terça-feira, 23 de julho de 2019

Presidência Virtual do Brasil


A inércia do erro

Há casos famosos de líderes que preferiram matar o mensageiro a reconhecer os próprios erros. Em 335 a.C., o imperador persa Dario III, em guerra com Alexandre Magno, da Macedônia, ao ser alertado sobre os possíveis erros de sua estratégia pelo mercenário grego Charidemus, resolveu estrangulá-lo num ataque de fúria. Acabou derrotado. Também é famoso o caso do almirante inglês Clowdisley Shovell, que havia derrotado os franceses no Mediterrâneo e naufragou a sudoeste da Inglaterra, em meio a um nevoeiro, porque não quis reconhecer que seus cálculos de navegação estavam errados, perdendo cinco navios e dois mil homens. Preferiu enforcar o subalterno.
É mais ou menos o que está fazendo o presidente Jair Bolsonaro com o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Magnus Osório Galvão, a quem acusou de estar “a serviço de alguma ONG” por divulgar dados que mostram o grande aumento do desmatamento na Amazônia. Funcionário de carreira, com uma longa folha de serviços prestados, o pesquisador rebateu as acusações e reafirmou a veracidade dos dados sobre desmatamento divulgados pelo Inpe, cuja política de transparência permite o acesso completo aos dados e adota metodologia reconhecida internacionalmente.

De acordo com números divulgados pelo Inpe no início deste mês, o desmatamento na Amazônia Legal brasileira atingiu 920,4 km² em junho, um aumento de 88% em comparação com o mesmo período do ano passado. Áreas da Amazônia que deveriam ter “desmatamento zero” perderam território equivalente a seis cidades de São Paulo em três décadas. Fora das áreas protegidas, a Amazônia perdeu 39,8 milhões de hectares em 30 anos, o que representa 19% sobre toda a floresta natural não demarcada que existia em 1985, uma perda equivalente a 262 vezes a área do município de São Paulo. Nas áreas protegidas, a perda acumulada foi de 0,5%. É óbvio que a nova política para o meio ambiente já é um fracasso.

Houve protestos de instituições como a Academia Brasileira de Ciência e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “Críticas sem fundamento a uma instituição científica, que atua há cerca de 60 anos e com amplo reconhecimento no país e no exterior, são ofensivas, inaceitáveis e lesivas ao conhecimento científico”, diz a nota da SBPC. Segundo a entidade, dados podem ser questionados em bases científicas e não por motivações políticas e ideológicas.

Bolsonaro argumenta que, antes de divulgar dados sobre desmatamento no Brasil, o diretor do Inpe deveria, no mínimo, procurar o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, ao qual está subordinado, para informar antecipadamente o conteúdo que seria divulgado. Afirmou que está acostumado com “hierarquia e disciplina” e questionou a divulgação de dados sem seu prévio conhecimento. Segundo Bolsonaro, pode haver algum equívoco na divulgação das informações ambientais sem um crivo prévio do governo, sob o risco de “um enorme estrago para o Brasil”.

Políticas públicas e indicadores sobre a realidade brasileira, porém, devem ter transparência e serem acessíveis ao público, pois são elementos fundamentais para análises e pesquisas. O problema é outro. O presidente da República toma decisões na base do “achismo”, desconsiderando indicadores científicos, sem levar em conta que a inércia do erro num país de dimensões continentais como o Brasil, que tem uma escala muito grande, pode ser muito desastrosa.

É o que está acontecendo com o desmatamento, em razão do estímulo ao avanço do agronegócio em áreas de proteção ambiental e das medidas adotadas contra a política de fiscalização do Ibama. Os números divulgados pelo Inpe mostram o tamanho do estrago que o governo agora quer varrer para debaixo do tapete.

Na verdade, no Palácio do Planalto, enquanto sobram decisões intempestivas, falta planejamento. O mesmo fenômeno pode vir a ocorrer no trânsito, por exemplo, com as mudanças propostas em relação às multas — não vamos nem considerar as cadeirinhas de bebê e os cintos de segurança. O endurecimento das regras não ocorreu por acaso, mas em razão do impacto dos acidentes de trânsito nos indicadores de mortes violentas e nos custos do sistema de saúde pública.

