segunda-feira, 29 de abril de 2024

Pensamento do Dia

 


‘Dias perfeitos’ e o trabalho modesto

Este artigo é um pequeno contrabando. Não costumo escrever sobre filmes, embora veja sempre um antes de dormir. Na maioria, são tão inexpressivos que me esqueço deles no dia seguinte.

Pensei em escrever sobre “Zona de interesse”, destacando a maneira como trata o nazismo. O turbilhão de notícias me fez esquecer. Agora é diferente. Desde quando li sobre o filme de Wim Wenders “Dias perfeitos”, supus que tinha algo a ver com minha experiência pessoal.

O filme conta a história de um lavador de privadas em Tóquio que vive momentos felizes em seu cotidiano. Já trabalhei em limpeza na Suécia e, apesar do trabalho repetitivo e da crônica dor do exílio, também vivi bons momentos. Essas reflexões valem para países como Suécia e Japão, onde há algum reconhecimento por esse tipo de trabalho e salários dignos.


Aproveitei uma dessas tardes maravilhosas de abril no Rio para ver a estreia de “Dias perfeitos”. Creio ter entendido um pouco o que Wim Wenders quis dizer com a história do faxineiro Hirayama(Koji Yakusho). Ele acorda todas as manhãs em sua pequena casa despojada e olha para o céu, reconhecido por estar vivo, num novo dia. Não tem móveis, apenas um tatame, onde dorme, e usa os cotovelos apoiados no chão para ler diante do abajur. Hirayama compra livros a US$ 1 e está lendo “Palmeiras selvagens”, de William Faulkner.

Depois de comprar o café na máquina da rua, entra no carro e segue ouvindo fita cassete. Lou Reed (“Perfect day”), Patti Smith fazem parte de sua coleção. Hirayama tem uma vida cultural interessante, e creio que isso é o complemento ideal para esse tipo de trabalho. Ele tem uma vantagem sobre os outros, jornalismo, política, medicina, detetives. Quando você deixa a vassoura, o balde, o pano, não precisa pensar mais nisso. Muitas profissões intelectuais invadem o cotidiano, perseguem a pessoa mesmo depois do expediente, sobretudo num tempo de redes sociais.

Hirayama é analógico. Quando recebe a sobrinha Niko, ela pergunta se a música que ouvem está no Spotify. Hirayama responde: onde fica essa loja? Ele leva uma pequena câmera no bolso, fotografa as árvores. A sobrinha mostra sua própria câmera, embutida no telefone celular. Ao lado da sobrinha, ele vive um momento que, creio eu, é uma chave da própria sabedoria oriental. Diante de um rio, param suas bicicletas, e Niko pergunta se não quer ver o rio desaguar no mar.

—Numa próxima vez — Hirayama responde.

Niko pergunta:

— Agora?

—Uma próxima vez, agora não é uma próxima vez.

Saem de bicicleta cantando alegremente, agora não é a próxima vez.

Essa imersão no presente é apenas uma das chaves. No lugar onde compra livros, a vendedora sempre diz uma frase interessante sobre o autor, quando ele faz sua escolha:

—Patricia Highsmith me ensinou a diferença entre medo e ansiedade.

Filha da irmã mais rica, a sobrinha de Hirayama pergunta por que ele não se dá bem com a mãe dela. Ele responde algo assim: “no mundo há muitos mundos, e às vezes não se conectam”.

Mais uma pequena indicação sobre o universo de Hirayama. Ao encontrar com um homem que lhe confessa estar com câncer terminal, Hirayama não comenta nada. Aliás, fala pouquíssimo. Diante da pergunta do homem —se as sombras superpostas ficam mais escuras —, Hirayama o chama para brincar de sombras superpostas e encontrar na prática a resposta. Nada sobre câncer ou morte, apenas uma pequena fração de vida e humor.

A experiência de combinar uma vida cultural com o trabalho modesto foi algo que me deu a sensação de realidade na história de “Dias perfeitos”. Ele ouve Patti Smith em “Redondo Beach”, eu a ouvia em “Because the night” e descansava lendo o New York Herald Tribune.

O final do filme de Wenders me devolveu para o fim de tarde de abril no Rio, não sem antes Hirayma se despedir ouvindo Nina Simone em “Feeling good”, uma canção que parece resumir suas manhãs:

— Pássaros voando alto, você sabe como me sinto/Sol no céu, você sabe como me sinto/Brisa soprando, você sabe como me sinto/É um novo amanhecer, um novo dia, uma nova vida para mim, yeah.

Relaxe!

Brasil! Selva!

Pelo que se vê na mídia, toda a expertise e o dinheiro de Elon Musk não lhe valem uma fala com algum sentido. Ele padece da mesma afecção linguística da ultradireita brasileira, cujo vocabulário político ativo, fora as narrativas mentirosas, resume-se a "liberdade". Isolada, a palavra não significa nada.

O mesmo drama transparece nas investigações do ataque do 8 de janeiro: nos relatos quase etnográficos sobre o famigerado acampamento dos insurretos salta à vista a escassez de palavras de ordem coerentes.

Reconfortaram-se um dia ao saberem que a esposa de um general, ícone do golpismo, em visita ao local, faria um discurso. E ela fez: "Brasil! Selva!". Curto, não grosso, sem narinas dilatadas nem olhar de ódio.

Mas enigmático: isoladas, essas duas palavras não explicam grande coisa. Não são "action-words", no sentido concreto de indução ao ato. Presume-se que faziam parte de um vocabulário próprio à movimentação. O nexo entre uma e outra estaria implícito na mente de cada um por sintaxe oculta, talvez por condensação, como no sonho.

Por mais disparatado que seja, o golpismo precisa de algum discurso. É o que se infere de pensadores do liberalismo americano para os quais um movimento desse calibre carece de novo jogo de linguagem, que faça o anterior parecer ruim. O golpe de 1964 manejava o vocabulário do anticomunismo (supremacia do mercado, silêncio civil, fervor cristão etc.), compartilhado com a matriz americana. Aos golpistas de agora, faltam consentimento (mídia, apoio externo) e linguagem.

Por outro lado, é considerável o desgaste do vocabulário político e moral. E se os valores se esvaziaram por anacronismo, perde força a linguagem da esquerda contra o reacionarismo, por falta de vigor histórico-social das palavras. Daí a insuficiência do arrazoado progressista frente à cacofonia insensata das redes sociais.

Insuficiente também frente ao código moral do Velho Testamento, com emoções de vingança, ódio e guerra aos supostos inimigos do Senhor. É a porta de entrada exitosa dos neopentecostais na vida política. É igualmente uma perspectiva de linguagem para a ultradireita, porque oferece uma linha bíblica de interpretação maleável para acolher chaves do autoritarismo antidemocrático como racismo religioso, homofobia, negacionismo científico e misoginia.

É fala com mais sintaxe do que semântica, isto é, mais conexão do que significado, num contexto delirante. Um discurso de apenas duas palavras não diz nada, mas pode ter poder injuntivo. Donde o segredo da ultradireita: se o ódio é surdo, a sua comunicação, semanticamente muda, faz economia de reflexão, diálogo e sentido. Afinal, como bem sabe Musk, o foguete do delírio não precisa desse combustível.

Médico americano testemunhou o desespero da fome em Gaza

O médico americano Sam Attar avalia que deixou parte de sua alma em Gaza.

Foi a parte dele que viu o sofrimento e não conseguiu virar as costas. A parte que agora ele não consegue esquecer.

Ele pode estar às margens do Lago Michigan em um dia nublado de primavera, vendo o vento criar ondas na água verde. E ao mesmo tempo está de volta lá, em meio ao calor e à morte.


Os rostos desse outro mundo estão com ele: Jenna, a garotinha traumatizada definhando, pálida como um fantasma em uma cama de hospital, enquanto sua mãe mostrava a Attar um vídeo no celular do último aniversário da criança. Lembranças de dias felizes antes do desastre.

Outra mãe, cujo filho de 10 anos acabara de morrer, também são sai de seus pensamentos.

"A mãe acabara de me dizer, com um olhar vazio e entorpecido no rosto, que ele havia morrido cinco minutos antes. A equipe tentava cobrir seu corpo com cobertores, mas ela simplesmente se recusava a permitir. Ela estava de luto, soluçando e ficou assim por uns 20 minutos, ela só não queria sair do lado dele."

Depois teve o homem de 50 anos, esquecido num quarto, após ter as duas pernas amputadas.

"Ele havia perdido seus filhos, seus netos, sua casa", lembra Attar.

"E ele estava sozinho, no canto deste hospital escuro, com vermes saindo de suas feridas e ele gritava: 'Os vermes estão me comendo vivo, por favor me ajude'. Esse foi apenas um de… não sei, simplesmente parei de contar, mas essas são as pessoas em quem ainda penso porque elas ainda estão lá."

Sam Attar é um homem sensível e atencioso, de 40 anos, filho de médicos, nascido e criado em Chicago e que trabalha como cirurgião no hospital Northwestern da cidade.

Enquanto esteve em Gaza, manteve diários em vídeo e filmou suas experiências.

Durante duas semanas, em março e abril – pela ONG Palestinian American Bridge – trabalhou em hospitais de Gaza que careciam desesperadamente de tudo, exceto pacientes gravemente feridos.

No dia em que entrou em Gaza desta última vez, foi imediatamente confrontado com a crise da fome.

