quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Feliz Natal para pulverizar as trevas

Com a pandemia da irresponsabilidade e a desumanidade de coveiros governamentais, Feliz Natal não pode mais ser uma corriqueira expressão ou mero chamariz publicitário. É preciso retomar a solidariedade de que o Natal Feliz tem que ser um grito social para varrer de vez as trevas,



Não há sociedade que possa se orgulhar e festejar quando os seus são mortos mais pela incompetência criminosa do que pelo vírus. Se a doença mata, a criminalidade política permanentemente interessada em proteger seus próximos e manter-se imune às condenações mata muito mais em escala geométrica.

É preciso que neste Natal se grite com toda a humanidade um Feliz Natal bem forte que varra ao pó o que do pó veio, que seja clarão entre tenebrosos miasmas.

Recuperar a expressão no seu sentido maior de festejar o Nascimento da Luz a cada ano pode ser um passo para jorrar uma claridade que afugente para a escuridão quem de lá surgiu. Um Feliz Natal, com todas as forças da humanidade de cada um, será comunhão mais forte do que a pequenez dos desumanos.

Feliz Natal!
Luiz Gadelha

O que somos e o que podíamos ser

O Brasil sempre foi um país um pouco isolado, primeiro por causa da geografia, depois pela barreira da língua e pelas dificuldades econômicas. Desenvolvemos uma economia fechada, com uma ideia subjacente de autossuficiência e pouca abertura para o exterior.

Ainda assim construímos uma nação civilizada, que durante a maior parte do século XX foi das que mais se desenvolveram e que prometiam um futuro brilhante.

O futuro, no entanto, não chegou. Nos últimos quarenta anos crescemos muito pouco e a maior parte de nossa população vive na pobreza ou em condições de vida ainda precárias, apesar de nossa incomparável riqueza de recursos. Nossa sociedade parece viver hoje em um estado de apatia e desalento, fruto da descrença da maioria e da falta de visão e de cultura cívica das elites políticas.


O autoconhecimento é uma capacidade rara, seja nas pessoas, seja nas sociedades. Nunca temos noção clara do que realmente somos. Por isso o olhar alheio sobre nós quase sempre nos surpreende muito.

Nesta semana estava lendo um artigo de um importante jornalista conservador americano, Bret Stephens, no New York Times, em que ele lamentava o declínio da confiança nas pessoas e nas instituições que vem ocorrendo na sociedade americana, especialmente durante a infeliz era Trump.

Na esteira do que pensa a maioria dos cientistas sociais contemporâneos, o articulista acentuava que a confiança social é o mais importante elemento em qualquer sociedade bem sucedida. Nesta altura do artigo ele me causou um choque, quando indicou que sociedades com elevado grau de confiança social progridem em todos os aspectos e citou como exemplo a Suécia e o Canadá, enquanto as que vivem num ambiente de baixa confiança, fracassam. E deu como exemplo destas o Líbano e … o Brasil.

Eu vivo e reflito durante quase toda a minha existência sobre a vida pública brasileira e confesso que nunca pensei em ver o Brasil equiparado a um país tão belo e tão desafortunado como o Líbano, uma nação devastada por guerra civil, conflitos religiosos e palco dos horrores que afligem o Oriente Médio, que tornam quase impossível o funcionamento de um estado democrático.

Como estrangeiros intelectualmente bem informados podem nos ver dessa maneira, é a pergunta que temos que fazer.

Se pensarmos bem vamos chegar à conclusão de que não é fácil nem trivial compreender o Brasil. Temos um grande território e uma grande população. Nosso território, além da extensão, acumula recursos que faltam à maioria dos países. Temos petróleo, muitos minerais, água doce em abundância, sol, florestas e solos para a agricultura. Nossa população está livre de conflitos religiosos ou étnicos que infelicitam tantas sociedades. Não temos guerras e vivemos em paz como nossos vizinhos.

Além disso temos muitas empresas de primeira classe e uma elite empresarial respeitada em todo o mundo. Sem falar que somos um povo criativo na cultura e amável na convivência. Apesar disso tudo somos ainda um país pobre, com grande parte da população vivendo na pobreza. Deve haver algum mistério nessa história.

Nos últimos cinqüenta anos tentamos de tudo na política, desde vinte anos de ditadura militar, treze anos de um governo de esquerda e agora até um governo de extrema direita. Como dizia o poeta Drummond: todos eles … e nenhum resolveu.

Embora nenhum passado possa nos consolar do presente, ele pode lançar uma luz sobre o mistério de nosso fracasso atual. O Brasil já viveu anos de muito progresso e de muita esperança, que se estendem desde os anos de 1930, logo após à grande depressão e duraram pelo menos três décadas, passando por diferentes governos.

O que havia de muito diferente então é que a sociedade era menos profundamente dividida por ideologias ou valores e os governos só governavam, não tentavam impor a todos sua visão do mundo e da vida. E acima de tudo, os brasileiros então pareciam ter os olhos voltados para a frente. Havia confiança e esperança num futuro sempre melhor.

Sem isto nenhum governo nos salvará e nenhum futuro nos cairá dos céus.

Sem controle

As chances de Jair Bolsonaro ser o condutor dos fatos políticos ficou para trás e ele começa a segunda metade de seu mandato claramente à mercê de fatores sobre os quais tem pouco controle. O sentido da expressão é o seguinte: ser capaz de ditar ou, pelo menos, conseguir encaminhar uma agenda política com rumo e direção claros – além da necessidade de proteger a si mesmo e sua família dos conhecidos enroscos com a Justiça e conseguir se reeleger.

Estar “à mercê de fatores sobre os quais tem pouco controle” significa que, para onde olhe, Bolsonaro está preso a uma intrincada teia que o mantém manietado. Os aspectos mais evidentes envolvem o Legislativo e o Judiciário. No Congresso, ao contrário das aparências, não é Bolsonaro que tem o controle do amorfo grupo de partidos chamado de “centrão”. É essa gelatinosa maioria que o carrega – e se sente totalmente à vontade por não ter de seguir ordens emanadas do Executivo.

