segunda-feira, 27 de abril de 2020

Novos túmulos no Brasil retratam o impacto da pandemia

Antes mesmo do coronavírus, era difícil conseguir um emprego com bom salário no Brasil. Por isso Rodrigo, de 35 anos, pode se considerar um homem de sorte. Ele é um dos 220 coveiros recém-contratados pelo maior cemitério da América Latina, o de Vila Formosa, em São Paulo. A crise da Covid-19 obrigou o estabelecimento a buscar mais funcionários para a função, já que a maioria dos seus coveiros estava no grupo de risco por causa da idade e foi enviada para casa. Seu contrato é de seis meses, e dos mais cobiçados, com contribuição previdenciária. O número de enterros aumentou 20% com a pandemia, diz um empregado com anos de ofício. Ele pede anonimato porque não tem autorização para falar com a imprensa. “Antes havia cerca de 40 enterros por dia, agora chegam a 52”, afirma.

Todos os países têm problemas de subnotificação de casos, mas existe o temor de que a questão no Brasil seja muito mais grave. O problema da saturação nos hospitais e necrotérios, as 13.000 valas adicionais anunciadas por Bruno Covas, prefeito de São Paulo, e os poucos testes realizados indicam que o impacto da epidemia é muito maior que o retratado pelas cifras oficiais. As autoridades confirmaram 4.205 mortes (40% delas na última semana) e mais de 61.000 contágios. Os casos de milhares de hospitalizados com síndrome respiratória aguda nas últimas semanas ainda precisam ser investigados.


Domingos Alves, professor de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto, explica que, além das cifras do Ministério da Saúde, ele analisa registros de cartórios relativos a pessoas falecidas com insuficiência respiratória e pneumonia através do portal de transparência. “As discrepâncias podem chegar a ser o dobro ou o triplo em alguns municípios”, adverte. Os casos reais podem ser 12 vezes mais que os contabilizados, segundo estimativas de um recente relatório de um consórcio de universidades e institutos de pesquisa.

O professor Alves salienta que o Brasil é tão enorme e tão desigual que inclui dinâmicas diferentes, porque nem sequer a qualidade do SUS (Sistema Único de Saúde), que atende os 210 milhões de habitantes, é homogênea. Os especialistas como ele estão surpresos com os altos índices de casos e mortes em cidades como Fortaleza, Manaus e Macapá, a milhares de quilômetros das maiores urbes, mas cujo sistema de saúde é mais frágil. Alves aponta um segundo fenômeno preocupante. Os contágios se distribuem de maneira mais igualitária que as mortes. Em São Paulo e no Rio, as mais afetadas e onde a doença chegou pelas classes altas, “estamos vendo que esta epidemia tem uma taxa de letalidade maior para as classes com mais problemas sociais e em faixas etárias mais jovens”, observa Alves.

Com 407 novas mortes, a quinta-feira passada foi o dia mais letal desde o primeiro contágio, há oito semanas. Silvana Alves Bezerra, de 56 anos, espera com outros parentes, na entrada do cemitério, a chegada do caixão lacrado com seu irmão, que morreu na véspera, após 14 dias internado. Sabem que contraiu a covid-19. “O resultado só saiu ontem (na quarta-feira). Mas, quando chegou, ele já tinha nos deixado. Essas análises são muito lentas”, lamenta.

Conhecer seu diagnóstico ajudará os epidemiologistas a calibrarem a epidemia, mas para a família significa um velório expresso. Pouco mais. Os próximos de Alves Bezerra acabam de ser informados que só poderão velá-lo por 10 minutos. Será enterrado pelos coveiros de macacão branco que atendem os casos confirmados e suspeitos.

O cemitério da Vila Formosa foi dos primeiros em ampliarem sua capacidade por causa da pandemia. Os coveiros abriram na última semana 600 novas sepulturas nesta terra avermelhada que é o descanso final de 1,5 milhão de falecidos. Logo se somarão 13.000 sepulturas a mais nos cemitérios municipais, conforme anunciou o prefeito de São Paulo, Bruno Covas, porque “o pior está por vir”. Não quer que se repitam as cenas do Equador ou Nova York.

Manaus, a maior cidade da Amazônia, onde as UTIs já estão saturadas, começou a fazer sepulturas coletivas. E comandantes militares estão perguntando oficialmente sobre a capacidade de enfrentar enterros maciços. “Se o Exército pergunta isso é porque está fazendo uma análise estatística quanto à possibilidade de que haja um caos na saúde pública”, advertiu o prefeito aos seus cidadãos, revelando o pedido em um vídeo a seus moradores para insistir na importância do confinamento.

O novo ministro da Saúde, Nelson Teich, diz desconhecer se o incremento dos últimos dias significa que os contágios aceleraram ou se é resultado de casos antigos que estavam na fila para serem testados. As autoridade sanitárias tardaram em conseguir comprar os testes, mas agora a capacidade de processá-los é insuficiente e a logística para recoletar e analisar amostras é complexa. Alves considera “temerário” que alguns Estados e municípios estejam relaxando as medidas de contenção “sem ter uma gestão adequada dos dados”. Ainda que todas as escolas continuem fechadas, algumas cidades, como Florianópolis, abriram até shopping centers.

A roupa branca de Paulo Guedes

A enxurrada de notícias ruins dos últimos dias não deveria ser outra coisa senão as ações e paixões dos seres humanos na vida em sociedade. Os costumes políticos são impostos por homens com garras. As regras, boa palavra, nunca foram entre nós o ponto de partida. Quem quiser entender nossa história procure com afinco personagens do passado. Os dos últimos dias não nos ensinam muita coisa, salvo a má fisionomia do espírito de nosso tempo adoecido.

Da queda de Mandetta por nada, apenas por defender a saúde, à delação premiada de Moro por sentir que tudo conspirava contra a justiça, à eficiência surpreendente de Aras como se tivesse familiarizado com o bater do relógio, tudo é tão incompreensível como a passividade de viuvez indiana da camisa branca de Guedes. Mas reunir todos os ministros para justificar a demissão de um é declarar guerra à credibilidade de sua própria decisão.


O presidente deve achar que a raiva é um veneno que mata o outro. Não, a raiva é um sintoma, um monstro cheio de olhos que o discurso presidencial revela. Primeiro pela plástica do palanque, um sinal de desespero pela verdadeira aglomeração sem etiqueta ou protocolo. Um comichão que tenta ser autêntico, mas francamente não é sofrido. A voz parece cheia de poder, mas para quem sabe que o poder já é uma taça vazia.

