quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Carnaval da inquietação

Dia sim, outro também, Jair Bolsonaro atenta contra o decoro em atos e palavras. Segue o padrão desde que assumiu: agride, ofende, provoca o conflito. Normalmente, porém, produz muita espuma e pouco chopp — ataca e recua, morde e assopra, porta-se no dia seguinte como se não existisse a ofensa da véspera. A mais recente crise que opõe o Planalto ao Congresso, porém, parece fugir ao modelo. Daí a inquietação que toma conta de parte de Brasília. Aponta-se um claro artificialismo no confronto que teve como origem o veto presidencial a itens do orçamento impositivo. Num piscar de olhos, o presidente resolveu romper um acordo aprovado por ele e tranquilamente fechado na semana anterior pelos líderes governistas. Flagrado num áudio fugaz, o ministro Augusto Heleno fez questão de continuar no embate e desandou a fazer declarações destemperadas sobre o Parlamento.

Não é coisa de quem tem juízo e deseja preservar a relação institucional com o Legislativo num momento em que há uma agenda econômica importante que o governo deseja — deseja? — aprovar. É coisa de quem está querendo esticar a corda e chamar o Congresso para a briga. Obviamente, o presidente da Câmara rebateu duramente, com uma resposta atravessada sobre o radicalismo do general, que teve seu salário aumentado pelos legisladores.

Parlamentares experientes se perguntam se só agora Bolsonaro e Heleno se deram conta de que o orçamento impositivo é (ora, vejam só…) impositivo! Impossível. Ao longo do ano passado, a retomada dos poderes do Legislativo em relação às emendas orçamentárias, que passaram a ter execução obrigatória, foi cantada em prosa e em verso pela mídia, pelos políticos, pelos técnicos e pelo próprio governo — que não pareceu se importar em ceder todos esses poderes a deputados e senadores. Jair Bolsonaro e seu entorno não mexeram uma palha para evitar isso, e nem a aprovação da LDO e da Lei orçamentária que consagraram as novas prerrogativas.

Ao contrário, o presidente da República recusou-se a construir uma base parlamentar nos moldes da “velha política”, ainda que a tenha praticado, em outros aspectos, segundo o mais antigo dos manuais. Deixou o Congresso carregar o piano da reforma da Previdência, ao mesmo tempo em que liberava suas milícias digitais para baterem em seus líderes, como Rodrigo Maia. Não por acaso, a aprovação do Legislativo voltou a cair a patamares mínimos, segundo as pesquisas

Nesse contexto, como se fizesse parte de uma narrativa, Bolsonaro expurgou os políticos do Planalto com a saída do último dos moicanos, Onyx Lorenzoni. E cercou-se de generais — inclusive da ativa. Virou um esporte bater no Congresso, tarefa desempenhada por Heleno esta semana. Além de acusar os parlamentares de chantagem, o ministro chefe do GSI subiu o tom a ponto de desafiar o Legislativo a aprovar uma emenda parlamentarista se quiser governar. Mexeu com sistema de governo, instituições, democracia.

E com isso se chega ao clima de inquietação que vai dar o tom do Carnaval de Brasília. Acuado por outras razões, relacionadas sobretudo à relação cada vez mais evidente (que fez questão de mostrar) com o caso do miliciano Adriano, e quem sabe pelas dificuldades de fazer a economia deslanchar, Bolsonaro parece querer provocar um confronto institucional. Para chegar aonde?

Tudo indica que o Bloco do Golpe é ainda uma agremiação minguada, candidata a atravessar o samba e levar vaia das arquibancadas — que estão quietinhas assistindo mas estão acordadas. Bolsonaro, apesar das tentativas, ainda não conseguiu afinar a bateria militar no seu tom. Na cúpula das Forças Armadas, por ora, a maioria não parece disposta a voltar a vestir a fantasia de Brucutu. Mas o clima carnavalesco está estranho nos arredores do Planalto.
Helena Chagas

Como começa a bagunça

O que têm a ver as declarações contra o Congresso do general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e o tiro disparado por policiais militares grevistas, encapuzados, contra o senador Cid Gomes (PDT-CE), em Sobral? Aparentemente, nada; em sua essência, porém, tudo: a bagunça. O ex-governador cearense tentou negociar e, depois, conduzindo uma retroescavadeira, enfrentou os grevistas de forma exaltada, imprudente e voluntarista, sendo baleado no peito e na clavícula. O episódio, no entanto, também é uma demonstração da anarquia que começa a vicejar nas polícias militares, pois as greves são ilegais e estão sendo preparadas em outros estados.

