terça-feira, 16 de janeiro de 2024
O homem, um estranho no mundo
O homem deveria ser a medida de tudo. De fato, ele é um estranho no mundo que criou. Não soube organizar este mundo para ele, porque não possuía um conhecimento positivo da sua própria natureza. O enorme avanço das ciências das coisas inanimadas em relação às dos seres vivos é, portanto, um dos acontecimentos mais trágicos da história da humanidade. O meio construído pela nossa inteligência e pelas nossas intenções não se ajusta às nossas dimensões nem à nossa forma. Não nos serve. Sentimo-nos infelizes. Degeneramos moralmente e mentalmente.
São precisamente os grupos e as nações em que a civilização industrial atingiu o apogeu que mais enfraquecem. Neles, o retorno à barbárie é mais rápido. Permanecem sem defesa perante o meio adverso que a ciência lhes forneceu. Na verdade, a nossa civilização, tal como as que a antecederam, criou condições em que, por razões que não conhecemos exatamente, a própria vida se torna impossível. A inquietação e a infelicidade dos habitantes da nova cidade têm origem nas instituições políticas, econômicas e sociais, mas sobretudo na sua própria degradação. São vítimas do atraso das ciências da vida em relação às da matéria.
Alexis Carrel, "O Homem esse Desconhecido"
São precisamente os grupos e as nações em que a civilização industrial atingiu o apogeu que mais enfraquecem. Neles, o retorno à barbárie é mais rápido. Permanecem sem defesa perante o meio adverso que a ciência lhes forneceu. Na verdade, a nossa civilização, tal como as que a antecederam, criou condições em que, por razões que não conhecemos exatamente, a própria vida se torna impossível. A inquietação e a infelicidade dos habitantes da nova cidade têm origem nas instituições políticas, econômicas e sociais, mas sobretudo na sua própria degradação. São vítimas do atraso das ciências da vida em relação às da matéria.
Alexis Carrel, "O Homem esse Desconhecido"
Por que tanto ódio?
Há em São Paulo um mistério que me atormenta. Mistério que talvez nem Sherlock Holmes, Agatha Christie, George Simenon, Patricia Cornwell, Ellery Queen e Patricia Highsmith consigam resolver. Ah, senhores vereadores, os citados estão entre os mestres da ficção policial. Ficção é fantasia, imaginação. Realidade são os que roubam celulares nas ruas, quebram vidros dos carros e levam o que podem, sequestram pessoas, exigem Pix dos idosos na porta dos bancos, reviram lixo em busca de comida, ou aqueles que exigem Pix para salvar suas almas e levá-las a Deus, telefonam comunicando compras feitas com nosso cartão fora de nosso perfil, e assim por diante.
Isso vocês, boa parte de nossos edis (edil é sinônimo de vereador, assim como prócer, agnoteta, arquimandrita), ignoram. Realidade é a cidade suja, calçadas arrebentadas, bueiros entupidos, ruas esburacadas ou sem iluminação, correio que não pode chegar a muitos CEPs por insegurança, casas sobre esgotos ou na beira de morros despencando com chuvas, doenças infecciosas, riachos cheios de urina e merda correndo entre casas, semáforos quebrados.
Tudo isso acontece realmente e nos atormenta como cidadãos. Caros vereadores. Talvez boa parte de vocês ignore esta cidade que relatei. E aqui digo “caros” não com o significado de queridos, mas sim de quanto pagamos para sustentá-los. E olhem que nomeei 0, 7% de problemas fundamentais para sermos uma metrópole civilizada, boa para se viver. Ou apenas os do andar de cima são dignos de viver?