O desmantelamento dos conselhos que subsidiavam as políticas públicas, a pretexto de enxugá-los e dar mais agilidade às decisões do governo, tem o objetivo de eliminar o contraditório na tomada de decisões. Entretanto, tende a aumentar a margem de erro e gerar contenciosos desnecessários com a sociedade, o que pode ter efeito exatamente ao contrário do objetivo de alcançar mais eficiência.
Luiz Carlos Azedo

Presidência da insanidade

Tem um insano no comando do país. Há um método instalado no poder central. Um método de discriminação, perseguição e preconceito. Um traço do discurso fascista é a identificação de inimigos para justificar suas próprias carências.
 

É preciso compreender que a visão expressada pelo presidente é perigosa para o Brasil. É uma coisa geral, que visa promover uma desorganização da política brasileira
Flávio Dino, governador do Maranhão

O passado incomoda Bolsonaro

Oficiais do Comando de Operações Especiais atravessaram a última semana tentando decifrar o significado de palavras ditas por Jair Bolsonaro durante uma celebração dessa unidade do Exército: “Feliz é o país que tem umas Forças Armadas e forças auxiliares comprometidas com a democracia, mesmo com sacrifício da própria vida ou com a destruição da própria reputação.” Como não explicou, oficiais não entenderam esse suicídio institucional.

A dúvida tem origem na ocasião do discurso, o 17º aniversário do Comando de Operações Especiais, criado em 27 de junho de 2002. Até então, existia um destacamento, cuja ação mais relevante ocorrera no Araguaia nos anos 70: o massacre de um grupo terrorista do PCdoB. Se era a isso que se referia, ele se tornou o primeiro presidente a reconhecer essa carnificina como devastadora para a imagem do Exército na ditadura.

Numa perspectiva benigna, pode-se tomar a retórica pelo que parece ser, a performance ilusionista de um personagem político cevado na banalização da violência e na louvação a ícones dos porões da ditadura — antítese do profissionalismo militar.

Convicto da caricatura política que criou e legitimou nas urnas, Bolsonaro parece ter esquecido quem é na vida real: “Deixei o Exército em 1988”, recordou no discurso, “e estou muito feliz com tudo aquilo que aconteceu, mesmo com algo um tanto quanto esquisito lá atrás.”

Esquisito, anormal, foi o comportamento do capitão Bolsonaro 32 anos atrás, ao se envolver num plano para explodir bombas em quartéis, como registram os arquivos do Exército e do Superior Tribunal Militar. O objetivo seria causar pânico para justificar um aumento de salário da tropa.

O Exército o prendeu e processou e até o impediu de receber o diploma de um curso, entregue em casa. Detalhes estarão disponíveis na próxima semana em livro do repórter Luiz Maklouf. O tribunal o considerou “não culpado” por formalidades.

Um dos juízes do STM, José Luiz Clerot, ponderou: “Nem cem punições a um oficial não chegam aos pés de uma só das violações éticas desse capitão Bolsonaro.”

O presidente tenta reescrever a própria história.

Cientistas questionam 'guru ambiental' de Bolsonaro que coloca Brasil como líder em preservação

"Somos o país que mais preserva o meio ambiente". A frase, dita por Jair Bolsonaro durante o Fórum Econômico Mundial, em janeiro, na Suíça, é repetida com frequência pelo presidente brasileiro quando fala sobre questões ambientais e constantemente ecoa nas vozes de seus ministros e filhos.

Embora dados oficiais mostrem que o desmatamento na Amazônia tem crescido desde 2012 e se intensificou neste ano, o Palácio do Planalto questiona a veracidade dos números e insiste que o Brasil é "exemplo de preservação" e "tem muito a ensinar" a outros países.

A ideia de que o Brasil lidera na preservação ambiental já foi defendida pelos ministros Ricardo Salles (Meio Ambiente), Onyx Lorenzoni (Casa Civil), Tereza Cristina (Agricultura) e Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional). O senador Flávio Bolsonaro, por sua vez, usou o argumento ao apresentar em abril um projeto de lei para acabar com a "reserva legal", área que os produtores rurais são obrigados a preservar dentro de suas propriedades, segundo o Código Florestal.

"Não é demais reafirmar que o Brasil é o país que mais preserva sua vegetação nativa e o produtor rural é personagem central desta preservação, ao bancar do próprio bolso a conservação de um quarto do território nacional", escreveu, na justifica da proposta.

Essa linha de que o Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente se baseia em números do agrônomo Evaristo Eduardo de Miranda, chefe da Embrapa Territorial, uma das unidades da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), estatal vinculada ao Ministério da Agricultura.

Miranda, que está na empresa há quase quarenta anos,foi chamado, após ter coordenado - durante a transição de governo - um grupo de trabalho sobre política ambiental, de "guru ambiental de Bolsonaro" pelo diretor de redação do programa Globo Rural, Bruno Blecher.

