sábado, 22 de março de 2025
A beleza de estar calado
Lembram-se de quando uma canção era uma canção? De quando um desenho era um desenho? De quando uma escultura não era um panfleto? Não foi assim há tanto tempo e até Bob Dylan dizia: “I’m not sleepy and there is no place I’m going to.” Mas isso é hoje uma convenção ultrapassadíssima, como um fósforo queimado.
Os cantores de intervenção, embriagados de marxismo-leninismo, tinham, pelo menos, a desculpa de não terem visto o muro cair. Os de hoje sabem-no. E cantam na mesma.
O artista já não contempla, já não se perde, já não mergulha no abismo. Até Ivan Karamázov se deixaria queimar por uma faúlha de transcendência. Mas o artista já não desce — desfila, e Dostoiévski sabia que sem abismo, não há grandeza. Hoje, o artista age — é movimento puro. Hoje, fala. Alto.
Transformou-se num daqueles sistemas de som de feira popular, num oráculo de banalidades de que ninguém duvida. Falam todos, falam sempre, falam muito. Uma gritaria perpétua de indignação e activismos absolutos. Um só minuto de silêncio seria verdadeiramente revolucionário. Um leve fragmento de discrição já conteria todo o esplendor e a fúria de 1917.
A tragédia contemporânea não é a corrupção, nem é a miséria, nem a ignorância — isso são tragédias velhas, bolorentas, lugares-comuns do pessimismo. A tragédia moderna, caro leitor, é este barulho. Esta bruta flor da indignação. Esta borboleta da hiperactividade.
Nunca tanta gente disse tanto, tão depressa, com tão pouca substância. Um formigueiro de consciências atarefadas. O activista não dorme, não descansa, não respira. Luta contra tudo — contra o estado do mundo, das mentalidades, do tempo — sim, até o tempo é reaccionário.
Mas contra o Estado? Para quê? Quem manda, tributa e regula já faz o que é preciso. Está tudo errado, menos o que vem no Diário da República.
Eis porquê: existe uma solidariedade entre ambos e essa cumplicidade tem um nome – loucura reguladora. Quem outrora bradava golpes e tumultos, hoje sonha com manuais de instruções. Já não quer mudar o mundo – quer geri-lo, processá-lo, catalogá-lo em regulamentos. O artista tornou-se o cepo que decide ser árbitro e arruína a tarde aos amigos com o apito.
E quer que se regule o quê? Tudo. As bocas foleiras, as comunidades virtuais, o estacionamento, os dejectos da bicharada. Tudo, menos o pânico em que se alimenta. A iminência do apocalipse justifica as mais complexas burocracias.
Se ao menos ocupasse o seu talento naquilo que faz bem. Mas já não cria, não compõe, já não pinta e já não escreve. Doutrina, palestra, denuncia e adverte: “Porque tudo é político!” – gritam. E eis que o palco se transforma em assembleia-geral, a tela em cartaz, o livro em manifesto. Para que a música eduque, o cinema alerte, o teatro sensibilize.
Já não há sequer direito ao cansaço. Diante da barulheira, um tipo, exausto, poderia desejar um pouco de recolhimento, um instante de paz. Mas exige-se tomada de posição, acção directa, uma assinatura. E se hesitamos, se vacilamos, somos acusados das mais sinistras cumplicidades.
O artista de hoje não se contenta em boicotar a sua própria obra. Se um escritor ousa ser um escritor, se um músico teima em tocar o seu piano, eis que aparece alguém a exigir “relevância”, “consciência”, “compromisso”. E assim morre o sublime prazer do inútil. A arte, para ser arte, precisa de não servir para nada.
A grande tradição do cristianismo, tão generosa em inspirar as mais delirantes práticas neo-pagãs, ainda tem um último presente para oferecer: o silêncio. Depois do jejum intermitente, da peregrinação a festivais, da confissão pública, bastaria reciclá-lo. E, quais trapistas do ayahuasca, os nossos melhores purificar-se-iam pela mudez, passando longos períodos sem dizer absolutamente nada. Era só um desses gurus da auto-ajuda publicar um folheto com a ideia.
O artista de hoje não deixa nada por fazer. Ele age por todos nós. E, assim, a única resistência possível é a quietude.
Todo o problema se resolve pelo seu imediato contrário. Contra a acção, a inércia. Contra o barulho, o silêncio. Contra a histeria da relevância, a beleza de não fazer nada.
Os cantores de intervenção, embriagados de marxismo-leninismo, tinham, pelo menos, a desculpa de não terem visto o muro cair. Os de hoje sabem-no. E cantam na mesma.
O artista já não contempla, já não se perde, já não mergulha no abismo. Até Ivan Karamázov se deixaria queimar por uma faúlha de transcendência. Mas o artista já não desce — desfila, e Dostoiévski sabia que sem abismo, não há grandeza. Hoje, o artista age — é movimento puro. Hoje, fala. Alto.
Transformou-se num daqueles sistemas de som de feira popular, num oráculo de banalidades de que ninguém duvida. Falam todos, falam sempre, falam muito. Uma gritaria perpétua de indignação e activismos absolutos. Um só minuto de silêncio seria verdadeiramente revolucionário. Um leve fragmento de discrição já conteria todo o esplendor e a fúria de 1917.
A tragédia contemporânea não é a corrupção, nem é a miséria, nem a ignorância — isso são tragédias velhas, bolorentas, lugares-comuns do pessimismo. A tragédia moderna, caro leitor, é este barulho. Esta bruta flor da indignação. Esta borboleta da hiperactividade.
Nunca tanta gente disse tanto, tão depressa, com tão pouca substância. Um formigueiro de consciências atarefadas. O activista não dorme, não descansa, não respira. Luta contra tudo — contra o estado do mundo, das mentalidades, do tempo — sim, até o tempo é reaccionário.