Qual de vocês desceu do gabinete, saiu do carro blindado (do que têm medo?) e conversou com aqueles em situação de rua? Quem sabe o que é dormir numa calçada gelada em noite fria? São mais de 200 mil no Brasil, quase a população de minha terra, Araraquara. Quem se sentou no chão com pedintes, miseráveis, doentes para os quais não há SUS, nem nada? Quem passou uma noite na rua dando comida, cobertores, remédios? Quantos conhecem o trabalho do padre Júlio Lancellotti, um São Francisco de Assis da atualidade? Mesmo que não tenham a mesma crença, sabem quem foi São Francisco? Padre Júlio vem sendo vilipendiado, escorraçado, amaldiçoado. Não votamos em vocês somente para validar arranha-céus e mudar planos de zoneamento. E esta crônica, neste início de novo ano, é para tentar decifrar o mistério maior de todos os tempos: que mal o padre Júlio Lancellotti fez a vocês? Por que ele incomoda? O que fez para despertar tanto ódio? O que há por trás desse rancor? Do ponto de vista do abraçar, querer bem ao próximo e ter compaixão, padre Júlio dá lições de humanidade a vocês e a todos nós.
Isso vocês, boa parte de nossos edis (edil é sinônimo de vereador, assim como prócer, agnoteta, arquimandrita), ignoram. Realidade é a cidade suja, calçadas arrebentadas, bueiros entupidos, ruas esburacadas ou sem iluminação, correio que não pode chegar a muitos CEPs por insegurança, casas sobre esgotos ou na beira de morros despencando com chuvas, doenças infecciosas, riachos cheios de urina e merda correndo entre casas, semáforos quebrados.
Tudo isso acontece realmente e nos atormenta como cidadãos. Caros vereadores. Talvez boa parte de vocês ignore esta cidade que relatei. E aqui digo “caros” não com o significado de queridos, mas sim de quanto pagamos para sustentá-los. E olhem que nomeei 0, 7% de problemas fundamentais para sermos uma metrópole civilizada, boa para se viver. Ou apenas os do andar de cima são dignos de viver?
Qual de vocês desceu do gabinete, saiu do carro blindado (do que têm medo?) e conversou com aqueles em situação de rua? Quem sabe o que é dormir numa calçada gelada em noite fria? São mais de 200 mil no Brasil, quase a população de minha terra, Araraquara. Quem se sentou no chão com pedintes, miseráveis, doentes para os quais não há SUS, nem nada? Quem passou uma noite na rua dando comida, cobertores, remédios? Quantos conhecem o trabalho do padre Júlio Lancellotti, um São Francisco de Assis da atualidade? Mesmo que não tenham a mesma crença, sabem quem foi São Francisco? Padre Júlio vem sendo vilipendiado, escorraçado, amaldiçoado. Não votamos em vocês somente para validar arranha-céus e mudar planos de zoneamento. E esta crônica, neste início de novo ano, é para tentar decifrar o mistério maior de todos os tempos: que mal o padre Júlio Lancellotti fez a vocês? Por que ele incomoda? O que fez para despertar tanto ódio? O que há por trás desse rancor? Do ponto de vista do abraçar, querer bem ao próximo e ter compaixão, padre Júlio dá lições de humanidade a vocês e a todos nós.
Cinco mais ricos dobraram suas fortunas em 3 anos
No documento divulgado, por ocasião do encontro da elite econômica global no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, a Oxfam International afirmou que, somadas, as fortunas das cinco pessoas mais ricas do mundo – Elon Musk (Tesla, SpaceX), Bernard Arnault (LVHM), Jeff Bezos (Amazon), Larry Ellison (Oracle) e o megainvestidor Warren Buffet – aumentaram 114%, o que corresponde a 464 bilhões de dólares (R$ 2,26 trilhões), chegando a 869 bilhões de dólares no ano passado.
"A desigualdade não é um acaso: a classe dos bilionários garante que as grandes corporações lhes entreguem mais riquezas às custas de todas as outras pessoas", afirmou o diretor-executivo interino da Oxfam, Amitabh Behar.
Desde 2020, o poder financeiro de quase 4,77 bilhões de pessoas – ou 60% da população mundial – caiu 0,2% em termos reais, segundo a entidade.
A Oxfam lançou um apelo aos governos para que reduzam o poder das grandes empresas através da quebra de monopólios de modo a avançar no combate às desigualdades, além de instituir impostos sobre o lucro e a riqueza e promover alternativas ao controle de acionistas, como aumentar a participação dos trabalhadores na administração empresarial.