O Judiciário, especialmente o STF, em dois anos impôs derrotas sucessivas ao presidente, encurtou seu poder, limitou seus arroubos, e o mantém refém de inquéritos e processos. Pode-se gostar ou não do que fazem os juízes do Supremo, mas nunca se viu um chefe do Executivo tão desmoralizado por decisões de mérito ou liminares que, na prática, o mantém emparedado em estreitos limites. Usando linguagem popular, o STF é o sócio majoritário do poder do atual presidente.



Há exatamente um ano, passados 12 meses no Planalto, Bolsonaro tinha ensaiado a apresentação de “eixos estratégicos” de seu governo. Reconhecia a questão fiscal como prioritária e, pelo lado das despesas, propunha atacar o crescimento dos gastos públicos através de uma reforma administrativa que enfrentasse o corporativismo das folhas de pagamento do funcionalismo. De outro, propunha destravar a economia e melhorar substancialmente o ambiente de negócios (reduzindo o famoso custo Brasil) via reforma tributária, reforma do Estado em geral, desburocratização, desregulação e privatizações.

A tripla crise política, econômica e de saúde pública, agravada pela falta de visão e liderança dele mesmo, reduziu esses “eixos estratégicos” a uma luta pela sobrevivência política e pessoal, não importando o custo. As recentes eleições municipais não podem ser tomadas como retrato do “caráter nacional” da política, mas expuseram o derretimento da figura do mito, incapaz de transmitir sequer fração dos votos com que tinha impulsionado as mais diversas candidaturas nas eleições de 2018.

Em termos da capacidade de influenciar a recuperação da economia, da qual em último aspecto dependem diretamente as chances de reeleição, Bolsonaro está hoje em situação muito mais precária do que há um ano. Vacina, juros baixos e inflação até aqui razoavelmente comportada funcionam como analgésicos que retiram da esfera política o sentido de urgência e gravidade da questão fiscal – aquela que, no fundo, é a que condiciona toda a política brasileira (desde sempre entendida como o empenho em acomodar interesses setoriais às custas dos cofres públicos).

A desorganização e a falta de coordenação e de rumos, as principais características do atual governo, são ao mesmo tempo causa e consequência de um fenômeno que os sociólogos da velha guarda definiam como anomia social – na sua acepção mais severa, a expressão descreve a ausência de regras que orientem uma sociedade, ou o relacionamento entre suas diversas instituições. Bom exemplo é o comportamento de governadores e prefeitos diante da falta de coordenação federal no caso da vacinação da população: cada um tratou de defender o seu o mais rápido possível, atendendo a uma pressão que Bolsonaro não foi capaz de entender. Na prática, está entregando as coisas a si mesmas, uma perigosa aposta contra o imponderável.

Bimbolem os sinos

É Natal! É Natal! Bimbolem os sinos. Neva em Caruaru, onde nunca nevou antes, um feliz prenúncio de cocacolização total da nossa maior festa, depois do carnaval e das pernas de fora da Ivete Sangalo. Tartaruguinhas recém-nascidas correm na direção do mar, não para seguir seu destino biológico, como se pensa, mas para fugir do governo Bolsonaro antes que seja tarde, acenando bandeiras verde e amarelas como disfarce. Mas nem tudo é estados unidos no novo Brasil das queimadas, do ministro do meio ambiente que cuida só do meio porque o ambiente cuidará de si mesmo e do ministro da saúde que ainda não decorou o endereço do ministério. Chegam notícias inquietantes do nosso interior. Dizem que Papai Noel foi visto fazendo churrasco das renas na beira de uma estrada no Norte, sob a neve, e vendendo os presentes das crianças com desconto.



Mas é Natal! É Natal! Tudo se perdoa, tudo se esquece e tudo se justifica. O Brasil é o único país do mundo que é sua própria explicação. O único incomparável, pois só é comparável a si mesmo, dispensando exemplos, metáforas e alusões vindos de fora. O único que se basta como autoparódia. Você, brasileiro amador que ainda não se entendeu, pode evocar o Brasil que quiser sem medo de exagerar: é só imaginá-lo que ele se torna verossímil. Quem, anos atrás, acreditaria num governo Bolsonaro? E no entanto aí está ele, governando ou coisa parecida, sem máscara, o incrível homem elástico que, diariamente, desmente a si mesmo e todo o mundo aplaude. Imagine o seguinte: o Rodrigo Maia é um dos dezessete filhos do Bolsonaro, um parentesco que ninguém conhecia e o presidente nunca revelou. O desentendimento entre os dois é, na verdade, apenas um racha normal entre pai e filho. Impossível? No Brasil, “impossível” é apenas o outro nome de “vamos ver”.

É Natal, gente! É Natal! Um dia o país acordou e deu com o Planalto cheio de generais sem voto postos lá por um capitão no meio da noite, o único golpe militar secreto da história dos golpes militares. Nem seu comportamento na tragédia da pandemia acabou com o mito da eficiência militar. Se um general não der certo, ponha-se outro no seu lugar, e que bimbolem os sinos.

Brasil lá fora


 

Burrice irresponsável


Eu não uso [máscara], mas tudo bem. Eu tive a melhor vacina, foi o vírus
Jair Bolsonaro

Bozonarista,#DoeSuaDoseDeVacina

Em 1933, assim que Hitler assumiu o poder na Alemanha, os diretores de museus franceses se reuniram para listar as principais obras de arte do país a serem escondidas caso houvesse uma guerra.

Queriam preservar os acervos públicos e privados.

Quando Hitler invadiu a Áustria, o heroico diretor do Louvre, Jacques Jaujard, tratou de tirar a Mona Lisa das paredes e enviá-la para o Castelo de Chambord.

Data da retirada: junho de 1938. Quase um ano antes do início da guerra, portanto.

Com a Mona Lisa escondida, outras centenas de obras, como a Vênus de Milo e a Vitória de Samotrácia, e cerca de 150 metros de pinturas (Tiziano, El Greco…) logo tomaram a direção de outros castelos no sul da França.

Pelo que se conta, a operação envolveu cerca de trezentos caminhões com uma carga distribuída em quase seis mil caixas.