Sua tese do "Brasil líder em preservação" foi sintetizada no ano passado no livro Tons de Verde, editado com apoio de 15 instituições do agronegócio, segundo informações da Frente Parlamentar da Agropecuária, que realizou pré-lançamento da publicação.

Seus argumentos, porém, são contestados por cientistas, ambientalistas e enfrentam críticas também dentro da Embrapa. Um artigo publicado por autores brasileiros ano passado na revista Environmental Conservation, da universidade de Cambridge (Reino Unido), com o título "Os dados confirmam que Brasil lidera o mundo em preservação ambiental?", chama os números de Miranda de "estatísticas criativas", "influenciadas por uma narrativa ideológica que distorce a realidade ambiental brasileira".
Em seu livro, Miranda sustenta que áreas de mata nativa dentro de propriedades privadas somam 218 milhões de hectares e representam 25% do território do Brasil, fazendo do produtor rural a categoria que mais preserva no país. Sua equipe da Embrapa estimou em R$ 3,1 trilhões o capital imobilizado nessas áreas por não serem usadas para plantação ou criação de gado - e em R$ 20 bilhões o custo de sua preservação.

O cálculo da área preservada foi feito a partir do que os próprios proprietários declararam ao realizar o Cadastro Ambiental Rural (CAR), exigência do Código Florestal aprovada em 2012, que atualizou a legislação ambiental de 1965. A nova lei prevê que o dono de terras é obrigado a preservar parte da área de vegetação nativa em sua propriedade, o que se chama de "reserva legal". Na Amazônia, o percentual "reservado" éde 80% da propriedade, no cerrado é de 35% e nos demais biomas 20%.

O prazo para realizar o cadastro vencia em maio de 2015, mas vem sendo sucessivamente adiado, o que impede o avanço da etapa seguinte, de fiscalização e regularização dos que desmataram mais do que podiam. Depois de os ex-presidentes Dilma Rousseff e Michel Temer terem prorrogado o período de cadastro, Bolsonaro editou uma medida provisória em junho extinguindo o prazo, deixando produtores livres para cumprir essa exigência quando quiserem.

É justamente essa obrigação, o cadastro de reserva legal, que Flávio Bolsonaro quer acabar, citando em sua proposta os números de Miranda.

"O maior trabalho escravo da história do Brasil. Cinco milhões de pessoas obrigadas, sem ganhar nada, a fazer esse trabalho, sob coação, sob ameaça de perda de crédito", criticou Miranda, colocando a obrigação dos produtores de registrar suas propriedades como um encargo pior que mais de três séculos de trabalho forçado impostos aos negros no Brasil.

A fala pode ser vista em vídeo que já alcançou quase 300 mil visualizações do YouTube, registro de sua palestra no VI Fórum de Agricultura da América do Sul, há um ano, em Curitiba.

Ao somar os hectares que estariam preservados por produtores às áreas protegidas nas unidades de conservação, terras indígenas e porções de terras públicas devolutas ou de controle militar, sua equipe aponta que 66% do país é ocupado por florestas ou outros tipos de vegetação original, o que corresponde a 48 países da Europa.

"É um país que já resolveu todos os seus problemas de saneamento, de saúde, de infraestrutura... Como temos um fundo soberano que as nações invejam, a maior renda per capita do planeta, ah, vamos deixar três quartos (do país preservados) para ajudar o planeta. Dá 48 países da Europa", ironizou.

Ao dizer que o Brasil é líder em preservação, Miranda usa ainda um banco de dados gerenciado pela ONU, o World Database on Protected Areas, que compila áreas legalmente protegidas, para comparar o desempenho dos dez maiores países em extensão territorial.

Nessa comparação, o Brasil aparece no topo do ranking, com 29% de território protegido, considerando unidades de conservação e terras indígenas. A média dos outros nove (Austrália, China, Estados Unidos, Rússia, Canadá, Argentina, Argélia, Índia e Cazaquistão) fica em 10%.

Quando considerados todos os países do mundo, no entanto, o Brasil aparece acima da média mundial, mas atrás de mais de vinte nações, como Alemanha (38%), Grécia (35%), Nova Zelândia (32%), Venezuela (54%), Bolívia (30%) e Congo (41%).

Um dos críticos do chefe da Embrapa Territorial é o pesquisador da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Raoni Rajão, que tem artigos sobre preservação ambiental publicados com colegas nas principais revistas científicas mundiais, como a americana Science e a britânica Nature.