Mas contra o Estado? Para quê? Quem manda, tributa e regula já faz o que é preciso. Está tudo errado, menos o que vem no Diário da República.
Eis porquê: existe uma solidariedade entre ambos e essa cumplicidade tem um nome – loucura reguladora. Quem outrora bradava golpes e tumultos, hoje sonha com manuais de instruções. Já não quer mudar o mundo – quer geri-lo, processá-lo, catalogá-lo em regulamentos. O artista tornou-se o cepo que decide ser árbitro e arruína a tarde aos amigos com o apito.
E quer que se regule o quê? Tudo. As bocas foleiras, as comunidades virtuais, o estacionamento, os dejectos da bicharada. Tudo, menos o pânico em que se alimenta. A iminência do apocalipse justifica as mais complexas burocracias.
Se ao menos ocupasse o seu talento naquilo que faz bem. Mas já não cria, não compõe, já não pinta e já não escreve. Doutrina, palestra, denuncia e adverte: “Porque tudo é político!” – gritam. E eis que o palco se transforma em assembleia-geral, a tela em cartaz, o livro em manifesto. Para que a música eduque, o cinema alerte, o teatro sensibilize.
Já não há sequer direito ao cansaço. Diante da barulheira, um tipo, exausto, poderia desejar um pouco de recolhimento, um instante de paz. Mas exige-se tomada de posição, acção directa, uma assinatura. E se hesitamos, se vacilamos, somos acusados das mais sinistras cumplicidades.
O artista de hoje não se contenta em boicotar a sua própria obra. Se um escritor ousa ser um escritor, se um músico teima em tocar o seu piano, eis que aparece alguém a exigir “relevância”, “consciência”, “compromisso”. E assim morre o sublime prazer do inútil. A arte, para ser arte, precisa de não servir para nada.
A grande tradição do cristianismo, tão generosa em inspirar as mais delirantes práticas neo-pagãs, ainda tem um último presente para oferecer: o silêncio. Depois do jejum intermitente, da peregrinação a festivais, da confissão pública, bastaria reciclá-lo. E, quais trapistas do ayahuasca, os nossos melhores purificar-se-iam pela mudez, passando longos períodos sem dizer absolutamente nada. Era só um desses gurus da auto-ajuda publicar um folheto com a ideia.
O artista de hoje não deixa nada por fazer. Ele age por todos nós. E, assim, a única resistência possível é a quietude.
Todo o problema se resolve pelo seu imediato contrário. Contra a acção, a inércia. Contra o barulho, o silêncio. Contra a histeria da relevância, a beleza de não fazer nada.
Trump e os capitais em movimento
Donald Trump e seus assessores lançaram um petardo contra o livre movimento de capitais, um dos bastiões da economia financeiramente globalizada. A proposta trumpista de taxar os ingressos de capitais na economia norte-americana busca atenuar a valorização do dólar e, assim, conter seus efeitos sobre a competitividade das exportações de Tio Sam.
Gillian Tett, colunista do Financial Times, escreveu recentemente sobre as consequências prováveis da taxação dos capitais em livre movimento:
“O economista Michael Pettis vê essas entradas de capital não ‘apenas’ como o corolário inevitável do déficit comercial dos Estados Unidos, mas como uma maldição debilitante. Isso ocorre porque as entradas aumentam o valor do dólar, fomentam a financeirização excessiva e esvaziam a base industrial dos Estados Unidos, diz ele, o que significa que ‘o capital (financeiro) se tornou o rabo que abana o cachorro do comércio’, gerando déficits”.
A proposta de Donald Trump aponta para o verdadeiro sentido da globalização: o acirramento da concorrência inserida em uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada e comandada pelo poder do dólar. Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário-financeiro internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes empresas e instituições financeiras à escala mundial.
A centralização do controle comandada pelos mercados financeiros impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção.
O artigo “Neoliberalism: Oversold?”, de economistas do FMI, aborda os efeitos de duas políticas inscritas na agenda da globalização: a remoção das restrições ao movimento de capitais (liberalização das contas de capital) e a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir déficits fiscais e o nível da dívida). O estudo afirma que influxos de capitais, como investimento direto estrangeiro, parecem impulsionar o crescimento no longo prazo. Na contramão, o impacto de investimentos de portfólio – especialmente, os influxos de aplicações especulativas de curto prazo – afeta as relações, não estimula o crescimento e, muito menos, garante um financiamento estável do balanço de pagamentos.
A ocorrência, desde 1980, de, aproximadamente, 150 convulsões com influxos de capitais em mais de 50 mercados emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard Dani Rodrik, de que esses episódios “dificilmente são efeitos ou defeitos secundários nos fluxos de capital internacional, eles são a história principal”.
A continuada desvalorização do dólar ao longo dos anos 70 do século passado foi enfrentada com a elevação da policy rate, deflagrada por Paul Volcker em 1979. A elevação dos juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda de reserva.
A recuperação da força do dólar, como moeda de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. A partir do início dos anos 80, intensificou-se o movimento de migração da indústria manufatureira para as regiões nas quais prevalecia uma relação câmbio/salários mais competitiva e ampliaram-se os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa.
Nas três décadas seguintes, à sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos promoveram as políticas de abertura comercial e impuseram a liberalização financeira urbi et orbi. Assim, suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de gestores da finança e da moeda universais. Nesse período, os deslocamentos tectônicos na economia mundial – particularmente, a ascensão da China como potência manufatureira – produziram mais um episódio fascinante das transformações geoeconômicas.
O fortalecimento do dólar estimulou e sustentou o avanço da industrialização chinesa mediante a migração das empresas industriais norte-americanas e europeias. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos sofreram as dores da desindustrialização.