Ao entrar em Paris, em 14 de junho de 1940, Hitler deparou-se com um Louvre praticamente vazio (ao menos sem nada de muito valor).

A precaução dos diretores das instituições, junto com a ação dos curadores, evitou a desgraça de se perder fenomenal acervo, apesar de os militares franceses gargantearem que Hitler jamais chegaria a Paris.

Não só chegou em poucos dias como ali ficou por anos. O historiador Marc Bloch escreveria páginas contundentes contra os míopes militares franceses — uma inépcia que custou milhares de mortos, além da vergonha.


Desde janeiro passado se tem notícias da Covid-19, e de sua letalidade. Os militares ora no poder em Brasília negaram a contundência do vírus e preferiram o apego ao pensamento mágico. Quase 190 mil mortes depois, o ministro da Saúde, general Pazuello, se mostra mais perdido do que cachorro em dia de mudança.

Não fosse o Doria, e o glorioso Instituto Butantan, continuaria o 7x1 da Covid sobre a população brasileira. Porque os militares de Brasília, comandados por um capitão reformado, não se alistaram nas pesquisas das vacinas, como ainda deixaram de preparar a vacinação com a compra de seringas…

Pazuello e Bozo, na França de 1940, teriam perdido a Mona Lisa, a Vênus e os vitrais das catedrais de Chartres, Amiens e da belíssima Sainte-Chapelle de Paris.

Infelizmente nesta tragédia brasileira falta a figura destemida de um herói como Jacques Jaujard, diretor do Louvre que salvou o acervo do museu e, mesmo diante de ameaça de fuzilamento, não entregou as obras aos nazistas, em especial a Goering, o famoso ladrão do III Reich.

Acostumados a governar por fake news e memes desonestos, os bozos agora contaminam não apenas o presente como comprometem o futuro. A tentativa de desacreditar a ciência leva a rede bozonarista a produzir e disseminar vídeos assustadores com improváveis efeitos colaterais da vacina.

Surgem pessoas babando, com o corpo contorcido, pescoço virado, caindo ao chão feito moscas. Pelas cidades, pequenos grupos de bozos, vestidos de verde e amarelo, com a bandeira às costas, gritam que não são cobaias para tomar a vacina. No caso, o alvo é o governador de São Paulo, João Doria.

Assim como Lula tem uma inveja quase sexual de FHC, Bozo explicita o seu pérfido “amor hétero” contra Doria. A insistência de Bozo sobre Doria, acredito, já configura assédio.

É uma discórdia também medida no braço. Ano passado, chegaram a vivenciar olho no olho um desafio nas flexões de solo, numa cena capaz de integrar a comédia gay “Gaiola das Loucas”.

Doria levou a melhor: fez 15 flexões perfeitas; Bozo, o ídolo de Crivella e Malafaia, foi um arremedo de Oscarito em “O homem do sputinik”: só mexeu o pescoço.

Invadida, parte da população francesa se afeiçoou aos nazistas, tolerando os assassinatos dos judeus, dos comunistas e dos resistentes. Também a gloriosa Alemanha negaceou as perseguições e crimes de Hitler, por julgar que era necessário um expurgo na sociedade alemã.

No Brasil não é diferente. Foi assim em 1964 quando acreditaram que João Goulart fosse comunista e pediram a chegada dos militares. E é agora, quando cerca de 30% não se importam com a insanidade bozonarista. Chegou a hora de pedir, então, que sejam patriotas: doe a sua dose de vacina. Pelo bem da pátria, da família e da higiene.

Anedotas que nos fazem chorar

Quando criança, eu adorava o palhaço Carequinha, seu nariz vermelho, suas roupas multicoloridas, sua genuína alegria.

Morava em uma cidade relativamente pequena, onde as principais diversões eram o cinema (aqueles filmes italianos de “cowboy” com o Django), ir à praia, jogar bola na areia, além dos concorridos campeonatos de futebol botão.

Quando o circo Tihany por lá passava era um verdadeiro “Rock in Rio”. A cidade parava.

Comprávamos os bilhetes em concorridas filas no próprio circo. A mulher barbada era a responsável pelo caixa.

As apresentações davam gosto de ver. Os leões e seus domadores. As motocicletas dentro da bola de ferro. Os mágicos e seus coelhos. Os trapezistas e seus saltos triplos. Tudo era alegria.

Mas o palhaço. Ah! o palhaço era a minha atração predileta. Chorávamos de tanto rir. Saíamos do circo de alma lavada. Quem não adorava o palhaço? Ele nos oferecia, sempre, a felicidade simplória.

Os anos se passaram. As trupes circenses foram desaparecendo aos poucos e com elas o romantismo que traziam. Números com animais foram proibidos. Normas dos alcaides inviabilizaram as montagens das grandes lonas em espaços públicos. Os custos elevados impediram definitivamente a magia do circo.

E os palhaços? Os palhaços foram minguando. A arte de nós fazer flutuar no riso já não era mais tão apreciada. As piadas, antes naturais, foram sendo contestadas com base em novos parâmetros.

Desapareceram ou perderam toda graça.


Agora, alguns notáveis na nossa sociedade assumiram ou tentaram assumir, com anedotas de duvidoso gosto, aqueles papéis representados pelos palhaços Piolin, Carequinha, Arrelia e tantos outros de seus discípulos. Divertir a plateia.

Entretanto, eles são tão forçados, debochados e desqualificados para essa bela arte que, ao contrário de nos fazer sorrir, arrancam-nos lágrimas.

Tantas estultices.

Essas piadas só agradam aos apaniguados, aos que entraram no circo com bilhetes de promoções patrocinadas pelo próprio arlequim ou aos que, famélicos e esquecidos, necessitam a todo momento de ajuda para seguir vivendo. Diferente desse público: sei lá, plateia vazia!

O Nobel de literatura Mario Vargas Llosa, em seu clássico A civilização do espetáculo, asseverou: “o que vivemos numa época de grandes representações que dificultam nossa compreensão do mundo real, é algo que me parece uma verdade cristalina”.

Esses palhaços contemporâneos estão representando muito bem, por conseguinte se colocam em condições de toldar a nossa capacidade de estimar o mundo real e a crueldade por eles perpetradas.

