quinta-feira, 28 de novembro de 2019
O AI-5 já se instala na Amazônia (e nas periferias urbanas)
O bolsonarismo é competente ao usar a estratégia de controlar o noticiário e manter a sociedade e a imprensa só na reprodução e na reação. Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, evoca o AI-5, e antes dele o zerotrês Eduardo Bolsonaro (PSL), estão latindo num lugar enquanto a matilha já está mordendo em outro. É na Amazônia e nas periferias urbanas que o autoritarismo já se instalou. Como denominar um país em que a polícia do estado do Rio de Janeiro já matou até outubro de 2019 mais do que em qualquer ano das últimas duas décadas? Se fosse enfileirar as 1.546 vítimas da polícia haveria mais de 2 quilômetros de cadáveres. Esta violência que mata os negros e pobres e faz com que as crianças, também elas pobres e negras, temam o som dos helicópteros porque seis delas já tombaram por bala “perdida” somente neste ano no Rio está conectada com a violência que faz vítimas na floresta amazônica. Os amazônicos e os periféricos não se conhecem, mas têm o mesmo rosto de quem morre no Brasil: negros e indígenas. É contra estes povos, estes rostos, que a violência está recrudescendo. As Organizações Não Governamentais (ONGs), foco da ofensiva do bolsonarismo, estão sendo atacadas porque defendem estes povos, estes rostos.
Desde o início de novembro há sinais de que o projeto autoritário está aumentando de velocidade e de intensidade. O mês abriu com a morte de um dos guardiões da floresta, Paulo Paulino Guajajara. E está terminando com criminalização de uma das organizações mais respeitadas, premiadas e amadas da Amazônia, o Saúde e Alegria, que atua na bacia do Tapajós há décadas. Na terça-feira, 26 de novembro, a ONG teve seus documentos e computadores apreendidos pela polícia civil, em Santarém. No mesmo dia, quatro brigadistas voluntários da Brigada de Alter do Chão, criada para combater os focos de incêndio na floresta em parceria com o Corpo de Bombeiros, foram presos pela suspeita de que teriam ateado o fogo que queimou uma área equivalente a 1.600 campos de futebol em setembro, na região de Santarém. Ser preso, mesmo que a prisão se mostre abusiva, já cumpre o objetivo de quem quer desmoralizar os agentes que combatem a destruição da floresta. O estrago já está feito, especialmente sobre uma população assustada e desinformada.
Em Washington, Guedes evoca o AI-5, autoridades e sociedade reagem, redes sociais se enfogueiram. É preciso avisar que, na linha de frente, o AI-5 já está e os mais frágeis estão resistindo quase sozinhos. E perdendo. O principal projeto do bolsonarismo é a abertura da Amazônia. A disputa desigual está sendo travada na floresta e nas cidades que beiram a floresta. Quem vive e atua na Amazônia já entendeu que pode ser preso sem motivo porque o Estado é arbitrário e as provas são forjadas. É isso o que os acontecimentos em Santarém estão mostrando. AS ONGs são alvo porque, em um país precário como o Brasil, onde o Governo decidiu não cumprir a lei e as instituições fraquejam, são elas que estão fazendo uma barreira contra a destruição da floresta e dos corpos dos povos da floresta. Ambientalistas brancos começaram a ser presos. Os mortos continuam tendo o mesmo rosto: negros e indígenas.
Enquanto tenta mudar a Constituição para abrir as áreas protegidas da floresta amazônica, o bolsonarismo executa o projeto na prática ao desproteger as áreas protegidas, enfraquecendo os órgãos de fiscalização e fortalecendo os destruidores da floresta. Na Amazônia basta deixar de fazer o pouco que se fazia e avisar aos amigos que podem ficar à vontade porque não responderão pelo seus atos. É o que faz o bolsonarismo enquanto a PM de alguns estados está sendo preparada para virar uma milícia que toma suas próprias decisões.
O resultado é tanto a explosão do desmatamento, que aumentou 30% entre agosto de 2018 e julho de 2019, quanto a ameaça e/ou assassinato dos pequenos agricultores familiares e defensores da floresta: indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Quem vive na Amazônia percebe claramente que a ofensiva aumentou desde novembro. As ONGs estão entre os principais alvos a serem eliminados. Em várias regiões do Pará, quem está clamando pela “CPI das ONGs” são justamente notórios grileiros e madeireiros e seus representantes. Enrolam-se em bandeiras do Brasil e evocam o nacionalismo, mas o que querem é fincar um papel com o seu nome ― ou no nome de um de seus laranjas ― num pedaço da floresta amazônica roubada da União ou dos estados.