"O poder das grandes empresas é usado para gerar desigualdade ao arrochar os trabalhadores e enriquecer os acionistas mais ricos, driblar impostos e privatizar o Estado", diz a ONG.
Os analistas da Oxfam também demonstram como a "guerra aos impostos" travada pelas grandes empresas obteve êxito em derrubar as taxações em aproximadamente um terço nas últimas décadas.
"Em todo o mundo, representantes do setor privado promovem de maneira implacável as taxas mais baixas, com mais brechas legais, menos transparência e outras medidas voltadas para permitir que as empresas contribuam o menos possível aos cofres públicos", alertou a ONG.
Há anos a Oxfam chama a atenção para o aumento da disparidade entre os super-ricos e a maioria da população mundial durante o Fórum Econômico Mundial de Davos. A entidade afirma que, desde a pandemia de covid-19, o abismo entre ricos e pobres vem aumentando.
"A Oxfam prevê que teremos o primeiro trilionário dentro de uma década", afirmou Behar. "Ao mesmo tempo, para derrotarmos a pobreza, precisaríamos de mais de 200 anos." O primeiro bilionário da história foi John D. Rockefeller, da Standart Oil, em 1916.
A ONG avalia que a realização da cúpula do G20 no Brasil seria uma oportunidade ideal para aumentar a conscientização sobre as desigualdades, uma vez que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva colocou temas referentes à pobreza no centro da agenda do encontro das maiores economias do mundo.
O relatório avalia que as 148 maiores empresas do mundo tiveram lucros somados de 1,8 trilhão de dólares no 12 meses encerrados em junho de 2023, ou seja, uma alta de 52% sobre a média de três anos, o que gerou rendimentos vultuosos aos acionistas, ao mesmo tempo em que milhões de trabalhadores enfrentam uma inflação em alta e menor poder aquisitivo.
"A desigualdade não é um acaso: a classe dos bilionários garante que as grandes corporações lhes entreguem mais riquezas às custas de todas as outras pessoas", afirmou o diretor-executivo interino da Oxfam, Amitabh Behar.
Desde 2020, o poder financeiro de quase 4,77 bilhões de pessoas – ou 60% da população mundial – caiu 0,2% em termos reais, segundo a entidade.
A Oxfam lançou um apelo aos governos para que reduzam o poder das grandes empresas através da quebra de monopólios de modo a avançar no combate às desigualdades, além de instituir impostos sobre o lucro e a riqueza e promover alternativas ao controle de acionistas, como aumentar a participação dos trabalhadores na administração empresarial.
"O poder das grandes empresas é usado para gerar desigualdade ao arrochar os trabalhadores e enriquecer os acionistas mais ricos, driblar impostos e privatizar o Estado", diz a ONG.
Os analistas da Oxfam também demonstram como a "guerra aos impostos" travada pelas grandes empresas obteve êxito em derrubar as taxações em aproximadamente um terço nas últimas décadas.
"Em todo o mundo, representantes do setor privado promovem de maneira implacável as taxas mais baixas, com mais brechas legais, menos transparência e outras medidas voltadas para permitir que as empresas contribuam o menos possível aos cofres públicos", alertou a ONG.
Há anos a Oxfam chama a atenção para o aumento da disparidade entre os super-ricos e a maioria da população mundial durante o Fórum Econômico Mundial de Davos. A entidade afirma que, desde a pandemia de covid-19, o abismo entre ricos e pobres vem aumentando.
"A Oxfam prevê que teremos o primeiro trilionário dentro de uma década", afirmou Behar. "Ao mesmo tempo, para derrotarmos a pobreza, precisaríamos de mais de 200 anos." O primeiro bilionário da história foi John D. Rockefeller, da Standart Oil, em 1916.
A ONG avalia que a realização da cúpula do G20 no Brasil seria uma oportunidade ideal para aumentar a conscientização sobre as desigualdades, uma vez que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva colocou temas referentes à pobreza no centro da agenda do encontro das maiores economias do mundo.