Os palhaços de verdade eram nobres em suas simplicidades. Eram inteligentes emocionalmente. Eram a alegria com roupagem natural.

Nós estamos muito próximos de encerrar esses 365 dias de tantas angústias. De tantas perdas. Quando os poucos fogos de artifício anunciarem o nascimento de 2021, sendo você supersticioso ou não, pule com o pé direito, salte as sete ondas, use branco, coma lentilha.

Então feche os olhos, ore, e inclua em seus pedidos apagar as luzes deste circo tétrico impedindo que novas apresentações sejam assistidas, remuneradas e comentadas.

Palhaços que nos fazem sofrer e chorar não podem receber nosso respeito. Distinta plateia, respeitável público… Já basta.

Queria ter sido mais ameno, mas...

Feliz Natal. E um Ano Novo com mais esperanças!

Paz e bem!

O Espírito dos Natais Futuros

Há um traço comum que os portugueses têm dificuldade em ultrapassar, fruto de séculos de História e quatro décadas em ditadura. Somos adeptos de um Estado paternalista, que nos indica o caminho, conduz e orienta. Reclamamos baixinho, mas baixamos a cabeça e até nos confortamos com certos argumentos de autoridade que nos desresponsabilizam na hora de decidir. Habituados a ter de obedecer e não a pensar, esperamos que nos digam o que podemos e não podemos fazer, porque deixados à nossa consideração, tendemos a ficar à toa com tanta liberdade.



A discussão em torno do que vamos poder ou não fazer no Natal e no Ano Novo lembra-me esta nossa incapacidade crónica para nos autogovernarmos. Não devia competir ao Governo decidir como podemos passar as nossas festas de família, e a que riscos devemos, cada um de nós, estar sujeitos. Não é preciso ser médico ou epidemiologista para perceber que a situação está ainda muito complexa, basta olhar para os gráficos e relatórios diários. Não é só em Portugal, é em toda a Europa. A Holanda vai entrar em confinamento total, na Alemanha serão impostas novas restrições apertadas, no Reino Unido a situação é “extremamente preocupante”, em Espanha e Itália deverão ser impostas mais medidas. Até na Suécia, resistente crónica a planos de contingência, o ressurgimento da doença exigiu a adoção de medidas excecionais e fez soar os alarmes da necessidade de um pedido de auxílio aos países vizinhos.

Ao contrário do verão, em que os novos casos diários e o número de mortos desceram muitíssimo, o risco de contaminação agora é elevado. As novas medidas impostas pelo Governo resultaram, mas não baixaram de forma drástica os contágios nem os mortos. Sou adulta e capaz de entender que situações excecionais exigem soluções excecionais. Não preciso que um primeiro-ministro me diga que tenho de adotar todos os cuidados possíveis nesta quadra festiva, reduzindo ao máximo o número de pessoas na festa (outrora com mais de 40 pessoas), mantendo as máscaras sempre colocadas, os desinfetantes sempre à mão e as salas arejadas. E escolho fazê-lo porque sim, porque sigo a Ciência e os médicos, e não porque me mandam.

Esta semana, soube de uma história próxima que me tirou o sono. Uma amiga de uma amiga apanhou Covid, infetou a mãe num jantar de família, e a progenitora, já idosa, veio a falecer. É uma situação que pode acontecer a qualquer um, por mais cuidadoso e bem intencionado que seja. O pior pesadelo da Covid é a ideia de contaminar familiares e amigos e estes passarem muito mal ou até morrerem. Viver com esse peso e gerir essa dor é algo que não consigo sequer imaginar. Isso acontecer num Natal é arruinar todas as festas daí em diante. Mesmo sem receber a visita do Espírito dos Natais Futuros, como no conto do Charles Dickens, este é um risco que ninguém minimamente informado e no seu perfeito juízo deveria estar disponível para correr. Com ou sem medidas impostas pelo Governo.
Mafalda Anjos

O Natal do menino Brasil

Não se pode deixar de reconhecer que, vítimas de um equívoco, fomos meio largados no mundo por quem financiou a nossa “descoberta”. Nos primeiros anos depois de Cabral, os reis de Portugal nos ignoraram, mais preocupados com o fim da Inquisição que os havia tornado decisivos nos costumes da Idade Média europeia, encerrada com os huguenotes de Lutero e Calvino na fogueira.



Fomos colonizados por pés-rapados, valentes aventureiros, sonhadores que não tinham nada a ver com a tensa elite lusitana. Queriam era atravessar o Mar Tenebroso e chegar ao Novo Mundo para começar vida nova em nome de Cristo e do futuro financeiro da família. Só pensavam em encontrar terras cultiváveis, madeiras de valor como o pau-brasil, escravos indígenas a mancheias, valores que os tornariam quem sabe até festejados pela sociedade europeia que respirava uma Renascença iluminista, os novos tempos.

Com a Independência e o Império dos dois Pedros, depois que, em 1808, dom João VI fugira de Lisboa com amigos e familiares para não ter que enfrentar a ocupação francesa de Napoleão Bonaparte, o Brasil foi obrigado a descobrir (ou a escolher) quem era. O príncipe fujão criara o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, com capital no Rio de Janeiro, e foi daí que, preocupados com o futuro, começamos a construir nosso passado. Um passado de fantasias, criado por intelectuais e artistas submetidos às ideias do imperador.

Dom Pedro II encomendara a Victor Meirelles a tela que se tornou famosa e popular da “Primeira Missa no Brasil”, uma espécie de nascimento do Brasil (ou o Natal do menino Brasil), concluída em Paris. No quadro, a chegada dos europeus à Bahia era um amável encontro de raças e costumes. Nada mais distante das invasões bárbaras do século XVI e dos genocídios que então passaram a ocorrer. A outro jovem, Pedro Américo, o imperador encomendara outra tela, igualmente popular e famosa, a reprodução do Grito de Independência protagonizado pelo pai do produtor, dom Pedro I. Nada do que está ali corresponde ao que de fato acontecera, Pedro Américo apenas copiava a grandeza e o espírito de exaltação de uma tela de Ernest Meissonier, pintor na moda, em homenagem a Napoleão Bonaparte e seu exército.