As declarações do general são incompatíveis com o cargo que ocupa no governo e nos trazem à memória as “quarteladas” que caracterizaram a indisciplina nos quartéis e a presença dos militares na política durante o século passado, inclusive durante o regime militar, só encerradas no governo Ernesto Geisel, com a demissão do então ministro do Exército, general Sílvio Frota, do qual Augusto Heleno foi ajudante de ordens. Ainda que minimizadas pelo presidente Jair Bolsonaro — diga-se de passagem, o responsável pela sua divulgação —, as declarações afrontam um poder constituído, que está no pleno exercício de suas prerrogativas.

A fala do ministro foi transmitida ao vivo, via internet, pelo perfil do presidente Jair Bolsonaro em uma rede social, na terça-feira. No evento de hasteamento da bandeira em frente ao Palácio da Alvorada, Heleno conversava com o ministro da Economia, Paulo Guedes, e com o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. No diálogo, disse que o governo não pode “aceitar esses caras chantagearem a gente o tempo todo”. Ontem, em uma rede social, Heleno tentou minimizar as declarações, mas a emenda foi pior do que o soneto: argumentou que, na conversa com os ministros, estava expondo sua visão pessoal sobre “insaciáveis reivindicações de alguns parlamentares por fatias do Orçamento Impositivo”.


As declarações provocaram reações no Congresso, que discute os vetos do presidente Bolsonaro às regras que dão a deputados e senadores maior controle sobre o Orçamento da União. Manter ou derrubar os vetos presidenciais é prerrogativa do parlamento. O que todos os governos democráticos procuram fazer é articular uma base sólida, que garanta a aprovação do que interessa ao Executivo. O Palácio do Planalto, porém, não se empenha muito para garantir que isso aconteça.

A reação mais forte foi do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que fez duras críticas ao general: “Geralmente na vida, quando a gente vai ficando mais velho, a gente vai ganhando equilíbrio, experiência e paciência. O ministro, pelo jeito, está ficando mais velho e está falando como um jovem estudante no auge da sua idade, da sua juventude”, disse. Maia também ironizou: “Eu não ouvi da parte dele nenhum tipo de ataque ao parlamento quando a gente estava votando o aumento do salário dele como militar da reserva (…) Talvez ele estivesse melhor em um gabinete de rede social, tuitando, agredindo, como muitos fazem, como ele tem feito ao parlamento nos últimos meses”, concluiu o presidente da Câmara.

O presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), também se manifestou sobre a fala de Heleno. Em nota, disse que “nenhum ataque à democracia será tolerado pelo parlamento” e que “o momento, mais do que nunca, é de defesa da democracia, independência e harmonia dos poderes para trabalhar pelo país”. Contra todas as expectativas, às vésperas do carnaval, o esgarçamento das relações do Palácio do Planalto com o Congresso aumenta as incertezas em relação à economia.

Um comentário do presidente da República, em cerimônia oficial, sobre o ministro da Economia, Paulo Guedes, gerou ainda mais insegurança no mercado, pois deixou no ar que Guedes estaria demissionário do cargo e sofre uma fritura interna. Seu prazo de validade estaria próximo do fim. O que alimenta essas especulações é o vai-não-vai da economia, cujo crescimento está sendo medíocre, apesar dos juros baixos e da inflação controlada.

O IBC-BR, índice do Banco Central, aponta alta de 0,5% no último trimestre do ano e de 0,9% no ano de 2019. Em 2018, quando o PIB teve alta de 1,3%, o IBC-BR também subiu 1,3%: se o padrão se repetir, o que não é garantido, o PIB em 2019 terá tido pior desempenho que no biênio 2017-18. Nesse ritmo, só em 2022 voltaremos ao PIB de 2014. Levar oito anos para completar a recuperação de uma recessão em qualquer época e em qualquer lugar é um fracasso.

Essa situação tem ampliado os questionamentos à política de Guedes, um ultraliberal, por parte de setores do governo que têm formação desenvolvimentista, entre os quais, os militares. O próprio Bolsonaro é um recém-convertido ao liberalismo e vem adotando postura cada vez mais populista, como no caso dos combustíveis e da reforma administrativa, e não perde oportunidade de abrir novas frentes de conflito, como a queda de braço com os governadores.