Como ninguém pode viver no passado o discurso, no entanto pode. É repetitivo ver discurso oficial de presidentes brasileiros, um dos países mais ricos do mundo, tentar ser intimista e não significar nada para nosso povo. Parecem ser discursos de encomenda, na maioria das vezes para amigos. Mas ver um presidente chamar filho por número é a primeira vez. E não se encaixa no sistema de potências que tanto orgulha nossas Forças Armadas.

Os militares brasileiros são intelectuais, estrategistas, seu Alto Comando e hierarquia é sofisticado e sabem bem que nenhuma camaradagem populista inspira reverência no mundo civilizado. Vira piada de salão. O que temo é o mais perfeito cenário de penumbra, medo e frio neste início de inverno.

Por último, mas não menos importante, se quer ser ouvido é preciso mandar parar imediatamente com a ideia de Brasil 30 anos ou, seja lá como chamam tal disparate. O estrangulamento externo, a recessão interna, a pandemia e o ambiente político de conflito exigem sim mudança temporária na gestão da economia na crise, mas não mudança de filosofia da economia a longo prazo.

Ora, não é o modelo econômico que o vírus contaminou. O apetite do mundo para gastos emergenciais é uma realidade aceita e não precisa de muitos discursos para colocá-la em vigor. Se as conexões do governo com o mundo econômico são fracas é um agravante pior inventar um plano econômico sem a equipe econômica presente.

Aviso ao Palácio. O que vai acontecer é que ninguém vai ajudar ao Brasil a se salvar se a política econômica emergencial não tiver relação com a pandemia. Foram importantes os 600 reais. Porém, para não precisar de mais é urgente ajudar os empresários brasileiros a manter de pé seus negócios. Só o fato de querer impor ao país qualquer coisa para daqui a 30 anos justifica Guedes ser o único de branco e máscara naquela foto.

Não é ‘esculacho’, é a lei

No início do mês passado, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) requereu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) a suspensão das investigações sobre a prática de “rachadinha” em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Para relembrar o caso: em dezembro de 2018, o Estado revelou que um relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) apontou movimentação financeira “atípica” nas contas bancárias de Fabrício Queiroz, amigo da família Bolsonaro e ex-assessor do filho mais velho do presidente da República quando o chamado “01” era deputado estadual no Rio. Para o Ministério Público Estadual, Queiroz gerenciava um esquema urdido no gabinete do então deputado Flávio Bolsonaro para confiscar parte dos salários dos servidores, a tal “rachadinha”, espécie de pedágio a ser pago pelas nomeações.


Desde que o País tomou conhecimento da escandalosa prática, há quase um ano e meio, esta foi a nona vez que Flávio Bolsonaro tentou impedir o avanço das investigações do chamado Caso Queiroz, que, em última análise, o afetam diretamente. Não obstante algumas decisões que lhe foram favoráveis no período, para o bem do decoro parlamentar, da moralidade pública e do viço da democracia representativa, as investidas do senador para obstar o devido esclarecimento de tão graves suspeitas não têm encontrado guarida no Poder Judiciário.

No dia 17 passado, o ministro Félix Fischer, do STJ, rejeitou novo recurso impetrado pela defesa do senador Flávio Bolsonaro contra uma decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que reconhecera a legalidade da quebra de seus sigilos fiscal e bancário de janeiro de 2007 a dezembro de 2018. No entender do ministro Fischer, as investigações sobre o esquema da “rachadinha” devem prosseguir porque estão sustentadas por “fortes indícios de autoria e materialidade” na formação do que o magistrado chamou de “grande associação criminosa”. Não há mais dúvida de que houve a prática de “rachadinha”. No entanto, é de grande interesse público que as investigações sobre o Caso Queiroz avancem para que à sociedade seja dado conhecer quem foram os grandes beneficiários de um esquema fraudulento que a um só tempo subverteu o bom uso dos recursos públicos e amesquinhou a atividade parlamentar.

Segundo a defesa do senador Flávio Bolsonaro, as investigações deveriam ser sustadas porque “houve inobservância da formalidade exigida (na quebra dos sigilos do senador) por recente julgado do Supremo Tribunal Federal, em razão de uma suposta troca de e-mails entre o Coaf e o Ministério Público Estadual”, que teria tido acesso às informações fiscais e bancárias do senador por meio ilegal. Em parecer enviado ao STJ, o subprocurador-geral da República Roberto Luís Thomé alegou que “não houve qualquer devassa indiscriminada” na vida financeira de Flávio Bolsonaro, cuja análise se limitou ao período em que o agora senador exercia mandato de deputado estadual.

O ministro Félix Fischer acolheu os argumentos do Ministério Público Federal, julgando ser “distorcida a afirmação de que o Ministério Público requereu, sem autorização judicial, informações sobre todas transações bancárias dos investigados por uma década”. No entender do magistrado, “a pesquisa solicitada estava relacionada apenas às movimentações suspeitas, e não a todas movimentações financeiras e fiscais dos investigados”. Melhor assim.

O pai de Flávio Bolsonaro é uma das mais estridentes vozes a vituperar contra a chamada “velha política”. O filho, portanto, deveria ouvi-lo e torcer pelo pronto esclarecimento do Caso Queiroz, haja vista que poucas práticas caracterizam melhor a “velha política” do que a tal da “rachadinha”. Mas isso, evidentemente, não irá acontecer. O presidente Jair Bolsonaro vê as investigações não como ritos previstos em lei, mas como um “esculacho em cima” de seu filho. O senador, por sua vez, aferrou-se à tese do “complô” contra o pai por trás dessas investigações. A Nação conta com a Justiça para impedir que “esculachados” sejam a moralidade pública e o primado da igualdade de todos perante a lei.

Desigualdade, vírus da segunda onda

Empregos informais e instáveis, muitos deles dependentes do movimento das ruas; crianças e adolescentes dependentes da merenda escolar para assegurar uma refeição diária e saudável; saneamento básico deficitário, com acesso intermitente à água corrente; condições precárias de habitação, que abrigam famílias numerosas em espaços reduzidos. A desigualdade endêmica do nosso país será o verdadeiro vírus a atingir a “segunda onda” de infecção, a da economia global e sua imediata consequência, o crescimento da miséria e da fome no mundo.