As duas obras foram concluídas e expostas ao público de Paris e do Rio na primeira metade da década de 1860, no auge do sucesso político de dom Pedro II e seus ideólogos, como José de Alencar, ou militantes, como Manuel Antônio de Almeida. (Por pura distração, no artigo da semana passada, troquei a tensão paradisíaca da Missa pela proclamação política do Ipiranga, trocando o nome de um pintor pelo do outro, pelo que peço desculpas ao eventual leitor.) Nas duas obras, dom Pedro II e seus artistas pretendiam unir todas as classes num país que deixava de ser formalmente uma colônia. A base dessa narrativa está no livro que já citei aqui, “A conquista do Brasil”, de Thales Guaracy, da Editora Planeta, de São Paulo.

O Brasil não gosta de seu passado, e sempre achamos que não temos direito a futuro nenhum. Para disfarçar, mentimos alegremente sobre o que somos e o que queremos ser. Nunca fomos o paraíso anunciado, enganamos todo mundo com pandeiros, palmeiras e sabiás, com nossos carnavais. Como Pigafetta, viajante italiano que, em 1519, enquanto a corte lisboeta se distraía queimando protestantes, informava que os brasileiros viviam até os 140 anos.

Subestimado durante quase todo o seu primeiro século de vida, o Brasil foi inventado por caçadores de homens (que escravizavam os índios), um exército de exterminadores (que saqueavam a terra), um padre gago (Manoel da Nóbrega) e outro meio cínico (José de Anchieta), além de famílias como os Sás e os Souzas. Como o que interessa é o presente, e este é a consequência do passado concreto e do futuro que sonhamos, ainda é preciso perder as ilusões para entender o Brasil de hoje.

Os pensadores ocidentais sempre trataram nossa diferença como a ausência de alguma coisa que eles reconhecem e cultivam como civilização. Mas é justamente dessa ausência que podemos construir o único Brasil possível, o Brasil que vale a pena. Quem sabe então poderemos ser enfim felizes. O grande poeta russo Vladimir Maiakóvski (ai, meu Deus, vou pra cadeia por elogiar um poeta comunista!) dizia, num de seus poemas mais pessimistas, que haviam finalmente encontrado um homem feliz no planeta. E ele vivia no Brasil.

Quando o vírus nos trancou em casa, as telas nos deixaram sem casa

Encerro 2020, o ano que anuncia que o tempo das pandemias chegou, com estranhos sintomas. A ideia de fazer mais uma live, mais um meeting pelo Jitsi, Zoom ou Google, ou mesmo pelo WhatsApp, me deixa fisicamente enjoada. Escrever, como faço agora, enquanto as notícias e as mensagens pipocam num canto da tela, me deixa tonta e exausta. Amigos me pedem encontros de Natal, happy hours de Ano-Novo. Quero. Mas não consigo. Que o excesso de telas cansa e pode causar transtornos e até doenças, sabemos. A experiência atual, porém, vai muito além disso. O home office, as lives e os meetings mudaram o conceito de casa. Ou talvez tenham provocado algo ainda mais radical, ao nos despejar não apenas da casa, mas também da possibilidade de fazer da casa uma casa.

A maioria dos que tiveram a chance de ficar entre paredes durante a maior parte do ano para se proteger do vírus vive, como eu, uma experiência inédita na trajetória humana: a de estar 24 horas dentro de casa e, ao mesmo tempo, não ter nenhuma casa. A pandemia nos levou ao paradoxo de nos descobrirmos sem teto debaixo de um teto. Mais do que sem teto, nos descobrimos sem porta. Sem porta, não há chave para nenhum entendimento.

Sim, aqueles que têm a chance de trabalhar no sistema de home office, o que significa trabalhar a partir da sua casa, são privilegiados num planeta encurralado pelo vírus. Pensar sobre a desigualdade no tempo das pandemias é pensar sobre quem pode desempenhar suas funções profissionais “remotamente” e quem não pode. A maioria dos que não podem trabalhar remotamente é composta pelos mesmos que têm mais chances de figurar em todas as piores estatísticas: os mais pobres, os negros, as mulheres.



Afirmar que a pandemia expõe e agrava a desigualdade social, de raça e de gênero é uma obviedade que várias pesquisas comprovaram ao longo de 2020. A iniquidade abissal do Brasil —e, em menor escala, da maioria dos países do planeta— impõe como privilégio aquilo que é um direito básico, o de ser capaz de se proteger de uma ameaça. Assim, é como privilegiada que discuto aqui a experiência de nos descobrir sem casa, uma experiência que não é apenas subjetiva. Apesar das paredes de concreto que nos cercam, nos sentir sem casa é uma experiência bem concreta.

O que é uma casa? Essa pergunta entrou na minha vida de jornalista junto com a imposição de Belo Monte ao rio Xingu e aos seus povos. Para os ribeirinhos expulsos de ilhas e da beira do rio para a construção da hidrelétrica, casa era uma ideia concretizada a partir de uma experiência de viver e de ser floresta. Para os funcionários da Norte Energia SA, a empresa concessionária da usina e outras terceirizadas a seu serviço, assim como para os advogados que consumavam a “negociação” em que nunca se negociou nada, porque tudo foi imposto, casa era algo referenciado na experiência de viver em cidades do centro-sul do Brasil.

Como quem detinha —e detém— o poder era a empresa, o valor da indenização e de outras compensações foi determinado à revelia da experiência cultural e também objetiva de quem vivia um conceito expandido do que é uma casa, um conceito arquitetônico diverso do que é uma casa, um outro tipo de material para criar uma casa. Enfim, para quem vivia uma experiência inteiramente diversa de fazer casa que foi esmagada pelos tecnocratas. Não apenas por ignorância, mas porque, ao ter o poder de determinar que o que era casa não era casa, ou que o que era casa não era uma boa casa, o valor monetário da indenização e também as compensações seriam muito mais baixos ou, em alguns casos, inexistente.