Brasil em chamas


A palavra do presidente em 1978 e em 2020

“A imprensa brasileira, quando não há notícias, tem uma tendência a interpretar as coisas com base em evidências que nem sempre correspondem à realidade.”

“Talvez essas análises estejam até corretas e meu governo venha a ser politicamente fraco e militarmente fraco. Mas eu quero pagar para ver.”

“Se eu não defini minha concepção de democracia, como é que ela pode estar clara? Eu não gostaria de dizer democracia relativa, mas o fato é que democracia plena não existe.”

“Cada poder tem independência na sua seara. Quando um se intromete na seara do outro está errado. Por exemplo, o orçamento. Quando o Legislativo dispunha de plena liberdade para mexer no orçamento, fizemos o levantamento de um número enorme de instituições fantasmas sustentadas pelo Legislativo.”

“Não faço distinção entre civis e militares. Os dois devem ser tratados igualmente. Os militares, por exemplo, devem se comportar de acordo com os regulamentos militares.”

“E no império, o imperador não nomeava todo mundo, e tudo não funcionou bem por tanto tempo?”

“A qualidade do ensino caiu. Chegamos a ter bom nível de ensino superior, professores importados inclusive, mas com súbito aumento de vagas não dava para manter o nível. (...) Sou a favor das manifestações estudantis, desde que não interfiram com a vida da comunidade.”

“O Estado precisa defender-se sim, contra os extremistas que desejam destruí-lo para implantar ideias que o totalitarismo consagra.”

***
Parece Jair Bolsonaro, mas é João Figueiredo, em 1978. Já apontado como novo presidente, o general deu entrevista histórica à Folha, agora republicada no início de celebração do centenário do jornal. O texto é famoso tanto pelas declarações fiéis sem registro de gravador quanto pelo diálogo duro porém civilizado entre jornalistas e entrevistado mesmo na ditadura —muito diferente do que ocorre hoje no Alvorada.

Sem picadeiro



Não estou a fim de dar picadeiro para palhaço. Aqui não é circo
Randolfe Rodrigues, senador (Rede-AP)

Perigo no terceiro piso

"Ficou completamente militarizado o meu terceiro andar", disse o presidente Bolsonaro ao substituir por um general do Exército na ativa o ministro Onyx Lorenzoni, até então chefe da Casa Civil e último político profissional a ter gabinete no Palácio do Planalto. Agora, são todos militares os ministros instalados no coração do governo: coordenando a ação dos diferentes ministérios, fazendo a articulação do Executivo com o Legislativo ou ainda assessorando a Presidência em assuntos de segurança.

Ao todo, eles somam pouco mais de 40% dos que comandam o primeiro escalão: 9 em 22 ministros, sem contar o vice-presidente Mourão. Essa porcentagem supera a da Venezuela de Maduro, onde membros das Forças Armadas comandam 30% das pastas. E é inédita entre as democracias dignas do nome.

Ao mesmo tempo em que se cercou de fardas, Bolsonaro —ele mesmo ex-capitão de carreira tumultuada— tratou de blindar o sistema de previdência dos militares do enxugamento geral promovido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.

Por fim, no primeiro ano de seu governo, pautado pelos esforços de austeridade fiscal, o presidente encontrou recursos para projetos importantes da Marinha e protegeu o orçamento da Defesa de cortes que atingiram outros setores. Como observou o professor Octavio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas, no Boletim Macro do IBRE-FGV de fevereiro, que circula esta semana, o Orçamento de 2020 deixa patente a preferência aos gastos com Defesa sobre os dispêndios na área social.


É possível que as Polianas de costume, embaladas pela ilusão de vivermos em tempos normais, considerem que não há nada de incomum nos afagos do governo à instituição militar. Muito menos no engajamento de lideranças reconhecidas da corporação no dia a dia da gestão nacional. Afinal, argumentam, a nação precisa contar com três Armas bem equipadas; remuneração e previdência decentes são devidas a quem tem como missão proteger o país; além disso, mais do que a vestimenta, contam a dedicação e competência na condução das tarefas de governo.