No Pará, estado que lidera o desmatamento no Brasil, vale a pena observar uma sequência de acontecimentos ocorridos no espaço de uma semana. De 17 a 19 de novembro, os movimentos sociais da região do Médio Xingu organizaram em Altamira um encontro chamado Amazônia Centro do Mundo. A cena da mesa de abertura do encontro, na Universidade Federal do Pará, é uma alegoria do que acontece no cotidiano da floresta. Um grupo de grileiros e fazendeiros se posicionou propositalmente no lado direito da plateia ― “sentamos à direita, como nos convém”. Há dias eles vinham sendo incitados por um homem que se apresenta como antropólogo e trabalha para a banda podre do agronegócio. Desde o início, o grupo gritava a cada vez que um dos convidados a compor a mesa falava, na tentativa de impedir que o evento se realizasse. Era uma provocação. Se alguém reagisse, o articulador manipularia os acontecimentos e diria que ele tinha sigo o agredido. Ele já usou esse truque em outros momentos na região amazônica. O maior alvo deste grupo era Raoni, o Kayapó que se tornou a principal liderança indígena do Brasil, com grande repercussão no exterior, indicado para o Nobel da Paz.
Os guerreiros Kayapó que acompanhavam Raoni entraram em sua bela formação ritual, como costumam fazer. Os Kayapó são orgulhosos e impressionantes em suas aparições públicas. Criaram uma barreira humana para permitir que os organizadores do encontro pudessem falar. E então foi possível ouvir as vozes dos intelectuais da floresta, dos intelectuais da academia, das lideranças dos movimentos sociais. Durante a maior parte da manhã, o pequeno grupo de fazendeiros e grileiros (há que se diferenciar uns dos outros) tentou impedir a voz dos povos da floresta e dos movimentos sociais. Sempre provocando, tentando abafar a voz dos convidados da mesa de abertura. Um pequeno mas revelador sinal de que limites estão sendo superados se revelou justamente no fato de que nem o bispo do Xingu, Dom João Muniz, conseguiu falar sem ser interrompido por provocações. Os organizadores já tinham registrado as tentativas de intimidação ao longo dos dias anteriores, feitas por redes sociais e por email. Presenças internacionais importantes, como a princesa da Bélgica Maria Esmeralda, ativista e embaixadora da WWF, deixaram de comparecer ao evento por temer a violência.
Submerso no noticiário produzido por Brasília, este que gravita em torno das declarações de Bolsonaro e de Lula, parte do Brasil não percebeu a grandeza do que ocorreu em Altamira neste encontro. “Amazônia Centro do Mundo” reuniu lideranças da floresta, pensadores e cientistas da academia, representantes de movimentos sociais e jovens ativistas climáticos do Brasil e da Europa, dos movimentos Engajamundo, Extinction Rebellion e Fridays For Future, este último inspirado pela adolescente sueca Greta Thunberg.
Uma parcela dos participantes vinha de outra jornada, com o mesmo nome, ocorrida uma semana antes na Terra do Meio, do qual fui uma das organizadoras. Do encontro no coração da floresta haviam participado o grande xamã yanomami, Davi Kopenawa, que hoje testemunha o território do seu povo ser mais uma vez tomado por garimpeiros, e a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot, que ficou presa na Sibéria por quase dois anos depois de enfrentar o déspota Vladimir Putin. Estavam ali para se conhecerem e criarem uma aliança pela floresta. Era uma reunião de gente que não quer roubar terra pública para especular ou tirar minério. Só quer que a floresta fique em pé para que ela siga transpirando e salvando o planeta.
Em Altamira, o encontro foi organizado por dezenas de movimentos da cidade e da floresta. Depois de rachar na construção de Belo Monte, as organizações sociais se uniram novamente para lutar contra a destruição da Amazônia. Desta vez, mais preparados para identificar os truques daqueles que buscam desuni-los para poder consolidar seus projetos de destruição. Belo Monte e seu conjunto de violações foram uma pós-graduação completa sobre como agem os “gerenciadores de crise” para neutralizar a resistência, manipular as informações e infiltrar a discórdia. Este ainda é um aprendizado em curso, já que há sempre os que demoram mais a aprender. E há também os que nunca aprendem.