"Fomos cercados por pessoas batendo nos carros, algumas pessoas tentando pular sobre os carros. Os motoristas… eles simplesmente entenderam. Eles não param porque, se parassem, as pessoas pulariam nos carros. Eles não estão tentando nos atacar. Estão apenas implorando por comida. Eles estão morrendo de fome."

Attar recorda suas experiências com calma, como seria de esperar de um homem treinado para deixar os pacientes à vontade.

Todos os dias havia uma pressão implacável para realizar uma triagem, decidindo quem poderia ser salvo, e para quem não havia mais esperança.

Pacientes deitados no chão do hospital cercados de sangue e bandagens descartadas, o ar repleto de gritos de dor e de parentes enlutados.

Não há como apagar tais horrores. Mesmo que você seja um médico altamente treinado com experiência anterior em zonas de guerra como Ucrânia, Síria e Iraque.

"Ainda penso em todos os pacientes de quem cuidei", diz ele.

"E em todos os médicos que ainda estão lá. Há um pouco de culpa e vergonha em sair porque há muito a ser feito. As necessidades são exasperadoras. E você deixa para trás pessoas que ainda estão lá e ainda estão sofrendo."

Em sua última viagem – a terceira dele a Gaza desde o início da guerra –, o médico americano se juntou à primeira equipe de médicos internacionais a trabalhar num hospital no norte de Gaza, onde a desnutrição é mais aguda.

A missão foi organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que alertou sobre a grave situação da fome na região.

Cerca de 30% das crianças com menos de dois anos sofrem de subnutrição aguda e 70% da população no norte de Gaza enfrenta o que a ONU chama de "fome catastrófica".

No mês passado, o chefe de Direitos Humanos da ONU, Volker Turk, acusou Israel de um potencial crime de guerra devido à crise alimentar em Gaza.

"A extensão das contínuas restrições de Israel à entrada de ajuda em Gaza, juntamente com a forma como continua a conduzir as hostilidades, pode equivaler ao uso da fome como método de guerra”, disse ele.

Israel nega e culpou a ONU e as agências de ajuda pela entrega lenta ou inadequada de suprimentos.

O governo israelense disse que os cálculos da ONU sobre a fome se basearam em "múltiplas falhas factuais e metodológicas, algumas delas graves".

O governo afirma ainda ter monitorado relatos na imprensa de que os mercados de alimentos em Gaza, incluindo no norte do território, tinham suprimentos suficientes.

"Rejeitamos categoricamente quaisquer alegações de que Israel esteja propositalmente matando de fome a população civil em Gaza", afirmou um comunicado da Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios (Cogat).

Sam Attar lembra-se da mulher de 32 anos que admitiu sofrer de desnutrição grave, com o filho, a mãe e o pai no quarto com ela.

Ela foi submetida a RCP – reanimação cardiopulmonar – mas não pôde ser salva.

"Eu tive que declarar a morte", diz Sam. A jovem mãe estava deitada num banco, com o braço esquerdo pendurado em direção ao chão, os olhos voltados para cima no momento da morte.

Do outro lado da sala, uma enfermeira consolou a mãe dela, que chorava.

Havia a menina, Jenna Ayyad, de sete anos, "apenas pele e ossos", cuja mãe esperava chegar ao sul, onde havia melhores instalações médicas disponíveis.

Jenna ficou traumatizada pela guerra e parecia extremamente desnutrida. Ela sofre de fibrose cística, o que dificulta a digestão.

Sua condição foi agravada pelas condições da guerra e ela também sofre de traumas. Nas imagens feitas por um cinegrafista da BBC, Jenna parece perdida e agora só fala com a mãe.

"O que posso fazer? Ela não pode ser tratada", disse Nisma Ayyad.

"O estado mental dela é muito difícil. Ela não responde nada quando alguém fala com ela. A situação dela é ruim e, como mãe, não posso fazer nada."

O doutor Sam Attar diz que, enquanto sua equipe fazia as malas para regressar ao sul de Gaza, a mãe de Jenna abordou-o.

"A mãe de Jenna veio até mim e disse: 'Pensei que íamos com você... O que está acontecendo? Por que você vai e nós vamos ficar?'"

Attar teve que explicar que o comboio para o sul só estava autorizado para entrega de combustível e alimentos e não para transporte de pacientes.

Mas antes de partir, Attar e seus colegas preencheram os documentos necessários para a transferência de Jenna.

Levaria dias, mas eles garantiriam que a papelada chegasse aos escritórios certos.

Quando o médico foi falar com a mãe de Jenna, outras mães notaram.

"O problema é que são quartos abertos e compartilhados, [com] talvez dez pacientes em um quarto. Então, quando as outras mães me viram conversando com ela, todas me cercaram."

Jenna foi transferida e agora está sendo tratada no hospital do International Medical Corps, perto de Rafah.

De acordo com estimativas da ONU do mês passado, a maioria dos mortos na guerra são mulheres e crianças: 13 mil crianças, 9 mil mulheres.

A guerra está agora no seu sétimo mês. As negociações para um cessar-fogo e a libertação de reféns estão paralisadas.

Todos os dias e todas as noites, os feridos e os desnutridos chegam aos poucos hospitais em funcionamento que restam. A OMS afirma que apenas dez dos 36 hospitais de Gaza ainda funcionam.

Viajar em Gaza pode ser muito perigoso para os trabalhadores humanitários.

Basta lembrar da morte de sete trabalhadores humanitários, incluindo três britânicos, quando os militares israelenses atacaram seu comboio com mísseis no dia 1° de abril.


Attar descreve filas de horas nos postos de controle israelenses.

"Muitas vezes esperamos de uma a quatro horas, dependendo de quanto tempo leva para os israelenses aprovarem a passagem, porque estão conduzindo operações militares."

O médico americano quer ver um esforço conjunto para levar mais ajuda ao norte de Gaza.

"O norte precisa de mais acesso, mais alimentos, mais combustível, mais água, estradas precisam ser abertas… E há tantos pacientes que precisam ser evacuados do norte para sul e o problema é que o sul também está lotado. Quer dizer, os hospitais aqui estão explodindo."

Ele vai voltar. Em breve, espera. Existem laços de amizade que o chamam.

O paramédico Nabil que Attar via todos os dias, trazendo os feridos para tratamento, até que ele próprio se tornou uma vítima que teve de ser retirada dos escombros pelos colegas. Ele está vivo, mas não poderá sair de Gaza.

O médico cuja filha foi morta, mas que teve a generosidade de confortar uma mãe cujo filho pequeno sofria com uma lesão cerebral causada por estilhaços de bomba.

E há os pacientes e suas famílias, que veem nos médicos, enfermeiros e paramédicos não apenas a possibilidade de ajuda prática, mas a luz constante da decência humana num lugar de horror e degradação.

Essa é a turma de Sam Attar. Todos eles.

Definhando

Quem passeia pela orla nem imagina como está abandonada a área central da cidade, antes referência de novidades, movimento, relíquias históricas, desenvolvimento econômico. Houve um tempo em que, sair do escritório até o café, era garantia de encontrar conhecidos, notícias da última liquidação, cardápios anunciando na calçada almoços tentadores, trabalhadores bem vestidos.

Hoje, o cenário é desolador. Velhos sobrados em ruínas, muitos sem telhados ou metade das janelas. Nas quinas de cada um, brotam plantas resistentes como samambaias, sobrevivendo com a ajuda da chuva e do vento. Não há o que roubar: a maioria das grades de metal, maçanetas, luminárias já foram surrupiadas para venda nos ferros-velhos. Gostaria de saber se ainda há restos dos forros de madeira e soalhos, entre os fantasmas. O que se vê de fora são apenas pombos e mato.


A Prefeitura promete desapropriar esses imóveis esquecidos e o jornal local publicou fotos de alguns deles. Fico imaginando a tristeza de quem já morou ou cresceu ali, diante de tanto descaso. São construções centenárias, algumas com o ano de nascimento na fachada e arabescos que não existem mais nas moradias atuais.

Gosto de idealizá-las restauradas, com a pintura inteira e sem manchas, jardim refeito, muros e portões completos. Sei que a tendência será colocá-las abaixo, a providência mais prática para criar edifícios e moradias populares, a fim de lá abrigar a população de menor renda. Com otimismo, podemos prever que a ocupação provocará a instalação de escolas e postos de saúde, restaurantes a preços populares, farta iluminação, policiamento constante, áreas de lazer.

Utopia não tem limite, mas tudo é moroso na administração pública e imóveis moribundos pedem pressa. O déficit de habitações e empregos, também. Dói passar pelas ruínas de grandes lojas de departamento, tapeçarias de luxo, confeitarias enfeitadas com murais, famosas casas de discos e instrumentos musicais… Tudo agora não passa de lembrança nas cabeças brancas das gerações mais antigas. As novas, atraídas pelos shoppings, desconhecem. Nem vão ao centro da cidade.

Lições de um prefeito escritor

O ambiente político fervilha nos anos de eleição. Apesar das imperfeições e disfuncionalidades do regime, o Brasil segue um calendário eleitoral que, a cada dois anos, intercala eleições gerais e eleições municipais.

A democracia tem uma virtude indiscutível: confere mandato com prazo determinado, assegurando alternâncias, exceto o faz-de-conta das nações que ameaçam constantemente os mecanismos da democracia liberal e ampliam globalmente os espaços do populismo autocrático.

Por aqui, há os que preconizam reformas que corrijam as distorções do nosso sistema político. Esqueçam. Diz o cancioneiro: “Meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus”. Vamos ao jogo. As regras estão estabelecidas e a vida real de 5.570 municípios será exposta com suas carências e dificuldades num quadro de brutal desigualdade.