É fato. Mas sabemos também, por dura experiência própria, que, ao deixarem as Forças Armadas sua posição de defensoras do Estado e da Constituição, sendo arrastadas pelas disputas políticas do dia a dia dos governos, o resultado é igualmente desastroso para a corporação e para a democracia.

Mais perigoso ainda se os governos têm inclinação populista. Veja-se a Venezuela de Maduro, hoje sustentado nas Forças Armadas, primeiro cooptadas, depois corrompidas e, enfim, transformadas em guarda pretoriana do ditador.
Maria Hermínia Tavares

Liberalismo desmoralizado

Está em curso no país um meticuloso processo de desmoralização da agenda liberal. Os responsáveis são o presidente Bolsonaro e sua turma mais próxima. Não precisam me dizer que Bolsonaro nunca foi liberal. Ele tem desde sempre uma mentalidade autoritária e corporativista, na qual não cabe o respeito às mais amplas liberdades individuais.

Mas o fato é que foi colocada em andamento uma agenda econômica liberal. Por acaso, porém. Isso porque, não tendo a menor noção de política econômica, o candidato Bolsonaro precisou procurar alguém que preenchesse essa lacuna. A condição era que não tivesse nada a ver com os economistas ligados ao PT e ao PSDB.

Foi bater no Paulo Guedes, ao qual deu uma ampla e inédita autonomia, além de poder para executar as reformas e a abertura liberal da economia.

Mas é preciso acrescentar outro fator ao quadro: havia uma ampla demanda nacional para uma política assim. Depois dos anos do PT, boa parte dos eleitores estava por aqui com o excesso de Estado a atrapalhar a vida das pessoas e empresas. E com a enorme roubalheira que só tinha sido possível devido à ampla dominância do governo sobre a economia. O Estado e as estatais foram assaltados meticulosamente.

Desconfio que a maioria do eleitorado procurava alguém do centro direita, certamente mais liberal, mas não encontrou ninguém competente e limpo nesse campo. Todos os políticos que se apresentaram por aí tinham alguma ligação com as velhas práticas políticas.

Deu no Bolsonaro, com seu antipetismo, forte, mas que não seria suficiente para eleger se não tivesse agregado Paulo Guedes.

Iniciado o governo, outro fator apareceu, um Congresso reformista — ou, se quiserem, muito mais reformista que o anterior. E um presidente da Câmara, Rodrigo Maia, alinhado com o liberalismo econômico.

Tudo isso somado, deu, por exemplo, na reforma da Previdência e numa gestão fiscal que efetivamente reduz o déficit e a dívida via controle de gastos e privatizações.

Mas por que o país não decola? Por que não consegue ir além de um crescimento pífio, na base de 1% ao ano?

Só pode ser falta de confiança no governo. Algo assim: a agenda liberal de Guedes e a agenda anticorrupção de Moro podem sobreviver a um presidente autoritário, que ofende da pior maneira possível a imprensa e seus adversários (ou, inimigos, como Bolsonaro considera todos os que não o bajulam)?

Além disso, temos um presidente e sua família enrolados em casos de prática da velha política (as rachadinhas, por exemplo) e com ligações perigosas com as milícias. Também um presidente, sua família e seus colaboradores militares que desconfiam do Congresso e dos “outros” políticos, tidos como conspiradores.

Ora, não pode haver liberalismo sem liberdade de imprensa, sem Congresso e, sobretudo, sem as liberdades individuais. Liberalismo não pode ser apenas a liberdade de empreender. Tem que ser a liberdade do indivíduo de pensar e viver como bem entende, sempre, é claro, com a ressalva de que não pode ferir a liberdade e a dignidade dos outros.

Além disso, uma política econômica liberal não significa a eliminação do Estado. Significa um Estado menor e, sobretudo, mais eficiente. Ora, o governo Bolsonaro dá um show de ineficiência em áreas cruciais — nas filas do INSS e do Bolsa Família, na bagunça da educação, na demora em colocar em funcionamento programas e na destruição da cultura de proteção do meio ambiente que afeta a imagem da economia brasileira, especialmente do agronegócio.

Eis outro exemplo: a política liberal supõe a realização de acordos de livre comércio com o mundo todo. Ora, como fazer isso com um alinhamento escandaloso com os Estados Unidos e com um presidente que arranja inimigos entre os governantes não direitistas?

Já saíram rumores sobre a saída de Paulo Guedes. Rumores, mas... E a paciência e a habilidade de Moro são constantemente postos à prova.