O encontro mostrou algo que parecia muito difícil, senão impossível, no Brasil atual: a organização de uma resistência ao autoritarismo em curso. Não apenas como uma reação aos ataques, mas como criação de futuro, como proposta de uma relação diferente com a floresta e com o próprio modo de viver para muito além da floresta. Movimentos sociais urbanos, agricultores familiares e cientistas ficaram lado a lado com indígenas, ribeirinhos e quilombolas, uma aliança que seria difícil no passado recente pela própria história de cada um destes povos. O espaço não poderia ser mais adequado, já que a universidade pública tem sido um dos principais alvos do bolsonarismo. A aliança entre os saberes da academia e da floresta foi consumada também na concretude do local escolhido.
Um dos momentos mais emocionantes aconteceu quando um agricultor da Volta Grande do Xingu, ecossistema que está sendo secado e destruído pela usina de Belo Monte e ameaçado também pela instalação da mineradora canadense Belo Sun, pediu, aos prantos, perdão aos indígenas por um dia ter ocupado terras que lhes pertenciam. Ao terminar seu discurso, um Kayapó colocou sua mão sobre a dele e, imediatamente, várias pessoas foram somando mãos. A cena tornou-se uma performance artística, não planejada, da aliança que ali estava sendo consumada.
Antes de os fazendeiros e grileiros se retirarem, vencidos em sua tentativa de criar tumulto e silenciar as vozes, ocorreu o momento mais tenso do encontro. Surgiu também ali uma liderança que a sociedade brasileira ― a que defende a vida, a democracia e a justiça ― precisa se organizar para amparar. Seu nome, para recordar e proteger: Juma Xipaya.
Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, em Altamira, Juma pertence a um povo que chegou a ser considerado extinto e precisou provar que tinha sobrevivido à tentativa de extermínio. Ela fez um discurso contundente contra os que tentavam impedir a realização do evento. Um dos notórios grileiros presentes se descontrolou e colocou o dedo no seu peito. Perto dele, duas missionárias que foram companheiras de Dorothy Stang, assassinada em 2005 por um grupo que ficou conhecido como “consórcio da morte”, rezavam. A jovem indígena não se intimidou:
Raoni pediria mais tarde a todos aqueles que defendem a Amazônia que ajudassem a proteger Juma Xipaya. O pedido precisa ser ouvido para muito além da floresta. Com um AI-5 não oficial já se instalando na região, a sociedade civil precisa se organizar para criar uma rede de proteção aos defensores da floresta e impedir o processo de criminalização das ONGs que protegem estes defensores ― seja cuidando do seu bem-estar, como faz o Saúde e Alegria há mais de 30 anos, seja ajudando a implementar a economia da floresta, aquela que produz renda sem desmatar, como faz o Instituto Socioambiental nas reservas extrativistas da Terra do Meio, seja combatendo diretamente o desmatamento, como fazem outras organizações. A disputa do futuro está sendo travada exatamente agora.
Apesar das ilusões que todo povo alimenta sobre as grandezas do seu país, o Brasil tem hoje importância no cenário global principalmente por causa da Amazônia. É a maior floresta tropical do mundo que empresta relevância estratégica ao Brasil. É abrigar 60% de um bioma estratégico para o controle do superaquecimento global que faz o Brasil um país necessário. O problema é que o bolsonarismo, assim como uma parcela da elite econômica e uma parcela dos militares, continua acreditando que a riqueza da Amazônia é o minério embaixo da terra e a quantidade de terra para especulação. Parte acredita nisso porque é burra e desinformada, parte porque só se interessa por lucros privados e imediatos, colocando seus interesses acima inclusive do futuro dos próprios filhos.
Leia mais o artigo de Eliane Brum
Desde o início de novembro há sinais de que o projeto autoritário está aumentando de velocidade e de intensidade. O mês abriu com a morte de um dos guardiões da floresta, Paulo Paulino Guajajara. E está terminando com criminalização de uma das organizações mais respeitadas, premiadas e amadas da Amazônia, o Saúde e Alegria, que atua na bacia do Tapajós há décadas. Na terça-feira, 26 de novembro, a ONG teve seus documentos e computadores apreendidos pela polícia civil, em Santarém. No mesmo dia, quatro brigadistas voluntários da Brigada de Alter do Chão, criada para combater os focos de incêndio na floresta em parceria com o Corpo de Bombeiros, foram presos pela suspeita de que teriam ateado o fogo que queimou uma área equivalente a 1.600 campos de futebol em setembro, na região de Santarém. Ser preso, mesmo que a prisão se mostre abusiva, já cumpre o objetivo de quem quer desmoralizar os agentes que combatem a destruição da floresta. O estrago já está feito, especialmente sobre uma população assustada e desinformada.