Vale recordar que a desigualdade social no Brasil é estrutural. Lembremos que, em 1974, ao criticar as políticas praticadas pela ditadura militar, o economista Edmar Bacha se referia à “Belíndia” como um país dividido entre os que moravam em condições similares à Bélgica e aqueles que tinham o padrão de vida da Índia. Tal desigualdade brasileira, estabilizada em nível tão alto, se explica pela alta e histórica concentração de riqueza, especialmente do patrimônio imobiliário, pela falta de um imposto mais taxativo para herança, especificamente a da propriedade de terra rural que é extremamente concentrada.

No início do novo milênio, milhões de brasileiros conseguiram se ver livres da fome e da pobreza extrema - em menos de 10 anos. Isso só foi possível graças à implementação de uma política de segurança alimentar e programas de transferência de renda - aliados à iniciativas de fortalecimento da agricultura familiar, de acesso à alimentos e de articulação e mobilização social - a partir do primeiro governo Lula da Silva.


Infelizmente, a partir da década passada, com o acirramento da crise econômica e a desaceleração dos investimentos sociais, a pobreza no Brasil voltou a ter aumento significativo. Segundo relatório do Banco Mundial do ano passado, quase 21% da população brasileira vivia em situação de pobreza entre 2014 e 2017, contra 17,9% daqueles registrados em 2014. No mais, segundo a Pesquisa Nacional de Domicílios (Pnad) do IBGE, a desigualdade dos rendimentos autodeclarados entre 2012 e 2018 cresceu significativamente a partir de 2016 até 2018.

O contínuo crescimento do desemprego e a redução das transferências de renda a partir de 2015 acarretaram também o empobrecimento da classe média, incluindo a parcela significativa de pessoas que haviam ascendido socialmente durante os dois governos do ex-presidente Lula, como mostrou o Panorama Econômico da Cepal de 2019. Agora, a necessidade emergencial de se implementar programas de renda para milhões de brasileiros durante três meses em meio à epidemia apenas expõe a frágil política de empregos no Brasil, que desprezou a geração de postos de trabalho com carteira assinada e com direitos mais estáveis.

A desigualdade em tempos de covid-19 também se reflete na própria exposição à doença. De acordo com o estudo “Covid-19 e desigualdade: a distribuição dos fatores de risco no Brasil”, de Luiza Pires, Laura Carvalho e Laura Xavier, “a incidência de comorbidades - doenças crônicas associadas aos casos mais graves da covid-19 - é muito maior entre os brasileiros que só frequentaram o ensino fundamental do que nos demais grupos: 42%, ante 33% na média da população. Tais achados estão em linha com estudos anteriores, que encontraram, por exemplo, uma maior incidência de diabetes entre os mais pobres no Brasil e no mundo”.

Como se sabe, a diabetes, além da hipertensão e das doenças do coração, é uma das principais consequências da obesidade para a saúde. E a obesidade, assim como a fome, são faces da mesma moeda: a falta de renda para se ter acesso a uma alimentação adequada, saudável e de qualidade de forma constante. Segundo dados de 2018 do Ministério da Saúde, 1 em cada 5 brasileiros é obeso, sendo 55% homens e 45% mulheres.

Fato é que a covid-19 escancarou a negligência dos últimos governos brasileiros em combater nossa endêmica desigualdade. E isso tem relação íntima com a desidratação da coordenação das políticas de segurança alimentar, exemplificadas pela dissolução do Consea, pelo enxugamento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e pela ameaça de privatizar a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Esse desmonte já vinha se refletindo num aumento da insegurança alimentar da população mais carente, principalmente no Norte e Nordeste, mas a pandemia possivelmente tornará todas as regiões brasileiras mais vulneráveis à fome.

Há, ainda, dimensões significativas e ainda pouco ou mal equacionadas. A covid-19 expõe uma crescente dificuldade de os agricultores familiares entregarem seus produtos. Há um corte nos canais de abastecimento dos produtos frescos, pois feiras livres e mercados diretos foram reduzidos em meio ao controle social. Já há relatos de agricultores sendo obrigados a desperdiçar frutas, legumes e verduras, sem contar outros alimentos perecíveis, como o leite. Sem apoio para o escoamento, podemos testemunhar uma total desarticulação da pequena produção familiar, o que é muito preocupante: são eles que provêm grande parte dos alimentos que consumimos nas cidades.

E o que fazer para se evitar isso?

O mais importante é combater e proibir a especulação no preço dos produtos alimentícios. Temos de evitar o pânico generalizado das pessoas que vão às compras: elas não podem formar estoques de comida, como fizeram com as máscaras e o álcool-gel, senão o sistema de fornecimento de alimentos não vai resistir. Precisamos de um controle da especulação por meio de organismos de defesa do consumidor, de fiscalização de preços.

Já está ocorrendo algo do gênero com o feijão. Estamos em plena safra e o preço disparou, não há nenhuma razão para tal. O governo tomou uma medida importante nessa linha em relação aos produtos farmacêuticos. Deveria agir da mesma forma em relação aos produtos da cesta básica. Não se trata de congelamento de preços, mas de acompanhar, fiscalizar, inspecionar.

Também é fundamental fazer da cidade o centro da política de segurança alimentar nessa pandemia. Temos de fortalecer ações em nível local: é ali que as pessoas estão confinadas, onde moram e onde têm de comer. Há uma série de medidas e programas específicos para fortalecer seu papel no abastecimento alimentar, e elas têm de ser colocadas em prática.

José Graziano da Silva

E o Brasil se pergunta


O trilema da hora

A crise tríplice que o país enfrenta — sanitária, econômica e política — foi agravada pela demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, que deixou o cargo atirando contra o presidente Jair Bolsonaro, ao contrário de Luiz Henrique Mandetta, que deixou a Saúde sem confrontar o governo na política, apenas sustentando suas posições em relação ao distanciamento social que havia adotado contra a epidemia de coronavírus. A troca de acusações entre Bolsonaro e Moro deixa o país à beira da crise político-institucional. Diante da gravidade das acusações do ex-ministro da Justiça, não há como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) não investigá-las, com consequências imprevisíveis, se os fatos forem confirmados.

Moro acusou Bolsonaro de tentar transformar a Polícia Federal numa polícia política, quando sabemos que ela é uma instituição de Estado, técnica e judiciária, apesar de subordinada administrativamente ao Executivo. A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinando que os delegados encarregados do inquérito que apura as fake news sejam mantidos em suas funções foi um recado claro de que não poderá haver interferência de Bolsonaro no caso. Por outro lado, nos bastidores de Congresso, é dada como certa a abertura de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar as denúncias de Moro.