Resumindo, sem Guedes, Moro e Maia, lá se vão as reformas liberais e o combate à corrupção.

E ainda: o presidente avança cada vez mais nos atos lamentáveis de agredir e ofender a imprensa e adversários, abrindo flancos para a oposição. Já se fala em impeachment.

Faz sentido desconfiar que essa estranha combinação do governo é isso mesmo... muito estranha. Por isso já se fala tanto de 2022.

A queda da violência num Brasil envolto no mistério da morte de Adriano da Nóbrega

O número de homicídios caiu 19% em 2019 no Brasil, na maior redução desde que uma iniciativa da sociedade civil, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, começou a reunir e homologar os dados oficiais, em 2007. Trata-se de uma notícia animadora, embora, com mais de 41.000 mortes, o gigante sul-americano permaneça entre os países mais violentos do mundo. São quase 10.000 pessoas a menos sendo assassinadas em comparação ao ano anterior, num período em que também houve queda de outros delitos, como roubos e estupros. Os dados confirmam uma tendência que já era notada nos meses anteriores. São feitos importantes, porque a insegurança é uma das principais preocupações dos 210 milhões de brasileiros, sejam eles ricos ou pobres. E é natural que o Governo do presidente Jair Bolsonaro se congratule por isso.


Entretanto, há outro dado que não pode ser esquivado. As mortes em operações policiais —também entre as mais altas do mundo— cresceram notavelmente, sobretudo no Estado do Rio de Janeiro, onde houve mais de 1.800 vítimas no ano passado, maior cifra em duas décadas. É um nível de letalidade policial incompatível com um Estado de direito fortalecido, em que as forças de segurança têm o dever de proteger a população, ao invés de serem vistas como uma ameaça por amplos setores da sociedade.

As estatísticas mostram que a maioria das vítimas de ações policiais é composta por homens negros e pobres, que morrem baleados em incursões contra o tráfico de drogas nas favelas cariocas. Raramente as investigações sobre essas mortes terminam com a conclusão de que os agentes se excederam no uso da força, o que reforça uma sensação de impunidade.

O presidente Bolsonaro atribui ao seu Governo a histórica queda dos homicídios em seu primeiro ano de mandato, mas nada diz sobre as cifras de mortos em operações policiais, que causam alarme inclusive nas Nações Unidas. Sua pretensão de blindar juridicamente os policiais que abatem suspeitos foi barrada no Congresso, mas sua intenção de flexibilizar a compra e a posse de armas para a população em geral se mantém firme. Os especialistas atribuem a redução das mortes violentas a uma conjunção de fatores que vai além da ação do Governo federal, e advertem contra usar essa redução dos delitos para legitimar o abuso da força. A recente morte na Bahia do ex-PM Adriano da Nóbrega, ligado a suspeitos do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em 2018, fez as atenções se voltarem novamente para as milícias compostas por ex-policiais e sobre suas conexões com políticos locais, indícios que salpicam inclusive o senador Flávio Bolsonaro. O presidente não pode evitar esta realidade. Tem a obrigação de esclarecer qualquer tipo de relação e de tomar medidas para evitar um maior dano à democracia.

Respire

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Descontrole total

O destempero do presidente Jair Bolsonaro atingiu nesta semana um nível inaceitável para quem ocupa tão elevado cargo. Já não é mais possível dizer que o presidente está “testando os limites” da democracia e do decoro, pois estes há muito tempo foram superados. O que aconteceu nos últimos dias é mais do que simplesmente uma reiteração da falta de moderação de Bolsonaro; trata-se de demonstração cabal da incapacidade do presidente de controlar a própria língua e, por extensão, o governo que chefia.

Na terça-feira de manhã, o presidente chocou o País ao ofender publicamente uma jornalista com grosseiras insinuações de caráter sexual. Horas mais tarde, quando os brasileiros ainda tentavam se refazer da indignação causada pelo comportamento acintosamente desrespeitoso do presidente da República, Bolsonaro surpreendeu a todos com declarações enigmáticas acerca da permanência do ministro da Economia, Paulo Guedes, no governo. Sem que ninguém lhe perguntasse, Bolsonaro afirmou que “o Paulo não pediu para sair, tenho certeza de que ele vai continuar conosco até o último dia”.