Em Washington, Guedes evoca o AI-5, autoridades e sociedade reagem, redes sociais se enfogueiram. É preciso avisar que, na linha de frente, o AI-5 já está e os mais frágeis estão resistindo quase sozinhos. E perdendo. O principal projeto do bolsonarismo é a abertura da Amazônia. A disputa desigual está sendo travada na floresta e nas cidades que beiram a floresta. Quem vive e atua na Amazônia já entendeu que pode ser preso sem motivo porque o Estado é arbitrário e as provas são forjadas. É isso o que os acontecimentos em Santarém estão mostrando. AS ONGs são alvo porque, em um país precário como o Brasil, onde o Governo decidiu não cumprir a lei e as instituições fraquejam, são elas que estão fazendo uma barreira contra a destruição da floresta e dos corpos dos povos da floresta. Ambientalistas brancos começaram a ser presos. Os mortos continuam tendo o mesmo rosto: negros e indígenas.
Enquanto tenta mudar a Constituição para abrir as áreas protegidas da floresta amazônica, o bolsonarismo executa o projeto na prática ao desproteger as áreas protegidas, enfraquecendo os órgãos de fiscalização e fortalecendo os destruidores da floresta. Na Amazônia basta deixar de fazer o pouco que se fazia e avisar aos amigos que podem ficar à vontade porque não responderão pelo seus atos. É o que faz o bolsonarismo enquanto a PM de alguns estados está sendo preparada para virar uma milícia que toma suas próprias decisões.
O resultado é tanto a explosão do desmatamento, que aumentou 30% entre agosto de 2018 e julho de 2019, quanto a ameaça e/ou assassinato dos pequenos agricultores familiares e defensores da floresta: indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Quem vive na Amazônia percebe claramente que a ofensiva aumentou desde novembro. As ONGs estão entre os principais alvos a serem eliminados. Em várias regiões do Pará, quem está clamando pela “CPI das ONGs” são justamente notórios grileiros e madeireiros e seus representantes. Enrolam-se em bandeiras do Brasil e evocam o nacionalismo, mas o que querem é fincar um papel com o seu nome ― ou no nome de um de seus laranjas ― num pedaço da floresta amazônica roubada da União ou dos estados.
No Pará, estado que lidera o desmatamento no Brasil, vale a pena observar uma sequência de acontecimentos ocorridos no espaço de uma semana. De 17 a 19 de novembro, os movimentos sociais da região do Médio Xingu organizaram em Altamira um encontro chamado Amazônia Centro do Mundo. A cena da mesa de abertura do encontro, na Universidade Federal do Pará, é uma alegoria do que acontece no cotidiano da floresta. Um grupo de grileiros e fazendeiros se posicionou propositalmente no lado direito da plateia ― “sentamos à direita, como nos convém”. Há dias eles vinham sendo incitados por um homem que se apresenta como antropólogo e trabalha para a banda podre do agronegócio. Desde o início, o grupo gritava a cada vez que um dos convidados a compor a mesa falava, na tentativa de impedir que o evento se realizasse. Era uma provocação. Se alguém reagisse, o articulador manipularia os acontecimentos e diria que ele tinha sigo o agredido. Ele já usou esse truque em outros momentos na região amazônica. O maior alvo deste grupo era Raoni, o Kayapó que se tornou a principal liderança indígena do Brasil, com grande repercussão no exterior, indicado para o Nobel da Paz.
Os guerreiros Kayapó que acompanhavam Raoni entraram em sua bela formação ritual, como costumam fazer. Os Kayapó são orgulhosos e impressionantes em suas aparições públicas. Criaram uma barreira humana para permitir que os organizadores do encontro pudessem falar. E então foi possível ouvir as vozes dos intelectuais da floresta, dos intelectuais da academia, das lideranças dos movimentos sociais. Durante a maior parte da manhã, o pequeno grupo de fazendeiros e grileiros (há que se diferenciar uns dos outros) tentou impedir a voz dos povos da floresta e dos movimentos sociais. Sempre provocando, tentando abafar a voz dos convidados da mesa de abertura. Um pequeno mas revelador sinal de que limites estão sendo superados se revelou justamente no fato de que nem o bispo do Xingu, Dom João Muniz, conseguiu falar sem ser interrompido por provocações. Os organizadores já tinham registrado as tentativas de intimidação ao longo dos dias anteriores, feitas por redes sociais e por email. Presenças internacionais importantes, como a princesa da Bélgica Maria Esmeralda, ativista e embaixadora da WWF, deixaram de comparecer ao evento por temer a violência.
