesse gravíssimo problema. Abatendo-se da receita o que se rouba, a tendência é cada vez mais ficarmos no vermelho.
Gostaria de encerrar o papo com uma nota otimista, muito em voga entre intelectuais de todas as índoles. Aliás, o politicamente correto é terminar considerações como estas afirmando que, felizmente, o povo é honesto. O povo mesmo, esse é honesto por natureza e tradição, é só ver como se comporta a maioria. Receio, contudo, que no momento não me encontro muito propenso a concordar, eis que nem esmola a gente pode dar acreditando que está fazendo o bem, pois pode perfeitamente estar ajudando uma quadrilha que explora crianças, prostitui meninas na puberdade e comete outras coisas que “fazem muito no Brasil”, é um país tremendo esse Brasil e seus brasileiros. Até dar dinheiro a instituições de caridade a gente dá com um pé atrás, porque volta e meia aparecem casos de gente que enriqueceu com a grana que recebia para os necessitados. Eu mesmo já caí nessa diversas vezes, inclusive na inesquecível ocasião em que juntei dinheiro de que não podia dispor, para ajudar um “hanseniano” mineiro e descobrir depois que era uma quadrilha, especializada nesse golpe. Aqui tudo se falsifica, de remédios a pedidos e há inúmeros casos, sério mesmo, de falsificações falsificadas. É, no sentido lato e generalizando só um pouco, somos um povo de ladrões. Até porque aqui sempre valeu o latinzinho citado pelo bom Erasmo, em seus “Adágios: nullus mallus magnus piscis, nenhum mal vai ao peixe grande. Aí todo mundo acaba aprendendo e o peixe pequeno vem aprendendo bastante, ao longo dos séculos.
João Ubaldo Ribeiro, em O Globo (12/12/2004)
E, vamos e venhamos, pode ser chato para nossa famosa autoestima, mas a sensação que dá, quando a gente fica a par do noticiário, não é a de que aqui absolutamente todo mundo rouba, de uma maneira ou de outra? Não vou hierarquizar, nem mesmo qualificar nada, vou só olhar aqui à toa. Mais um assalto na Lagoa, no Rio. Entre os assaltantes, um inspetor da Polícia Civil. Mais um assalto na madrugada, em São Paulo. Entre os assaltantes, um delegado. E o Tribunal de Contas da União? Está certo, seus quadros não são compostos de anjos tampouco, mas logo o Tribunal da Contas da União, uma espécie de símbolo institucional (pode até nunca ter passado muito de símbolo, mas é símbolo, isso tem valor) da seriedade com o dinheiro público?
De vez em quando fico pensando que há uma grande força-tarefa, ou uma vasta organização de forças-tarefas, dedicada em regime exclusivo à bolação e estruturação de falcatruas. Vamos pensar que seria possível para um governo, especialmente esse governo, conceber um mecanismo inteiramente novo de distribuição de benefícios para os carentes. No dia seguinte, já teria sido montado um esquema para fraudar tudo. Não existe área em que a roubalheira não funcione. Policial rouba. Juiz rouba. Deputado rouba. Senador rouba. Governador rouba. Prefeito rouba. Vereador rouba. Procurador rouba. Fiscal rouba. Jornalista (não sei de nenhum no momento, mas claro que não somos exceção) rouba. E não é só o dinheiro público que é abiscoitado, é o particular também, pois noticiaram qualquer coisa como um prejuízo médio de cinco por cento, nas empresas que funcionam no Brasil (agora se diz “corporações” – por que não trocam a língua de uma vez, em lugar de ficarmos nesta promiscuidade depravada?), causado por roubalheiras ou fraudes cometidas pelos empregados. E a solução é bem brasileira – esses brasileiros são muito criativos. A solução é incluir o prejuízo nos custos da empresa.
Ou seja, quem paga o roubo somos nós mesmos e, portanto, eu tinha razão. Pelo menos de nós mesmos somos todos ladrões, não há um só que escape. Como ícone nacional, não mais o Jeca Tatu, anquilosado e ultrapassado, mas Ali Babá, próspero e intimorato. Antigamente, eu achava exagero dizer-se que o dinheiro dos impostos no Brasil não dá para as despesas porque se rouba muito. Pensava que era uma taxa pequena, cifra relativamente marginal. Agora, me vejo obrigado a mudar de ideia. Os impostos obscenamente altos e abundantes que pagamos são insuficientes para a roubalheira. A reforma fiscal, que, como as outras, dizem que fizeram mas não fizeram, certamente empaca nesse gravíssimo problema. Abatendo-se da receita o que se rouba, a tendência é cada vez mais ficarmos no vermelho.
Gostaria de encerrar o papo com uma nota otimista, muito em voga entre intelectuais de todas as índoles. Aliás, o politicamente correto é terminar considerações como estas afirmando que, felizmente, o povo é honesto. O povo mesmo, esse é honesto por natureza e tradição, é só ver como se comporta a maioria. Receio, contudo, que no momento não me encontro muito propenso a concordar, eis que nem esmola a gente pode dar acreditando que está fazendo o bem, pois pode perfeitamente estar ajudando uma quadrilha que explora crianças, prostitui meninas na puberdade e comete outras coisas que “fazem muito no Brasil”, é um país tremendo esse Brasil e seus brasileiros. Até dar dinheiro a instituições de caridade a gente dá com um pé atrás, porque volta e meia aparecem casos de gente que enriqueceu com a grana que recebia para os necessitados. Eu mesmo já caí nessa diversas vezes, inclusive na inesquecível ocasião em que juntei dinheiro de que não podia dispor, para ajudar um “hanseniano” mineiro e descobrir depois que era uma quadrilha, especializada nesse golpe. Aqui tudo se falsifica, de remédios a pedidos e há inúmeros casos, sério mesmo, de falsificações falsificadas. É, no sentido lato e generalizando só um pouco, somos um povo de ladrões. Até porque aqui sempre valeu o latinzinho citado pelo bom Erasmo, em seus “Adágios: nullus mallus magnus piscis, nenhum mal vai ao peixe grande. Aí todo mundo acaba aprendendo e o peixe pequeno vem aprendendo bastante, ao longo dos séculos.
João Ubaldo Ribeiro, em O Globo (12/12/2004)
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