A conquista do Outro
O tema da chamada “escravidão contemporânea”, no Brasil, não significa a mesma coisa em diferentes bocas e em diferentes escritos. Nem mesmo significa sempre propriamente escravidão. E nem sempre é apresentado em perspectiva propriamente científica. Mesmo em estudos acadêmicos, são muitas as incertezas conceituais e são frequentes as tentações do mero denuncismo em si, sem penetrar nas causas, fatores, consequências sociais e funções econômicas de sua ocorrência e persistência no capitalismo subdesenvolvido.
Diferentemente do que pode pressupor o senso comum, mesmo de pessoas e instituições empenhadas, por ímpeto de justiça, em combatê-la, a escravidão contemporânea não é expressão casual de uma maldade, de uma esperteza de quem a pratica, de um desconhecimento do que ela propriamente é – um crime.
Apesar de eventuais incertezas e vacilações na sua definição, desde os anos 1970, pelo menos, em diferentes lugares do mundo organizações humanitárias e os Estados têm se empenhado em combater a escravidão e punir sua prática. Também aqui no Brasil. Aqui tem sido forte a tendência com o objetivo de, comjustiça, submeter cada vez mais as empresas e os autores do crime de escravização aos rigores da lei.
Isso apesar de termos ainda uma disseminada e indevida certeza de impunidade e de reiterados casos de ações baseadas no equívoco de suporem os autores que a violência privada de jagunços e pistoleiros, recrutados como aparato repressivo na situação de trabalho, vale também na resistência aos agentes da lei. Casos de assassinatos de militantes da causa antiescravista e até mesmo de funcionários das agências oficiais de repressão ao trabalho forçado não têm sido raros. Apesar de o Brasil ser signatário, desde os anos 1920, de convenções internacionais que obrigam os Estados nacionais à proibição da escravidão e a combatê-la, porque se trata de crime, muitos ainda acham que o proprietário de terra pode legitimamente ser, também, proprietário de gente.
Ainda agora, em 2023, dois fazendeiros do sul do Pará foram condenados a cinco anos de prisão pela submissão de 85 trabalhadores a trabalho análogo ao de escravidão. A ocorrência é de 2002, mas o crime de escravização é imprescritível. O processo vinha se arrastando desde que dois menores de idade conseguiram fugir da fazenda em que eram escravizados e denunciaram a irregularidade às autoridades. O processo chegou a desaparecer, mas foi reconstituído. Foi a julgamento agora em consequência de uma sentença de condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O juiz federal substituto da Comarca de Redenção, no sul do Pará, sentenciou os fazendeiros no dia 27 de junho de 2023.
A importância dessa condenação é enorme. A escravidão praticada no Brasil tem peculiaridades que a diferenciam de outras variantes da escravização de seres humanos na atualidade: a de que ela é, em primeiro lugar, expressão de contradições do subcapitalismo que temos. Ela está praticamente inscrita na estrutura lógica desse capitalismo. O restante é dela decorrente e dela componente, como a maldade necessária à sujeição de um ser humano, como se fosse um animal, indício de atraso social e de falta de identificação de quem dela se vale com a condição humana. Mas, sobretudo, indício de um complexo de degradações sociais necessárias à naturalização do cativeiro para que ele cumpra a função iníqua que o motiva.
Na trama de suas relações e de suas causas não há propriamente escolha. Os fatores econômicos se comunicam, seus custos e seus ganhos impõem-se à trama inteira. A própria vítima dela participa não por conivência e impotência, mas por estratégia de sobrevivência em nome da sua diferença social, enquanto alternativa social e histórica. Em nome de um possível que da contradição resulta, que tem visibilidade para ela, mas não tem para quem a explora e oprime. E não tem necessariamente para quem presume defendê-la e em seu nome reivindicar justiça e direitos.
Nesse sentido, este livro não é apenas nem principalmente um livro sobre a atualidade da escravidão. Trata-se de um estudo sobre o modo como o capital organiza empreendimentos econômicos em áreas de condições sociais, econômicas e ambientais de quase ausência do Estado, em face das quais não tem sido incomum o recrutamento de trabalhadores, já de antemão previsto, mas não revelado, que trabalharão como escravos.