O protecionismo trumpista e a proposta de taxação dos capitais financeiros em livre movimentação exprimem as transformações ocorridas na economia global. Trata-se, portanto, de um fenômeno sistêmico e não de um incidente eventual.
Gillian Tett, colunista do Financial Times, escreveu recentemente sobre as consequências prováveis da taxação dos capitais em livre movimento:
“O economista Michael Pettis vê essas entradas de capital não ‘apenas’ como o corolário inevitável do déficit comercial dos Estados Unidos, mas como uma maldição debilitante. Isso ocorre porque as entradas aumentam o valor do dólar, fomentam a financeirização excessiva e esvaziam a base industrial dos Estados Unidos, diz ele, o que significa que ‘o capital (financeiro) se tornou o rabo que abana o cachorro do comércio’, gerando déficits”.
A proposta de Donald Trump aponta para o verdadeiro sentido da globalização: o acirramento da concorrência inserida em uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada e comandada pelo poder do dólar. Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário-financeiro internacional assimétrico, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes empresas e instituições financeiras à escala mundial.
A centralização do controle comandada pelos mercados financeiros impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção.
O artigo “Neoliberalism: Oversold?”, de economistas do FMI, aborda os efeitos de duas políticas inscritas na agenda da globalização: a remoção das restrições ao movimento de capitais (liberalização das contas de capital) e a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir déficits fiscais e o nível da dívida). O estudo afirma que influxos de capitais, como investimento direto estrangeiro, parecem impulsionar o crescimento no longo prazo. Na contramão, o impacto de investimentos de portfólio – especialmente, os influxos de aplicações especulativas de curto prazo – afeta as relações, não estimula o crescimento e, muito menos, garante um financiamento estável do balanço de pagamentos.
A ocorrência, desde 1980, de, aproximadamente, 150 convulsões com influxos de capitais em mais de 50 mercados emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard Dani Rodrik, de que esses episódios “dificilmente são efeitos ou defeitos secundários nos fluxos de capital internacional, eles são a história principal”.
A continuada desvalorização do dólar ao longo dos anos 70 do século passado foi enfrentada com a elevação da policy rate, deflagrada por Paul Volcker em 1979. A elevação dos juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda de reserva.
A recuperação da força do dólar, como moeda de reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. A partir do início dos anos 80, intensificou-se o movimento de migração da indústria manufatureira para as regiões nas quais prevalecia uma relação câmbio/salários mais competitiva e ampliaram-se os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa.
Nas três décadas seguintes, à sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos promoveram as políticas de abertura comercial e impuseram a liberalização financeira urbi et orbi. Assim, suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de gestores da finança e da moeda universais. Nesse período, os deslocamentos tectônicos na economia mundial – particularmente, a ascensão da China como potência manufatureira – produziram mais um episódio fascinante das transformações geoeconômicas.
O fortalecimento do dólar estimulou e sustentou o avanço da industrialização chinesa mediante a migração das empresas industriais norte-americanas e europeias. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos sofreram as dores da desindustrialização.
O protecionismo trumpista e a proposta de taxação dos capitais financeiros em livre movimentação exprimem as transformações ocorridas na economia global. Trata-se, portanto, de um fenômeno sistêmico e não de um incidente eventual.
Brasil tem cada vez menos áreas cobertas por água
A área do Brasil coberta por água sofre uma nova redução em 2024. Em doze meses, quatro mil quilômetros quadrados de área alagada evaporaram. É como se um lago equivalente a três vezes a cidade do Rio de Janeiro tivesse sumido.
Em todo território nacional, 179 mil quilômetros quadrados (km2) ainda estão cobertos por água, mas a área é 2% menor que a registrada em 2023.
O levantamento, divulgado nesta sexta-feira (21/03), é do MapBiomas, rede formada por universidades, ONGs e empresas que mapeia as mudanças em solo brasileiro e atualiza os dados anualmente.
"São más notícias. Desde os anos 2000 temos registrado, quase que regularmente, valores baixos. Em 2024, ficamos 4% abaixo da média histórica”, disse à DW Juliano Schirmbeck, coordenador técnico do MapBiomas Água.
A tendência de queda é observada desde 2009. Segundo o MapBiomas, que mantém uma série histórica desde 1985, oito dos dez anos mais secos foram registrados nesta última década. Só em 2022 a superfície inundada aumentou.
A situação é mais grave por uma observação específica: os ambientes naturais são os que mais secaram. Rios e lagos tiveram uma perda de 15% no ano passado em comparação com 1985. No Brasil, eles formam a maior parte da superfície coberta por água (77%). O restante está em reservatórios construídos.
O Pantanal, maior planície alagável do planeta, foi o bioma brasileiro que mais perdeu superfície de água desde o início do mapeamento. Desde 1985, a queda foi de 61% nessa área.
Segundo Schirmbeck, todos os meses de 2024 foram marcados por uma cobertura de água perto da mínima já registrada. A última cheia na região aconteceu em 2018 e, desde então, foi seguida por períodos de seca severa.
Em 2024, vários rios da região alcançaram cotas mínimas, segundo o Serviço Geológico Brasileiro (SGB). A falta de água afetou a navegação, o abastecimento em várias cidades e o modo de vida de inúmeras comunidades tradicionais.
O impacto ambiental também é preocupante. Cientistas do SGB alertam que o baixo fluxo de água intensifica a degradação dos habitats aquáticos e pode provocar grande mortandade de peixes.
Pelo segundo ano consecutivo, a Amazônia sofreu uma seca extrema em 2024. O levantamento do MapBiomas aponta que houve uma redução de 3,6% na superfície coberta por água em comparação com a média do bioma.