Neste clima, milhares de candidatos vão às ruas, com o sem a falsificação do marketing, pedir e se mostrar merecedor do voto do eleitor.

A vida local da menor e mais pobre à mais rica e populosa cidade é o espaço das transformações reais, a desafiar a capacidade de gestores e legisladores. O julgamento popular será um passo adiante ou, para trás, dos projetos políticos/pessoais.


Sem dúvida, o mais complexo dos desafios está reservado para a governança, hoje elevada à categoria estratégica ao lado das questões sociais e ambientais. Ganhou lugar de destaque na composição da sigla internacional ESG.

Trata-se de conceito e experiência extremamente complexas. Exigem múltiplas capacidades, conhecimentos, estratégias e métodos. O importante: é possível aprender a fazer e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. No entanto, para além dos mecanismos modernos e inovadores, a gestão deve obrigatoriamente observar princípios que atravessam o tempo.

Neste ponto, recordo a passagem memorável da gestão municipal no Brasil do Prefeito Escritor (e admiravelmente transgressor) Graciliano Ramos (1892-1953), grande romancista e expoente da geração modernista de 30 que nos deixou 11 obras em vida, 10, póstumas e duas traduções, uma delas, A peste, de Camus.

Como Prefeito de Palmeira dos Índios (candidato único por consenso e 433 votos) imortalizou dois relatórios dirigidos ao Governador de Alagoas em 1929 (exercício do 28) e 1930 (exercício de 1929), recém-editados pela Record sob o título O prefeito escritor: dois retratos de uma administração, prefaciado pelo Presidente Lula. Neles, estavam as sementes do moderno conceito de accountability (prestação de contas e responsabilização).

Os relatórios revelam o escritor/transgressor, primeiro ao usar os verbos na primeira pessoa do singular com estilo conciso, sem enfeites, imitando, segundo ele, o ofício das lavadeiras que se dedicavam ao esforço repetido do fazer prosaico de, com esmero, lavar o tecido. A partir do exemplo, dizia: “Quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como falso: foi feita para dizer”. A vocação de escritor derrotou o jargão burocrático.

Sempre iniciava os documentos prestando contas, minuciosamente, das receitas e gastos. “Consegui salvar em setenta dias 9:539$447 (Moeda da época, comparação 1 Real/100 Réis). É pouco. Entretanto fiz esforço imenso para acumular soma tão magra […] suprimi despesas e descontentei bons amigos e compadres que me fizeram pedidos […] de resto preciso efetuar uma economia considerável, não só para custear as despesas como para fazer face à dívida que a administração passada me legou”.

Apesar de tempos históricos distintos, no relatório, estão demonstrados sinais de austeridade, transparência, probidade, zelo com o dinheiro público (responsabilidade fiscal) e, nas entranhas da gestão pública, constatados os vícios do compadrio e do patrimonialismo.

Outro expressivo registro com realismo, humor e ironia: “A cobrança das contas atrasadas é impossível […] Isto se explica pelo fato de sermos todos, prefeitos, conselheiros, contribuintes, mais ou menos, compadres”.

Nascido em Quebrangulo (AL) e primogênito de uma numerosa família de 16 irmãos, o notável escritor escreveu seu primeiro conto, O pequeno pedinte, em 1904. A partir de então, a extensa bibliografia se inspirou na sua profunda sensibilidade para denunciar os contrastes sociais, expostos na miséria dos retirantes nordestinos donde emergia o infortúnio dos desvalidos a exemplo de Fabiano, protagonista de Vidas Secas.

O romance engajado e suas ideias renderam-lhe uma prisão em 1936, sob a acusação de ser comunista por quase um ano. Inocentado. As agruras do prisioneiro foi o tema do romance autobiográfico Memórias do Cárcere. Em 1945, filiou-se ao PCB.

Com modéstia, disse em um dos relatórios: “Não pretendo levar ao público a ideia de que meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas”, mas com a firmeza de convicções das quais jamais se afastou, assim se referiu ao “pobre povo sofredor” que “quer escolas, quer luz, quer estrada, quer higiene”.

O exemplo e o sonho do prefeito escritor, alargados, atualizados, realizados, bem que podem servir como plataforma e compromisso dos candidatos que almejem um espaço de poder nas próximas eleições municipais.

Em quaisquer circunstâncias, fica a lição atemporal: o bom governo é o mais forte argumento em favor do prestígio e da resistência da democracia.

sábado, 27 de abril de 2024

Sem passaporte, monitorado pela Polícia Federal e à espera do pior

Melhor Jair Bolsonaro esperar sentado a devolução do seu passaporte apreendido em 8 de fevereiro passado pela Polícia Federal por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, que preside o inquérito sobre atos hostis à democracia.

Sentado, não, melhor que ele espere deitado. E que sua defesa não perca tempo em pedir outra vez a liberação do documento. Moraes não tem pressa em responder a qualquer pedido, e muito menos disposição para restabelecer as condições de ir e vir de Bolsonaro.

Ir e vir dentro do Brasil, sem problema. Bolsonaro goza de pleno direito desde que respeite certas restrições. Por exemplo: está proibido de se comunicar com os outros investigados. Não é aconselhável que volte a investir contra a justiça como já fez tantas vezes.


Ir para o exterior tiraria Bolsonaro do radar imediato da Polícia Federal. Ele pode não notar, mas é monitorado o tempo inteiro. Uma vez no exterior, em território governado pela extrema-direita, talvez desejasse ficar por lá sem data de retorno. Férias? Exílio?

Vai saber o que se passa na cabeça dele. Nem aos filhos ele confessa. Todos se disseram surpreendidos com a decisão do pai de aproveitar parte do carnaval para refugiar-se na embaixada da Hungria no Brasil. Só não surpreendeu Carlos, que o visitou por lá às escondidas.

Carlos, sempre Carlos. É o filho mais ligado a Bolsonaro, e o mais problemático. É também aquele que o pai machuca sem piedade. Bolsonaro o obrigou a candidatar-se a vereador para derrotar a própria mãe que pretendia se reeleger vereadora, e ele a derrotou com os votos do pai.

Bolsonaro não admite, mas está preocupado com sua capacidade em declínio de atrair multidões. Com as chaves dos cofres públicos nas mãos, e o poder que o cargo de presidente lhe conferia, era-lhe fácil reunir gente aonde quer que fosse e para o que quisesse.

De resto, a expectativa de manter-se no poder operava a seu favor. Essa expectativa transferiu-se para seu sucessor. E Bolsonaro vive hoje a contar os meses, os dias e as horas que o separam de uma mais do que certa condenação. Se fosse condenado só pelo golpe que fracassou…

Se fosse só por isso, o que não seria pouco, se declararia preso político, vítima de uma injustiça. Seguiria repetindo a cantilena de que não planejou golpe algum, de que golpe não se faz sem armas e tanques nas ruas, e coisa e tal. No máximo, houve uma proposta de golpe.

Mas ser também condenado por roubar joias do acervo presidencial, falsificar atestados de vacinação contra a Covid, e sabe-se lá mais o quê… Moraes revelará quando chegar o momento. E as provas serão tão fartas que a falação de Bolsonaro será rebaixada à condição de mimimi.

Assim foi Auschwitz

Partimos do campo de concentração de Fossoli, em Carpi (Módena), em 22 de fevereiro de 1944, num comboio de 650 judeus de ambos os sexos e de todas as idades. O mais velho ultrapassava oitenta anos, o mais novo era um bebê de três meses. Muitos estavam doentes, e alguns gravemente: um senhor de setenta anos, que tivera uma hemorragia cerebral poucos dias antes da partida, também embarcou no trem e morreu durante a viagem.

O trem era composto apenas por vagões de transporte de gado, fechados pelo lado de fora; em cada vagão, foram amontoadas mais de cinquenta pessoas, a maioria delas trazendo tudo o que conseguira de malas, porque um primeiro sargento alemão, empregado do campo de Fossoli, havia nos sugerido, com ar dequem dava um conselho desinteressado e afetuoso, que nos provêssemos de muitas roupas pesadas — malhas, cobertores, casacos de pele — porque seríamos levados para regiões de clima mais rigoroso do que o nosso. E acrescentara, com um sorrisinho benévolo e uma piscadela irônica, que, se alguém tivesse dinheiro ou joias escondidas, faria bem em levá‑los, pois lá certamente seriam úteis. A maioria dos que partiam mordera a isca, seguindo um conselho que escondia uma cilada vulgar; outros, pouquíssimos, preferiram confiar seus bens a algum particular com livre acesso ao Campo; outros ainda, que no ato da prisão não tiveram tempo de providenciar mudas de roupa, partiram apenas com o que vestiam.

A viagem de Fossoli para Auschwitz durou exatamente quatro dias; e foi muito penosa, sobretudo por causa do frio, que era tão intenso, especialmente na madrugada. Ao amanhecer, as tubulações de metal no interior dos vagões estavam cobertas de gelo, devido ao vapor da respiração que se condensava sobre elas. Outro tormento era a sede, que só podia ser aplacada com a neve recolhida na única parada do dia, quando o comboio se detinha em território neutro e os viajantes eram autorizados a descer dos vagões, sob a rigorosíssima vigilância de numerosos soldados, com a metralhadora sempre apontada, prontos a abrir fogo contra qualquer um que fizesse menção de se afastar do trem.

