segunda-feira, 1 de junho de 2020

A cara verde-oliva

O resultado é que o Governo vai ter cara militar. E quem vai ser responsável pelos erros do Governo, queira ou não, serão os militares
Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente

Arapuca

A fogueira acendeu-se no 19 de abril, Dia do Exército, quando Jair Bolsonaro e seus devotos manifestaram-se diante do QG do Exército, em meio a faixas pela restauração do AI-5, contra o Congresso e o STF. Suas labaredas espalharam-se um mês depois, no rastro da demissão de Sergio Moro.

Sexta, 22 de maio, o general Augusto Heleno, chefe do GSI, divulgou uma “nota à Nação brasileira” classificando como “interferência indevida de outro Poder” o ato burocrático do ministro Celso de Mello de encaminhar para análise um pedido de apreensão do celular do presidente. Nos dias seguintes, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, apoiou o gesto de Heleno, e 89 oficiais da reserva, quase todos coronéis, ameaçaram o STF com o espectro de uma “guerra civil”. A artilharia verbal seguiu, com o agradecimento “emocionado” de Heleno à carta dos coronéis e uma “carta aberta” do Clube Naval repudiando a “arbitrária decisão” de Celso de Mello de divulgar a gravação da reunião ministerial tarja-preta de 22 de abril.


Os militares caíram na arapuca no 5 de agosto de 2018, data em que o então candidato Bolsonaro anunciou o nome do seu companheiro de chapa. Hamilton Mourão, o vice, uma das figuras icônicas da geração de oficiais formados durante a “lenta, gradual e segura” abertura política de Geisel, selou a aliança entre as Forças Armadas e o ex-capitão turbulento, rejeitado pelo Exército por indisciplina. O pacto rompeu a fronteira que, desde 1985, separava os quartéis da política. O vírus da anarquia militar, moléstia crônica do Brasil República, voltou a circular na caserna.

Desde o início, o plano de batalha estava crivado de equívocos fatais. Os militares avisaram, ingenuamente, que os altos oficiais engajados no governo operavam individualmente, não em nome das Forças Armadas. Acreditaram na ilusão de que, por meio de um cordão sanitário de ministros-generais, neutralizariam os excessos de Bolsonaro para produzir um governo pragmático, assentado nos pilares da Economia (Guedes) e da Justiça (Moro). Não entenderam a natureza do movimento bolsonaro-olavista, que se orienta por uma estratégia de ruptura institucional. Pagam, agora, o preço de posicionar suas tropas em terreno incógnito.

O movimento bolsonaro-olavista acalenta o sonho delirante de uma “marcha sobre Brasília”. Para isso, multiplica suas ações em rede destinadas a cooptar oficiais militares e sargentos, cabos ou soldados das PMs. A tática atenta contra a disciplina nos quartéis, desgastando os fios da hierarquia castrense. Os manifestos de Heleno, dos coronéis e do Clube Naval conferem nova dimensão à agitação subversiva da ultradireita.

O bombardeio das redes bolsonaro-olavistas não poupou o círculo de generais do Planalto. A queda de Santos Cruz, em junho de 2019, evidenciou que, na ordem de prioridades de Bolsonaro, o núcleo ideológico sempre está acima dos conselheiros militares. Aquele evento assinalou a derrocada da linha de resistência interna. A mira dos canhões voltou-se, então, para o Congresso e o STF.

Há anos, num ritmo ditado pela crise do sistema político, o STF extrapola seus limites constitucionais, operando como Poder Moderador. Nessa moldura, a fábrica de ofensas do bolsonaro-olavismo provocou uma reação em cadeia, iniciada pelo inquérito das fake news e acirrada após as denúncias de Moro. O veto à nomeação de Alexandre Ramagem para a PF, a ordem de divulgação da reunião ministerial e a operação policial de devassa das redes de propagação do ódio explodiram as pontes remanescentes. Hoje, um presidente sitiado pelas instituições civis busca proteção na casamata dos militares.