Submerso no noticiário produzido por Brasília, este que gravita em torno das declarações de Bolsonaro e de Lula, parte do Brasil não percebeu a grandeza do que ocorreu em Altamira neste encontro. “Amazônia Centro do Mundo” reuniu lideranças da floresta, pensadores e cientistas da academia, representantes de movimentos sociais e jovens ativistas climáticos do Brasil e da Europa, dos movimentos Engajamundo, Extinction Rebellion e Fridays For Future, este último inspirado pela adolescente sueca Greta Thunberg.
Uma parcela dos participantes vinha de outra jornada, com o mesmo nome, ocorrida uma semana antes na Terra do Meio, do qual fui uma das organizadoras. Do encontro no coração da floresta haviam participado o grande xamã yanomami, Davi Kopenawa, que hoje testemunha o território do seu povo ser mais uma vez tomado por garimpeiros, e a ativista russa Nadya Tolokonnikova, do movimento Pussy Riot, que ficou presa na Sibéria por quase dois anos depois de enfrentar o déspota Vladimir Putin. Estavam ali para se conhecerem e criarem uma aliança pela floresta. Era uma reunião de gente que não quer roubar terra pública para especular ou tirar minério. Só quer que a floresta fique em pé para que ela siga transpirando e salvando o planeta.
Em Altamira, o encontro foi organizado por dezenas de movimentos da cidade e da floresta. Depois de rachar na construção de Belo Monte, as organizações sociais se uniram novamente para lutar contra a destruição da Amazônia. Desta vez, mais preparados para identificar os truques daqueles que buscam desuni-los para poder consolidar seus projetos de destruição. Belo Monte e seu conjunto de violações foram uma pós-graduação completa sobre como agem os “gerenciadores de crise” para neutralizar a resistência, manipular as informações e infiltrar a discórdia. Este ainda é um aprendizado em curso, já que há sempre os que demoram mais a aprender. E há também os que nunca aprendem.
O encontro mostrou algo que parecia muito difícil, senão impossível, no Brasil atual: a organização de uma resistência ao autoritarismo em curso. Não apenas como uma reação aos ataques, mas como criação de futuro, como proposta de uma relação diferente com a floresta e com o próprio modo de viver para muito além da floresta. Movimentos sociais urbanos, agricultores familiares e cientistas ficaram lado a lado com indígenas, ribeirinhos e quilombolas, uma aliança que seria difícil no passado recente pela própria história de cada um destes povos. O espaço não poderia ser mais adequado, já que a universidade pública tem sido um dos principais alvos do bolsonarismo. A aliança entre os saberes da academia e da floresta foi consumada também na concretude do local escolhido.
Um dos momentos mais emocionantes aconteceu quando um agricultor da Volta Grande do Xingu, ecossistema que está sendo secado e destruído pela usina de Belo Monte e ameaçado também pela instalação da mineradora canadense Belo Sun, pediu, aos prantos, perdão aos indígenas por um dia ter ocupado terras que lhes pertenciam. Ao terminar seu discurso, um Kayapó colocou sua mão sobre a dele e, imediatamente, várias pessoas foram somando mãos. A cena tornou-se uma performance artística, não planejada, da aliança que ali estava sendo consumada.
Antes de os fazendeiros e grileiros se retirarem, vencidos em sua tentativa de criar tumulto e silenciar as vozes, ocorreu o momento mais tenso do encontro. Surgiu também ali uma liderança que a sociedade brasileira ― a que defende a vida, a democracia e a justiça ― precisa se organizar para amparar. Seu nome, para recordar e proteger: Juma Xipaya.
Estudante de medicina da Universidade Federal do Pará, em Altamira, Juma pertence a um povo que chegou a ser considerado extinto e precisou provar que tinha sobrevivido à tentativa de extermínio. Ela fez um discurso contundente contra os que tentavam impedir a realização do evento. Um dos notórios grileiros presentes se descontrolou e colocou o dedo no seu peito. Perto dele, duas missionárias que foram companheiras de Dorothy Stang, assassinada em 2005 por um grupo que ficou conhecido como “consórcio da morte”, rezavam. A jovem indígena não se intimidou:
“Meu nome é Juma Xipaya. Eu fico pensando o que vocês pensam quando muitas vezes se contrapõem aos nossos discursos, às nossas lutas. Parece que somos inimigos de vocês. Só quero lembrar vocês que, em momento algum, nós falamos que vocês são nossos inimigos ou que nós somos inimigos de vocês. Nós defendemos a vida, nós defendemos a floresta. E se vocês dizem que a Amazônia é do Brasil, por que vocês não estão lutando para defender a Amazônia?