Testemunhar essa violência implantou a questão do que é casa definitivamente na minha cabeça, e eu a expandi para outros territórios objetivos e, principalmente, subjetivos. Em minha experiência como jornalista, já escrevi reportagens sobre um homem que fez uma casa dentro de uma grande árvore, em plena zona urbana de Porto Alegre. Já contei de uma família que fez casa embaixo de um viaduto, convertendo o cotidiano numa experiência onde cabia preparar o café da manhã, arrumar e levar os filhos para a escola todos os dias para garantir que tivessem educação formal. Já testemunhei o que se tornou uma das reportagens mais impactantes da minha vida, na qual um grupo de crianças de rua fez casa nos esgotos da cidade. Chamavam a si mesmos de Tartatugas Ninja, como no filme que então estreava nos cinemas.

Conheci também experiências diversas de casa com diferentes povos indígenas. Algumas coletivas, como a dos Yanomami, outras unidades familiares, sendo que também aí há diferentes entendimentos sobre qual é a teia de relações que constitui o que cada etnia chama de família. As humanidades são variadas e experimentam diferentes formas de tecer relação com a natureza. Ou, no caso da minoria branca e dominante —essa que chama sua experiência de civilização e equivocadamente a considera universal ou até mesmo superior—, romper com a natureza.

Andando pelos tantos Brasis em busca de histórias para contar, vi as pessoas inventarem todo o tipo de casa, até as invisíveis, quando é necessário fantasiar paredes nas esquinas movimentadas de cidades gigantes como São Paulo, para fazer limite simbólico entre a família e o mundo sempre ameaçador para os que pouco têm além do próprio corpo. E, claro, já entrei em mansões e também em palácios. Parte do encanto de ser jornalista é a possibilidade de ter acesso a lugares aos quais jamais teríamos em outras profissões.

Apesar da diversidade de experiências, há algo comum a essas tantas construções do que é uma casa, algo para além das diferenças de tamanho, de material, de arquitetura, de contexto e de geografia. É a ideia da casa como o lugar onde cada um faz seu espaço próprio, o lugar que cada um reserva para si ou para a família ou para o grupo. É a ideia da casa como refúgio. É a ideia da casa como proteção contra chuva e contra sol excessivo, contra animais que podem querer nos converter em jantar, contra aqueles que não conhecemos e por isso não sabemos se querem ou não nos fazer mal. É a ideia da casa como espaço de abrigo e de descanso, como um mundo dentro do mundo onde fazemos aquilo que é mais importante, como nos alimentar, nos reproduzir e amar.

Quando a casa deixa de representar esse conjunto de significados, não importa a forma que ela tenha, há um distúrbio. Pode ser porque o abusador mora nela —seja ele o pai, um padrasto ou um tio que molesta, seja um marido ou companheiro violento. E então a casa já não garante mais segurança, proteção e abrigo. Seja porque a casa foi invadida e saqueada, seja porque algo violentamente disruptivo aconteceu desde dentro e a casa passa a guardar uma memória com a qual temos dificuldade de lidar. A casa então já não pode mais ser refúgio. A casa então se descasa, porque sozinhos ou acompanhados somos, de qualquer modo, casados, no sentido de que fizemos casa. E fazer casa é preciso.

Se tornar descasado, no sentido de sem casa, é o que está acontecendo hoje com aqueles que, desde março, fazem home office, expressão em inglês para apontar que a casa, no sentido de lar (home), se tornou também o escritório (office), no sentido de local de trabalho. A expressão home office, porém, é ardilosa. A experiência cotidiana mostra que, se há office, não há home.

Quando o trabalho invade a casa no modo 24(horas)X7(dias) por semana, perdemos a casa. E com ela o descanso, o refúgio, o remanso. E também o espaço de intimidade que só será alcançado pelos de fora se quisermos abrir a porta. Perdemos principalmente a porta. E uma casa sem porta não é uma casa. Mesmo que essa porta seja invisível, caso dos moradores de rua, essa barreira concretizada pela imaginação cumpre o papel simbólico de fazer borda, dar limite. No modo pandêmico, ao contrário. Mesmo que materialmente exista uma porta de madeira ou mesmo de ferro, grossa e cheia de fechaduras complicadas, seguidamente precedida da porta do prédio e ainda da porta externa do edifício, como hoje vive parte da classe média urbana, ainda assim não há porta nenhuma porque já não há limite para o que invade a casa pelas telas —todas as telas— desde dentro.

Essas muitas portas e fechaduras que se multiplicaram para supostamente nos manter seguros só são capazes de botar algum limite nos assaltantes clássicos. Hoje, porém, há outro tipo de assaltante, que pode nos roubar algo muito mais importante, até mesmo insubstituível e seguidamente irrecuperável do que bens materiais. A invasão contemporânea é aquela que nos rouba o tempo e sequestra o espaço da vivência dos afetos, da intimidade, dos prazeres e das subjetividades. Tempo no sentido definido pelo grande pensador Antônio Cândido (1918-2017), tempo como o tecido das nossas vidas, como tudo o que temos, como algo não monetizável. Esse assalto, a médio e longo prazo, pode provocar muito mais estragos no corpo-mente de cada um do que o que convencionamos chamar de assalto.

A tecnologia, e de forma totalmente transtornante e veloz, a Internet, já haviam nos tirado de casa quando em casa. Talvez o primeiro ataque tenha sido o telefone, mas lembro que não era educado telefonar para a casa das pessoas depois de certa hora da noite, em geral cedo, e antes de certa hora da manhã, tampouco na hora das refeições, que costumavam ser feitas na mesma hora em todas as casas. E jamais um chefe ligaria para a casa de um subordinado no fim de semana ou feriado se não fosse literalmente um caso de vida e morte. Mesmo no jornalismo, só éramos perturbados na nossa folga se literalmente caísse um avião ou houvesse um massacre em algum lugar que exigisse uma viagem imediata. E, ainda assim, com um pedido de desculpas por perturbar nossa privacidade e interromper nosso descanso logo na introdução.