“Saia de 1964 e tente contribuir com 2020”, pediu Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, ao ministro Heleno. Mesmo o destinatário da mensagem, um dos poucos generais do Planalto que dá ouvidos aos desvarios do núcleo ideológico, não chega ao ponto de desejar a ruptura institucional. Mas, junto com seus camaradas mais sensatos, ele conduziu suas forças à guerra errada, entregando-as ao comando clandestino de um capitão sem farda nem bússola.

Quem é o verdadeiro Bolsonaro

De tanto ser nada, presidente está se revelando como um cavalo descontrolado que, quanto mais acossado, mais coices dá","articleBody":"Em seus 500 dias de Governo já se disse de tudo sobre o presidente de extrema direita, o capitão reformado Jair Bolsonaro. E, entretanto, sua verdadeira personalidade ainda é um mistério. Sobre ele já opinaram de psiquiatras a cientistas políticos e historiadores e ainda continuamos sem conhecer realmente a verdadeira periculosidade do personagem. Ele, que sempre foi um obscuro político sem relevância, célebre, de todo modo, por suas grosserias contra os diferentes e as mulheres, é hoje examinado, já no comando da República, sob os traços mais obscuros de sua personalidade.

A psicologia o descreve como um paranoico com complexos de inferioridade e fúrias destrutivas de morte, e os políticos como um personagem menor com desejos de vingança por ter passado 30 anos na sombra. Assim se explica sua ambição exorbitada e sua fome de poder e de querer demonstrar que desta vez verdadeiramente o tem. Só que ele não entendeu que esse poder é compartilhado e que ele é responsável somente por presidir um país ao lado das outras instituições independentes do Estado. De ser nada passou a sentir a onipotência bater a sua porta e está se revelando como um cavalo descontrolado que quanto mais acossado mais coices dá. Mostra arroubos de valentia quando é criticado e se reveste de uma autoridade que não lhe pertence. E chega a proclamar como os velhos ditadores do passado, tantas vezes personagens complexados na vida, “eu sou a Constituição”, e “sou eu quem manda” e “as Forças Armadas estão sob meu comando”. E “eu quero o povo armado nas ruas”.


Onipotência descarada e simplista que só pode conduzi-lo ao fracasso e levar o país ao abismo. Não restam dúvidas de que na História sempre foram personagens complexados que, para demonstrar sua força, infringiram descaradamente todas as regras mais elementares da democracia para dar vida a experiências totalitárias que acabaram ensanguentando o mundo. Acho que hoje sobre o presidente brasileiro há algo claro e é que parece disposto a tudo, até a pisotear os valores da convivência com suas fúrias de poder.

Tivemos dias atrás mais uma amostra de seu viés não só autoritário como golpista após a reação à publicação por ordem do Supremo do vídeo já tristemente célebre da reunião ministerial de 22 de abril no qual aparecem ele e seus ministros mais ideologizados despidos de dignidade e ameaçando outras instituições, enquanto se esqueciam vergonhosamente do drama que o país está vivendo pelos efeitos da epidemia cujos mortos já nem encontram cemitérios para ser enterrados.

O vídeo deixou em evidência não só a mediocridade e o baixo calão do presidente e de seus principais ministros, mas também o perigo que significa uma nação da envergadura do Brasil ser governada por um punhado de pessoas sem empatia à dor e que ameaçam levar o país a uma nova aventura militar.

O conciliábulo deixou o país atônito, envergonhado e atemorizado ao ouvir da boca do presidente da nação, além de um rosário de palavras vulgares, que seu desejo é contar com uma população armada nas ruas. Para quê? Para matar? Para dar vida a uma guerra civil entre irmãos? Chegou ao sarcasmo de afirmar que o povo armado é o melhor antídoto contra a ditadura. Era de se esperar que após o opróbrio público daquelas cenas de política obscena da reunião, o presidente Bolsonaro desaparecesse por uns dias na sombra envergonhado e com medo das consequências judiciais do encontro. Isso significaria, entretanto, não conhecer o personagem que como o touro quando recebe as bandeirolas do toureiro se enfurece ainda mais.

Desse modo, apareceu em público antes de 48 horas para se encontrar com seu grupo fanático de seguidores que todos os domingos se juntam em frente ao palácio presidencial para aplaudi-lo e gritar palavras de ordem a favor de uma intervenção militar e contra as outras instituições do Estado. Dessa vez foi possivelmente mais grave porque Bolsonaro apareceu ao lado do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional. O presidente se sentiu tão seguro ao lado do general que dessa vez nem sequer se preocupou em pedir aos seus seguidores que retirassem os cartazes golpistas.