Por estar no topo da hierarquia da administração pública, um presidente da República deve se pautar pela discrição. Tudo o que diz tem o potencial de servir como referência e informação fundamental para a sociedade. Para começar, é principalmente dele que deve partir o exemplo de respeito pelas instituições, sem as quais a própria Presidência da República não se legitima. Um presidente, ademais, deve ser capaz de transmitir serenidade e firmeza na condução de seu governo, pois disso dependem a estabilidade política do País e a confiança dos agentes econômicos.

Quando um presidente dá indícios claros de que ignora, em todos os aspectos, a liturgia e o peso político e institucional de seu cargo, estamos diante de um desgoverno.

Não é trivial que o presidente venha a público, sem ser provocado, para manifestar-se sobre a possibilidade de demissão de seu principal ministro, responsável pela condução da economia e avalista de Bolsonaro ante investidores internos e externos. Ao informar que se cogitou a saída de Paulo Guedes, Bolsonaro dá materialidade a rumores de que a equipe econômica estaria descontente. Motivos, afinal, não faltam: além de ser notória a falta de apoio do presidente às reformas, Bolsonaro não demonstrou empenho em defender seu ministro da Economia depois que este deu declarações desastrosas sobre funcionários públicos “parasitas” ou sobre os efeitos, a seu ver absurdos, do dólar barato, como a possibilidade de uma empregada doméstica viajar para o exterior.

Ademais, Paulo Guedes estaria descontente porque o governo aceitou negociar com o Congresso o controle de execução de emendas parlamentares ao Orçamento, embora o presidente Bolsonaro tenha dito que não aceitaria se tornar “refém” do Legislativo. Ao ministro da Economia se juntou o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, que se queixou das “insaciáveis reivindicações” dos parlamentares e acusou “esses caras” do Congresso de fazerem “chantagem”.

A barafunda obrigou Bolsonaro a se reunir às pressas, a portas fechadas, com Paulo Guedes, Augusto Heleno e o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, responsável pela articulação política. Oficialmente, o encontro serviu para discutir a reforma administrativa, mas o fato de que a reunião, fora da agenda, obrigou o governo a cancelar em cima da hora um evento para quase mil convidados, muitos dos quais já estavam no Palácio do Planalto, indica que havia um incêndio de grandes proporções a ser debelado.

Num governo em permanente autocombustão, os bombeiros infelizmente ainda terão muito trabalho, pois o próprio presidente Bolsonaro, desde sempre, quando se manifesta sobre qualquer assunto, costuma adicionar gasolina ao fogo. A confusão de seu governo é reflexo de uma profunda incompreensão acerca de seu papel como presidente. Governar não é ofender – seja a honra das pessoas, seja a inteligência alheia.

Mudanças climáticas ameaçam futuro das crianças no mundo

Países de todo o mundo estão fracassando em proteger as crianças das ameaças à saúde causadas pelas mudanças climáticas, e em criar um ambiente saudável essencial para seu bem-estar, diz um relatório conjunto da Organização das Nações Unidas, Fundo da ONU para a Infância (Unicef) e a revista médica The Lancet, que publicou o estudo nesta quarta-feira.

"As mudanças climáticas, a degradação ecológica, populações migrantes, conflitos, desigualdades persistentes e práticas comerciais predatórias ameaçam a saúde e o futuro de crianças em todos os países do mundo", diz a publicação, que destaca os impactos de emissões de gases poluentes, a destruição da natureza e alimentos altamente calóricos e ultraprocessados.

"Os governos precisam formar coalizões através de vários setores para superar as pressões ecológicas e comerciais, a fim de garantir que as crianças recebam seus direitos agora e um planeta habitável nos próximos anos."

Enquanto crianças de países ricos têm maiores chances de sobrevivência e bem-estar, esses mesmos países contribuem de forma desproporcional com emissões de CO2 que ameaçam o futuro de todas as crianças no mundo, consta do texto da autoria de 40 dos maiores especialistas em saúde infantil e juvenil do mundo.


Os pesquisadores desenvolveram um índice de "desenvolvimento infantil" que inclui fatores como mortalidade, saúde, educação e nutrição, e outro de "sustentabilidade", que se concentra nas emissões per capita de gases de efeito estufa de cada país. O estudo frisa que nenhum dos países do mundo teve bom desempenho nas três categorias avaliadas: desenvolvimento infantil, sustentabilidade e igualdade.