A Internet mudou as convenções sociais muito rapidamente, antes que a maioria sequer pudesse compreender a Internet e antes que mesmo seus criadores fossem capazes de entender seu impacto. A Internet, como quase tudo, se fez e se faz na própria experiência. Assim como as pessoas acham que podem escrever nas redes sociais o que lhes vêm a cabeça, sem filtros ou freios, apenas porque o outro supostamente estaria à sua disposição ou, com frequência, seria seu saco de pancada, também se tornou corriqueiro mandar mensagens de WhatsApp a qualquer hora ou por qualquer motivo ou mesmo sem motivo algum. Ninguém enviaria 10 cartas para alguém no mesmo dia, mas quase todos acreditam ser perfeitamente “normal” enviar mensagens e memes e vídeos e links numa só manhã, confundindo poder com dever.

Essa é justamente uma época em que, dos cidadãos aos governantes, todos acreditam que, porque podem, devem. Ou, mais provável, o questionamento sobre dever ou não fazer ou dizer algo foi deletado e, assim, o único verbo a ser exercitado é o “poder”. O tempo da Internet, que é o tempo da velocidade, eliminou para muitos a etapa obrigatória da reflexão. Estamos todos pagando um preço altíssimo por essa mudança brusca e ainda subdimensionada que encolheu ou mesmo eliminou o tempo dedicado à ponderação antes da ação ou reação. Seu impacto é a corrosão de todas as relações, a começar pelos governantes, que passaram a se comunicar pelas redes sociais, conectados diretamente com seus eleitores, em alguns casos com seus fiéis, mas desconectados do ato de responsabilidade que é governar.

Tudo se complica infinitamente mais quando o mundo do trabalho invade a casa. Com a comunicação facilitada e imediata permitida pela tecnologia, os limites que antes eram determinados pela carga horária da jornada passaram a ser ultrapassados ou mesmo ignorados. A precarização das condições de trabalho, o apagamento das fronteiras entre vida privada e profissional, o devoramento do tempo, e com ele, a corrosão da vida, já tinham se tornado uma questão crucial da nossa época.

Com o home office, as condições de trabalho se precarizaram ainda mais. A vida foi transtornada com maior rapidez do que no acontecimento da Internet. Ainda que veloz, a internet foi ao menos progressivamente veloz. Já o home office se impôs literalmente da noite para o dia, determinado pelas necessidades de quarentena ou lockdown. E, para muitos, com o home office do companheiro ou companheira e também com as crianças sem escola.

As crianças, por sua vez, foram convocadas a compreender o incompreensível: que a casa deixou de ser casa para se tornar o lugar de trabalho onde os pais se tornam ainda menos acessíveis e, por todas as razões, com menos paciência e disponibilidade. Os pais estão totalmente presentes e, ao mesmo tempo, quase que totalmente ausentes. Quase que inteiramente em outro lugar, mesmo que inteiramente dentro de casa. Os impactos dessa experiência sobre as crianças de todas as idades estão sendo muito mal dimensionados. É muito difícil para as famílias cuidarem de algo que os pais nem sequer entendem e com o qual também sofrem muito. Também os pais sentem que lhes faltam ferramentas para lidar com a casa transtornada pela pandemia.

Sintomas de “descasamento”

Acompanhando minha própria experiência, assim como a de amigos e conhecidos, percebi que, no início, ficar em casa foi bem interessante. O álibi perfeito para quem já não suportava mais viajar e correr de um lado para o outro, de um mundo pro outro. Para quem vive em cidades grandes, o deslocamento para o trabalho costuma ser estressante, custoso e demorado. Assim, as pessoas acreditaram que, de imediato, ganhariam no mínimo uma hora a mais de tempo para si. Muitos se iludiram que leriam todos os livros empilhados na cabeceira e finalmente ficariam atualizados com os filmes e séries. Trabalhar de pijama ou moletom também soou confortável. A casa oferecia ainda o bônus de manter longe colegas de trabalho chatos e chefes abusivos.

Muita gente já dizia que não voltaria mais ao escritório ou ao consultório ou para o que fosse porque estava provado que era possível e melhor trabalhar de casa. Principalmente, várias empresas começaram a fazer as contas de quanto poderiam economizar quando cada funcionário virasse uma ilha em caráter definitivo. Muitas dessas empresas, inclusive, pouco dispostas a pagar os custos dessa ilha que é, afinal, a casa da pessoa. Defendem, portanto, que deveria ser problema de cada indivíduo pagar as contas de luz, internet etc., mesmo que os custos tenham aumentado pelas necessidades profissionais de uso.

E então começou o império do Big Brother, e a rotina passou a ser determinada pelo agoniante, às vezes enlouquecedor, ruído das mensagens entrando pelo Whatasapp ou dos e-mails se enfileirando na tela. Claro, se pode “emudecer” o som das mensagens, mas quem vai emudecer o chefe, o fornecedor, o fulano que ficou de dar notícias sobre prazos, o sicrano que vai enviar informações importantes, o beltrano que precisa de documentos? As horas foram invadidas além de qualquer precedente. Como emudecer ou mesmo desligar os celulares na hora de dormir se pessoas queridas estão sozinhas no meio de uma pandemia e podem precisar de ajuda a qualquer momento?

Se antes era impossível marcar um número muito grande de reuniões por dia, porque havia o tempo do deslocamento, agora as pessoas estão em casa. Tornou-se possível triplicar o número de encontros (ou desencontros), às vezes sem hora para acabar. As lives e os meetings, que permitiram que o mundo se conectasse para traçar estratégias para enfrentar a pandemia, fazer vaquinhas de solidariedade ou apenas conversar, se tornaram fáceis demais e por isso mesmo excessivos demais. Todos querem fazer meetings e lives por qualquer motivo. Tudo vira imediatamente performance. As horas que se acreditava liberar ao eliminar o tempo de deslocamento entre o trabalho e a casa foram engolidas... pelo trabalho. E outras que não estavam lá foram adicionadas. A desculpa social de “não vou estar em casa” ou “dei uma saidinha” desapareceu. Todos agora sabem onde cada um está. Em casa.

Essa foi a sequência alucinante de acontecimentos que pedalaram a porta da casa. Sem porta, logo a casa deixou de ter paredes e, sem paredes já não fazia mais sentido nenhuma estrutura. Nos tornamos sem porta e com janelas demais, mas um tipo de janelas pelo avesso, na qual somos observados desde dentro, em vez de contemplar o exterior. Reproduzimos a experiência excruciante dos animais confinados em zoológicos, criados em cativeiro.