Toda essa produção e esse desenvolvimento que vocês pensam são para os brasileiros ou é para o estrangeiro? Então que discurso é este que vocês pregam que a Amazônia é do Brasil, sendo que vocês não sabem a importância do que a Amazônia significa pra nós, vocês não sabem o valor da Amazônia? Vocês não são dignos para dizer isso. Sabem por quê? Vocês não sabem o que é perder um filho, vocês não sabem o que é ter as casas invadidas, vocês não sabem o que é ser expulso de terras. Respeite, respeite, respeite. Respeite a minha fala.
Vocês devem nos ouvir. Vocês invadem as nossas terras, vocês entregam o nosso minério, vocês acabam com a nossa vida, e não querem ouvir a nossa voz. Respeitem. Respeitem a Amazônia, respeitem os nosso povos que morrem todos os dias, que têm mulheres todos os dias violentadas, que têm indígenas com mãos decepadas por defenderem as suas terras. Nós defendemos o Brasil. Nós defendemos a Amazônia com nossa própria vida há séculos!
O dever de defender a Amazônia não é só porque nós, indígenas, moramos nas nossas terras. O mundo tem o dever, tem a obrigação de defender a Amazônia, porque é daqui que tiram todas as nossas riquezas e deixam somente as mazelas, as doenças, as tristezas, os conflitos.
Qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?
Desrespeito é vocês virem aqui gritar, interromper a nossa fala. Se estão aqui para dialogar, então respeitem cada um. Não agridam, não cometam violência, porque eu não estou aqui agredindo vocês. Eu estou defendendo nossos direitos, o direito de existência, o direito de indígenas. Nós também somos donos, até muito mais do que vocês. O Xingu, a Amazônia, todos os seres que vocês não conseguem ver nem respeitar, sabem por quê? Porque vocês não são ligados à terra, vocês não sabem como é a conexão com a mãe natureza. Porque qual é o filho que luta para desmatar e para matar a sua mãe?
Que filhos são vocês? Que brasileiros são vocês? Eu tenho dó. Não de vocês. Eu tenho dó das futuras gerações. Dos filhos e netos de vocês. Vocês não têm o direito de acabar com a nossa futura geração. A Amazônia e o Brasil não são só de vocês. São também nossos. No mínimo, vocês têm que ter respeito e aprender a conviver”.
Raoni pediria mais tarde a todos aqueles que defendem a Amazônia que ajudassem a proteger Juma Xipaya. O pedido precisa ser ouvido para muito além da floresta. Com um AI-5 não oficial já se instalando na região, a sociedade civil precisa se organizar para criar uma rede de proteção aos defensores da floresta e impedir o processo de criminalização das ONGs que protegem estes defensores ― seja cuidando do seu bem-estar, como faz o Saúde e Alegria há mais de 30 anos, seja ajudando a implementar a economia da floresta, aquela que produz renda sem desmatar, como faz o Instituto Socioambiental nas reservas extrativistas da Terra do Meio, seja combatendo diretamente o desmatamento, como fazem outras organizações. A disputa do futuro está sendo travada exatamente agora.
Apesar das ilusões que todo povo alimenta sobre as grandezas do seu país, o Brasil tem hoje importância no cenário global principalmente por causa da Amazônia. É a maior floresta tropical do mundo que empresta relevância estratégica ao Brasil. É abrigar 60% de um bioma estratégico para o controle do superaquecimento global que faz o Brasil um país necessário. O problema é que o bolsonarismo, assim como uma parcela da elite econômica e uma parcela dos militares, continua acreditando que a riqueza da Amazônia é o minério embaixo da terra e a quantidade de terra para especulação. Parte acredita nisso porque é burra e desinformada, parte porque só se interessa por lucros privados e imediatos, colocando seus interesses acima inclusive do futuro dos próprios filhos.
Leia mais o artigo de Eliane Brum
Hora do anagrama
É sobretudo um divertimento que consiste em formar outra palavra com as mesmas letras. Convém que a nova palavra traga chispa de espírito. Há tempos falei aqui de palíndromo, que pode ser lido de trás para diante. O mais conhecido é "Roma me tem amor". Foi uma surpresa o interesse dos leitores, que me mandaram várias contribuições. O Antonio Carlos de Oliveira me enviou de São Paulo um texto em francês com mais de cinco mil palíndromos!