Não só não teve uma palavra de pesar pelo rio de vítimas que todos os dias estremece o país, como fez questão de quebrar todas as normas contra o coronavírus ditadas pelas autoridades médicas e pelos governadores e se misturou às pessoas abraçando-as sem máscaras e sem escrúpulos.

Nessa mesma hora, como para rubricar um ostensivo apoio de uma parte do Exército às suas tentações golpistas, um grupo de 89 militares da reserva da Agulhas Negras, onde Bolsonaro se formou como paraquedista e de onde foi expulso por seus devaneios terroristas da época, publicou um documento de apoio ao presidente no qual chegam a fazer alusão a uma possível “guerra civil” caso o velho capitão hoje reformado não for obedecido.

Os que chegaram a pensar que os nove ministros militares do Governo e os mais de 2.000 militares colocados nos outros escalões do Estado poderiam servir de freio para deter as tentações autoritárias do presidente, começam a perder a esperança, já que a cada dia se revelam mais alinhados com ele e lançando ameaças claras de um golpe militar.

Tudo isso agravado pela decisão de Bolsonaro de conquistar com cargos e benefícios a parte mais repugnante e corrupta do Congresso, o chamado “centrão”, que é formado por muitos políticos ainda com processos nos tribunais.

Para quem venceu as eleições em boa parte por sua promessa de acabar com a velha política e suas práticas corruptas, esse novo casamento com os partidos mais envolvidos em escândalos de corrupção, esse se jogar nas mãos da parte mais podre do Congresso, não pode deixar de aparecer como um sarcasmo e uma chacota aos seus eleitores.

Talvez o Brasil esteja perto de entrar em um dos piores momentos de sua história pelo afã do presidente de reviver velhos fantasmas autoritários inimigos dos valores democráticos que no passado só criaram fome, miséria e desprezo à cultura.

É urgente que o Brasil e suas forças democráticas, deixando de lado suas lutas partidárias, se unam para deter o cavalo descontrolado das velhas saudades autoritárias, já que acredito que restam poucas dúvidas de que Bolsonaro chegou para ficar e que a cada golpe recebido levanta a cabeça com mais orgulho ferido. E que nele não existem limites e cercas capazes de distinguir entre civilização e barbárie. E ainda mais acreditando-se enviado e iluminado por Deus. Por fim, da mesma forma que todos os déspotas da História.

Pensamento do Dia


Imagens do passado (ou de domingo?)

Uma semana antes da votação da emenda Dante de Oliveira, em 1979, o general presidente João Baptista Figueiredo decreta estado de emergência no Distrito Federal, em Goiânia e em nove municípios do entorno da capital do país. A medida tem o objetivo de isolar Brasília, evitar manifestações pró-Diretas e intimidar o Congresso Nacional. O direito de reunião é suspenso e se estabelece a censura aos noticiários de rádio e TV. O Comandante militar do Planalto, general Newton Cruz, dirige a  cavalo a ocupação da Esplanada dos Ministérios 
Benito Mussolini, ditador fascista da Itália, Il Duce, entre 1925 e 1943, também adorava se exibir a cavalo  

Obsessão armamentista de Bolsonaro é necessária para conflagração contra perda do poder

Não vai acabar bem, não há como —começo, forçado pelas circunstâncias, com esta frase jornalisticamente velha, que ainda antes da posse de Bolsonaro gravei para o importante site de Bob Fernandes e aqui pôde ser encontrada nos primórdios do atual governo. Não era previsão, era só uma obviedade de que muitos olhares preferiram desviar, por diferentes motivos, desde temores talvez inconscientes à ganância já rica.

Situações com muitos componentes da tensão levam à imprevisibilidade intransponível, ou quase, sobre seu desfecho. Consegue-se formular umas poucas hipóteses, mas as variações imprevistas são sempre mais numerosas. É diante de hipóteses inumeráveis que estamos.