Ele também calcula que a cobertura de vegetação nativa no Brasil supere 60%, como aponta Miranda. Porém, na sua visão, esse índice isoladamente não atesta que o Brasil seja líder em preservação.

"Esse número não é alvo de controvérsia. O uso que é feito dele é que é controverso. A foto pode ser boa, mas o filme é muito ruim. O país está perdendo rapidamente sua riqueza (florestal)", critica Rajão.

"O que faz o Brasil ter 60% de floresta, e não 30% ou 40%, é que a entrada (mais intensificada) na Amazônia foi a partir da década de 70. Se for ver o percentual de floresta que tem em São Paulo, Santa Catarina, Paraná, vai ver que índice é menor que na França, na Alemanha", ressalta.

Gente fora do mapa

Lixão de Floresta (PE), a 430 km de Recife, aonde a fiscalização
encontrou menina de 12 anos recém-operada do coração convivendo com o lixo

O antiestadista

Costuma-se reservar a palavra “estadista” para designar líderes que se destacam dos demais políticos por enxergarem mais longe, serem capazes de elevar-se acima das divisões sectárias e fazer avançar agendas decisivas, que produzirão impactos positivos por décadas.

Jair Bolsonaro é o exato oposto disso. Ele não tem noção da estatura do cargo que ocupa, dedicando-se a questiúnculas que não deveriam chegar nem perto do gabinete presidencial, como o conteúdo de filmes que contam com financiamento público ou o número de pontos necessário para cassar a habilitação de motoristas. Pior, busca interferir nesses assuntos de forma personalista, com desprezo pelas instituições e contra consensos técnicos.


Bolsonaro também não desperdiça oportunidades de aprofundar as divisões políticas que tanto mal têm causado ao país. Ele abusa de pautas que não passam de nitroglicerina ideológica, investe contra governadores nordestinos e ataca, de forma pusilânime, desafetos e até profissionais que não corroborem suas singulares visões de mundo.

Não dá nem para afirmar que o presidente é sincero em suas convicções. Quando julga que há uma oportunidade para faturar, não hesita em renegar o discurso da véspera, como se viu no caso do acordo do Mercosul com a UE, duas entidades supranacionais, que foram demonizadas durante a campanha. Não estou reclamando. Seria pior se ele sempre levasse suas fantasias até o fim.

Mesmo quando seu governo tem êxitos a celebrar (e existem alguns), eles não raro foram objeto de sabotagem do próprio Bolsonaro, como vimos na reforma da Previdência —o que faz duvidar de sua inteligência.

Se não houver um desastre econômico, seguiremos nesse ritmo por mais três anos e meio. Podemos nos consolar com o fato de que colunistas brasileiros não enfrentamos o problema da falta de temas de política nacional que atormenta nossos homólogos suíços e noruegueses.

Hélio Schwartsman

Nossas instituições e sua circunstância

No primeiro debate entre os 20 concorrentes à indicação para candidato a presidente pelo Partido Democrata nos EUA o principal “argumento de venda” foi apresentar-se como quem conseguiu o maior numero de contribuições abaixo de US$ 200 e recusou mais doações milionárias. Está aí um exemplo de como a boa regra induz o bom comportamento. Naquele país a única que existe para financiamento de campanhas é que os concorrentes estão obrigados a declarar cada contribuição recebida no prazo de cinco dias. Cabe ao eleitor avaliar se elas o comprometem ou não. Aqui onde preferimos que o estado fiscalize tudo, inclusive a si mesmo, a perspectiva mais palpavel é que na próxima eleição nos seja arrancado mais que o dobro do que nos foi arrancado na última, que cada partido receba seu quinhão segundo o desempenho na eleição anterior e não pelo que tiver feito de bom ou de ruim com o mandato recebido, e que jamais saibamos quem, dentro deles, ficou com quanto desse dinheiro.

As instituições, como as pessoas, são elas e sua circunstância. Não é atoa que a expressão que define a ordem institucional democrática é checks and balances, “freios e contrapesos”. Cada instituição só produz o efeito desejado quando referida a todas as outras. Tomadas isoladamente ou encaixadas num contexto pervertido, elas quase sempre produzem o efeito inverso do que se propõem.