Estamos diante de um trilema: superar o conflito político entre Bolsonaro e os demais poderes e instâncias de governo; afastar o presidente da República por crime de responsabilidade ou derivar para um governo autoritário, que se impõe aos demais poderes à moda Fujimori (Peru) ou Chávez (Venezuela). Cada vez mais o governo Bolsonaro adquire características de um governo militar, de viés bonapartista, seja pela sua composição, seja pelas concepções que orientam sua ação.


A separação entre os militares que fazem parte do estado-maior da presidência, alguns dos quais ainda na ativa, e os comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, que seria uma linha divisória entre um governo civil e as Forças Armadas, está sendo rompida pelo próprio presidente da República. Isso ocorre quando Bolsonaro vai a uma manifestação que pede a intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo e não critica seus organizadores, muito pelo contrário (o que estão sendo investigados pelo Supremo a pedido do Ministério Público Federal, ou quando o presidente da República diz publicamente que se relaciona diretamente com os comandantes militares, em qualquer nível, sem consultar nem acionar o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva.

No confronto com Moro, que se exonerou por esta razão, Bolsonaro disse que não abre mão de nomear o diretor-geral da Polícia Federal nem dele obter informações sobre investigações criminais e os relatórios de inteligência, o que já acontecia no caso da Agência Brasileira de Informações (Abin), subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Tanto que o diretor da agência, delegado Alexandre Ramagem, deve assumir a diretoria-geral da PF, no lugar do delegado Maurício Valeixo. Há uma evidente contradição entre as regras do jogo democrático, que asseguram aos delegados federais presidirem os inquéritos com autonomia, e o tipo de relacionamento que Bolsonaro pretende manter com o diretor-geral e seus superintendentes regionais.

A saída de Moro do governo, além de enfraquecer Bolsonaro, contribuiu para a radicalização do cenário político, com a ampliação do movimento que deseja seu impeachment antes mesmo de que os fatos denunciados sejam investigados. Esse cenário altera a situação de empate que havia se estabelecido entre governo e oposição, no qual o espaço de disputa política era institucional, principalmente o Congresso. Agora, a disputa pode transbordar para as ruas, mesmo em tempo de coronavírus, como sempre desejou o próprio Bolsonaro. É um quadro perigoso, porque opõe, de um lado, os partidos e movimentos de esquerda, e de outro, apoiadores fanáticos de Bolsonaro, muitos dos quais truculentos e portadores de arma de fogo. A maioria mesmo prefere bater panelas nas janelas contra ou, eventualmente, a favor do governo.

A epidemia de coronavírus e a recessão econômica potencializam a crise política. O isolamento social para refrear a epidemia sofre um cerco em pinça para ser relaxado, patrocinado por Bolsonaro, de empresários cujas atividades foram fortemente atingidas, principalmente no comércio e nos serviços, e grande massa de trabalhadores informais e pequenos empreendedores, que perderam as fontes de renda. Ainda que o auxílio do governo de R$ 600 e outras transferências de renda sirvam para mitigar a falta de recursos da população mais pobre, essa pressão aumenta contra governadores e prefeitos. Com o passar do tempo, provoca maior movimentação nas ruas. Resultado: mais mortes e estresse do Sistema Público de Saúde (SUS).

Do ponto de vista da recessão econômica, o grande ponto de interrogação é o choque entre a equipe do titular da Economia, Paulo Guedes, e os ministros, principalmente os militares, que defendem um programa desenvolvimentista. Diante da epidemia e da recessão, as reformas de Guedes, centradas na busca do equilíbrio fiscal, perderam viabilidade a curto prazo. Entretanto, a alternativa discutida no estado-maior de Bolsonaro não é apenas emergencial, tem caráter estratégico, com orientação nacional-desenvolvimentista que lembra o governo Geisel, no regime militar. Nesse cenário, Bolsonaro está diante de uma nova escolha de Sofia. Guedes é o nome da próxima crise na Esplanada.

Vírus ressuscita autoritarismo

A pandemia é uma tentação autoritária que convida à repressão, à vigilância totalitária baseada em dados digitais, à regressão nacionalista
Carolin Emcke, Prêmio da Paz da Feira do Livro de Frankfurt

AI-5. É isso mesmo?

Você quer mesmo a volta do AI-5? Você, de fato, deseja o fechamento do Congresso Nacional? Você tem certeza de que o melhor para você e para o país será acabar com o Supremo Tribunal Federal? Você tem certeza? É isso mesmo o que você quer? Pois se é, bom, saiba que o que você deseja e quer muito já aconteceu um dia.

Por causa desse tal AI-5, que você diz amar, eu e meu pai fomos presos. Sabe por quê? Você não acreditaria! Garanto. Meu pai e eu fomos presos naquela época porque a gente se sentia como você se sente agora. Não com relação ao AI-5, mas com relação aos governos da época. A gente não gostava muito deles e resolveu dizer isso, como você faz agora com relação ao Congresso e ao Supremo. Fomos em cana. Sabe por quê? Porque instrumentos como o AI-5 foram criados para prender, torturar e até matar as pessoas que não pensam igualzinho ao ditador de plantão.

Ah!, mas você viveu naquele tempo e não foi preso? Sorte sua. Porque discordar e não ser preso ou morto era só questão de sorte ou de ser amigo do “rei”.


Eu estava no Congresso Nacional quando o ditador mandou fechá-lo. Eu já estava na política, desde muito novo e pela oposição, quando cassaram ministros do Supremo Tribunal Federal e garanto a você, não foi nada bom o que eu vivi naquele tempo: gente que eu gostava, admirava e até líderes que me inspiravam, como foi o caso de Juscelino Kubitschek, que sofreu horrores, vítima de processos imorais que não davam a mínima para essas coisas de amplo direito de defesa. Carlos Lacerda também.

Você deve se lembrar deles, a história é recente. E olha que o Carlos Lacerda pensava como você pensa agora, sabia? Acreditava que a intervenção militar seria coisa passageira, uma ajudinha só para alinhar as eleições. Morreu frustrado. E tinha aqueles que conseguiam enxergar o que de fato acontecia e tentavam contar a história correta mas foram calados pelos porões. Eram os brilhantes jornalistas com suas veias investigativas, questionadoras e inquietas, que, ao invés de serem criticados como podem ser hoje em dia, eram simplesmente apagados.