Durante essas curtas paradas, a distribuição dos alimentos era feita de vagão em vagão: pão, geleia e queijo; nunca água nem outro líquido. As possibilidades de dormir eram reduzidas ao mínimo, pois as malas e trouxas se amontoavam no chão e não permitiam que ninguém se ajeitasse numa posição cômodae propícia ao descanso; todo viajante devia se satisfazer em ficar agachado da maneira menos pior possível, num espaço reduzidíssimo. O piso dos vagões estava sempre molhado e não foi providenciado nem sequer um pouco de palha para cobri‑lo.

Assim que o trem chegou a Auschwitz (eram aproximadamente 21 horas de 26 de fevereiro de 1944), os vagões foram rapidamente esvaziados por numerosos ss, armados com pistolas e cassetetes; e os viajantes, obrigados a colocar malas, trouxas e cobertas ao longo do trem. A comitiva foi logo dividida em três grupos: um primeiro de homens jovens e aparentemente aptos, integrado por 95 indivíduos; um segundo de mulheres, também jovens — grupo pequeno, composto de apenas 29 pessoas —, e um terceiro, o mais numeroso de todos, com crianças, inválidos e idosos. Enquanto os dois primeiros foram encaminhados separadamente para diversos campos, há razão para crer que o terceiro foi conduzido diretamente para a câmara de gás de Birkenau e seus integrantes, trucidados na mesma noite.
Primo Levi

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Mantenha-se ativo na ajuda aos outros

Viver ou morrer é a mesma coisa. Porque, naturalmente, a vida não está neste pequeno corpo. O importante é a maneira como vivemos e a mensagem que deixamos. Isso é o que nos sobrevive. Isso é a imortalidade. 

O fundamental é manter ativo o cérebro, tentar ajudar os outros e conservar a curiosidade pelo mundo. 
Rita Levi-Montalcini, Prêmio Nobel de Medicina em 1984

Embalo da sexta

Éramos felizes e não sabíamos

Na entrega do anteprojeto do novo Código Civil ao Congresso Nacional, o ministro Alexandre de Moraes referiu-se a variadas transformações ocorridas na sociedade brasileira, novos tipos de contratualidade social, que o tornam necessário. Ressaltou “a questão de costumes, novas relações familiares, novas modalidades de se tratar das questões do direito de família e sucessões, a tecnologia, a inteligência artificial, novas formas de responsabilidade civil”.

Ele poderia ter arrolado muitas outras modalidades de relacionamento que expressam a realidade atualizada do país e sofreram câmbios significativos. Aos olhos dos mais antigos, bloqueados no meio do caminho das mudanças, a sociedade está tomada por crescentes anomalias, até mesmo inaceitáveis para muitos.

Uma ideologia repressiva e punitiva, de cada vez mais numerosas pessoas, já domina a formação de partidos e de bancadas partidárias nas casas do Congresso; domina novas “religiões” e até mesmo disfarça religiões em partidos políticos, o que viola a Constituição e as leis. Um conjunto extenso de metamorfoses sociais tornou a sociedade brasileira disfuncional e patológica.

As redes sociais tornaram-se não só poderosos instrumentos de difusão cultural e de democratização do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, diluíram e mistificaram a consciência crítica e reveladora dessas graves anomalias e transformações. O anormal passou a fazer parte da normalidade. A anomalia passou a ser concebida como um direito em nome do direito à liberdade de opção, mesmo que antissocial. O que motivava estranheza e repulsa tornou-se ódio, base ideológica de um programa de mudança para não mudar.

Sociedades atrasadas mudam relativamente depressa por impulso de fatores invisíveis. As causas da mudança eficaz que nos move mais rapidamente nem mesmo estão aqui. E as que estão aqui só muito lentamente se transformam em motivação e fator das mudanças sociais e políticas que carecemos. Estamos sempre em atraso com nossos carecimentos.

O desenvolvimento das tecnologias das redes sociais e a rapidez de sua disseminação são acompanhados pelo dedo indicador, mas não o são pelo cérebro, pela cultura e pela consciência. Esse descompasso abriu caminho para o poder de manipulação das consciências, à qual chegam os aproveitadores dessa fragilidade muito mais depressa do que o bom senso.

A criminalidade econômica, a política e a religiosa acrescentam-se rapidamente ao elenco de criminalidades que já ameaçavam as sociedades antes das redes sociais. O crime se moderniza antes da modernização da Justiça e o elenco de criminosos se dilata.

Há também as categorias sociais que não só não mudaram como radicalizaram suas antiquadas concepções de vida e dos valores que lhes são referências. Temos saudade do que nunca fomos, queremos voltar para onde nunca estivemos.

É o caso dos militares, cuja organização é estamental, de um passado que nunca teve um lá adiante atualizado à luz das mudanças sofridas pela sociedade, como se não fizessem parte dela. São movidos por carências suas e não da sociedade.

Já na ditadura militar, mas também recentemente, no bolsonarismo, deram evidentes indicações de grande dificuldade para aceitar e reconhecer as significativas mudanças sociais e políticas que iam na direção até mesmo de uma nova concepção de democracia. Socializados para fazer a guerra contra uma sociedade de inimigos imaginários, têm agido no sentido de reduzir a sociedade brasileira aos limites de uma cultura autoritária de quartel.

Também querem a volta a um passado que não houve, os grupos que encontraram nas religiões antidemocráticas e não só fundamentalistas mais do que um refúgio contra as tentações de satanás, uma fortaleza da mentalidade de guerra que os motiva. São os de religiões antirreligiosas de enquadramento dos pobres de espírito, que nas religiões do poder se sentem seguros contra as crescentes incertezas do mundo. Insurgem-se contra a necessidade de modernização das mentalidades.

Antes das redes sociais éramos felizes não porque delas não carecíamos. Nossa consciência das necessidades da vida tinha outros valores de referência, que eram valores sociais próprios da condição humana. Havia uma consciência clara do que era ser gente e do que não o era.

Não sabíamos que éramos felizes porque nos bastava a esperança do que éramos. Hoje achamos que somos felizes com o mundo fantasioso das redes sociais, mas já não sabemos o que somos. Elas desumanizaram o nosso mundo e o liquefizeram. Usurparam-nos a consciência da esperança. Trocaram nossa consciência possível por uma consciência meramente provável, o destino de todos como um mero e cinzento talvez.

O 25 de Abril que falta

E se os descobrimentos ainda estivessem por cumprir e se nos faltasse descobrir as pessoas que cá estão? E se, em vez de terras longínquas, nos faltasse agora descobrir pessoas?

Temos em Portugal uma riqueza muito mais maravilhosa do que qualquer conquista colonial: a riqueza de quem escolheu vir viver para o nosso país.

Não são só as riquezas culturais que os imigrantes trouxeram, mas riquezas individuais: cada imigrante é um português à beira de ser, um indivíduo como nenhum outro, alguém que pode ser a alegria de alguém.


E se o verdadeiro império fosse o império dos imigrantes? E se o verdadeiro império fosse o império da concórdia, e do respeito, e da festa? E se o verdadeiro império fosse o império da dignidade? E se o quinto império fosse o império dos indivíduos, dos pequenos, dos diferentes, dos bem-dispostos, dos espíritos abertos? E se o quinto império fosse uma sociedade multirracial e multicultural em que os valores comuns fossem a festa, a música, a comida, o vinho, o riso e a curiosidade?

Detesto fazer mais propaganda à Festa do Avante!, mas parece-me que a Festa do Avante! mostra um caminho para essa felicidade.

Temos aqui em Portugal – já temos, não é preciso ir a lado nenhum – uma riqueza enorme de pessoas com as quais podemos dançar, aprender, conspirar, ir para a frente, voltar para trás, fazermos tudo o que nos apetecer.

A sociedade portuguesa pode ser a primeira sociedade verdadeiramente moderna do nosso tempo. A maneira de resistir aos nossos defeitos – a nossa tacanhez, desconfiança, mediocridade, inveja – é cedendo preguiçosamente às nossas qualidades – à nossa abertura, à nossa tolerância, à nossa sinceridade, à nossa doçura, ao nosso sentimentalismo.

Somos um país de braços abertos. Só nos resta escolher quem abraçamos: não só aqueles que falam português, mas aqueles que vêm de países com os quais engraçamos. Somos muito abertos, muito internacionalistas, muito amistosos. Somos portugueses, porra!

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Pensamento do Dia

 


Valores da morte (dos outros)


Nos poupe das suas lágrimas de crocodilo. São 200 dias de Israel limpando Gaza da face da Terra. 505 bombas por dia. Valas comuns, médicos e jornalistas assassinados. Os valores europeus são os mesmos de sempre: assassinato e colonialismo

Clare Daly, deputada irlandesa

Feras de estimação

Uma vez entrevistei Orlando Orfei. Foi em outra vida, num mundo em que ainda existiam circos com animais, e ele era considerado um dos maiores treinadores do mundo. Orfei era italiano, dono de um circo famoso que rodava o Brasil e de um parque de diversões na Lagoa, o Tivoli, que deixou saudades.

Me lembro que conversamos muito, e longamente, sobre os animais. Eu não gostava de ver animais amestrados, mas não estava lá como militante. Orfei era um homem do seu meio e do seu tempo: quando nasceu, em 1920, a família trabalhava com circo há mais de cem anos. Ele era um domador sui generis, que conversava com os bichos e não acreditava no medo como ferramenta didática. Eu o vi interagir com os leões e ali havia amor.

Antes de ir embora quis fazer carinho nos bichos, mas Orfei deu o contra: com certos animais, explicou, não se brinca.