Bolsonaro, seu filho Eduardo e outros desatinados fizeram, contra o Supremo Tribunal Federal, novas ameaças golpistas. Os generais Hamilton Mourão, Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto puseram nos seus currículos sucessivas negações de risco de golpe. Declarações de Augusto Heleno, porém, estão com sua autoridade moral cassada pelo próprio, que tanto ameaça com “consequências imprevisíveis” como diz que risco de golpe é só invenção da imprensa.

Apesar de que mentir em depoimento processual seja falta grave e punível, Luiz Eduardo Ramos e Braga Netto foram inverdadeiros nos depoimentos sobre a reunião vergonhosa, pretendendo proteger Bolsonaro. Condutas são mais eloquentes do que palavras.


As de Bolsonaro, mesmo quando restritas a uma gravata com figurinhas de fuzis —como o fotógrafo Joédson Alves, da EFE, percebeu e O Globo publicou—, bastam para sabermos o que e quanto nos ameaça. O seu berro de “acabou!”, referindo-se à liberdade do Supremo para decidir contra o bolsonarismo, não foi reação momentânea e isolada.

Seu empenho em desmoralizar o tribunal revela-se como um plano de ação na escalada desde a campanha eleitoral. Com o “cabo e um soldado” suficientes para fechar o tribunal, por exemplo, ou com os prometidos dez integrantes a mais, como desqualificação dos 11 atuais. O que há hoje é uma investida mais coerente com ameaça. Por força do momento.

Esse avanço está em relação direta com outra escalada, a das armas para a população, também iniciada na campanha. Vai agora ao paroxismo como sua companheira, e pelos mesmos motivos.

Bolsonaro tem ciência e domínio, tanto quanto seus filhos maiores, dos comprometimentos que os põem sob riscos judiciais extremos. Sabem desses riscos desde as investigações da estrutura negocista de Sérgio Cabral e do assassinato de Marielle Franco. Este, para agravar os riscos, com implicação de milícias.

As relações e práticas que sujeitam Flávio Bolsonaro a inquéritos criminais foram herdadas de seu pai, eleito para a Câmara Federal quando o filho ocupava seu lugar na Assembleia Legislativa fluminense. Não seria correto, portanto, que o interesse das investigações terminasse em Flávio.

O estado de exasperação constatável em Bolsonaro corresponde à sua situação crítica. Agir, em tal caso, é a sua urgência. Desmoralizar o Supremo, com o decorrente enfraquecimento do Judiciário; dominar o Ministério Público, valendo-se das ambições do procurador-geral da República; submeter a Polícia Federal para conduzi-la, comprar apoiadores parlamentares com cargos públicos e benesses, são providências que marcham, aceleradas, para a primeira frente de combate defensivo de Bolsonaro. A frente desarmada.

A outra é a única explicação possível para a obsessão armamentista, há pouco agraciada com duas medidas tratadas sem a atenção merecida: uma, a liberação da compra de munições; em seguida, o fim da já duvidosa fiscalização, pelo Exército, da posse de armas militares. Essas medidas, como as liberações anteriores e as esperadas para breve, são partes do necessário para uma conflagração contra a perda do Poder. A defesa final.

Ainda não se sabe a favor de quem o tempo corre. Mas não há dúvida de que, contra a insegurança opressiva que nos subjuga, está faltando um grande exemplo de dignidade.

Salve-se quem puder

Salvem-se os bichos quando vierem as mãos e as varas, os pés e as travas que eles já conhecem. Os bichos das matas, dos mares, dos ares, os felizes por enquanto, por engano. Quando acordarem do sonho de restituição de suas terras, salvem-se quantos puderem.

Salvem-se os suicidados da sociedade, como o louco que passa berrando na avenida, entrando pelas janelas do bairro com seu grito, atravessando as paredes, os muros, as portarias. Salvem-se os loucos, os que foram enlouquecidos, e sua loucura fique ainda mais incômoda, mais lúcida, de estigmatizar quem os vê e ouve todo dia.

Salvem-se as crianças em suas alegrias repentinas, por pouco ou nenhum motivo, em sua inocência de casca de ovo, em seus veredictos de anjo, em seus dons de brincar sem brinquedo e fazer de um monte de cascalho um tesouro. Salvem-se as crianças com pais e mães nem sempre sãos, nem sempre bons, nem sempre dignos de um filho.