No estado democrático de direito “todo poder emana do povo” e toda lei só se torna lei mediante o seu consentimento explícito. O primeiro direito que condiciona todos os outros é, portanto, o do eleitor livrar-se na hora do representante que só age em prol de si mesmo. E para que isso seja possivel é preciso, primeiro, que o sistema eleitoral permita saber exatamente quem é o representante de quem e que os representados, e não os representantes, tenham a prerrogativa exclusiva de acionar os instrumentos de força criados para constrange-los a lhes ser fiéis. Inverter essa hierarquia é inverter toda a cadeia das lealdades. Nada é “consertável” no Brasil antes que consertemos isso.

São as circunstâncias reais e não a teoria que põem o corte de um lado ou do outro da lâmina de cada instituição. Afirmar como “óbvio” na ordem institucional brasileira onde o estado tem todas as prerrogativas e o cidadão nenhuma, o que é óbvio na ordem institucional americana onde se dá exatamente o contrário é manter o país no beco sem saída dos falsos silogismos em que andamos perdendo sangue, suor e lágrimas ha 519 anos.


Assumir que a decisão monocrática do sr. Toffoli é desinteressada, nada tem a ver com Flávio Bolsonaro e nem tira da porta da cadeia e põe na da rua todos os criminosos com e sem mandato mais perigosos da república é tão falso quanto negar que o sigilo bancário (até dos agentes do estado) é um direito que deve ser protegido em princípio … se todas as outras instituições estiverem estruturadas para manter o estado nas mãos dos cidadãos e não o contrário.

Se, por exemplo, os promotores públicos, aqui como lá, fossem eleitos pelo povo e não nomeados pelos políticos que têm por função fiscalizar e contra cujos poderes têm obrigação de nos defender; se os juízes passassem por eleições periódicas de confirmação; se tivéssemos os direitos à retomada de mandatos e ao referendo do que vem dos legislativos é provável que não nos ocorresse considerar uma lei específica de abuso de autoridade. Mas sem a ancoragem de tudo à palavra final do eleitor e com todo cargo ou emprego público sacramentado como um “direito adquirido” inalienável, é certo que até a lei de abuso que vier será usada seletivamente, como todas as outras, na defesa de privilégios contra qualquer tentativa de eliminá-los.

O trabalho jornalístico que não parte desta que é a nossa realidade, esta sim pra lá de óbvia, já começa falso. A justificativa do instituto do sigilo da fonte, por exemplo, é sacrificar a transparência da informação em nome do valor mais alto do aperfeiçoamento da democracia, a primeira e inegociável razão de existir da imprensa democrática. Mas publicar como se fosse produto de jornalismo investigativo os grampos e dossiês que as partes que disputam o poder livres de qualquer compromisso exigível pelos eleitores atiram umas contra as outras e manter anônima a fonte, quando não é um ato de cumplicidade é um convite para o aparelhamento do jornalismo.

A virtude sempre precisou de incentivos. A boa regra para estes tempos em que o crime especializou-se em usar em vez de fugir da imprensa e da lei, seria a do full disclosure ou “transparência absoluta” nas redações. O jornalista que exige que servidores em atividade, como Deltan Dallagnol, sejam obrigados a relatar as palestras que fazem indicando quem pagou por elas e quanto além das atividades conflituosas de suas esposas e parentes próximos, não terá nenhuma dificuldade de entender a importância do full disclosure, não só das peças de “jornalismo de acesso” onde saber de onde vêm os tiros contribui muito mais para o aperfeiçoamento da democracia que o apedrejamento do alvo visado, mas até de contemplar a criação de uma versão doméstica da lei anti-nepotismo.

Não ha conflito obrigatório no fato de jornalistas com cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até o terceiro grau assalariados ou detentores de privilégios concedidos pelo estado participarem da cobertura da guerra do Brasil plebeu contra a privilegiatura. Mas a obrigação de declará-lo sob o hiperlink de cada assinatura certamente os incentivaria a ser mais equilibrados no direcionamento das suas investigações além de ter um efeito fulminante contra a instrumentalização anônima da arma da imprensa.

Os destinos do jornalismo e da democracia sempre estiveram amarrados. O choque de transparência, para além de distingui-lo definitivamente da luta pelo poder e da guerra suja da internet teria para a qualidade do jornalismo e da democracia brasileiros um efeito restaurador.

Fogueira messiânica

Como acredita ser um enviado de Deus, certamente vai continuar se comportando assim, e trilhando o caminho para o hospital psiquiátrico mais próximo. Como se diz na Química, o atual presidente é autocarburante, pega fogo sozinho. Sua derrocada é só questão de tempo
Carlos Newton

Não foi só o Trump

Não foi só o Trump nem a combinação do Brexit com sua vitória eleitoral em 2016. Ao contrário do que muitos ainda pensam, o populismo nacionalista ressurgente começou a despontar nos países avançados — e em seguida em um punhado de países emergentes — logo após a crise financeira de 2008. É isso que mostra pesquisa recente concluída por mim e coautores, prestes a ser publicada pelo Peterson Institute for International Economics, após o processo habitual de peer review.


