sábado, 27 de julho de 2019

Gente fora do mapa


De volta à era das mordomias

Há momentos, e não são poucos, em que o capitão, travestido de presidente da República por acidente, cede aos seus instintos mais primitivos. No caso do acidente, a facada que levou em Juiz de Fora e que o ajudou a se eleger como ele mesmo reconhece.

A grosseria de Jair Messias Bolsonaro, que trai sua personalidade autoritária, voltou a manifestar-se mais uma vez quando ele desembarcou, ontem à noite, em Goiânia e ouviu de uma repórter da Folha de São Paulo uma pergunta que o enfureceu.

A repórter perguntou sobre o voo recente em helicóptero da presidência da República de parte da família Bolsonaro para o casamento, no Rio, do garoto Eduardo, indicado pelo pai para ser embaixador do Brasil em Washington. Resposta do capitão:

- Cm licença, estou numa solenidade militar, tem familiares meus aqui, eu prefiro vê-los do que responder uma pergunta idiota para você. Tá respondido? Próxima pergunta.


A pergunta seguinte de outro repórter foi sobre o mesmo assunto. Então o capitão encerrou entrevista que durou menos de 20 segundos e deu as costas aos jornalistas. Não foi a primeira vez que procedeu assim, e não será a última.

O inventor do que chama de “Nova Política” restaurou a prática de oferecer mordomias a parentes. Para não viajar 35 minutos de carro, uma dezena de Bolsonaros voou 14 minutos de helicóptero da FAB entre os aeroportos de Jacarepaguá e o Santos Dumont.

Idiota foi o quê? A pergunta feita pela jornalista cuja obrigação é ver e perguntar? Ou o voo familiar autorizado pelo capitão? Ou a reação do capitão à pergunta? O voo foi pago pelos cofres públicos. Como servidor público, Bolsonaro deve satisfações.

E agora que também fale o Queiroz

O Brasil vive uma febre de hackers que se dedicam a roubar os segredos de personagens-chaves do Estado. São uma espécie de confessores que escutam, usando as novas tecnologias, os pecados dos poderosos e depois os vendem ao melhor comprador.

A imagem do hacker que escuta os pecados dos poderosos como confessores me trouxe à memória a publicação feita há anos em Roma por um grupo de jornalistas que queriam saber o que os padres perguntavam aos fiéis quando estes lhes confessavam pecados sobre o sexo. Então o confessor se mostrava curioso como um adolescente e aproveitava para que o pecador lhe contasse, e com detalhes, de que formas violava o sexto mandamento.

A publicação foi um escândalo, e acredito que a Igreja tenha obrigado a retirá-la, e os jornalistas foram acusados de violação de sigilo. Eles queriam, entretanto, denunciar como havia sacerdotes que usavam o confessionário para se satisfazer até sexualmente. Naquele caso os jornalistas tinham se tornado hackers e reveladores dos segredos dos confessionários.

Hoje os que andam no Brasil à caça das conversas pessoais dos homens do Judiciário e dos outros poderes o fazem mais para ganhar dinheiro, e os jornalistas cumprem seu dever de publicá-las, já que sua missão é a de vigiar os atos dos que governam ou distribuem justiça.

Entretanto, no Brasil, existe hoje um personagem que já se tornou famoso, que saído do nada acabou sendo não o hacker, e sim o confidente e amigo da família do atual presidente da República, Jair Bolsonaro. Do pai e de seus três filhos, todos políticos eleitos pelo voto. Refiro-me ao subtenente-PM aposentado Fabricio José Carlos Queiroz, amigo pessoal do presidente há 30 anos. Foi seu motorista e seu agente de defesa pessoal. A amizade com o pai se transferiu para os filhos, sobretudo o mais velho deles, o hoje senador Flávio Bolsonaro, então deputado estadual no Rio.


O obscuro personagem Queiroz acabou acumulando os segredos da família Bolsonaro e virando ao mesmo tempo o seu maior pesadelo. Através das acusações de corrupção que pesam sobre ele, acabou comprometendo a família Bolsonaro, que o usou não só como chofer como também o elevou a chefe de assessoria do então deputado Flávio. Era ele que fazia e desfazia dentro do seu gabinete e o que contratava assessores fantasmas, vindos do submundo das milícias que hoje dominam o Rio e se incrustaram no Estado.