"Construímos um novo perfil nacional com o fim de medir as condições fundamentais para menores entre 0 e 18 anos sobreviverem e se desenvolverem hoje em dia, além de medir ameaças ambientais futuras para crianças, baseando-nos nos excessos das emissões de gases de efeito estufa projetados para 2030. Essas duas medidas [...] são combinadas para gerar nosso perfil de desenvolvimento e futuro infantil", explica o documento.

Segundo os critérios do primeiro índice, nações menos desenvolvidas como a República Centro-Africana e o Chade têm desempenho bastante ruim, comparado a países ricos como Noruega, Coreia do Sul, Holanda, França e Irlanda, que ocupam os cinco primeiros postos em bem-estar infantil.

O ranking, no entanto, aparece praticamente inverso no segundo índice, que detalha as emissões de poluentes por habitante. Países onde as crianças contam com um melhor ponto de partida na vida, com destaque para os europeus, falham em assegurar um ambiente climático adequado para o futuro infantil.

Estados Unidos, Austrália e Arábia Saudita, por exemplo, estão entre os dez últimos países no ranking de sustentabilidade. Holanda, Islândia e Alemanha também constam no fim dessa lista. A Alemanha ocupa o 14º lugar em bem-estar infantil, mas o 161º em sustentabilidade.

Já o Brasil não altera muito sua posição: em bem-estar infantil, ocupa o 90º lugar, ficando em 89º no critério de sustentabilidade.

"Os tomadores de decisão estão falhando com nossas crianças e nossa juventude, fracassando em proteger sua saúde, seus direitos e seu planeta", comentou o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus.

O relatório também destacou ameaças que o setor comercial representa para a infância. A exposição a publicidades de junk food (comida de baixa qualidade) e alimentos ricos em gordura e açúcares é relacionada à obesidade infantil. O número de crianças e adolescentes obesos mais que decuplicou entre 1975 (11 milhões) e 2016 (124 milhões), de acordo com os autores.

Crianças também são expostas a publicidade de produtos destinados a adultos, como álcool, tabaco e jogos de azar, aumentando suas chances de consumi-los no futuro. "Crianças em países de baixa e média renda também tem alta exposição", constata o estudo. "Numa amostra de 2.423 crianças entre 5 e 6 anos do Brasil, China, Índia, Nigéria e Paquistão, 68% conseguiam identificar pelo menos uma marca de cigarros, com índices que variam de 50% na Rússia até 86% na China."

No Brasil, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública lançou no início do ano uma consulta pública para regulamentar a publicidade infantil no Brasil por meio de portaria. Porém especialistas destacam que a publicidade infantil dirigida a menores de 12 anos já é considerada abusiva no país.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC) não proíbem a publicidade infantil expressamente, mas permitem concluir que a prática é proibida no país. O Artigo 39 do CDC, por exemplo, proíbe que um fornecedor de produtos e serviços se aproveite "da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços".

Em 2014, a Resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional da Criança e do Adolescente) classifica como abusiva a "a prática do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço".

Bolsonaro e os generais pensam(?) que podem governar sem apoio do Congresso

A coisa está feia em Brasília e caminha para um impasse. O governo parece ser autocarburante e inventa uma crise atrás da outra. O presidente Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes não podem ver um microfone que imediatamente começam a dar as declarações mais desagradáveis e enlouquecidas, que fazem inveja a Lula da Silva e Dilma Rousseff, verdadeiros especialistas no gênero.

O respeitável público já está até acostumado Mas desta vez foi o general Augusto Heleno, que imitou Bolsonaro e Guedes, também falou o que não devia e abriu mais uma baita crise com o Congresso, totalmente desnecessária.

Estreante em política, o chefe do Gabinete de Segurança Pública (GSI) do governo Bolsonaro, ao invés de estar cuidando da movimentação dos caminhoneiros, que articulam uma nova greve, resolveu recomendar que o governo não ceda às chantagens do Congresso. Foi um palpite infeliz do general Augusto Heleno, que conseguiu uma façanha – uniu o Congresso inteiro contra ele.

A inabilidade do militar foi surpreendente, porque o que ele chama de “chantagens”, na verdade é um acordo a respeito do controle da ordem de execução de R$ 46 bilhões em emendas parlamentares, que são um direito conquistado pelos congressistas para beneficiar suas bases de apoio com verbas para obras.