Algum tempo depois ele foi atacado durante um espetáculo e quase morreu. Sua primeira preocupação no hospital foi com os leões — eles não tinham culpa.

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Durante anos, uma das atrações mais populares de Las Vegas foi o show de Siegfried & Roy, mágicos e domadores que se apresentavam com tigres e leões brancos. Um dia Roy foi atacado por um tigre chamado Mantacore e, como Orlando Orfei, ficou seriamente ferido. A caminho do hospital, também pediu que nada fosse feito ao tigre: ele não tinha culpa.

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Há inúmeras histórias assim — com tigres, leões, ursos.

E pitbulls. Muitos pitbulls.

Os animais nunca têm culpa.

A culpa é única e exclusivamente dos humanos, que não aprendem que com certos animais não se brinca.

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Penso todos os dias na escritora Roseana Murray, que foi atacada por três pitbulls quando saía de casa para dar uma volta. Perdeu o braço direito, teve o corpo todo mordido e ainda assim deu sorte, porque sobreviveu. (Roseana é um exemplo de resiliência. A internet fez uma roda à sua volta, “lute como uma poeta”. Ela luta. E definiu os cuidados da equipe médica como o trabalho de aranhas douradas sobre o seu corpo.)

Os pitbulls não têm culpa do que fizeram. Eles descendem de animais que foram desenvolvidos para lutar, para investir contra touros e outros cães, com o propósito singular de distrair ingleses entediados no século XIX. Isso está no seu DNA e, o que é pior, está no DNA de muitos tutores que ainda entendem os seus animais como símbolos de status e de poder.

Tenho amigos que têm pitbulls. Eles dizem que os cães são dóceis e gentis, e que os que atacam não foram bem adestrados. Dizem que nunca tiveram problemas com os seus animais. Orfei e Roy também não tiveram problemas com os seus — até o dia em que tiveram.

Pitbulls, como tigres e leões, podem matar, e às vezes matam. Estraçalham pessoas. Não têm culpa de ser assim, apenas são. Cabe à sociedade mantê-los à distância.

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Na Califórnia, Brooklinn Khoury (@brookhoury), modelo e skatista, já passou por sete cirurgias para refazer o lábio superior; na segunda passada, Jacqueline Durand (@jacqueline_claire99) passou pela sua 23ª cirurgia. Suas contas no Instagram são poderosos argumentos contra a criação de feras.

Relaxe

'Brasil é um dos países mais desiguais'

Um dos países mais desiguais, um lugar especialmente difícil para mulheres, negros e LGBTQ+, que pelo 14° ano seguido é o que mais mata pessoas trans no mundo. É assim que o mais recente relatório da Anistia Internacional, divulgado nesta quarta-feira, retrata o Brasil.

O documento, chamado "O estado dos direitos humanos no mundo", é divulgado anualmente e mostra um panorama sobre a garantia de direitos humanos em 155 países, passando por questões sociais, econômicas, culturais e políticas. De acordo com a análise da organização, a situação no Brasil é preocupante.

O texto cita que, até dezembro de 2023, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos havia registrado mais de 3,4 milhões de denúncias de violações de direitos humanos, como racismo, violência física e psicológica e assédio sexual. Esse número representa um aumento de 41% em comparação com 2022.


Apesar de um aumento do salário mínimo pouco acima da inflação e da expansão do programa Bolsa Família no ano passado, o 1% mais rico da população brasileira ainda detinha quase metade da riqueza do país, de acordo com dados de 2023 do Banco Mundial destacados pelo relatório.

A insegurança alimentar é alarmante: 21,1 milhões de pessoas passaram fome no Brasil em 2023, o equivalente a 10% da população. As famílias negras são prejudicadas de forma desproporcional: 22% dos domicílios chefiados por mulheres negras encontravam-se em estado de fome.

O déficit habitacional no Brasil também é preocupante. Há pelo menos 215 mil pessoas sem teto, de acordo com dados da Universidade Federal de Minas Gerais. No ano passado, 12% da população brasileira vivia em favelas.

O relatório chama atenção para o uso excessivo e desnecessário da força no Brasil, uma vez que o governo ignorou medidas para reduzir a violência policial, como o uso de câmaras corporais. Isso resultou em homicídios ilegais e outras graves violações de direitos, com prevalência da impunidade.

A Anistia Internacional, em parceria com o Conselho Nacional de Direitos Humanos e outras organizações, documentou 11 casos de violações graves dos direitos humanos perpetradas por agentes do Estado brasileiros, incluindo execuções extrajudiciais, entrada ilegal em residências, tortura e outros maus-tratos.

Dois policiais são conduzidos em cima de uma escavadeira em operação na favela da Maré, no Rio de JaneiroDois policiais são conduzidos em cima de uma escavadeira em operação na favela da Maré, no Rio de Janeiro

O relatório lembra do caso da morte do ativista Pedro Henrique Cruz, em 2018, em Tucano, na Bahia. Ele era conhecido por denunciar violências policiais e foi morto dentro de casa. Os três policiais indiciados pelo crime ainda não foram levados a julgamento, e sua mãe, Ana Maria, continua a sofrer ameaças e intimidações.

A Anistia mostra que nas escolas brasileiras a violência aumentou. Até o final de outubro, 13 ataques violentos com armas aconteceram no ambiente escolar, que deixaram nove pessoas mortas. Isso representa 30% de todos os incidentes do tipo ocorridos nos últimos 20 anos. Todos os agressores eram do sexo masculino, enquanto a maioria das vítimas era do sexo feminino.

Em todo o continente americano, a violência de gênero permaneceu arraigada, segundo o diagnóstico da Anistia Internacional. As autoridades não conseguiram enfrentar a impunidade para esses crimes nem proteger mulheres, meninas e outros grupos de pessoas em risco.

Houve avanços limitados na proteção aos direitos das pessoas LGBTQ+ em alguns países, mas os ataques a esses direitos se intensificaram em muitos outros. Essa comunidade foi alvo de hostilidades, discriminações, ameaças, ataques violentos e assassinatos, além de enfrentarem obstáculos ao reconhecimento legal em países como Argentina, Brasil, Canadá, Colômbia, Estados Unidos, Guatemala, Honduras, Paraguai, Peru e Porto Rico, destaca o relatório.

O Brasil é o país que mais mata pessoas trans. Em 2023, houve 155 mortes, sendo 145 casos de assassinatos e dez suicídios após violências ou devido à invisibilidade trans.

Segundo a organização, as autoridades brasileiras também não tomaram medidas suficientes e eficazes para garantir o direito das pessoas a um meio ambiente saudável e mitigar os efeitos da crise climática.

Eventos climáticos extremos causaram mortes, destruição de propriedades e deslocamentos no Brasil. Os povos indígenas foram privados do pleno exercício de seus direitos, e a demarcação de terras aconteceu de forma lenta. A Anistia destaca a crise humanitária e sanitária do povo Yanomami, que ainda sofre com a presença do garimpo ilegal da região.

No geral, a Anistia relata um ressurgimento de sistemas autoritários e observa que cada vez menos pessoas vivem agora em uma sociedade democrática. No prefácio do relatório, a secretária-geral da Anistia, Agnes Callamard, observa que é como se o mundo estivesse "em espiral no tempo, retrocedendo em relação à promessa de 1948 de direitos humanos universais".

Secretária geral da Anistia Internacional, Agnes Callamard, apresenta o mais recente relatório "O estado dos direitos humanos no mundo" Secretária geral da Anistia Internacional, Agnes Callamard, apresenta o mais recente relatório "O estado dos direitos humanos no mundo"

Secretária geral da Anistia Internacional, Agnes Callamard, apresenta o mais recente relatório da organizaçãoFoto: Justin Tallis/AFP/Getty Images

Em 2023, diz ela, em muitos governos e sociedades, "as políticas autoritárias corroeram as liberdades de expressão e associação, atacaram a igualdade de gênero e corroeram os direitos sexuais e reprodutivos".

Ela observa que a tecnologia está facilitando a erosão generalizada de direitos, perpetuando políticas racistas, permitindo a disseminação de desinformação e restringindo a liberdade de expressão.

"No entanto, se deixarmos os tecnocriminosos com suas tecnologias ardilosas cavalgarem livremente no Velho Oeste digital, é provável que essas violações dos direitos humanos só aumentem em 2024, um importante ano eleitoral. Essa é a previsão de um futuro que já chegou", afirma Callamard.

No que diz respeito aos direitos das mulheres, a organização lamenta novas restrições no Afeganistão e no Irã, e o fato de o Irã também implementar software de reconhecimento facial contra mulheres que não usam hijab.

A Anistia relata retrocessos nos Estados Unidos e na Polônia em torno da regulamentação legal do aborto. Quinze estados norte-americanos proibiram completamente o aborto ou só o permitirão em casos muito excepcionais.


O relatório também chama atenção para o fato de que existem mais de 60 países em todo o mundo onde as pessoas LGBTQ+ são criminalizadas e os seus direitos restringidos.

Segurança pública falha é obstáculo a sociedade civilizada

Nós acabávamos de passar cinco semanas viajando pela Europa, sobretudo pelo norte da Itália e pela Alemanha. Nesse período, nem uma única vez ouvimos falar que alguém tivesse levado tiros, sido assaltado ou vítima de algum tipo de violência.

Mal chegados à Bahia, o quadro mudou radicalmente: primeiro constatamos que a nossa comunidade é a quarta em que há mais assassinatos no Brasil. Num ranking mundial, ela estaria definitivamente entre as dez cidades mais violentas do mundo. Mas isso não é tudo: das dez cidades brasileiras com taxas de homicídio mais altas, seis ficam na Bahia. Duas se situam na minha vizinhança imediata, duas outras só um pouco mais distante.