"É muito intrigante que, na Amazônia, a seca de 2024 não foi como a de 2023. Ela se pronunciou em locais diferentes, em rios diferentes”, aponta Schirmbeck.
Mais da metade dos rios amazônicos registraram perda em relação à média dos últimos 40 anos. As bacias mais afetadas foram a do rio Trombetas, Negro e Solimões. O cenário também foi dramático no rio Tapajós - que havia sido poupado em 2023.
No total, a perda de superfície de água foi de 45 mil km2 no bioma em relação a 2022, quando o último ganho havia sido registrado.
No extremo sul do Brasil, o Pampa ficou ligeiramente abaixo da média histórica (0,03%). O bioma recebeu parte da chuva intensa que caiu no Rio Grande do Sul (RS) entre abril e maio do ano passado e afetou centenas de cidades.
"O ano começou seco no Sul e, no fim de 2024, estava seco de novo”, diz Schirmbeck. "A cheia é uma enxurrada, um pico de precipitação. O que recupera o nível de um rio ao longo de um ano é uma chuva mais regular”, adiciona, lembrando do impacto das mudanças climáticas na intensidade e frequência dos eventos extremos climáticos.
A média de chuva anual naquela região é de mil a dois mil milímetros. Durante as cheias, foram registrados mil milímetros em apenas sete dias.
Morador de Roca Sales, na região do Vale do Taquari (RS), Schirmbeck precisou deixar sua casa às pressas durante as enchentes de 2023. Naquela ocasião, ele se refugiou em Belém, Pará, para conseguir finalizar o levantamento anual do MapBiomas. Neste ano, ele completou a tarefa em sua cidade, que também foi atingida pelas enchentes de 2024 e ainda convive com os resquícios da devastação.
Os demais biomas do país, Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica, registraram em 2024 superfície de água acima da média. No caso da Caatinga, o período foi excepcionalmente positivo, com valores mais altos dos últimos 10 anos. Ainda assim, bolsões de seca persistente ainda estão no mapa, como pontos ao longo da bacia do São Francisco e Seridó Nordestino.
O Cerrado alcançou em 2024 um marco preocupante: há atualmente mais água armazenada em estruturas artificiais do que em rios e lagos. Segundo o MapBiomas, reservatórios, hidrelétricas, áreas de mineração e represas contém 60% de toda a água disponível na superfície - em 1985 eram 37%.
Um levantamento paralelo feito pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) concluiu que Cerrado perdeu água natural em 91% de suas bacias hidrográficas nos últimos 40 anos. Uma das causas para este cenário é o desmatamento, afirmam os pesquisadores.
O impacto é perigoso principalmente para as plantações, já que o bioma concentra 60% da produção nacional e metade da agricultura irrigada do país, alerta o Ipam.
No ranking nacional, mais da metade da água disponível está na Amazônia (61%). Mata Atlântica tem 13% da superfície, seguida pelo Pampa (10% do total), Cerrado (9%) e Pantanal (2%).
Para fazer as contas, o MapBiomas utiliza imagens do satélite Landsat, que acumula a maior série de registros do território brasileiro captadas do espaço. As cenas são processadas e classificadas de acordo com cada pixel que se assemelha à superfície de água.
Schirmbeck lembra que a disponibilidade de água na superfície depende de alguns fatores que incluem regularidade de chuvas e condições dos ambientes naturais, como nascentes e vegetação ao longo dos rios.
"Esses ambientes acabam funcionando como espécie de ‘pulmão', que armazena a água e vai soltando aos poucos, de forma espaçada no tempo. Sem eles, quando falta chuva, não tem de onde vir água. E, quando chove demais, o risco de enxurrada é grande”, explica o pesquisador.
O armazenamento em reservatórios também "disfarça" a situação real. "Eles enganam porque fazem pensar que a situação é menos crítica, mas a água que eles armazenam vem do ambiente natural. Se lá na nascente não estou preservando, como vou ter água no reservatório?”, alerta Schirmbeck.
Em todo território nacional, 179 mil quilômetros quadrados (km2) ainda estão cobertos por água, mas a área é 2% menor que a registrada em 2023.
O levantamento, divulgado nesta sexta-feira (21/03), é do MapBiomas, rede formada por universidades, ONGs e empresas que mapeia as mudanças em solo brasileiro e atualiza os dados anualmente.
"São más notícias. Desde os anos 2000 temos registrado, quase que regularmente, valores baixos. Em 2024, ficamos 4% abaixo da média histórica”, disse à DW Juliano Schirmbeck, coordenador técnico do MapBiomas Água.
A tendência de queda é observada desde 2009. Segundo o MapBiomas, que mantém uma série histórica desde 1985, oito dos dez anos mais secos foram registrados nesta última década. Só em 2022 a superfície inundada aumentou.
A situação é mais grave por uma observação específica: os ambientes naturais são os que mais secaram. Rios e lagos tiveram uma perda de 15% no ano passado em comparação com 1985. No Brasil, eles formam a maior parte da superfície coberta por água (77%). O restante está em reservatórios construídos.
O Pantanal, maior planície alagável do planeta, foi o bioma brasileiro que mais perdeu superfície de água desde o início do mapeamento. Desde 1985, a queda foi de 61% nessa área.
Segundo Schirmbeck, todos os meses de 2024 foram marcados por uma cobertura de água perto da mínima já registrada. A última cheia na região aconteceu em 2018 e, desde então, foi seguida por períodos de seca severa.
Em 2024, vários rios da região alcançaram cotas mínimas, segundo o Serviço Geológico Brasileiro (SGB). A falta de água afetou a navegação, o abastecimento em várias cidades e o modo de vida de inúmeras comunidades tradicionais.