Você está contrariado com o Congresso Nacional e com o STF porque gosta do presidente da República, que você escolheu? Você está com raiva, em revolta e por isso defende o AI-5? Digamos que você consiga conquistar o que você quer. Como será quando a raiva passar? Você já pensou nisso? Você estará num país onde a raiva e o simples pensar diferente será duramente punido, com prisão, tortura e morte.

Então, minha amiga, meu amigo, vote e vote sempre. Coloque toda a sua revolta e sua raiva no voto, mas faça isso com a consciência de que a voz para mudar será a sua, e não de alguém que pouco se importa com você.

O AI-5 não gosta de voto. Ao contrário, abomina, odeia a ponto de prender, matar e torturar quem gosta de votar. Vote e mude com o seu voto aquilo de que você não gosta. Porque se acabaram com o seu direito de votar, você terá um trabalho enorme, muito desgaste e até poderá perder a vida na luta para que o seu direito retorne.

Está ponderando e argumentando internamente que os ministros do Supremo não são escolhidos pelo voto? Mas são sim! Os presidentes da República que você escolhe seleciona os nomes que quer prestigiar e eles são aprovados pelos senadores que você também, pelo voto, escolheu.

Pense nisso na hora de votar e, por favor, em nome do Brasil, dos seus filhos, netos e de você mesmo, pare com essa bobagem de defender o AI-5. Porque se AI-5 houvesse ainda por aqui, o presidente que você defende não estaria na Presidência, porque naquele tempo capitães e deputados não tinham chance alguma de chegar lá. Nem os operários ou as mulheres. E todos eles se se atrevessem a querer estar lá seriam presos, torturados e corriam o risco de perder a vida. E você também se os defendesse.

Pense bem nisso.
Rubem Medina

Alto risco de tragédia

Num momento em que todos reprisam, o governo é pródigo em lançar novelas inéditas. Mal acabou a novela Mandetta, entrou no ar a Sergio Moro, e começaram as filmagens da Paulo Guedes. O que está acontecendo na cabeça do presidente Bolsonaro? Ela foi sacudida pelo impacto do coronavírus.

Muitas mudanças estão sendo determinadas, no fundo, pela política escolhida por Bolsonaro para enfrentar este que é o maior acontecimento trágico no mundo moderno. Onde governos conservadores ou progressistas triunfaram, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, Bolsonaro afundou.

Desde o princípio, tenho apontado a causa. Bolsonaro aderiu à camada de gordura que cerca o vírus e seus fluidos ideológicos e o transformou num tema da guerra cultural. Exatamente o oposto do que fizeram Scott Morrison, na Austrália, e Jacinda Ardern, na Nova Zelândia: despolitizaram o vírus.

Aqui não é Equador, mas em São Paulo também se morre em casa por covid-19
Ainda esta semana, o chanceler Ernesto Araújo escreveu um artigo contra o que chama de comunavírus. Ele ficou impressionado com um livro do pensador de esquerda Slavoj Zizek que previa enfim a chegada do comunismo. Depois de sonhar com a classe operária ou mesmo o lúmpen proletariado, alguns teóricos de esquerda concentram suas esperanças no vírus como agente transformador. E os bolsonaristas acreditam.

Desde o princípio, Bolsonaro viu a chegada do vírus como algo que ameaçava seu governo. A única forma de neutralizar sua importância era adotar uma tese que permitisse neutralizar os impactos econômicos. Esta tese foi a de imunização de rebanho: a maioria vai ser contaminada, é melhor que isso aconteça logo para que nos livremos do vírus.
Bolsonaro jamais considerou seriamente o fato de que, se muitos se contaminarem ao mesmo tempo, o sistema de saúde entraria em colapso, muitas pessoas morreriam na porta dos hospitais ou em casa. Um cenário que, de certa forma, se desenhou na Itália e mais tarde, de forma grotesca, em Guayaquil.

Foi por aí que caiu Mandetta. E indiretamente Moro. Bolsonaro sempre pensou em concentrar poderes. Mas a impossibilidade de determinar sozinho uma política contra o coronavírus condensou seu drama. Os governadores e prefeitos tiveram um papel decisivo. O Congresso os apoiou, o STF chancelou essa autonomia local.

A relação com Moro já sofria um desgaste. Mas Bolsonaro, na sua solidão, reclamou da ausência do ministro em sua cruzada contra o isolamento social. Moro, segundo alguns, não só era favorável à política de Mandetta, como pensou em decretar multas para quem rompesse com o isolamento social. O que, aliás, acontece em muitos países da Europa.

Sem o Congresso, STF, ministro da Saúde e da Justiça, Bolsonaro deu um passo decisivo participando de manifestação antidemocrática diante do QG do Exército. Isso resultou num inquérito que acabou se entrelaçando com outro: o das fake news. Os investigados são os mesmos: apoiadores do presidente e, possivelmente, até familiares de Bolsonaro.
Moro teve uma chance de sair depois daquela manifestação. Possivelmente estava incomodado com a posição temerária de Bolsonaro sobre o coronavírus. Mas agora estava diante de uma posição temerária contra a democracia.

Moro não se pronunciou. Num determinado momento de sua trajetória, a mulher de Moro escreveu numa rede social que ele e Bolsonaro eram a mesma coisa.

Ele pode ter sido salvo agora pela maneira como cai. A tentativa de interferir na autonomia da Polícia Federal é algo que não encontra apenas resistência na corporação, mas em muitos setores conscientes da sociedade. É inconstitucional.

Nesse sentido, Moro cai de pé. Mas, para que sua trajetória política tenha viabilidade, será necessário se distinguir de Bolsonaro, algo que não fez quando esteve no governo. O tom de seu discurso de saída é um indício de que compreendeu isto. Pelo menos se distanciou da visão atrasada de submeter o trabalho da PF aos desígnios de um presidente. O que é no fundo um crime de responsabilidade.

Mas Moro indicou claramente que Bolsonaro teme o inquérito no Supremo. Resta agora ao STF assumir seu papel institucional e não amarelar diante da pressão de Bolsonaro.

É um governo que se aproxima de uma situação limite, como foi o caso de Collor e Dilma. Mas num contexto de pandemia que jogou o planeta na maior crise econômica e social da história contemporânea. Alto risco de tragédia.

Coronavírus: o que podemos aprender com as pandemias da ficção?