Há muito estamos acostumados com um aumento da violência no país durante e em torno das eleições. É comum as gangues aproveitarem o vácuo da transmissão de poder para acertarem as contas entre si. Os clãs, milícias, narcos – ou seja, todo o crime organizado – precisam se arranjar com os novos mandatários na política e nas forças de segurança, e vice-versa. Isso pode levar tempo.

Mas desta vez, nunca vimos uma onda de violência tão forte assim. No domingo, a polícia alvejou "sem querer" um menino de dez anos nas proximidades de uma "boca de fumo", a menos de dois quilômetros da nossa casa. Desde então, residentes revoltados ocupam diariamente a rua multipista por meio dia, resultando em numerosos assaltos aos automóveis e estabelecimentos comerciais da área.

Ao mesmo tempo, voltaram a chegar más notícias do Pelourinho, o bairro antigo de Salvador, uma das principais atrações turísticas do Brasil: mais uma vez uma família de turistas estrangeiros sofreu um assalto violento. Nos últimos tempos isso se repete quase toda semana.

O que são telefones celulares e mochilas roubadas contra os 598 seres humanos assassinados no primeiro semestre na Grande Salvador? Comparando: em Berlim, com uma população comparável, houve em 2022 59 homicídios – o recorde de uma década.

Mas essa violência tem a mesma raiz: há muitos anos os governos não têm nenhum plano para combater a criminalidade absurdamente alta, nenhum político mostra interesse em se destacar com uma iniciativa assim.. Nem mesmo um presidente de extrema direita como Jair Bolsonaro perseguiu um projeto de segurança – a menos que se queira interpretar como "projeto" o seu armamento da sociedade civil.

Mas tampouco o recém-empossado governo Lula conferiu prioridade máxima à segurança, nem durante a campanha eleitoral, nem agora. Parece que também ele se conformou com a falta de segurança. Na Bahia, o governo federal acaba de doar novas viaturas policiais, e ministros discursaram sobre a má integração dos jovens como raiz da violência.

E no entanto é óbvio, e qualquer brasileira ou brasileiro assinaria embaixo: a segurança pública deficiente é o maior obstáculo para o país no sentido de uma sociedade civilizada e bem-sucedida.

Alexander Busch

Não quer imigrantes? A avó nunca irá se aposentar

Como já referi anteriormente , os imigrantes estão a impulsionar o boom econômico dos EUA. Isto é: os Estados Unidos escaparam à recessão, o crescimento das contratações excedeu as expectativas e a inflação arrefeceu mais rapidamente do que o previsto – tudo em grande parte porque a imigração aumentou o tamanho da força de trabalho dos EUA . Não acredite apenas na minha palavra; pergunte ao presidente do Federal Reserve ou aos economistas de Wall Street.

Depois de uma série de níveis de imigração deprimidos – impulsionados principalmente pela limitação do sistema de imigração legal por parte de Donald Trump -, o número de imigrantes que vêm para cá começou a se recuperar em meados de 2021 . É mais provável que os imigrantes estejam em idade ativa do que os americanos nativos, pelo que as suas chegadas ajudaram a resolver uma série de problemas enfrentados pela economia dos EUA.

Por exemplo, alguns dos nossos problemas na cadeia de abastecimento relacionados com a pandemia estavam ligados à escassez de trabalhadores em áreas críticas como a construção e a transformação de alimentos. Um afluxo de novos trabalhadores ajudou a preencher essas vagas e a descomplicar cadeias de abastecimento paralisadas.

Noutros casos, os imigrantes têm-se mostrado dispostos a aceitar empregos que os americanos nativos não estão dispostos a encarar, tais como o trabalho árduo de colher batatas , construir casas e cuidar dos idosos . Eles também estão preenchendo cargos de alta tecnologia que os americanos não podem ocupar porque não há número suficiente de nós com as habilidades necessárias. E estão a criar oportunidades de emprego inteiramente novas através do lançamento de novas empresas – algo que os imigrantes fazem a taxas muito mais elevadas do que os nativos .

E depois há os empregos que nós, americanos nativos, poderíamos teoricamente estar dispostos e capazes de preencher, mas simplesmente não há um número suficiente de nós por perto para preenchê-los . A aritmética é clara: os boomers estão a reformar-se e as taxas de natalidade nos EUA caíram vertiginosamente. Na ausência da imigração, a população em idade ativa dos EUA ficaria estagnada ou diminuiria em breve .

Como resultado, todo o novo crescimento do emprego desde a pandemia, no total, deveu-se a trabalhadores nascidos no estrangeiro. Ou seja, se você eliminasse os imigrantes, não haveria mais pessoas empregadas hoje do que havia antes da covid.

Catherine Rampell

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Pensamento do Dia

 


Os bilionários

Hoje, os bilionários são 2.544 pessoas no mundo, segundo “Billionaire Ambitions Report 2023” do Banco UBS, com a riqueza (assets financeiros e não financeiros) em US$ 12 trilhões, nominalmente equivalente a 12% do total do PIB mundial de US$ 101,3 trilhões, seis vezes maior do que a riqueza dos 50% da população mundial mais baixos na base da pirâmide. Hoje, segundo o “World Inequality Report 2022”, os 1% mais ricos do mundo detém 19% do PIB mundial enquanto os 50% mais baixos detém 8,5% do PIB mundial, com a renda total dos 1% mais ricos 2,3 vezes maior do que a renda total dos 50% mais baixos na pirâmide.

Na lista dos bilionários, os Estados Unidos lideram com 751, China 520, Índia 153, Alemanha 109, Inglaterra 83. O primeiro trilionário em riqueza surge neste ano de 2024, Bernard Arnault, francês, do grupo LVMH / L’Oréal, com US$ 1 trilhão de riqueza, nominalmente equivalente à metade do PIB do Brasil em 2023, estimado em US$ 2,1 trilhões pelo FMI.


O Brasil, com a 9ª economia do mundo, está na 10ª colocação mundial de bilionários, com 45 no total; acima do Canadá com 42; Japão 38; França 34. Nos indicadores socioeconômicos, no índice de GINI, que mede a distribuição de riqueza para 162 países, o Brasil encontra-se na 154ª posição; no IDH, que mede a qualidade de vida em função bens e serviços para 191 países, o Brasil encontra-se na 87ª posição; no PISA, que mede o desempenho de alunos do ensino médio em 81 países, o Brasil encontra-se na 52ª posição em leitura, 61ª em ciências, e 65ª em matemática.

Paradoxalmente, a Suíça, 20ª economia do mundo, ocupa o 6º lugar no ranking mundial com 75 bilionários; Hong Kong, 30ª economia, 7º lugar com 68 bilionários; Taiwan, 22ª economia, 9º lugar com 46 bilionários; todos acima do Brasil, 9ª economia, no 10º lugar com 45 bilionários. Segue-se Singapura, 32ª economia, 12º lugar com 41 bilionários. Os núcleos de decisão se deslocam.

No Oriente Médio, Israel conta com 26 bilionários; Emirados Árabes 17; Arábia Saudita 6; Egito 4; Líbano 2.

Wright Mills, em A Elite do Poder, diz que manda o econômico, garante o militar, executa o político, e modera o intelectual, aqui compreendido como imprensa e universidades. E Max Heirich, em A Espiral do Conflito, analisa o processo decisório que chega ao afunilamento dos conflitos, onde, do social ao político, as decisões acabam por ficar nas mãos de poucos, com imprevisibilidade nas decisões tomadas. Nunca estivemos, ao longo de nossos 200 anos de capitalismo industrial, na mão de tão poucos. Vide Davos.

É hora de se pensar em uma Sociologia dos Bilionários, para o melhor entendimento da economia atual, das consequências da economia sobre a ecologia, e das guerras que se acentuam. As guerras e os danos ao meio ambiente se tornam mais incidentes, por serem movidas pelas decisões de poucos; e mais imprevisíveis em seus possíveis resultados, por serem movidas pelas decisões de poucos.

Que Deus nos proteja.

Está envenenada a terra

Está envenenada a terra que nos enterra ou desterra.
Já não há ar, só desar.
Já não há chuva, só chuva ácida.
Já não há parques, só "parkings".
Já não há sociedades, só sociedades anônimas.
Empresas em lugar de nações.
Consumidores em lugar de cidadãos.
Aglomerações em lugar de cidades.
Não há pessoas, só públicos.
Não há realidades, só publicidades.
Não há visões, só televisões.
Para elogiar uma flor, diz-se: 'que linda, parece de plástico'.

Eduardo Galeano

O bom operário

Estava o beato Antônio em oração e jejum quando o sono venceu-o e ele sonhou que do céu descia uma voz que lhe dizia que seus méritos ainda não eram comparáveis aos do curtidor José, de Alexandria. Saiu andando Antônio e surpreendeu o simplório homem com sua presença respeitável. “Não me lembro de ter feito nada de bom — declarou o curtidor —. Sou um servo inútil. Diariamente, ao ver o sol raiar sobre esta grande cidade, penso que todos os seus moradores, do maior ao menos importante, entrarão no céu por sua bondade, menos eu que, por causa dos meus pecados, mereço o inferno. E o mesmo mal-estar me contrista quando vou deitar-me, e cada vez com mais veemência”. “Na verdade, meu filho — observou Antônio — tu, dentro de tua casa, como bom operário, ganhaste descansadamente o reino de Deus, enquanto que eu, irrefletido que sou, consumo minha solidão e ainda não cheguei a tua altura”. Isto posto, voltou Antônio ao deserto e, no primeiro sonho que teve, voltou a baixar a ele a voz de Deus: “Não te angusties; estás perto de mim. Mas não esqueças de que ninguém pode estar seguro nem do próprio destino nem do destino dos outros”.