Não me foi difícil transformar o caos em caso, saco, asco, ocas. E soca – sabe o que é? Levar uma soca, ir na soca. Resolvi partir então para um palíndromo, juntando ao caos algumas palavras em evidência. E uns poucos nomes próprios da atual cena política. Nisso, abro a revista Domingo do Jornal do Brasil e dou com o Luís Fernando Veríssimo. Um craque, que além de escrever, desenha. Estava lá a cara do Brasil e o caos decomposto assim: "Cá só/ asco,/ caos.../ saco!". Desisti do meu palíndromo e passo à sugestão adiante.
Quem gosta de palavras cruzadas, charadas e enigmas pode se divertir com o anagramatismo. Já foi verdadeira mania na Inglaterra, na França, na Alemanha. O latim e o grego se prestam muito a esse jogo e ostentam exemplos antológicos. No castelhano, um doido chegou a escrever uma novela capicua, que pode ser lida de trás para diante da primeira à última palavra. Convém não exagerar. Comece por desmanchar palavras como crise e catástrofe, sozinhas ou acompanhadas.
Repito que não basta trocar as letras de lugar até que se forme outra palavra. O toque de humor é fundamental. Assim como o caos vira saco, certos nomes de figurões, feito o anagrama, desvendam o seu segredo e até o seu ridículo. Quem quiser tente também o verso anacíclico, de maior sabor lúdico. Deixo aqui a sugestão. Pode não resolver a crise, mas não vai agravá-la. Um simples anagrama transforma o Brasil em libras. Não é fantástico? Um pequeno esforço e você encontra dólares, ouro e tudo mais.
Otto Lara Resende, Folha SP, 6/10/1991
Qual o mais valioso dos recursos escassos?
Parece que está tudo desmoronando e que nada mais pode ser feito para evitar um futuro sombrio. No entanto, uma coisa ainda disponível é o tempo, um recurso escasso, mas extremamente valioso. Alguns dizem que a emergência climática ainda pode ser revertida se forem tomadas medidas ao longo dos próximos 12 anos. E este é um recurso que podemos explorar ao máximo. Não há tempo a perderIrene Baños Ruíz
Os riscos do fim da moratória da soja
Reconhecida por grandes empresas brasileiras e europeias como uma iniciativa voluntária de sucesso para reduzir o desmatamento, a chamada moratória da soja foi estabelecida para atender a uma pressão de consumidores críticos a produtos que pudessem estimular a derrubada de floresta na região amazônica.
Para evitar danos de reputação e assegurar a entrada da soja em mercados exigentes, especialmente o europeu, as empresas que compram o grão dos produtores brasileiros e o processam e exportam, como Amaggi, Cargill e Bunge, se juntaram a entidades da sociedade civil. Com o objetivo de estabelecer um mecanismo de monitoramento, as empresas se comprometeram a não comprar soja de áreas da Amazônia desmatadas após julho de 2008, data limite para anistia de desmatamentos ilegais estabelecida pelo Código Florestal.
Agora, parte dos produtores de soja contrários à moratória articulam uma forma de derrubá-la, com o aval de membros do alto escalão do governo Bolsonaro. Eles são representados pela Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil).
No início do mês, o presidente da entidade, Bartolomeu Braz Pereira, anunciou em entrevista ao jornal Valor Econômico que sua entidade apresentaria uma reclamação ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão de defesa da concorrência, alegando que a moratória era um mecanismo de reserva de mercado e que deveria ser revogada.
O Código Florestal autoriza proprietários de áreas na Amazônia legal a desmatarem até 20% de suas propriedades. Os produtores argumentam que a moratória impede que aqueles que plantam soja em áreas desmatadas legalmente a coloquem no mercado.
Braz se reuniu em 11 de setembro com o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e no mês seguinte o secretário-especial de relacionamento externo da pasta, Abelardo Lupion, declarou, em entrevista ao site Notícias Agrícolas, que as grandes exportadoras de soja que patrocinam a moratória "cometem um crime quando fazem distinção entre produtores rurais" e que o governo iria "jogar muito pesado" para reverter o instrumento.
A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, informou em nota à DW Brasil que a moratória da soja é uma questão entre entes privados, mas que pessoalmente, a considera um "absurdo".
"O produtor brasileiro cumpre o Código Florestal, que, no caso da Amazônia, determina a proteção de 80% da área da propriedade", afirmou. Até o momento, porém, o governo ainda discute o tema e não anunciou medida concreta a respeito.