O impacto ambiental também é preocupante. Cientistas do SGB alertam que o baixo fluxo de água intensifica a degradação dos habitats aquáticos e pode provocar grande mortandade de peixes.
Pelo segundo ano consecutivo, a Amazônia sofreu uma seca extrema em 2024. O levantamento do MapBiomas aponta que houve uma redução de 3,6% na superfície coberta por água em comparação com a média do bioma.
"É muito intrigante que, na Amazônia, a seca de 2024 não foi como a de 2023. Ela se pronunciou em locais diferentes, em rios diferentes”, aponta Schirmbeck.
Mais da metade dos rios amazônicos registraram perda em relação à média dos últimos 40 anos. As bacias mais afetadas foram a do rio Trombetas, Negro e Solimões. O cenário também foi dramático no rio Tapajós - que havia sido poupado em 2023.
No total, a perda de superfície de água foi de 45 mil km2 no bioma em relação a 2022, quando o último ganho havia sido registrado.
No extremo sul do Brasil, o Pampa ficou ligeiramente abaixo da média histórica (0,03%). O bioma recebeu parte da chuva intensa que caiu no Rio Grande do Sul (RS) entre abril e maio do ano passado e afetou centenas de cidades.
"O ano começou seco no Sul e, no fim de 2024, estava seco de novo”, diz Schirmbeck. "A cheia é uma enxurrada, um pico de precipitação. O que recupera o nível de um rio ao longo de um ano é uma chuva mais regular”, adiciona, lembrando do impacto das mudanças climáticas na intensidade e frequência dos eventos extremos climáticos.
A média de chuva anual naquela região é de mil a dois mil milímetros. Durante as cheias, foram registrados mil milímetros em apenas sete dias.
Morador de Roca Sales, na região do Vale do Taquari (RS), Schirmbeck precisou deixar sua casa às pressas durante as enchentes de 2023. Naquela ocasião, ele se refugiou em Belém, Pará, para conseguir finalizar o levantamento anual do MapBiomas. Neste ano, ele completou a tarefa em sua cidade, que também foi atingida pelas enchentes de 2024 e ainda convive com os resquícios da devastação.
Os demais biomas do país, Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica, registraram em 2024 superfície de água acima da média. No caso da Caatinga, o período foi excepcionalmente positivo, com valores mais altos dos últimos 10 anos. Ainda assim, bolsões de seca persistente ainda estão no mapa, como pontos ao longo da bacia do São Francisco e Seridó Nordestino.
O Cerrado alcançou em 2024 um marco preocupante: há atualmente mais água armazenada em estruturas artificiais do que em rios e lagos. Segundo o MapBiomas, reservatórios, hidrelétricas, áreas de mineração e represas contém 60% de toda a água disponível na superfície - em 1985 eram 37%.
Um levantamento paralelo feito pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) concluiu que Cerrado perdeu água natural em 91% de suas bacias hidrográficas nos últimos 40 anos. Uma das causas para este cenário é o desmatamento, afirmam os pesquisadores.
O impacto é perigoso principalmente para as plantações, já que o bioma concentra 60% da produção nacional e metade da agricultura irrigada do país, alerta o Ipam.
No ranking nacional, mais da metade da água disponível está na Amazônia (61%). Mata Atlântica tem 13% da superfície, seguida pelo Pampa (10% do total), Cerrado (9%) e Pantanal (2%).
Para fazer as contas, o MapBiomas utiliza imagens do satélite Landsat, que acumula a maior série de registros do território brasileiro captadas do espaço. As cenas são processadas e classificadas de acordo com cada pixel que se assemelha à superfície de água.
Schirmbeck lembra que a disponibilidade de água na superfície depende de alguns fatores que incluem regularidade de chuvas e condições dos ambientes naturais, como nascentes e vegetação ao longo dos rios.
"Esses ambientes acabam funcionando como espécie de ‘pulmão', que armazena a água e vai soltando aos poucos, de forma espaçada no tempo. Sem eles, quando falta chuva, não tem de onde vir água. E, quando chove demais, o risco de enxurrada é grande”, explica o pesquisador.
O armazenamento em reservatórios também "disfarça" a situação real. "Eles enganam porque fazem pensar que a situação é menos crítica, mas a água que eles armazenam vem do ambiente natural. Se lá na nascente não estou preservando, como vou ter água no reservatório?”, alerta Schirmbeck.
'Nós somos a maioria, eles são o 1%'
No início da semana, o senador Bernie Sanders ligou o telefone e gravou um apelo desesperado, no seu gabinete. Tinha acabado de votar contra uma lei que dá mais poder à Casa Branca na gestão de fundos federais. “Esta lei empurra o nosso país para o autoritarismo”, diz Sanders, explicando que a nova legislação “faz cortes massivos a programas de apoio à habitação, cuidados de saúde e alimentação, põe em risco o funcionamento da administração da Segurança Social e continua o ataque da Administração Trump contra os veteranos; esta lei fará os ricos mais ricos e os pobres mais pobres”.
Para que esta lei passasse, os republicanos precisavam de ter sete votos de democratas no Senado. Tiveram dez. “A crise económica e política não será resolvida aqui em Washington DC. O sistema é demasiado corrupto”, afirma Sanders, explicando como se compram os votos e se distorce a democracia.
O vídeo que me apareceu no Instagram tem um tom alarmista. Talvez a alguns soe conspirativo. Mas estava a escrever este texto quando me deparei com uma notícia do The New York Times que revela como Elon Musk está a financiar nos limites máximos permitidos por lei os congressistas que apoiem o impeachment de juízes que se oponham a decisões do Presidente.