Nós examinamos 55 plataformas políticas de todos os países do G20 antes e depois da crise de 2008. Criamos metodologia para codificar e atribuir notas de 1 a 5 para diferentes aspectos do nacionalismo econômico que desponta como pilar do populismo nacionalista que hoje enfrentamos pelo mundo. Dividimos o nacionalismo econômico em sete dimensões de política econômica: a política industrial, a política comercial, a política em relação ao investimento externo, a política migratória, a política macroeconômica, a política em relação às instituições multilaterais e a política em relação à concorrência. Cada uma dessas dimensões recebeu nota no documento do partido político analisado: a nota 1 refletia a inclinação liberal no sentido clássico do termo; já a nota 5 refletia o grau máximo de nacionalismo justificado por casos históricos, como o nazismo dos anos 30 ou o fascismo nacionalista na Itália e na Espanha. Analisamos todos os partidos que haviam recebido mais de 10% dos votos nas eleições gerais mais próximas anteriores à crise de 2008 e nas eleições mais recentes.

A primeira constatação interessante é que, tanto nos países avançados quanto nos emergentes, os partidos que não tinham relevância ou que não existiam antes da crise, são, de um modo geral, mais extremistas — muitos são mais nacionalistas, outros têm claro viés estatizante. Portanto, as plataformas políticas desses “novos” atores no quadro político de cada país refletem nitidamente a aglutinação nos extremos que caracteriza esta era de polarização. Como disse anteriormente, essa revelação é generalizada, não se restringe à reinvenção do Partido Republicano nos Estados Unidos, tampouco ao Ukip defensor do Brexit na Grã-Bretanha. Há novos nacionalistas no México, na Índia, na Coreia do Sul, por exemplo.

O PSL de Jair Bolsonaro é difícil de codificar, pois a plataforma de 2018 não contém informações suficientes, mostrando o que já sabíamos: o partido que venceu as eleições não tinha propostas claras ou bem delineadas para nada. Não à toa vemos o protagonismo do Congresso preenchendo esse vácuo. Tal protagonismo é bem-vindo. A segunda constatação é que a crise financeira de 2008 pode, de fato, ter servido como um divisor de águas importante. Quando consideramos as plataformas políticas antes da crise, havia claramente posicionamentos mais à esquerda ou mais à direita, mas o nacionalismo não era tão evidente. Quando constatávamos nacionalismo, ele aparecia de forma meio encabulada, quase pedindo perdão por ali estar.

As plataformas mais recentes demonstram orgulho em ser nacionalistas, escancaram essa postura sem qualquer pudor. Nossa metodologia foi capaz de captar isso com clareza, além de demonstrar quão abrangente é a tendência. E, igualmente importante, embora muito do nacionalismo de hoje esteja identificado com partidos de extrema-direita, há partidos de esquerda que também o abraçaram.

A terceira constatação é que o nacionalismo é contagiante. Ele se espalha de um país para o outro como uma epidemia — ou como uma crise financeira. Países não são nacionalistas individualmente. O discurso de que o estrangeiro deve ser visto com desconfiança — seja o estrangeiro as empresas, os imigrantes, as instituições — tem fortíssimo apelo emocional e, por conseguinte, político. Os partidos são o fio que conduz esses sentimentos mais descarados do eleitor. Será muito interessante ver como isso haverá de se refletir nas próximas eleições, sobretudo nas eleições para presidente aqui nos EUA. Já se veem dos dois lados do espectro ideológico os sinais do nacionalismo destemido. Ele aparece tanto em Trump quanto nas propostas da senadora democrata Elizabeth Warren, uma das primeiras colocadas nas pesquisas.

O Brasil que tanto já sofreu com os desmandos nacionalistas escapará dessas tendências? O Brasil do Congresso na liderança e de Rodrigo Maia como capitão das reformas conseguirá resistir ao apelo? De um lado, nossos problemas são grandes demais, urgentes demais, para que possamos nos permitir tirar os olhos do que é preciso fazer. De outro, é justamente da frustração que nasce o populismo nacionalista mais estridente. Os perigos estão aí. Basta prestar atenção no presidente e em seu entorno, filhos incluídos.
Monica de Bolle