Jorge Luís Borges, "Livro de Sonhos"

Em 50 anos de democracia, Portugal passou de país atrasado a referência

Intenso como os cravos sobre as roupas cinzentas de 1974, o vermelho de um sinal fechado salvou Rita da prisão. A então estudante de 21 anos combatia na clandestinidade a ditadura em Portugal e achava que era seguida nas ruas de Lisboa pela temida e violenta Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), adepta da tortura que aniquilou ou quase matou alguns de seus camaradas. Ela conta que teve a sorte de parar em um semáforo, abrir a porta e fugir para o carro ao lado, dirigido por um amigo de infância.

Era, assim, carregado, o clima em Portugal antes do 25 de abril de 1974, data da Revolução dos Cravos, que completa 50 anos na quinta-feira. O fim da ditadura de 48 anos (1926-1974), a mais longa da Europa, trouxe liberdade e comprovou como a democracia melhorou os índices de um país considerado atrasado e pobre, como revelou o banco de dados Pordata, num estudo inédito.

“Em 1970, um em cada quatro portugueses (25,6%) era analfabeto. Em 2021, a taxa de analfabetismo era de 3,1%. Cerca de 68% das casas não tinham chuveiro, 53% não tinham água canalizada e 42% não tinham instalações sanitárias, números que se inverteram quase totalmente”.

Segundo um trecho do livro “A Revolução Gentil”, que será lançado em maio pelo escritor Ricardo Viel, mais de um terço da população vivia sem luz elétrica. Havia cerca de 30 mil presos políticos e entre 7 a 10 mil livros censurados. Só em Lisboa, 90 mil pessoas (mais de 10% da população à época) vivam em cerca de 18,5 mil barracas Eram os “bairros de latas”, ou simplesmente favelas.


Ali viviam milhares de mulheres, relegadas pela ditadura ao papel de submissas ao homem por imposição de um Código Civil do século XIX. Elas e seus filhos foram as primeiras a ocupar casas e só depois permitiam a entrada dos homens. Também ganharam direito ao voto.

— O homem era o chefe e a mulher lhe devia obediência, como mandava o Código. Isso desapareceu com o 25 de Abril. Mulheres que viviam nas favelas foram com seus filhos para casas ocupadas e depois chamaram os maridos. Fábricas com mão de obra feminina aderiram às greves. Houve um pacto universal para mudar a família e a sociedade. Alterar a mentalidade demorou mais. Mas o fato era que, de repente, tínhamos as leis mais avançadas da Europa — lembrou Rita, pseudônimo de Irene Flunser Pimentel, que uma vez livre da opressão, virou escritora e historiadora especialista na ditadura.

Não houve banho de sangue, mas quatro pessoas morreram na revolução. Segundo Pimentel, todas as vítimas foram assassinadas pela PIDE. A tomada do poder foi organizada pelos militares, que planejavam entregar o comando para a sociedade civil, como de fato aconteceu. O 25 de Abril suave pôs cravos nos canos das armas, imagem atraiu o “turismo da Revolução”, levando a Portugal o colombiano Gabriel Garcia Márquez, o francês Jean-Paul Sartre e o alemão Heinrich Böll, três vencedores do Prêmio Nobel de literatura. E também Sebastião Salgado, Simone de Beauvoir e muitos outros renomados escritores, jornalistas, fotógrafos e cineastas.

— Foi a época do ‘turismo vermelho’. Havia voos fretados da Europa em rota contínua. Lembro que passei a atuar como uma guia informal, não formada, porque estudei no Liceu Francês e sabia falar outros idiomas. O que eu fazia como Rita, na clandestinidade, passei a fazer em liberdade, ao ar livre — conta a historiadora.

Hoje, Portugal respira os 50 anos do 25 de Abril, o que traz à tona o debate em torno da criação de uma rota turística oficial sobre a Revolução dos Cravos para preservar e promover locais históricos.

— A revolução é pouco explorada em termos turísticos. Se em 1974 muita gente veio conhecer o país que tinha derrubado uma ditadura com uma revolução pacífica, hoje pouco se fala disso para os milhões de turistas que todo ano visitam Lisboa — lamenta Viel: — As iniciativas do poder público são tímidas e mal-feitas. Desafio qualquer pessoa a ir à Praça do Comércio e achar alguma referência, uma placa ou busto, sobre o que aconteceu lá no dia 25 de Abril de 1974. Visitar o quartel da Pontinha, onde foi o Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, é fazer uma viagem no tempo (e nem todas são boas). Tudo o que está lá parece que foi feito nos anos 80 e nunca mais foi tocado.

Para a historiadora, uma rota dos Cravos seria também uma maneira de rebater o saudosismo fascista que tem ocupado ruas e redes sociais. Principalmente com grupos organizados para idolatrar a figura do ditador António de Oliveira Salazar, que ingressou no governo em 1928, criou o Estado Novo em 1933 e comandou o país com mão de ferro até morrer, em 1970.

— Mesmo com dados que provam como a democracia só fez bem, há quem defenda que na ditadura de Salazar é que era bom. É reflexo de um processo que começou com as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro e liberou as pessoas da vergonha que tinham de dizer o que pensavam. Em Portugal culminou no partido Chega — diz Pimentel, que também faz um alerta para o simbolismo de ter 50 deputados da ultradireita do Chega eleitos para o Parlamento justamente nos 50 anos da retomada da democracia: — O Parlamento é a principal instituição da democracia e a vontade deles é destruir a democracia.

Uma pesquisa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e do Instituto Universitário de Lisboa para o semanário “Expresso” e para a rede SIC revelou que 35% dos simpatizantes do Chega dizem que Portugal está pior do que na ditadura. Embora a maioria das pessoas ouvidas acredite que a vida esteja melhor, também considera que a criminalidade e a corrupção pioraram. Outro alerta da pesquisa: 34% preferem ter um líder forte e alçado ao poder sem eleições democráticas.

Em um jantar oferecido na segunda-feira em Lisboa a jornalistas estrangeiros, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa afirmou que a transição pacífica do 25 de Abril é um orgulho. E ressaltou que a população percebe os benefícios que a democracia trouxe.

— Neste momento, apesar de ainda existirem dois milhões na pobreza, das desigualdades e da falta de coesão territorial, os portugueses sentem que estão vivendo um momento sem sobressaltos econômicos. As ajudas do governo acomodaram a situação social e a sensação é de razoável estabilidade política.

terça-feira, 23 de abril de 2024

O que é, o que é...

Se ele sempre fala de virtude, então é um depravado; fala constantemente de religião, então o é extremamente
Immanuel Kant

A proximidade de uma guerra absurda

Neste momento, considero muito interessante a reflexão do escritor Amin Maalouf no livro recém-lançado no Brasil “O labirinto dos desgarrados, o Ocidente e seus adversários” (Editora Vestígio, 332 páginas). Ele não é cientista político nem estrategista. É um escritor que não só tem coragem de afirmar o absurdo da guerra, como de devolver as qualificações de romântico ou ingênuo atribuídas aos que a consideram inevitável.


Creio que Maalouf, nascido no Líbano e vivendo na França, tem muitas razões para refletir bem sobre o Ocidente. Ele escreveu um livro sobre as Cruzadas mostrando como, nas Cruzadas, os europeus comiam crianças muçulmanas no espeto. Ele conhece também todos os horrores da colonização europeia na África, Ásia e em todos os outros lugares por onde ela se instalou. Mas seu conhecimento da História mostra também que o ódio sistemático ao Ocidente acaba desviando para a barbárie e para a autopunição.

Na comparação entre as duas guerras frias, a que terminou com o fim do Império Soviético e a atual, Maalouf compreende bem que países como Rússia e China, que, de certa forma, encarnavam a revolução no passado, representam hoje o campo do conservadorismo político, social e intelectual. Essa constatação parece não ter chegado à esquerda brasileira, mas isso é apenas um detalhe.

Uma das importantes conclusões do livro é que nem os ocidentais nem seus aliados são capazes de conduzir a humanidade para fora do labirinto em que ela se perdeu. Isso é verdade, pois nenhuma nação detém todas as virtudes e todas as respostas, muito menos o direito de dominar as outras.

Ele pensa que estaríamos realmente perdidos se acreditássemos que a humanidade precisa de uma nação hegemônica para liderá-la. Estaríamos condenados a torcer pelo que nos maltrata menos, tipo de opção que alguns países como o nosso são forçados a adotar no plano da política interna.

A estupidez de uma guerra mundial pode nos destruir. Mas é uma pena, pois temos grandes problemas comuns, como o combate à emergência climática, e grandes possibilidades de progresso por meio da evolução da medicina genética e mesmo da inteligência artificial, se conseguirmos controlar suas consequências. Apesar de parecer ingênuo, é necessário apostar na paz. Claro que, num confronto mundial, o Brasil, com suas raízes históricas e culturais, é um país do Ocidente e deve ficar ao seu lado.