Continuo a olhar para o telefone e aparece-me o vídeo que regista o momento exato em que é detido um preso político nos Estados Unidos. A expressão é forte, mas talvez pareça adequada quando vemos a audição do embaixador indicado por Trump para o Canadá. Ao ser confrontado com uma pergunta do senador Jeff Merkley sobre se um cidadão americano deve poder expressar uma opinião contrária à do primeiro-ministro canadiano sobre política externa, sem perceber onde se está a meter, responde que “sim, esse é um valor americano”. Quando Merkley o confronta com a situação de Mahamoud Khalil, a contradição é já demasiado flagrante.
Mahmoud Khalil voltava de um jantar com a mulher, grávida de oito meses. À sua espera estavam quatro homens com roupas à civil. Apesar de não mostrar quaisquer sinais de resistência, foi algemado com as mãos atrás das costas. A mulher, que filmou tudo, telefonou para a advogada, que lhe foi transmitindo as perguntas que devia fazer. Quem eram aqueles homens? Para que agência trabalhavam? Para onde iam levar o seu marido? Os homens limitam-se a dar uma morada. Não respondem a mais nada e, a certa altura, começam a correr pela rua até se enfiarem num carro. Parece um rapto. Mas não é: Mahmoud Khalil foi levado para uma prisão no Louisiana, a cerca de quatro horas de voo de distância da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde foi detido. O crime deste estudante é ter participado em protestos pró-Palestina.
A conta oficial da Casa Branca no Instagram parece agora a parede de uma taberna de um filme de cowboys, cheia de imagens de presos, com as caras sobre um fundo laranja e negro, onde se leem os crimes de que são acusados, o lugar e a data de detenção. Há também uma fotografia de uma mulher, Rasha Alawieh, uma médica especializada em transplantes, que foi deportada, apesar de estar legal nos Estados Unidos, depois de ter sido acusada de ter viajado para Beirute para assistir ao funeral de um membro do Hezbollah. “Bye-bye, Rasha”, lê-se na legenda do post ilustrado com uma imagem de Donald Trump a dizer adeus da janela do que parece ser um posto de atendimento drive-thru de uma cadeia de fast food.
Scroll para baixo. A mesma conta mostra prisioneiros tatuados, algemados com correntes, a serem encaminhados para um avião, numa pista de aeroporto, ao pôr do sol. A banda sonora é uma música pop rock que estava nos tops no final dos anos 90 e ajuda a adocicar as imagens. Mas a mensagem é sublinhada por uma parte da letra que a Casa Branca destacou em legenda. “Closing time, you don’t have to go home/But you can’t stay here”.
As imagens ilustram a notícia dos cerca de 200 homens latinos que foram detidos e deportados esta semana dos Estados Unidos para uma das mais violentas prisões do mundo, em El Salvador, onde, segundo o The Guardian, não há recreio ao ar livre e não são permitidas visitas, há relatos de tortura e cada preso tem o equivalente a 0,60 metros quadrados. Segundo o The New York Times, não há dados que permitam perceber quantos destes homens pertenciam efetivamente a gangues, como foi alegado pela Casa Branca, ou que tipo de ameaça representavam, uma vez que foi admitido pelas autoridades americanas que vários deles não tinham sequer sido alvo de qualquer condenação.
Há imagens que mostram estes homens de macacão, algemados, com agentes a raparem-lhes a cabeça antes de serem enviados para El Salvador, que vai receber milhões de dólares para os encarcerar. Mariyin Araujo, que tem uma filha com seis anos e outra com dois, diz que só percebeu que o marido já estava na prisão salvadorenha depois de ver uma fotografia nas redes sociais. Era um venezuelano, que tinha fugido depois de ter sido perseguido pelo regime de Nicolas Maduro, e, por ser treinador de futebol, tinha uma tatuagem com uma bola e uma coroa num braço, um sinal que foi visto pelas autoridades americanas como a prova da ligação a um gangue da Venezuela. Mariyin não consegue sequer confirmar se o marido está em El Salvador.
“Se alguma vez houve um momento em que pessoas comuns, na base da pirâmide, se têm de organizar e lutar, este é esse tempo. Este é o momento de reclamar a nossa democracia (…) Porque esta é a verdade: a vasta maioria dos norte-americanos, democratas, republicanos e independentes não querem ver o Congresso a aliviar os impostos dos bilionários e a cortar nos programas de que as famílias trabalhadoras e desfavorecidas precisam”, diz Bernie Sanders no seu vídeo, pedindo a cada americano que se envolva diretamente em ações políticas e se organize na sua comunidade.
O meu telefone está cheio de notícias sobre como as autoridades alemãs reprimem violentamente manifestações contra o genocídio em Gaza. Leio histórias sobre jovens ativistas presos no Reino Unido por se envolverem em protestos de ação direta não violenta pelos direitos climáticos ou a favor da Palestina, ao abrigo de leis antiterroristas que permitem fechá-los em prisões de alta segurança durante um ano antes de irem a julgamento. Um cientista francês foi expulso dos EUA por ter mensagens anti-Trump no telefone. E, em Londres, o trabalhista Keir Starmer anuncia um corte de 5 mil milhões de libras em programas sociais, incluindo de apoio a deficientes, deixando sem resposta o deputado do próprio partido que lhe pergunta por que não põe ele os ricos a pagar uma taxa sobre a sua fortuna.
“Nós somos a maioria, eles são o 1%”, diz Sanders. Enquanto assisto à queda dos princípios de igualdade perante a lei, justiça e liberdades individuais no prometido oásis das democracias ocidentais, a ideia de Sanders parece a única esperança possível. “Nós somos a maioria, eles são o 1%”.
Para que esta lei passasse, os republicanos precisavam de ter sete votos de democratas no Senado. Tiveram dez. “A crise económica e política não será resolvida aqui em Washington DC. O sistema é demasiado corrupto”, afirma Sanders, explicando como se compram os votos e se distorce a democracia.