O acordo entre Executivo e Congresso manteria vetado um trecho que explicita a punição ao gestor que não seguir a ordem de liberação de emendas imposta pelo Parlamento, mas devolveria aos parlamentares o controle sobre mais de R$ 30 bilhões.

A votação não ocorreu, porém, por divergências quanto ao texto final de um projeto de lei que deveria ser enviado pelo Executivo para selar o acordo, que devolvia ao governo o controle sobre R$ 10,5 bilhões. Mas um grupo de senadores foi contrário ao acordo e defendeu que o governo deveria definir a execução de todas as emendas parlamentares, e não só uma parte delas, uma reivindicação óbvia, do interesse de todos os parlamentares, de situação ou oposição.

Conversando, o Planalto e o Congresso logo chegariam a um entendimento e a vida seguiria em frente, como dizia João Saldanha. Mas as declarações de Heleno entornaram o caldo.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, bateu pesado e acusou o ministro Augusto Heleno de ter virado um ‘radical ideológico contra a democracia’. Outros deputados e senadores também caíram em cima, ameaçando convocar o general para prestar declarações, que seria uma situação horrível.
O problema é grave porque o governo Bolsonaro está tentando o impossível – governar sem ter uma forte base aliada. Os diversos exemplos existentes não são levados em conta. Não adianta ter alta aprovação popular sem ter maioria no Congresso. Isso ficou provado no governo de João Goulart, pois não havia entrosamento entre as facções que o apoiavam – Frente Parlamentar Nacionalista, liderada pelo deputado Sérgio Magalhães, a Frente de Mobilização Popular, criada pelo governador Leonel Brizola, e a Frente de Apoio às Reformas de Base, formada pelo ministro Sant Tiago Dantas.

Outros presidentes também não conseguiram manter uma forte base a- aliada e perderam o poder, como Jânio Quadros e Fernando Collor. Mas Itamar Franco fez o contrário. Reuniu todos os partidos, disse que sem o apoio da maioria não aceitava assumir o poder, e assim conseguiu fazer o melhor governo depois de Juscelino Kubitschek, que também teve maioria no Congresso, na coalização PSD-PTB.

Governo do palavrão

Parece que a perda de compostura, a falta de noção da importância do cargo, está se espalhando por todo o governo. Contaminou todo o governo.

Está se tornando um governo que tem como característica a falta de compostura e de noção da dignidade do cargo
Tasso Jereissati, senado (PSDB)

Apatifam-nos

"Apatifar”, nos diz o “Aurélio”, significa tornar desprezível, aviltar, envilecer. Pessoas se apatifam, nações inteiras podem se apatifar, ou serem apatifadas. O mundo hoje vive uma assustadora onda de contágio viral que, espera-se, acabará controlada ou, eventualmente, desaparecerá. Já patifaria não mata, mas também contagia, com a diferença de que não tem nem perspectiva de cura.

É impossível observar o Brasil de hoje sem a sensação de estar assistindo a uma pantomima tragicômica, a decomposição de um Estado que, dissessem o que dissessem de governos anteriores — inclusive os lamentáveis —, mantinham, pelo menos, a linha, o que é mais do que se pode dizer da atuação de Bolsonaro & Filhos no palco do poder.


Agora se entende por que Bolsonaro insistia em dizer que não houve um golpe em 64 nem uma ditadura militar nos 20 anos seguintes: ele queria montar o seu próprio regime militar, enchendo o Planalto de generais de fatiota que deixam seus tanques no estacionamento e entram pela rampa principal, rindo da gente. Implícita nessa original tomada do poder está a ideia imorredoura de que só uma casta iluminada, os militares, sabem governar um país.

O apatifamento de uma nação começa pela degradação do discurso público e pela baixaria como linguagem corriqueira, adotada nos mais altos níveis de uma sociedade embrutecida. Apatifam-nos pelo exemplo. Milícias armadas impõem sua lei do mais forte e mais assassino com licença tácita para matar. Há uma guerra aberta com a área de cultura, e a ameaça de um retrocesso obscurantista nas prioridades de um governo que ainda não aceitou Copérnico, o que dirá Darwin. Aumentam os cortes de gastos sociais, além de cortes em direitos históricos dos trabalhadores. Aumenta a defloração da Amazônia. Aumentam as ameaças à imprensa.