Contos de Canterbury,, de Geoffrey Chauce
Em tempos incertos e estranhos como estes, em que cumprimos nosso isolamento social para achatar a curva de contágio, a literatura fornece escapismo, alívio, conforto e companhia. Porém, o apelo da ficção pandêmica também aumentou. Muitos títulos pandêmicos parecem guias para a situação de hoje. E muitos desses romances descrevem epidemias numa progressão cronológica realista, dos primeiros sinais de problema aos piores momentos, e o retorno à "normalidade". Eles nos mostram que já passamos por isso antes.

Um Diário Do Ano Da Peste, de Daniel Defoe, publicado em 1772, que narra a peste bubônica de 1665 em Londres, conta uma série de eventos sinistros que lembram nossas próprias respostas ao choque inicial e à propagação voraz do novo vírus.

Defoe começa sua história em setembro de 1664, quando circulam rumores sobre o retorno da 'pestilência' à Holanda. Em seguida, vem a primeira morte suspeita em Londres, em dezembro, e depois, na primavera, Defoe descreve como os avisos de morte publicados nas paróquias locais tiveram um aumento sinistro. Em julho, a cidade de Londres impõe novas regras - regras que estão se tornando rotineiras em 2020, como "que todas as festas públicas, jantares em tabernas, cervejarias e outros locais de entretenimento comum sejam suspensos até novas ordens".

Em agosto, Defoe escreve, a peste estava "muito violenta e terrível"; no início de setembro, atingiu o seu pior, com "famílias inteiras, ruas inteiras de famílias... desaparecendo juntas". Em dezembro, "o contágio estava esgotado, e também o clima do inverno acelerava, e o ar estava limpo e frio, com geadas fortes... a maioria dos que haviam adoecido se recuperou e a saúde da cidade começou a voltar". Quando finalmente as ruas foram retomadas, "as pessoas andavam dando graças a Deus por sua libertação".

O que poderia ser mais dramático do que um retrato de uma peste em andamento, quando as tensões e emoções são intensificadas e os instintos de sobrevivência surgem? A narrativa pandêmica é natural para romancistas realistas como Defoe e, mais tarde, Albert Camus.

A Peste, de Camus, em que a cidade de Oran, na Argélia, fica fechada por meses enquanto uma doença dizima seu povo (como de fato aconteceu em Oran no século 19), é um livro também repleto de paralelos com a crise de hoje. Os líderes locais relutam a princípio em reconhecer os sinais precoces que vêm dos ratos morrendo pela doença. "Os pais de nossa cidade estão cientes de que os corpos em decomposição desses roedores constituem um grave perigo para a população?", pergunta um colunista no jornal local. O narrador do livro, Dr. Bernard Rieux, reflete o heroísmo silencioso dos trabalhadores médicos. "Não faço ideia de o que me espera ou do que acontecerá quando tudo acabar. No momento eu sei disso: há pessoas doentes e elas precisam de cura", diz ele. No final, há a lição aprendida pelos sobreviventes da peste: "Eles sabiam agora que, se há uma coisa que sempre se pode desejar e, às vezes, alcançar, é o amor humano".

A gripe espanhola de 1918 reformulou o mundo, levando à morte de 50 milhões de pessoas, após 10 milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial. Ironicamente, o dramático impacto global da gripe foi ofuscado pelos eventos ainda mais dramáticos da guerra, que inspiraram inúmeros romances. Enquanto as pessoas praticam agora o 'distanciamento social' e as comunidades ao redor do mundo se retêm, a descrição de Katherine Anne Porter da devastação criada pela gripe espanhola em seu romance Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro, de 1939, soa familiar: "É terrível... Todos os teatros e quase todas as lojas e restaurantes estão fechados, e as ruas estão cheias de funerais o dia todo e ambulâncias soam a noite toda", diz o amigo da heroína Miranda, Adam, logo após ela ser diagnosticada com a influenza.

Porter retrata a febre e os tratamentos de Miranda, e semanas de doença e recuperação, até o despertar para um novo mundo remodelado pelas perdas da gripe e da guerra.

Porter quase morreu da gripe. "Eu mudei de uma forma estranha", ela disse à revista literária The Paris Review em uma entrevista de 1963. "Levei muito tempo para sair e viver no mundo novamente. Eu estava realmente 'alienada' no sentido puro.

As epidemias do século 21 - a síndrome respiratória aguda grave (Sars, na sigla em inglês), em 2002, a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers, em inglês), em 2012 e o ebola, em 2014 - inspiraram romances sobre desolação e colapso pós-peste, cidades desertas e paisagens devastadas.

O Ano do Dilúvio (2009), de Margaret Atwood, mostra-nos um mundo pós-pandêmico com humanos quase extintos, após a maioria da população ter sido exterminada 25 anos antes pelo 'Dilúvio sem Água', uma peste virulenta que "viajava pelo ar como se tivesse asas, queimando cidades como fogo".

Atwood captura o extremo isolamento sentido pelos poucos sobreviventes. Toby, uma jardineira, olha o horizonte do jardim da cobertura de um spa deserto. "Deve haver mais alguém ... ela não pode ser a única no planeta. Deve haver outros. Mas amigos ou inimigos? Se ela vir um, como vai saber?". Ren, que foi dançarina de trapézio e "uma das mais limpas entre as sujas da cidade" está viva porque estava em quarentena por uma possível doença transmitida por um cliente. Ela escreve seu nome repetidamente. "Você pode esquecer quem você é se estiver sozinho demais", diz.

Por meio de flashbacks, Atwood explica como o equilíbrio entre os mundos natural e humano foi destruído pela bioengenharia patrocinada por grandes empresas e como ativistas como Toby reagiram. Sempre atenta aos problemas que tecnologia pode trazer, Atwood baseia seu trabalho em premissas plausíveis, tornando o Ano do Dilúvio terrivelmente presciente.

O que torna a ficção pandêmica tão envolvente é que os humanos se unem na luta contra um inimigo que não é um inimigo humano. Não existem 'mocinhos' ou 'bandidos'; a situação é mais sutil. Cada personagem tem uma chance igual de sobreviver ou não. A variedade de respostas de cada personagem às circunstâncias terríveis torna a história interessante para quem escreve - e para quem lê.

Severance (A Separação, em tradução livre - livro indisponível no Brasil), de Ling Ma (2018), que o autor descreveu como um "romance apocalíptico de escritório" com uma história de imigração, é narrada por Candace Chen, uma moça que trabalha em uma empresa de publicação da Bíblia e tem seu próprio blog. Ela é uma das nove sobreviventes que fogem da cidade de Nova York durante a pandemia fictícia da febre de Shen em 2011. Ma descreve a cidade depois que "a infraestrutura ... entrou em colapso, a internet caiu em um buraco, a rede elétrica foi fechada".