Queiroz, que levou a Justiça a abrir uma investigação sobre o senador Flavio Bolsonaro, depois interrompida pelo Supremo, foi também chamado a depor à polícia, mas se negou (prestou explicações apenas por escrito) e desapareceu. O medo infundido por esse personagem, anônimo durante toda sua vida, é que ele deve guardar muitos dos segredos da família do hoje presidente e de suas relações com as milícias do Rio. Basta recordar que foi Queiroz quem levou para o gabinete do então deputado Flavio Bolsonaro a mãe e as duas filhas de um dos personagens que aparecem como envolvidos no assassinato da jovem ativista de esquerda Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Trata-se do capitão Adriano Magalhães, um dos líderes do grupo miliciano Escritório do Crime e suspeito de ter participado do assassinato.

As relações estreitas entre a família Bolsonaro e as milícias, junto com seus segredos ainda por revelar, passam pela sombra de Queiroz, que conhece como ninguém e de perto, quase como um confessor, os pecados e virtudes dos Bolsonaro. Daí a suspeita de que seu desaparecimento, sem que nem sequer tivesse sido interrogado pela polícia, seja a demonstração de que Queiroz se tornou uma sombra perigosa que acompanha o presidente e sua família. É verdade que Bolsonaro afirmou em uma entrevista à Veja que “ninguém mais do que eu quer a solução desse caso o mais rápido possível”. Entretanto, não parece crível que a polícia, que em poucos dias conseguiu deter os supostos hackers das conversas privadas do juiz Moro e dos procuradores que trabalhavam com ele, ainda não tenha sido capaz de encontrar o desaparecido Queiroz.

Tem razão a gente das ruas ao se perguntar nas redes e jornais, quase zombeteiramente: cadê o Queiroz, e por que ele não fala? Por que a polícia não resolve um caso dessa gravidade? Medo do quê? São medos que não só não se conjugam com a democracia e o Estado de direito como também a sujam e aviltam, ao mesmo tempo em que envenenam e dividem a sociedade.

O presidente, que assumiu para si o lema bíblico “A verdade vos salvará”, deverá demonstrar, sem esperar mais, que a verdade do caso Queiroz, que pesa sobre ele como a espada de Dâmocles, saia à luz do sol. Sem isso, não se iluda, dificilmente ele terá chances de se reeleger e até se arrisca a não acabar o mandato.

A sombra do assassinato de Marielle ainda sem resolver, mais perigosa hoje morta do que viva, e o desaparecimento do confidente Queiroz, um personagem que conserva muitos segredos, podem poluir não só a democracia, mas também a convivência já difícil e inflamada dos brasileiros que se mostram cansados de fazer perguntas ao poder, do qual recebem só silêncios. Silêncios que gritam mais forte que todas as promessas goradas de reconstruir um novo Brasil. E menos em paz.

Objetos perdidos

O século XX, que nasceu anunciando paz e justiça, morreu banhado em sangue e deixou o mundo muito mais injusto que o que havia encontrado.

O século XXI, que também nasceu anunciando a paz e justiça, está seguindo os passos do século anterior.

Lá na minha infância, eu estava convencido de que tudo o que na terra se perdia ia parar na lua.

No entanto, os astronautas não encontraram sinhôs perigosos, nem promessas traídas, nem esperanças rotas.

Se não estão na lua, onde estão?

Será que na terra não se perderam?

Será que na terra se esconderam? 
Eduardo Galeano

Paisagem brasileira

Paisagem com casario e igreja, Rodolfo Weigel

Quando a democracia não presta

O que fazer quando o povo vota como não deve? Imagino que o leitor, nos seus momentos de frustração, já fez essa pergunta. Chega o dia da eleição. Os resultados são conhecidos. E o leitor, pessoa com estudos, pergunta: “Como é possível tanta imbecilidade?”

Em fúria, o leitor civilizado pensa em mudar de país, na impossibilidade de mudar de povo. Ou, seguindo uma moda cada vez mais crescente, procura alternativas à democracia —uma epistocracia, talvez, em que só os mais sábios podem governar.

Em situações normais, a febre desce e, alguns dias depois, a vida segue como sempre. E o leitor conclui, melancolicamente, que a democracia pode ser um mal sistema, mas é melhor que todos os outros (Churchill “dixit”). Ou não é?


David Runciman, o conhecido politólogo britânico e autor de “Como a Democracia Chega ao Fim” (Ed. Todavia, 272 págs., R$ 64,90) acha que não é. E escreve na “Foreign Policy” um artigo que merece pasmo (primeiro) e resposta (depois).

O assunto é o aquecimento global. Até 2030, dizem os especialistas, é preciso mudar radicalmente de vida. Caso contrário, não haverá futuro para ninguém.