Uma das dificuldades de atender à demanda da Aprosoja é que, hoje, não há instrumentos para exportadores e compradores avaliarem se um determinado produtor agrícola está em terras da região amazônica desmatadas regularmente.
O outro empecilho é que há uma demanda consolidada, especialmente em países europeus, por soja que não seja ligada a qualquer tipo de desmatamento na Amazônia, mesmo que autorizado pela lei.
"Não há como comprovar nem demonstrar para nossos compradores se houve desmatamento seguindo ou não o rito legal", afirmou à DW Brasil André Nassar, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), uma das signatárias da moratória da soja. Mesmo que um instrumento desse tipo seja estabelecido, a Abiove diz que seguiria com o monitoramento da moratória para atender aos consumidores que desejam a soja livre de desmatamento.
Segundo Paulo Adário, estrategista sênior de florestas do Greenpeace, o critério temporal, que autoriza a compra de soja de áreas desmatadas antes de julho de 2008, é benéfico para muitos produtores. "Há uma barafunda legal. Se a moratória fosse discutir legalidade, muitos produtores que não conseguem comprovar que estão em áreas legais ou em dia com suas obrigações de reflorestamento ficariam de fora", afirma.
De 2006 a 2018, a área de soja plantada na região da Amazônia subiu de 1,4 milhão de hectares para 5 milhões de hectares, mas apenas 2% dessa área foi desmatada com esse fim após julho de 2008. "A moratória foi um sucesso, a área plantada aumentou, a produção aumentou, e o desmatamento caiu", diz Adário.
Compradores internacionais têm a preocupação de verificar se a soja foi plantada em área desmatada na Amazônia porque o desmatamento é um vetor do aquecimento global, por meio da queima ou decomposição de material vegetal, no alvo do Acordo de Paris.
Nassar, da Abiove, afirma que, caso o Cade aceite abrir uma investigação sobre a moratória, haverá "preocupação enorme" no setor. "Quem importa e não quer comprar soja de área desmatada vai atribuir maior risco de isso ocorrer com a soja brasileira, e vai aumentar a exigência de garantias", diz, apontando que a derrubada da moratória traria prejuízo não apenas aos que hoje plantam na Amazônia, mas aos produtores de todo o país.
Segundo ele, 50% do farelo de soja exportado pelo Brasil vai para a Europa. Somadas, as exportações de farelo e do grão cru representam 12,5% da produção de soja brasileira. Caso o Brasil perca esse mercado, Nassar aponta que haveria um aumento dos estoques de soja no país e uma queda do preço.
"Essa iniciativa dos produtores conspira contra os interesses do próprio agronegócio. A moratória é uma guardiã de um mercado para soja. Esses produtores não conseguem entender a máxima de que o consumidor tem sempre razão", diz Adário, do Greenpeace.
A soja na Amazônia representa 13% da soja plantada no país. A maior parte da produção do grão ocorre hoje no Cerrado, que não é abrangido pela moratória. Organizações ambientalistas estão pressionando os grandes exportadores a aplicarem a mesma regra a esse bioma, mas não há consenso no setor. Segundo Adário, a iniciativa da Aprosoja seria também uma estratégia preventiva para se opor à aplicação da moratória no Cerrado.
Nathalie Lecocq, diretora geral da Fediol, que representa a indústria europeia de óleos vegetais e de proteína animal, afirmou à DW Brasil que a entidade recebeu com preocupação a proposta de acabar com a moratória da soja, "atualmente o único instrumento que oferece garantias de que não há desmatamento no bioma amazônico".
Segundo ela, empresas europeias importam e processam soja do Brasil no valor de 4,2 bilhões de euros por ano (cerca de 20 bilhões de reais), que seriam "colocados em risco' com o fim da moratória.
"As exigências ambientais se tornaram mais importantes para as companhias, e o consumidor europeu espera que a União Europeia aja para enfrentar o desmatamento no fornecimento [de matérias-primas]", diz Lecocq.
Ela aponta que os últimos dados sobre o aumento do desmatamento na Amazônia, associados ao debate sobre o fim da moratória, podem levar consumidores europeus a aumentarem sua rejeição a produtos que possam conter desmatamento e forçar legisladores e governos a adotarem medidas para evitar que esses produtos entrem no mercado europeu.
A DW Brasil tentou ouvir um representante da Aprosoja Brasil desde o dia 19 de novembro, sem sucesso.
Deutsche Welle
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