Na verdade, essa escravidão é opção inevitável da vítima pela alternativa degradante e não capitalista de trabalho. É para resistir à ameaça e aos efeitos socialmente corrosivos da expansão do capitalismo sobre territórios e comunidades camponesas, de populações originárias, indígenas, caipiras e sertanejas.
Trabalho que, mesmo quando não acarreta ganho, no endividamento do trabalhador, que acaba trabalhando de graça, diminui na família, na entressafra, o número de bocas para a comida insuficiente. E, se houver algum ganho, mesmo aquém do valor criado pelo trabalho cativo em relação ao saldo recebido, será um benefício com base na ideologia camponesa do trabalho de sobrevivência contra a ideologia capitalista do trabalho lucrativo. Essa é a contradição cuja causa a sociologia pode decifrar.
O trabalho escravo é a dolorosa expressão do verdadeiro conflito histórico entre os desvalidos e o capital, um dos conflitos estruturais do capitalismo brasileiro na disputa da terra de trabalho, a terra de sobrevivência, contra a terra de negócio e rentismo, de usurpação, a de um capitalismo subdesenvolvido. É a questão agrária como questão do trabalho que dá sentido a esse conflito e a esse drama. Os autores de digressões sobre a “escravidão contemporânea” omitem-se em relação a essa contradição, sociologicamente explicativa. A do assalto indireto do capital ao mundo camponês, assalto através das mediações de ocultamentos sociais para viabilizar os resultados econômicos de sua reprodução ampliada.
As regiões e as comunidades dessas populações têm sido com frequência os lugares de aliciamento de camponeses para o trabalho sob escravidão por dívida. Não se trata, pois, de uma referência geográfica, mas de uma mediação social datada, pré-capitalista, cujo atraso histórico interessa ao capital, mas cuja resistência e sobrevivência interessa sobretudo à vítima – o camponês e as populações originárias. Esse atraso lhes é, na verdade, um capital cultural e político, que só se desperdiça porque lhe faltam as mediações políticas e partidárias. O atraso, na verdade, é dos partidos na falta de reconhecimento e compreensão do significado e da função política dos grupos humanos deixados à margem da história por uma opção equivocada em favor de uma concepção de progresso socialmente excludente.
Variam as motivações, muitas vezes extracientíficas, dos estudiosos, que, ao revelar e denunciar ocorrências, desprezam, porque as desconhecem ou minimizam, as contradições explicativas e reveladoras da realidade social problemática. As que sociologicamente compreendem o visível e o não visível, o falso e o verdadeiro. Os fatores revelados e os fatores ocultos do processo histórico. Os fatores de reiteração e os de transformação da realidade, os que criam socialmente o novo e, ao mesmo tempo, recriam o que parece ser o já existente, como interpreta e explica Henri Lefebvre. Os que estão presentes na estruturação das condições sociais do cativeiro, isto é, na disputa e dominação do capital pelos lugares e situações comunitários e tradicionais da sociabilidade e da autonomia camponesas e da economia da produção direta de meios de vida, paralelamente à de excedentes comercializáveis. Os das populações excluídas e originárias.
Ou, então, os que desvendam e expõem as invisibilidades próprias do capitalismo num país subdesenvolvido, como o nosso, e expõem as vulnerabilidades do voluntarismo dos que se dedicam a questioná-lo e a combatê-lo, prisioneiros do superficial e aparente. O que é tão característico da moda política de hoje, mas divorciado das revelações da ciência e das duras verdades e incertezas das contradições sociais. A incômoda constatação científica de Marx, de que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem…”. E menos ainda como os outros querem fazê-la em nome de todos sem legitimamente representá-los.
Esse desencontro é o cerne explicativo de toda a sociologia marxiana. É um questionamento que define o perfil deste livro na linha da tradição do pensamento sociológico crítico, ou seja, dialético, o de ampliação e aprofundamento do conhecimento sobre a realidade social além do mero agora. O desvendamento e o questionamento da alienação social, que acoberta a realidade, enquanto falsa premissa de ciência que há na militância desinformada e superficial.