Esses de outro mundo possível, clandestinos neste mundo, que se salvem se puderem, e quantos puderem, como aqueles que, inacreditavelmente, num último instante se salvam de um afogamento. Os selvagens sem pistola, os últimos inocentes, os sem governo.

Mariana Ianelli

Acabou, acabamos

Acabou, porra! Esta frase de Bolsonaro, dita na porta do Palácio da Alvorada, me lembrou uma outra frase de um personagem de “Esperando Godot, peça de Samuel Beckett: “Acabou, acabamos.”

Esta lembrança surgiu porque há alguns dias fizemos uma live, eu e o querido embaixador Marcos Azambuja, cujo título era: “Esperando Godot, a tempestade perfeita.” Nesse encontro, promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais, defendi a tese de que a tempestade perfeita no Brasil era produzida pela associação da pandemia com a presença de Bolsonaro no poder. Há outras combinações no mundo: nos EUA, por exemplo, coronavírus e racismo.

Bolsonaro disse esta frase porque não quer respeitar as decisões do STF, onde, no momento, tem duas preocupações: um inquérito sobre sua interferência na Polícia Federal e outro sobre a máquina de fake news montada por gente muito próxima a ele.

Filho de Bolsonaro, Eduardo entra no nosso ônibus e diz: "Eu poderia estar fritando hambúrguer nos Estados Unidos, mas vim avisar que haverá uma ruptura, não é questão de se, mas de quando acontecerá".

Juristas ultraconservadores acham o artigo 142 como saída. Se Bolsonaro não aceita as decisões do Supremo, as Forças Armadas têm de funcionar como Força Moderadora, obrigando o Supremo a aceitar tudo o que faz Bolsonaro.

As Forças Armadas já mostraram até onde podem ir. Em primeiro lugar, ocuparam o governo. Isso era previsível, pois o espírito salvacionista que vem desde a Proclamação da República não morreu: só os militares conseguem dirigir este país caótico, pensam.

O mais grave é que as Forças Armadas, através de um general da ativa, ocuparam o Ministério da Saúde, encamparam a errática política de Bolsonaro e querem nos entupir de cloroquina. Ao aceitarem que caiam no seu colo milhares de mortes, mostram que topam tudo por seu capitão.

Como assim, nossas Forças Armadas? Outras forças também poderosas foram seduzidas por um simples cabo. A hora não é tanto de reflexões sociológicas, mas de organizar a resistência.

Simplesmente não há tempo a perder. O tempo que perdemos esperando o coronavírus chegar representou muitas mortes.

É hora de avisar a todos os brasileiros no exterior para que reúnam e discutam a necessidade de falar com partidos, organizações, imprensa, organizar núcleos de apoio na sociedade europeia e americana, entre outras.

As Forças Armadas não só encamparam a política da morte de Bolsonaro. Elas tiraram de centro da cena o Ibama e outros organismos que fazem cumprir nossa legislação ambiental, conquistada ao longo de anos de democracia.

O governo brasileiro vai se tornar uma grande ameaça ambiental e biológica simultaneamente. Lutar contra ele em todos os cantos do planeta é uma luta pela vida, pela própria sobrevivência. Esse será nosso argumento.

Internamente, será preciso uma frente pela democracia. Já temos uma frente informal pela vida, expressa no trabalho de milhares de médicos e profissionais de saúde, nos grupos de solidariedade que se formaram ao longo do Brasil.

O que a frente pela democracia tem a aprender com eles? Em primeiro lugar, ninguém perde tempo culpando o outro pela chegada do coronavírus. Em segundo lugar, a gravidade da morte onipresente não dá espaço para confronto de egos.

Uma frente pela democracia não é uma luta pelo poder, mas sim pelas regras do jogo. Quem estiver interessado no poder que espere as eleições. Foi assim no movimento pelas Diretas.

Hoje uma frente pela democracia transcende as possibilidades do movimento pelas Diretas. As redes sociais colocam na arena milhares de novos atores, alguns deles capazes de falar com mais gente do que todos os partidos juntos. O espaço para criatividade se ampliou. O papel de cada indivíduo é muito mais importante do que foi no passado.