Candace se junta a um grupo numa viagem em direção a um shopping em um subúrbio de Chicago, onde o grupo planeja se estabelecer. Eles viajam por uma paisagem habitada pelos "febris", que são "criaturas de hábitos, imitando velhas rotinas e gestos" até morrerem. Os sobreviventes são imunes aleatoriamente? Ou "selecionados" pela orientação divina? Candace logo descobre que em troca da segurança de estar em grupo precisa demonstrar uma estrita lealdade às regras religiosas estabelecidas pelo líder do grupo Bob, um ex-técnico de TI autoritário. É apenas uma questão de tempo até que ela se rebele.

Nossa própria situação atual é, obviamente, nem de longe tão extrema quanto a prevista em Severance. Ling Ma explora o pior cenário que, felizmente, não estamos enfrentando. Em seu romance, ela analisa o que acontece em seu mundo imaginário após a pandemia desaparecer. Depois do pior, quem está encarregado de reconstruir uma comunidade, uma cultura? Entre um grupo aleatório de sobreviventes, o romance pergunta: quem decide quem tem poder? Quem define as diretrizes para a prática religiosa? Como os indivíduos retêm poder de agência?

As vertentes narrativas do romance Estação Onze, de Emily St John Mandel, de 2014, ocorrem antes, durante e depois de uma gripe ferozmente contagiosa originária da República da Geórgia "explodir como uma bomba de nêutrons na superfície da terra", destruindo 99% da população da população global. A pandemia começa na noite em que um ator que interpreta o rei Lear, personagem de Shakespeare, sofre um ataque cardíaco no palco. Sua esposa é autora de histórias em quadrinhos de ficção científica ambientadas em um planeta chamado Estação Onze. O livro tem ecos dos Contos de Canterbury, clássico da literatura inglesa, escrito por Chaucer, o prototípico e irreverente ciclo de histórias do século 14, que tem como pano de fundo a peste negra.

Quem e o que determina a arte, pergunta Mandel? A cultura de celebridades importa? Como vamos reconstruir as coisas depois que o vírus invisível nos sitiar? Como a arte e a cultura mudarão? Sem dúvida, existem romances sobre nossas circunstâncias atuais em andamento. Como os contadores de histórias nos próximos anos retratarão essa pandemia? Como eles irão narrar a onda de espírito solidário, os inúmeros heróis entre nós? Essas são questões a serem ponderadas à medida que aumentamos o tempo de leitura e preparamos o surgimento do novo mundo.

Pensamento do Dia


O 'novo normal'

Nesses tempos de medo e depressão, chovem platitudes e truísmo de profetas, videntes e assemelhados que se multiplicam: “depois da pandemia, o mundo será mais solidário”, “veremos avanços nas áreas das ciências”, “os países serão menos globalistas e mais protecionistas”, etc.

A ciência política não escapa desse vislumbre do amanhã, razão pela qual também me inclino a fazer, vez ou outra, exercícios de futurologia. Em quase todas as projeções prega-se o advir de um mundo diferente, mais solidário, hipótese plausível ante a constatação de que a catástrofe de uma Nação, a partir de um vírus, atinge a todas. A busca pela extinção de pandemias vira missão de todos.


Hoje, tento enveredar nessa trilha: como seria esse “novo normal” com mudanças de padrões, valores, atitudes, o mapa do cotidiano pós-crise? Antes, uma apreciação sobre a paisagem social em que se abrigou o Covid-19. Uma sociedade plena de desigualdades, diferenças culturais, modos de vida, democracias vigorosas e outras nem tanto, conglomerados produtivos e competitivos, uma infinidade de micro e pequenos negócios, desemprego em massa, debilidade na defesa da saúde, acúmulo de riquezas, extrema miséria e fome.

A inferência emerge: o impacto difere em núcleos, grupamentos profissionais e classes sociais. Uns sofrem mais que outros. Mas um fio liga todos os seres humanos: o vírus não distingue ricos e pobres, maiores e pequenos. Só um grupo – os idosos – está mais arriscado.

Dito isto, fica patente: como é possível um micro-organismo desfazer de repente coisas, projetos, empreendimentos e tantos esforços, alguns produto de toda uma vida? É como se um tsunami inundasse tudo o que encontra pela frente: pessoas, construções, empreendimentos. Muitos não se salvam, mesmo em hospitais, enquanto outros, com rendas e negócios arrebentados, terão de recomeçar a vida.

A tragédia deixará marcas profundas, até naqueles com os mais profundos sentimentos de vivência na dor e no desespero. Haverá um olhar mais humano para as tragédias pela ideia de que o sofrimento pode baixar em cada um. Mas a catástrofe escancara a banalização do perigo na corrente do medo e da morte, duas sombras destes tempos.

A morte mora perto, gritada em alto e bom som: 20 mil aqui, 50 mil acolá, 100 mil mais adiante. Virou número. Antes, exclamava-se : “fulano morreu”, seguida de “não diga? Quando? Por quê?” Hoje, caminhões levam corpos mortos para covas coletivas.

Tudo aprofunda nossas feridas. Certa amargura em nossos corações, ao lado da descrença nos padrões da velha política. Como a política entra aqui? Ora, pelo descalabro com que a crise foi tratada por alguns governantes. Pela falta de equipamentos básicos e ineficiência dos serviços públicos, apesar do reconhecimento do heroísmo dos profissionais da saúde.

A sensação é a de que o Senhor Imponderável, que nos visitava em alguns períodos, doravante será mais frequente, o que pode nos tornar um povo mais medroso, mais pessimista. A bem da verdade, eis um contraponto: “quem venceu esse demônio invisível, terá condição de vencer outros que nos atacarem”.

Amém.
Gaudêncio Torquato



Gaudêncio Torquato

Beijo mortal

Quando Roberto Jefferson entra na parada, é o beijo da morte de qualquer presidente. Ele só não conseguiu matar Lula, mas conseguiu matar Fernando Collor e vai conseguir matar Bolsonaro
Marcos Nobre, professor da UNICAMP e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP)

Brasil caminha às cegas com Bolsonaro enquanto apoio ao Governo racha após saída de Moro

A saída bombástica do ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, abre um novo e perigoso capítulo para o Brasil e para o Governo de Jair Bolsonaro que envenena eleitores fieis, repele potenciais investidores e fortalece o discurso dos que pedem o impeachment do presidente. A bolsa de valores de São Paulo despencava quase 10 pontos porcentuais enquanto Bolsonaro perdia seu caro fiador da bandeira da luta contra a corrupção após acusações graves de que tirou Maurício Valeixo da direção da Polícia Federal, e que buscou interferir em investigações, algo que nem os arqui-inimigos de Bolsonaro haviam feito. “Imagina se durante a própria Lava Jato, a então presidente Dilma e o ex-presidente Luiz [Lula] ficassem ligando para as autoridades para obter informações?”, disse Moro, numa declaração que surpreendeu o mundo político.