A questão da “escravidão contemporânea” é, na sociologia, questão de urgência e é também questão de enfrentamento do poder de minimização dos problemas sociais, cada vez mais intenso da pós-modernidade. Esta é a sociedade da ocultação das verdades profundas e causais da história e da sua própria historicidade.
Muitos querem, altruisticamente, combater a iniquidade de relações de trabalho antissociais e anti-humanas. Outros querem, de modo não tão altruístico, combater as interpretações que podem estar em desacordo com suas opiniões de senso comum, seus interesses e conveniências partidários e ideológicos, seu exibicionismo político.
Um livro como este é uma proposta de desembaralhar, na perspectiva da ciência, essa diversidade opinativa, e desse modo criar as condições para uma interpretação objetiva e crítica da grave questão, no sentido marxiano de conhecimento explicativo, sociológico, de diferentes modalidades de conhecimento: “das representações, das ilusões de classe, dos instrumentos ideológicos”. Único modo de situá-la no marco da possibilidade de sua superação, e iluminar o caminho desse ser solitário, invisível e difuso que intui no dramático da vida o desafio da transformação social libertadora como obra de correção e de superação das injustiças que negam a todos o direito à sua humanização. Se há um único escravo numa sociedade como esta, todos nós estamos atados à sua situação, porque a sociedade é relacional. Somos sujeitos do mesmo sistema de relacionamentos e de minimização da condição humana.
Ao se falar em escravidão atual está se falando, necessariamente, numa anomalia resultante das contradições sociais de um modelo de sociedade que tem nome: a sociedade capitalista mutilada e insuficientemente realizada, como a brasileira, atravessada pelo primado de interesses econômicos e consequentes irracionalidades que negam o capitalismo e crucificam a sociedade.
De uma análise assim, não resulta receita legítima de militância e ativismo indeterminados e desconectados da estrutura social profunda que dá sentido aos movimentos sociais. Resulta a referência para o que Hans Freyer definiu e Florestan Fernandes explicou: a sociologia como consciência científica da realidade social, caso em que o ativismo não é nem pode ser teatro, para que possa ser práxis socialmente transformadora.
Diferentemente do que pode pressupor o senso comum, mesmo de pessoas e instituições empenhadas, por ímpeto de justiça, em combatê-la, a escravidão contemporânea não é expressão casual de uma maldade, de uma esperteza de quem a pratica, de um desconhecimento do que ela propriamente é – um crime.
Apesar de eventuais incertezas e vacilações na sua definição, desde os anos 1970, pelo menos, em diferentes lugares do mundo organizações humanitárias e os Estados têm se empenhado em combater a escravidão e punir sua prática. Também aqui no Brasil. Aqui tem sido forte a tendência com o objetivo de, comjustiça, submeter cada vez mais as empresas e os autores do crime de escravização aos rigores da lei.
Isso apesar de termos ainda uma disseminada e indevida certeza de impunidade e de reiterados casos de ações baseadas no equívoco de suporem os autores que a violência privada de jagunços e pistoleiros, recrutados como aparato repressivo na situação de trabalho, vale também na resistência aos agentes da lei. Casos de assassinatos de militantes da causa antiescravista e até mesmo de funcionários das agências oficiais de repressão ao trabalho forçado não têm sido raros. Apesar de o Brasil ser signatário, desde os anos 1920, de convenções internacionais que obrigam os Estados nacionais à proibição da escravidão e a combatê-la, porque se trata de crime, muitos ainda acham que o proprietário de terra pode legitimamente ser, também, proprietário de gente.
Ainda agora, em 2023, dois fazendeiros do sul do Pará foram condenados a cinco anos de prisão pela submissão de 85 trabalhadores a trabalho análogo ao de escravidão. A ocorrência é de 2002, mas o crime de escravização é imprescritível. O processo vinha se arrastando desde que dois menores de idade conseguiram fugir da fazenda em que eram escravizados e denunciaram a irregularidade às autoridades. O processo chegou a desaparecer, mas foi reconstituído. Foi a julgamento agora em consequência de uma sentença de condenação do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos. O juiz federal substituto da Comarca de Redenção, no sul do Pará, sentenciou os fazendeiros no dia 27 de junho de 2023.