A tecnologia que nos uniu, essencial para enfrentar essa pandemia, também nos escravizou. Não importa onde estivermos, as telas nos acompanham. No bolso, na bolsa, na mão, no pulso. Os mais sensíveis sentiram primeiro e sofreram mais. Uma amiga passou a não enxergar o que estava na tela. Ou melhor, enxergava, mas um borrão. Nenhuma doença foi constatada. Os relatos em geral apontavam sintomas que impossibilitavam seguir diante da tela. Há pessoas com enxaquecas que nunca antes haviam tido enxaquecas. Gente que se orgulhava de dormir como um cadáver que passou a ter insônia ou sono interrompido. Eu mesma passei a sentir enjoo diante da tela, mas enjoo seletivo. Reuniões de trabalho e meetings com muita gente me provocam náuseas, mesmo quando adoro todos que estão na tela.

Me sinto um corpo que não suporta mais tanta exposição. Minha capacidade subjetiva ainda não encontrou caminhos para criar paredes e portas na minha mente, fazer um refúgio onde não há nenhum, fazer de mim a casa que perdi. Tudo e todos entram casa adentro, na hora que bem entendem, pela tela do computador, pela tela do celular, pela tela do tablet. Informações que não pedi, vídeos que não me preparei para ver, comentários que preferia não ouvir. Gente desconhecida de repente está na minha sala ou mesmo na minha cama. E já não é mais tão fácil desligar todas essas telas porque o trabalho depende delas, as informações que eu realmente preciso dependem delas, a certeza do bem-estar de pessoas que amo e que fazem quarentena sozinhas dependem delas, a vida social depende delas. Nunca socializei tanto quanto nessa pandemia e não sou exatamente alguém que gosta de conversar o tempo todo. Sinto falta de estar realmente sozinha, de estar realmente em silêncio, de estar realmente no meu tempo e no meu ritmo.

Esses sentimentos e sintomas, porém, são apenas a barbatana que desponta acima da superfície. Abaixo dela, há um tubarão inteiro. Obcecados por planejar a volta de algo que andam chamando de “normal”, esquecemos de olhar para a profundidade da transformação que nossa vida está sofrendo. Somos resultado, como espécie, de um longo processo de evolução e de adaptação, pelo menos dois milhões de anos desde o Homo erectus. Mas, como humanos contemporâneos, nossa existência sofreu uma brutal transformação com a internet e, em 2020, com a primeira pandemia na época das telas.

Nosso corpo não processa uma mudança tão monumental em tão pouco tempo. Desde que o novo coronavírus apareceu, a principal preocupação dos vários setores da sociedade é com os custos financeiros da pandemia. É urgente falar muito mais dos custos psicológicos, das crianças que só conhecem paredes e têm medo de outras crianças porque aprenderam que são ameaças, dos velhos confinados em solidão, dos adultos submetidos a uma pressão inédita e a um nível de convivência também inédito. Esse custo é alto e suas sequelas poderão durar uma vida.

Tratamos a pandemia como uma anomalia, mas a real anomalia é o mundo que criamos dentro do mundo. Ou melhor: o mundo que a minoria dominante dos humanos criou dentro do mundo, submetendo todos os outros, subjugando a maioria. O custo desse mundo ameaça nossa existência no planeta, isso que chamamos crise climática. A pandemia é consequência da corrosão da vida causada pelo capitalismo neoliberal, ao destruir o habitat de outras espécies, e pelo modo de produção em que as mercadorias circulam ampla e velozmente pelo globo, assim como muitos de nós a bordo de aviões altamente poluentes.

A segunda onda de covid-19 mostrou que anomalia produz anomalia. Nosso modo de vida é insustentável, o que fizemos com as outras espécies agora pode nos matar. É uma fantasia perigosa acreditar que é possível voltar à anomalia que chamamos de normal e seguir tocando a vida como se cada ato não tivesse consequências em cadeia.

Em 2020, perdemos definitivamente a casa. Que, além de perder a porta, se tornou também uma prisão, a pior espécie de prisão, aquela que foi criada pelos nossos atos. E o que é uma prisão senão um lugar em que estamos confinados mas não temos privacidade, em que somos acessados a qualquer hora, em que cada gesto é controlado e monitorado, onde as visitas são reguladas e não pode haver toque? O que é uma prisão senão um lugar em que não temos escolha sobre o que pode ou não entrar? Um lugar em que estamos a mercê de todas as outras forças?

Do lado de fora, nas ruas, há três tipos de experiências. A daqueles a quem foi arrancado o direito fundamental de se proteger, porque seu trabalho não pode ser feito em casa e os empregadores e o Estado não os bancam. A daqueles que fazem serviços essenciais, como os profissionais de saúde. E a da maioria de pessoas, que poderia fazer quarentena mas não faz, porque não se importa com a vida de todos os outros, e assim contribui de forma decisiva para a ampliação da contaminação e pelo maior número de vítimas. Esse grupo numeroso de boçais é cínico a ponto de empunhar a bandeira da liberdade, conceito que corrompem ao convertê-lo em liberdade de matar.

Para enfrentar a pandemia é preciso enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies. Para enfrentar a emergência climática e estancar a extinção das espécies teremos que criar muito rapidamente uma vida realmente sustentável. Para criar uma vida realmente sustentável temos que nos tornar outro tipo de gente.

Diante da magnitude do desafio, podemos começar organizando a casa. Para organizar a casa é preciso recuperar a casa, essa que é refúgio. E então parar de destruir a casa comum que é o planeta. Não é coincidência que no momento em que enfrentamos as consequências da destruição de nossa casa comum também enfrentamos a experiência subjetiva de perder a possibilidade de fazer casa da casa. É o mesmo nó. Para sair dele, precisamos recuperar a porta, e com ela a possibilidade de voltar a importar —colocar para dentro, deixar entrar— apenas o que realmente importa. A porta da casa é a única saída.
Eliane Brum