Não vou discutir os méritos ou deméritos do assunto. Muito menos fundamentar as minhas ideias sobre o aquecimento global com as proclamações de uma garota de 16 anos, Greta Thunberg, que David Runciman cita como fonte de toda a sapiência e autoridade.

Fico pelo argumento central de Runciman: os mais jovens preocupam-se com o aquecimento global; os mais velhos não se preocupam tanto. No Reino Unido, quase metade dos eleitores entre os 18 e os 24 anos sentem que o aquecimento global é um problema; entre os maiores de 65 anos, só 20% têm a mesma opinião.

Nos Estados Unidos, a mesma coisa: só 10% dos eleitores entre os 18 e os 29 anos não são sensíveis aos apelos do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. Para os maiores de 65 anos, a insensibilidade cresce para os 40%.

A pergunta é inevitável: como são os mais velhos que votam e decidem eleições, parece que a democracia é o maior inimigo do planeta. Para resolver o assunto, Runciman não escolha as opções óbvias: acabar com a democracia —ou, então, acabar com o direito de voto dos mais velhos.

Também não defende que os mais novos possam votar cada vez mais cedo: isso não é suficiente para desequilibrar a balança demográfica. David Runciman sugere dois caminhos.

O primeiro, com a devida vênia ao filósofo alemão Jürgen Habermas, é promover formas de “democracia deliberativa” em que é a sociedade civil a discutir e a deliberar sobre certos assuntos, cabendo aos políticos a aplicação das medidas aprovadas.

Por outro lado, Runciman aplaude formas mais radicais de democracia direta. Por exemplo, atos de desobediência civil, tipo Extinction Rebellion, e que obriguem os políticos a parar para pensar (de preferência, com um milkshake no rosto).

Infelizmente, as propostas de Runciman apontam para o mesmo caminho: a erosão da democracia representativa e o triunfo das “ditaduras da maioria”. Na peculiar proposta de Runciman, o aquecimento global merece esse flerte com formas mais radicais de participação democrática. Mas o que teria o sábio filósofo para nos dizer se as coisas corressem barbaramente mal?

O que teria ele para dizer se, nessas formas radicais de democracia, as maiorias decidissem abandonar o combate às alterações climáticas pela promoção de formas mais poluentes de desenvolvimento econômico?

Sem falar de outros assuntos, que poderiam ser igualmente deliberados. O que fazer se a sociedade civil decidisse discriminar minorias? Se apoiasse a pena de morte para delitos graves (ou menos graves)? Se exigisse o fim da liberdade de imprensa e, mais vastamente, o fim da liberdade de expressão?

A democracia representativa existe por um motivo: para temperar as insondáveis paixões das massas com o julgamento mais moderado dos representantes.

Runciman pode desesperar com a lentidão do processo. Mas é essa lentidão, a que se junta o providencial sistema de freios e contrapesos, que impede o dilúvio populista. O exato dilúvio que só parece assustar David Runciman quando o tema é Donald Trump.

Se o aquecimento global é um fenômeno apocalíptico, é pela informação científica e pela persuasão de eleitores e eleitos que uma sociedade civilizada funciona. Não é por formas histéricas, anárquicas ou até terroristas de intervenção política.
João Pereira Coutinho

Um paradoxo tropical

Com essa pergunta o famoso físico nuclear Enrico Fermi enunciava seu paradoxo. Com os dados da idade da Terra e a dimensão da galáxia, ele concluiu que civilizações extraterrenas já nos teriam visitado.

Onde está todo mundo? No paradoxo tropical os dados indicam que haveria uma grande reação à medida do ministro Toffoli proibindo que o Coaf troque dados com órgãos de investigação sem consulta judicial. Afinal, a luta contra a corrupção foi um dos temas fortes na campanha eleitoral. Os 57 milhões de eleitores de Bolsonaro devem ter acreditado nisso. O homem central da Lava Jato, Sergio Moro, especialista em lavagem de dinheiro, foi integrado ao governo.

Mas as camisas amarelas e bandeiras do Brasil sumiram das manhãs de domingo. Uma possível resposta ao paradoxo de Fermi é o fato de que civilizações mais antigas podem ter existido e desaparecido. Uma das possíveis respostas ao paradoxo tropical é o enlace do movimento anticorrupção com o governo.


A decisão de Toffoli representa uma retrocesso de mais de uma década, rompe com acordos internacionais do Brasil e nos transforma de novo num paraíso para os fora da lei. Mas ela foi provocada por um pedido da defesa de Flávio Bolsonaro, que estava sendo investigado com dados do Coaf. O pai, Jair, concordou com a medida.