Mas antes de tudo é necessário investir não só na paz regional no Oriente Médio, como em todos os lugares onde houver conflito. Os fundamentos de nossa política externa nos permitem isso. Há, porém, uma brecha entre os fundamentos e a prática, marcada até agora por frases infelizes e uma visão nostálgica da primeira Guerra Fria. A ideia de que existe democracia relativa na Venezuela ou democracia efetiva na China é apenas resultado de uma visão que não encontra nenhuma base no mundo real.

Na verdade, a democracia não é a única forma de governo. Não se pode universalizá-la com adjetivos, muito menos tentar levá-la a outros países na ponta da baioneta como os Estados Unidos fizeram em muitas ocasiões. O grande esforço intelectual do momento é dissecar todos os elementos de conflito no mundo e neutralizá-los.

Maalouf destaca um deles que contribui enormemente para envenenar o clima político. É o vínculo que estabelece entre religião e identidade, sobretudo nos países de tradição monoteísta. Os conflitos identitários que se baseiam em referências divinas acabam envenenando a História humana. Nesse ponto, há um reconhecimento da longevidade de Confúcio: para ele, o que importava era o comportamento do cidadão na cidade, e não suas preferências metafísicas.

Os ianques guardaram de armas na mão as terras que tinham roubado

A Califórnia já pertenceu ao México, e suas terras aos mexicanos; então uma horda de americanos esfarrapados e loucos imundou-a. E tal era a sua fome de terra que eles tomaram, roubaram as terras dos Guerrero, dos Sutter, roubaram e destruíram os respectivos documentos de posse e brigaram entre eles sobre a presa, esses homens esfomeados, raivosos; e guardaram de armas na mão as terras que tinham roubado. Construíram casas e celeiros, revolveram as terras e semearam-nas. E isso era apropriação, e apropriação era propriedade.

Os mexicanos eram fracos e esquivos. Não puderam resistir, porque nada no mundo desejavam com o frenesi com que os americanos desejavam aquelas terras.


Depois, com o tempo, os invasores não mais eram invasores, mas sim donos; e seus filhos cresceram e por sua vez tiveram filhos. E a fome não mais existia entre eles, essa fome animalesca, essa fome corroedora, lacerante pela terra, por água e um céu azul sobre elas, pela verde relva exuberante, pelas raízes tumescentes. Tinham tudo isto, tinham tanto disso tudo que nada mais desejavam. Não mais ambicionavam um hectare produtivo e um arado brilhante para abrir-lhe sulcos, sementes e um moinho a girar as pás ao sol. Não mais acordavam nas madrugadas escuras para ouvir o chilrear sonolento dos primeiros pássaros, ou o vento matinal soprar em torno da casa enquanto aguardavam os primeiros clarões à luz dos quais deveriam rumar para os campos amados. Tudo isso tinha sido esquecido, e as colheitas eram calculadas em dólares, e as terras eram avaliadas em capital mais juros, e as colheitas eram compradas e vendidas antes mesmo que tivessem sido plantadas. Então as colheitas fracassavam, secas e inundações não mais significavam pequenas mortes em meio à vida, mas apenas perda de dinheiro. E todos os seus amores eram medidos a dinheiro, e toda a sua impetuosidade se diluía à medida que seu poder crescia, até que finalmente nem mais eram fazendeiros os meeiros, apenas homens de negócios, pequenos industriais, que tinham de vender antes de ter produzido qualquer coisa. E os fazendeiros que não eram bons negociantes perdiam suas terras para os que eram bons negociantes. Não importava quão trabalhador e diligente um homem era, e o quanto amava a terra e tudo que nela crescia, desde que não fosse também um bom negociante. E com o tempo os bons negociantes apropriavam-se de todas as terras, e as fazendas foram aumentando de tamanho, ao mesmo tempo em que diminuíam em quantidade.

Já aí a agricultura era uma indústria, e os donos das terras seguiam o sistema da Roma antiga, conquanto não o soubessem. Importavam escravos, embora não os chamassem de escravos: chineses, japoneses, mexicanos, filipinos. Eles vivem de arroz e feijão, diziam os negociantes. Não precisam de muita coisa para viver. Nem saberiam o que fazer com bons salários. Ora, veja como eles vivem. E se se tornarem exigentes, a gente os expulsa do país.

E as propriedades cresciam cada vez mais e os proprietários iam simultaneamente diminuindo. E havia poucos fazendeiros pobres nas terras. E os escravos importados passavam fome, eram maltratados e se sentiam apavorados, e alguns regressavam aos lugares de onde tinham vindo, e outros rebelavam-se e eram assassinados ou deportados. E as propriedades cresciam e diminuía a quantidade de proprietários.

E as colheitas tornavam-se diferentes. Árvores frutíferas tomavam o lugar das plantações de grãos, e legumes destinados a alimentar o mundo espraiavam-se pelo chão: alface, couve-flor, alcachofra, batatas — colheitas humilhantes, inferiores. Um homem pode ficar de pé quando trabalha com a foice, o arado, o forcado; mas tem que rastejar por entre os canteiros de alface, tem que curvar-se e arrastar o enorme balaio por entre os algodoeiros, e tem que vergar os joelhos como um penitente para tratar da couve-flor.

E chegou a hora em que os proprietários não mais trabalhavam em suas propriedades. Trabalhavam no papel; esqueciam as terras, o cheiro da terra e a satisfação de cultivá-la; lembravam-se apenas de que elas lhes pertenciam quando estavam calculando o quanto ganhavam ou perdiam nelas. E algumas das propriedades cresciam a ponto de um só homem nem mais poder imaginar o seu tamanho; eram tão grandes que requeriam batalhões de guarda-livros para o cálculo dos lucros ou perdas que proporcionavam; químicos para analisar a qualidade das terras e torná-las mais produtivas; capatazes cuja missão consistia em fazer com que os homens que trabalhavam nas terras o fizessem até o último resquício de sua força física. Então, esses proprietários assim transformavam-se em autênticos donos de armazéns. Pagavam aos homens e vendiam-lhes gêneros alimentícios e assim recuperavam o dinheiro que lhes pagavam. E após algum tempo deixavam absolutamente de pagar aos homens e economizavam a escrituração, os guarda-livros. Os proprietários vendiam alimentos a crédito aos trabalhadores. Um homem podia desse jeito trabalhar e comer; e quando terminava o trabalho verificava simplesmente que ainda devia ao proprietário. E os proprietários não só não trabalhavam nas propriedades, como havia muitos que jamais o tinham.

Então chegaram as multidões de espoliados e assaltaram o Oeste — vinham de Kansas, Oklahoma, Texas, Novo México; de Nevada e Arkansas, famílias e tribos expulsas pela poeira, expulsas pelos tratores. Carros cheios, caravanas de gente sem lar e de esfomeados; vinte mil, cinquenta mil, cem mil, duzentos mil despencavam das montanhas, famintos e inquietos — inquietos qual formigas, famintos de trabalho, de poder suspender, carregar, puxar, arrancar, cortar, colher, fazer de tudo, dar todo o seu esforço por um pouco de comida. Nossos filhos têm fome. Não temos casa pra morar. Inquietos como formigas, atrás de trabalho, de comida e, antes de mais nada, de terra.

A gente não é estrangeiro. Sete gerações de americanos, e antes disso irlandeses, escoceses, ingleses, alemães temos em nosso passado. Um avô nosso fez a revolução, e muitos outros parentes tiveram na Guerra Civil... de ambos os lados. Eram americanos.

Vinham famintos e ferozes, tinham a esperança de encontrar um lar, e só encontraram ódio. Okies... os proprietários odiavam-nos porque sabiam que eram covardes e que os Okies corajosos, e que eram bem nutridos e que os Okies passavam fome. E talvez os proprietários tivessem ouvido seus avós contarem como era fácil a alguém roubar terras a um homem fraco quando esse alguém era feroz e faminto e estava armado. Os proprietários odiavam-nos. E os donos das casas comerciais das cidades odiavam-nos também, pois que eles não tinham dinheiro para gastar. Não há caminho mais curto para se obter o desprezo de um negociante. Os homens das cidades, pequenos banqueiros, odiavam os Okies porque eles nada lhes deixavam ganhar. Eles nada possuíam. E os trabalhadores odiavam os Okies porque um homem esfomeado tem que trabalhar, e quando precisa trabalhar e não tem onde trabalhar, automaticamente trabalha por um salário menor, e aí todos têm que trabalhar por salários menores.

E os espoliados, os imigrantes inundavam a Califórnia, duzentos e cinquenta mil, trezentos mil. Atrás deles, novos tratores marchavam pelas terras, os meeiros que ainda tinham ficado eram também expulsos. Novas ondas estavam a caminho, novas ondas de espoliados e expulsos, de coração endurecido, vorazes e perigosos.

E enquanto os californianos desejavam muitas coisas, acumular riquezas, sucesso social, diversões, luxo e uma curiosa segurança bancária, os novos bárbaros só desejavam duas coisas: terra e comida; para eles as duas coisas se fundiam numa só. E enquanto os desejos dos californianos eram nebulosos, indefinidos, os desejos dos Okies jaziam nos caminhos, eram visíveis e palpáveis: bons campos em que se podia perfurar a terra e achar água, boas terras verdejantes, terras que se podia esmigalhar entre as mãos ao experimentá-las, relva que se podia cheirar, hastes de aveia que se podiam mascar até sentir-lhes o gosto agridoce na garganta. Um homem podia olhar para um campo em pousio e saber logo, sentir logo que suas costas curvadas e seus braços diligentes fariam frutificá-lo, produzir nele a couve, o milho dourado, os rabanetes, as cenouras.
John Steinbeck, "As vinhas da ira"