Não tenho condições num artigo de falar de todas essas possibilidades. Mesmo porque eles não se limitam à cabeça de uma pessoa. A única coisa que posso dizer produtivamente agora é isto: não percam tempo. É urgente falar com amigos, estabelecer contatos, discutir como atuar adiante, como resistir ao golpe de Estado. Posso estar enganado, mas jamais me perdoaria, com a experiência que tenho, se deixasse de alertar a tempo e também não me preparasse para esta que talvez seja a última grande luta da minha vida.

Mentiras, versões e lorotas

De onde parte essa onda de fake news, versões, simulações e dissimulações que se espraia durante a epidemia? Nunca se ouviu tanto disse me disse, essas invencionices pelas redes sociais, gravações de conversas, vídeos editados, vazamentos de mensagens, envolvimento de policiais, de juízes e procuradores.

Fragmentos dos últimos dias: Bolsonaro tentando interferir na PF; uma desastrada reunião, farta de palavrões; hordas bolsonaristas agredindo jornalistas e portando faixas contra Legislativo e Judiciário; pedidos de prisões para ministros do Supremo; ações policiais sob viés político, uma profusão de informações e falsidades.

Onde estará a verdade? Ou, o que é verdade?

O fingimento faz parte da nossa cultura e se expande com a polarização. Mas fingir parte de nossa índole. Nosso folclore político, por exemplo, é farto em matéria de esperteza.


Sebastião Nery narra um exemplo: “José Maria Alkmin, mestre da arte política, chegava da Europa com cinco garrafas enroladas na pasta. A Alfândega quis saber.

– Água milagrosa de Fátima.

– Mas tudo isso, doutor Alkmim?

– Sim, o pessoal de Minas acredita muito nos milagres de Fátima.

– O senhor pode desenrolar?

– Pois não, meu filho.

– Mas, deputado, isso é uísque.

– Ué, não é que já se deu o milagre?

A matreirice faz parte do cotidiano das pessoas. A invencionice em nossa cultura anda sofisticada. Mergulhamos em meias verdades, mentiras e lorotas escalando uma montanha de pistas falsas.

O fato é que a história da política é rica em simulação e dissimulação. O cardeal Mazarino, ministro de Luis XIII, ensina em seu Breviário dos Políticos: “age com os teus amigos como se devessem tornar inimigos; o centro vale mais do que os extremos; mantenha sempre alguma desconfiança em relação a cada pessoa; a opinião que fazem de ti não é a melhor do que a opinião que fazem dos outros; simula, dissimula, não confies em ninguém e fala bem de todo mundo. E cuidado. Pode ser que neste exato momento, haja alguém por perto te observando ou te escutando, alguém que não podes ver”.

A descrição cai bem ao país. Até parece que os “inventores de causos” nas redes sociais aprenderam com Nicolau Eymerich, frade espanhol que, em 1376, escreveu em seu Manual dos Inquisidores”: falar sem confessar; responder às perguntas de maneira ambígua; responder acrescentando uma condição (acredita em Deus? Se ele existe...); inverter a pergunta; fingir-se de surpreso; mudar as palavras da questão; deturpar o sentido das mensagens; auto justificar-se; fingir debilidade física; simular demência ou idiotice e até se dar ares de santidade.

Hoje, demônios se disfarçam de santos.

E para deixar por instantes esse momento de angústia, fecho com outra historinha de Nery e o mesmo Alkmin.

Um correligionário mineiro fica meio “lelé da cuca” e aparece no gabinete do ministro da Fazenda, no Rio, pedindo inusitada colaboração.

– Dr, eu quero ir à lua e preciso da ajuda do senhor.

– Isto não é problema, diz Alkmin. Dou-lhe o apoio. Existe um pequeno problema, que só depende do amigo. Você sabe que há quatro luas: nova, crescente, minguante e cheia. Escolha qual o nobre amigo deseja visitar, o apoio está dado.

Diante de um atônito conterrâneo, Alkmin estende a mão e se despede:

– Me procure quando você definir!
Gaudêncio Torquato