O ministro Sergio Moro expulsou três paraguaios que se refugiavam no Brasil e disse que o País não será mais um abrigo para bandidos. Porém não comentou a medida de Toffoli que desfaz grande parte de um trabalho contra a corrupção. Ele abre caminho para recursos do PCC e outras quadrilhas, dificulta trabalhos importantes, como o de um laboratório de tecnologia de seu ministério que trabalhava especificamente com a lavagem de dinheiro.

Embora esteja longe de Brasília, posso imaginar mais um fator que explica o paradoxo tropical. Toffoli estava incomodado com as notícias de que o escritório de advocacia de sua mulher foi investigado pelas autoridades financeiras. Antes dele, Gilmar Mendes também protestou contra as investigações sobre as finanças de sua mulher. Havia no Supremo uma disposição para deter o mecanismo de troca de informações, hoje bastante corriqueiro no mundo. Os Estados Unidos, por exemplo, enviam inúmeras pistas para outros países sobre suspeitas de financiamento do terrorismo. Mas em Brasília, quando se vai tomar uma medida desgastante, a primeira preocupação, se possível, é dividir a responsabilidade.

O pedido de Flávio Bolsonaro era o caminho ideal. Bolsonaristas deixariam suas camisas amarelas na gaveta. O Supremo estava protegido, não haveria grandes reações.

O pressuposto desse trabalho de troca de informações financeiras é o sigilo. Houve vazamento no caso das esposas de Gilmar e Toffoli. Isso também explica parcialmente o paradoxo. O mecanismo foi apresentado como ameaça aos direitos do indivíduo, ao sigilo bancário.

No tempo dos degredados já havia uma certa visão negativa do Brasil. Ela se consolidou mais tarde nos filmes americanos em que o Brasil era uma espécie de Shangri-lá dos bandidos. Ronald Biggs, que participou do grande assalto ao trem pagador na Inglaterra, certamente veio para cá movido por essas fantasias.

Assim como a expectativa científica era de civilizações exteriores, no paradoxo tropical, onde todo mundo sumiu, é a própria pressão externa que pode resolvê-lo. As empresas hoje são regidas por certas normas de conduta, os países também são julgados assim quando rompem acordos internacionais no campo do combate à lavagem de dinheiro.

Perdem credibilidade.

Prevemos um futuro de intenso intercâmbio com o mundo, apesar dos lamentos antiglobalistas. O acordo com a União Europeia já foi acionado, aproxima-se outro com o Canadá. Sem contar o próspero Oriente.

Todavia, exceto a Rede, que recorreu contra a decisão de Toffoli, a oposição não se mexeu. Para a esquerda tradicional, a luta contra a corrupção era apenas uma nota no pé de página. E, quando se agigantou, tornou-se ameaça ao Estado de Direito, instrumento para derrotar as forças populares.

Navegando nesse paradoxo, o que se vê é um desmonte do aparato investigativo, uma volta, pelo menos nesse aspecto, a um passado de impunidade. E um nó dado no movimento contra a corrupção que se identificou com o bolsonarismo e agora é obrigado a fazer o jogo político tradicional.

Isso não significa que desapareceu a luta contra a corrupção. Ela apenas recuou para o partidarismo, o velho jogo de apontar corrupção nos adversários e calar sobre as suspeitas que recaem sobre si próprio.

Esse jogo leva necessariamente a uma convergência para neutralizar mecanismos sentidos como ameaçadores. Na experiência internacional, a expressão “siga o dinheiro” passou a ser um norte para as investigações. A medida de Toffoli diz o contrário: esqueçam o dinheiro porque não há autorização judicial para segui-lo.

Mas, se essas pistas forem desprezadas, como alcançar as grandes organizações criminosas, cada vez mais hábeis em camuflar suas atividades?

No escândalo da Petrobrás descobriu-se que a Odebrecht tinha um departamento de propinas, contas e até banco no exterior. Os criminosos comuns carecem dessa sofisticação, mas não faltam mercenários para assessorá-los.

Quando Dias Toffoli e Alexandre de Moraes tentaram censurar a revista Crusoé houve reação rápida e eficaz. Recuaram. Mas recuar agora é difícil porque os fios se ligaram lá em cima, governo e Toffoli pensam da mesma maneira, beneficiam-se da mesma medida.

Sumiram os cartazes, faixas caminhões de som e nessa nebulosa tropical somem também as grandes e suspeitas transações financeiras. Voltamos às origens. E o Brasil parecia ter avançado para uma nova etapa.

Onde está todo mundo?