O vídeo que me apareceu no Instagram tem um tom alarmista. Talvez a alguns soe conspirativo. Mas estava a escrever este texto quando me deparei com uma notícia do The New York Times que revela como Elon Musk está a financiar nos limites máximos permitidos por lei os congressistas que apoiem o impeachment de juízes que se oponham a decisões do Presidente.
Continuo a olhar para o telefone e aparece-me o vídeo que regista o momento exato em que é detido um preso político nos Estados Unidos. A expressão é forte, mas talvez pareça adequada quando vemos a audição do embaixador indicado por Trump para o Canadá. Ao ser confrontado com uma pergunta do senador Jeff Merkley sobre se um cidadão americano deve poder expressar uma opinião contrária à do primeiro-ministro canadiano sobre política externa, sem perceber onde se está a meter, responde que “sim, esse é um valor americano”. Quando Merkley o confronta com a situação de Mahamoud Khalil, a contradição é já demasiado flagrante.
Mahmoud Khalil voltava de um jantar com a mulher, grávida de oito meses. À sua espera estavam quatro homens com roupas à civil. Apesar de não mostrar quaisquer sinais de resistência, foi algemado com as mãos atrás das costas. A mulher, que filmou tudo, telefonou para a advogada, que lhe foi transmitindo as perguntas que devia fazer. Quem eram aqueles homens? Para que agência trabalhavam? Para onde iam levar o seu marido? Os homens limitam-se a dar uma morada. Não respondem a mais nada e, a certa altura, começam a correr pela rua até se enfiarem num carro. Parece um rapto. Mas não é: Mahmoud Khalil foi levado para uma prisão no Louisiana, a cerca de quatro horas de voo de distância da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde foi detido. O crime deste estudante é ter participado em protestos pró-Palestina.
A conta oficial da Casa Branca no Instagram parece agora a parede de uma taberna de um filme de cowboys, cheia de imagens de presos, com as caras sobre um fundo laranja e negro, onde se leem os crimes de que são acusados, o lugar e a data de detenção. Há também uma fotografia de uma mulher, Rasha Alawieh, uma médica especializada em transplantes, que foi deportada, apesar de estar legal nos Estados Unidos, depois de ter sido acusada de ter viajado para Beirute para assistir ao funeral de um membro do Hezbollah. “Bye-bye, Rasha”, lê-se na legenda do post ilustrado com uma imagem de Donald Trump a dizer adeus da janela do que parece ser um posto de atendimento drive-thru de uma cadeia de fast food.
Scroll para baixo. A mesma conta mostra prisioneiros tatuados, algemados com correntes, a serem encaminhados para um avião, numa pista de aeroporto, ao pôr do sol. A banda sonora é uma música pop rock que estava nos tops no final dos anos 90 e ajuda a adocicar as imagens. Mas a mensagem é sublinhada por uma parte da letra que a Casa Branca destacou em legenda. “Closing time, you don’t have to go home/But you can’t stay here”.
As imagens ilustram a notícia dos cerca de 200 homens latinos que foram detidos e deportados esta semana dos Estados Unidos para uma das mais violentas prisões do mundo, em El Salvador, onde, segundo o The Guardian, não há recreio ao ar livre e não são permitidas visitas, há relatos de tortura e cada preso tem o equivalente a 0,60 metros quadrados. Segundo o The New York Times, não há dados que permitam perceber quantos destes homens pertenciam efetivamente a gangues, como foi alegado pela Casa Branca, ou que tipo de ameaça representavam, uma vez que foi admitido pelas autoridades americanas que vários deles não tinham sequer sido alvo de qualquer condenação.
Há imagens que mostram estes homens de macacão, algemados, com agentes a raparem-lhes a cabeça antes de serem enviados para El Salvador, que vai receber milhões de dólares para os encarcerar. Mariyin Araujo, que tem uma filha com seis anos e outra com dois, diz que só percebeu que o marido já estava na prisão salvadorenha depois de ver uma fotografia nas redes sociais. Era um venezuelano, que tinha fugido depois de ter sido perseguido pelo regime de Nicolas Maduro, e, por ser treinador de futebol, tinha uma tatuagem com uma bola e uma coroa num braço, um sinal que foi visto pelas autoridades americanas como a prova da ligação a um gangue da Venezuela. Mariyin não consegue sequer confirmar se o marido está em El Salvador.
“Se alguma vez houve um momento em que pessoas comuns, na base da pirâmide, se têm de organizar e lutar, este é esse tempo. Este é o momento de reclamar a nossa democracia (…) Porque esta é a verdade: a vasta maioria dos norte-americanos, democratas, republicanos e independentes não querem ver o Congresso a aliviar os impostos dos bilionários e a cortar nos programas de que as famílias trabalhadoras e desfavorecidas precisam”, diz Bernie Sanders no seu vídeo, pedindo a cada americano que se envolva diretamente em ações políticas e se organize na sua comunidade.
O meu telefone está cheio de notícias sobre como as autoridades alemãs reprimem violentamente manifestações contra o genocídio em Gaza. Leio histórias sobre jovens ativistas presos no Reino Unido por se envolverem em protestos de ação direta não violenta pelos direitos climáticos ou a favor da Palestina, ao abrigo de leis antiterroristas que permitem fechá-los em prisões de alta segurança durante um ano antes de irem a julgamento. Um cientista francês foi expulso dos EUA por ter mensagens anti-Trump no telefone. E, em Londres, o trabalhista Keir Starmer anuncia um corte de 5 mil milhões de libras em programas sociais, incluindo de apoio a deficientes, deixando sem resposta o deputado do próprio partido que lhe pergunta por que não põe ele os ricos a pagar uma taxa sobre a sua fortuna.