A importância dessa condenação é enorme. A escravidão praticada no Brasil tem peculiaridades que a diferenciam de outras variantes da escravização de seres humanos na atualidade: a de que ela é, em primeiro lugar, expressão de contradições do subcapitalismo que temos. Ela está praticamente inscrita na estrutura lógica desse capitalismo. O restante é dela decorrente e dela componente, como a maldade necessária à sujeição de um ser humano, como se fosse um animal, indício de atraso social e de falta de identificação de quem dela se vale com a condição humana. Mas, sobretudo, indício de um complexo de degradações sociais necessárias à naturalização do cativeiro para que ele cumpra a função iníqua que o motiva.
Na trama de suas relações e de suas causas não há propriamente escolha. Os fatores econômicos se comunicam, seus custos e seus ganhos impõem-se à trama inteira. A própria vítima dela participa não por conivência e impotência, mas por estratégia de sobrevivência em nome da sua diferença social, enquanto alternativa social e histórica. Em nome de um possível que da contradição resulta, que tem visibilidade para ela, mas não tem para quem a explora e oprime. E não tem necessariamente para quem presume defendê-la e em seu nome reivindicar justiça e direitos.
Nesse sentido, este livro não é apenas nem principalmente um livro sobre a atualidade da escravidão. Trata-se de um estudo sobre o modo como o capital organiza empreendimentos econômicos em áreas de condições sociais, econômicas e ambientais de quase ausência do Estado, em face das quais não tem sido incomum o recrutamento de trabalhadores, já de antemão previsto, mas não revelado, que trabalharão como escravos.
Na verdade, essa escravidão é opção inevitável da vítima pela alternativa degradante e não capitalista de trabalho. É para resistir à ameaça e aos efeitos socialmente corrosivos da expansão do capitalismo sobre territórios e comunidades camponesas, de populações originárias, indígenas, caipiras e sertanejas.
Trabalho que, mesmo quando não acarreta ganho, no endividamento do trabalhador, que acaba trabalhando de graça, diminui na família, na entressafra, o número de bocas para a comida insuficiente. E, se houver algum ganho, mesmo aquém do valor criado pelo trabalho cativo em relação ao saldo recebido, será um benefício com base na ideologia camponesa do trabalho de sobrevivência contra a ideologia capitalista do trabalho lucrativo. Essa é a contradição cuja causa a sociologia pode decifrar.
O trabalho escravo é a dolorosa expressão do verdadeiro conflito histórico entre os desvalidos e o capital, um dos conflitos estruturais do capitalismo brasileiro na disputa da terra de trabalho, a terra de sobrevivência, contra a terra de negócio e rentismo, de usurpação, a de um capitalismo subdesenvolvido. É a questão agrária como questão do trabalho que dá sentido a esse conflito e a esse drama. Os autores de digressões sobre a “escravidão contemporânea” omitem-se em relação a essa contradição, sociologicamente explicativa. A do assalto indireto do capital ao mundo camponês, assalto através das mediações de ocultamentos sociais para viabilizar os resultados econômicos de sua reprodução ampliada.
As regiões e as comunidades dessas populações têm sido com frequência os lugares de aliciamento de camponeses para o trabalho sob escravidão por dívida. Não se trata, pois, de uma referência geográfica, mas de uma mediação social datada, pré-capitalista, cujo atraso histórico interessa ao capital, mas cuja resistência e sobrevivência interessa sobretudo à vítima – o camponês e as populações originárias. Esse atraso lhes é, na verdade, um capital cultural e político, que só se desperdiça porque lhe faltam as mediações políticas e partidárias. O atraso, na verdade, é dos partidos na falta de reconhecimento e compreensão do significado e da função política dos grupos humanos deixados à margem da história por uma opção equivocada em favor de uma concepção de progresso socialmente excludente.