“Nós somos a maioria, eles são o 1%”, diz Sanders. Enquanto assisto à queda dos princípios de igualdade perante a lei, justiça e liberdades individuais no prometido oásis das democracias ocidentais, a ideia de Sanders parece a única esperança possível. “Nós somos a maioria, eles são o 1%”.
Um Hitler fixe
A criação de figurinhas no WhatsApp inaugurou um código de comunicação social. Para quem gosta de humor e domina a técnica de montar imagens, é um meio de expressão muito fértil. Quase uma arte pós-moderna, de forte apelo emocional, capaz de provocar riso, empatia, identificação. Uma vez que um sujeito monta e envia a figurinha ao outro, ela passa a fazer parte dos acervos de ambos. Assim tem início um efeito multiplicador: algumas dessas obras anônimas se tornam memes, que representam e reforçam um repertório de ideias e valores compartilhados.
Qual não foi a minha surpresa, num grupo de WhatsApp, quando o meu filho de 12 anos enviou uma figurinha perturbadora. Era uma foto de Adolf Hitler fazendo o gesto do hang loose — uma saudação comum entre os surfistas, ao menos no Brasil, associada a pessoas tranquilas e descoladas. Em suma: era a foto de um Hitler fixe.
Quando o interpelei, descobri que o meu filho nem sabia quem era aquele simpático senhor. Achou que era Charles Chaplin, que satirizou o grande ditador no cinema. Ele usou a figurinha apenas para responder a uma mensagem banal. E o que mais me impactou foi essa banalidade do mal – para revisitar Hannah Arendt no século XXI. Quem teria criado e colocado em circulação aquela imagem? Como esse projeto de rebranding de um genocida alemão chegou ao telefone celular de um menino em Portugal?
Mais do que banalidade, trata-se de um processo de banalização do mal. O mesmo operado pelo partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD), quando afirma que nem todos os membros da SS eram criminosos, ou quando propõe uma reescrita da História de modo que a Alemanha não se envergonhe do passado nazista — proposta apoiada por Elon Musk numa recente convenção da legenda. E o mesmo vale para os portugueses que sentem saudades de Salazar, ou para os brasileiros que votariam em Bolsonaro no ano que vem, sabendo da sua participação num plano de golpe militar que envolvia assassinar o presidente, o vice-presidente e um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Talvez assustado pela minha reação de choque, meu filho disse que não sabia como aquela figurinha foi parar no seu acervo. Ele frequenta uma escola pública em Lisboa, com amigos de várias nacionalidades, o que sempre considerei um tesouro cultural para a sua formação. Daí o espanto ao me deparar com um ícone que vai na contramão desse valor pluralista e tão democrático.
Precisei me sentar com o meu filho, mostrar fotos na internet, tentar transmitir os horrores das duas Grandes Guerras, que ele ainda não estudou na escola. Guerras que tiveram origem num contexto semelhante ao atual, com a exacerbação dos nacionalismos e o esgarçamento das soluções diplomáticas para os conflitos internacionais. Um esgarçamento que remete à imagem de uma corda, prestes a se romper numa Terceira Grande Guerra, tensionada pelo risco do uso de armas nucleares. Imagem tão terrível que não cabe numa figurinha. Precisamos trabalhar duro para que ela não caiba na realidade.
Fernanda Hamann
Qual não foi a minha surpresa, num grupo de WhatsApp, quando o meu filho de 12 anos enviou uma figurinha perturbadora. Era uma foto de Adolf Hitler fazendo o gesto do hang loose — uma saudação comum entre os surfistas, ao menos no Brasil, associada a pessoas tranquilas e descoladas. Em suma: era a foto de um Hitler fixe.
Quando o interpelei, descobri que o meu filho nem sabia quem era aquele simpático senhor. Achou que era Charles Chaplin, que satirizou o grande ditador no cinema. Ele usou a figurinha apenas para responder a uma mensagem banal. E o que mais me impactou foi essa banalidade do mal – para revisitar Hannah Arendt no século XXI. Quem teria criado e colocado em circulação aquela imagem? Como esse projeto de rebranding de um genocida alemão chegou ao telefone celular de um menino em Portugal?
Mais do que banalidade, trata-se de um processo de banalização do mal. O mesmo operado pelo partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD), quando afirma que nem todos os membros da SS eram criminosos, ou quando propõe uma reescrita da História de modo que a Alemanha não se envergonhe do passado nazista — proposta apoiada por Elon Musk numa recente convenção da legenda. E o mesmo vale para os portugueses que sentem saudades de Salazar, ou para os brasileiros que votariam em Bolsonaro no ano que vem, sabendo da sua participação num plano de golpe militar que envolvia assassinar o presidente, o vice-presidente e um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
Talvez assustado pela minha reação de choque, meu filho disse que não sabia como aquela figurinha foi parar no seu acervo. Ele frequenta uma escola pública em Lisboa, com amigos de várias nacionalidades, o que sempre considerei um tesouro cultural para a sua formação. Daí o espanto ao me deparar com um ícone que vai na contramão desse valor pluralista e tão democrático.
Precisei me sentar com o meu filho, mostrar fotos na internet, tentar transmitir os horrores das duas Grandes Guerras, que ele ainda não estudou na escola. Guerras que tiveram origem num contexto semelhante ao atual, com a exacerbação dos nacionalismos e o esgarçamento das soluções diplomáticas para os conflitos internacionais. Um esgarçamento que remete à imagem de uma corda, prestes a se romper numa Terceira Grande Guerra, tensionada pelo risco do uso de armas nucleares. Imagem tão terrível que não cabe numa figurinha. Precisamos trabalhar duro para que ela não caiba na realidade.
Fernanda Hamann
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