Variam as motivações, muitas vezes extracientíficas, dos estudiosos, que, ao revelar e denunciar ocorrências, desprezam, porque as desconhecem ou minimizam, as contradições explicativas e reveladoras da realidade social problemática. As que sociologicamente compreendem o visível e o não visível, o falso e o verdadeiro. Os fatores revelados e os fatores ocultos do processo histórico. Os fatores de reiteração e os de transformação da realidade, os que criam socialmente o novo e, ao mesmo tempo, recriam o que parece ser o já existente, como interpreta e explica Henri Lefebvre. Os que estão presentes na estruturação das condições sociais do cativeiro, isto é, na disputa e dominação do capital pelos lugares e situações comunitários e tradicionais da sociabilidade e da autonomia camponesas e da economia da produção direta de meios de vida, paralelamente à de excedentes comercializáveis. Os das populações excluídas e originárias.
Ou, então, os que desvendam e expõem as invisibilidades próprias do capitalismo num país subdesenvolvido, como o nosso, e expõem as vulnerabilidades do voluntarismo dos que se dedicam a questioná-lo e a combatê-lo, prisioneiros do superficial e aparente. O que é tão característico da moda política de hoje, mas divorciado das revelações da ciência e das duras verdades e incertezas das contradições sociais. A incômoda constatação científica de Marx, de que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem…”. E menos ainda como os outros querem fazê-la em nome de todos sem legitimamente representá-los.
Esse desencontro é o cerne explicativo de toda a sociologia marxiana. É um questionamento que define o perfil deste livro na linha da tradição do pensamento sociológico crítico, ou seja, dialético, o de ampliação e aprofundamento do conhecimento sobre a realidade social além do mero agora. O desvendamento e o questionamento da alienação social, que acoberta a realidade, enquanto falsa premissa de ciência que há na militância desinformada e superficial.
A questão da “escravidão contemporânea” é, na sociologia, questão de urgência e é também questão de enfrentamento do poder de minimização dos problemas sociais, cada vez mais intenso da pós-modernidade. Esta é a sociedade da ocultação das verdades profundas e causais da história e da sua própria historicidade.
Muitos querem, altruisticamente, combater a iniquidade de relações de trabalho antissociais e anti-humanas. Outros querem, de modo não tão altruístico, combater as interpretações que podem estar em desacordo com suas opiniões de senso comum, seus interesses e conveniências partidários e ideológicos, seu exibicionismo político.
Um livro como este é uma proposta de desembaralhar, na perspectiva da ciência, essa diversidade opinativa, e desse modo criar as condições para uma interpretação objetiva e crítica da grave questão, no sentido marxiano de conhecimento explicativo, sociológico, de diferentes modalidades de conhecimento: “das representações, das ilusões de classe, dos instrumentos ideológicos”. Único modo de situá-la no marco da possibilidade de sua superação, e iluminar o caminho desse ser solitário, invisível e difuso que intui no dramático da vida o desafio da transformação social libertadora como obra de correção e de superação das injustiças que negam a todos o direito à sua humanização. Se há um único escravo numa sociedade como esta, todos nós estamos atados à sua situação, porque a sociedade é relacional. Somos sujeitos do mesmo sistema de relacionamentos e de minimização da condição humana.
Ao se falar em escravidão atual está se falando, necessariamente, numa anomalia resultante das contradições sociais de um modelo de sociedade que tem nome: a sociedade capitalista mutilada e insuficientemente realizada, como a brasileira, atravessada pelo primado de interesses econômicos e consequentes irracionalidades que negam o capitalismo e crucificam a sociedade.
De uma análise assim, não resulta receita legítima de militância e ativismo indeterminados e desconectados da estrutura social profunda que dá sentido aos movimentos sociais. Resulta a referência para o que Hans Freyer definiu e Florestan Fernandes explicou: a sociologia como consciência científica da realidade social, caso em que o ativismo não é nem pode ser teatro, para que possa ser práxis socialmente transformadora.
José de Souza Martins, na introdução de "Capitalismo e Escravidão na Sociedade Pós-escravista"
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