Tão grave quanto a saída de Moro é a vocação persistente de Bolsonaro em disparar bombas nucleares em seu Governo, e engendrar novelos que enrolam a si próprio, enquanto o Brasil vive o pânico da pandemia do coronavírus, que matou mais de 3.000 pessoas. “Há uma aceleração de crises – [a troca de ministros da Saúde foi a mais recente], enquanto se luta com a maior de todas as já vividas nesta geração, com a pandemia do coronavírus”, observa Thiago de Aragão, cientista político da Arko Advice. “É como se um casal fosse sequestrado, e durante o sequestro a mulher resolvesse pedir o divórcio”, compara. A bolsa de apostas já começa a especular uma eventual saída do ministro Paulo Guedes na sequência, mas por ora é pura especulação.

Bolsonaro tentou contornar o terremoto Moro, apresentando-se ao lado de quase toda a equipe de ministros — incluindo Paulo Guedes —para defender-se das acusações. Mas a emenda pareceu pior que o soneto. Negou que interferisse no trabalho da PF, mas admitiu que buscava um interlocutor direto para conhecer algumas investigações. “Quero um delegado com que eu possa interagir. Porque não?”. A decepção de parte do eleitorado do presidente se cristalizou de imediato. “Bolsonaro não me representa mais, ele se desfez do único herói que o Brasil tinha”, lamentou Ulisses, administrador de Belo Horizonte, que até esta quinta era um ferrenho defensor do atual Governo. Em São Paulo, a analista financeira Debora pulou do barco assim que Moro apresentou suas justificativas para se demitir. “Eu queria o PT fora do poder de qualquer jeito por isso votei no Bolsonaro. Agora, eu acredito mais no Moro do que nele”, diz ela. Tanto Debora como Ulisses integram o grupo de eleitores que aplaudia a Lava Jato, e viu em Moro como ministro a esperança de que o cerco à corrupção seguiria firme com Bolsonaro. É esta base de apoiadores do Governo que começou a se dissolver com a saída de Sergio Moro, mais popular que o próprio presidente Jair Bolsonaro, como mostrou o instituto Atlas Político.

Moro tem 53% de imagem positiva entre os brasileiros, contra 39% de Bolsonaro, segundo o mais recente levantamento do instituto. “Dentro do discurso bolsonarista, o eixo mais resiliente sempre foi relacionado ao combate à corrupção e à criminalidade”, explica Andrei Roman, cientista político da Atlas. “Como responsável pelas principais condenações do Lava Jato e pela prisão do [ex-presidente] Lula, Moro garantiu ao Governo Bolsonaro um selo de legitimidade e autenticidade em relação a esse discurso”, completa.

Seguem firmes, porém, os eleitores radicais que apoiam qualquer decisão de Bolsonaro, e que amplificam suas falas corrosivas, um grupo que lhe dará suporte por algum tempo. A aparição do presidente ao lado dos ministros, incluindo os de patente militar, também promoveram a imagem de que o presidente não está só, e que as Forças Armadas seguem firmes com ele, embora nos bastidores existam muitos sinais de desconforto. “Ainda tem lenha pra queimar. O presidente pode assumir uma narrativa ainda mais agressiva, para consolidar um apoio de 22% dos brasileiros”, avalia Thiago de Aragão, cientista político da Arko Advice. Com essa popularidade Bolsonaro manteria uma perna de sustentação, e o blindaria da pressão de um impeachment, por exemplo. O assunto voltou à baila nesta sexta, com pressão de políticos, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, e entidades, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para avaliar a saída do presidente do cargo. Já são mais de 20 pedidos de impeachment contra o presidente. Aragão acredita que é cedo para isso. Ele lembra que Dilma Rousseff tinha por volta de 8% de apoio quando foi destituída em 2016.

O ex-presidente Michel Temer (2016-218) também tinha apoio de menos de 10% nas pesquisas, mas contava com apoio do Congresso. Não por acaso o Governo passou a negociar com deputados do Centrão, reconhecidos pelo seu perfil fisiológico – vários deles sob investigação da Lava Jato, inclusive — para ter o apoio que hoje lhe falta. Bolsonaro decidiu bancar a aposta de se aliar a uma ala parlamentar que lhe daria maioria no Congresso para ganhar a queda de braço com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e garantiria governabilidade. Em troca, haveria repartição de cargos. A estratégia, porém, é movediça, na leitura de um experiente observador do comportamento do Centrão. “Há momentos em que não há condições de segurar absolutamente nada”, diz José Eduardo Cardozo, que ocupava o cargo de ministro da Justiça no governo de Dilma Rousseff. “Me recordo no processo de impeachment [em 2016], como as pessoas foram saindo do barco. A sensação é a mesma”, diz Cardozo, que defendeu Dilma nesse período.

O ex-ministro da Justiça acredita que o discurso de Moro em sua saída tem um efeito demolidor para Bolsonaro, independentemente das suas negociações. “O presidente sinaliza que quer interceptar inquéritos que tentam sair, como os das fake news [conduzido pelo Supremo Tribunal Federal, que pode atingir seu filho Carlos Bolsonaro, suspeito de espalhar notícias falsas para beneficiar o pai]”, diz ele. “Quando alguém quer obstar investigação, usando métodos não republicanos é porque tem algo a esconder”, completa ele, lembrando que da cultura de independência que foi construída a duras penas pela Polícia Federal.

O curto circuito promove mais estragos na imagem já frágil do presidente mundo afora. “Um investidor me disse: ‘Como posso vislumbrar no curto e médio prazo a expectativa de que decisões serão tomadas de modo racional e não emocional no Brasil?”, conta Aragão, lembrando que os donos do dinheiro buscam previsibilidade para fazer suas escolhas. Algo que definitivamente o Brasil perdeu há muito tempo.

Estadistas, populistas e a pandemia

No início do ano, foi publicada uma excelente biografia de Frank Ramsey, um cientista ligado à Universidade de Cambridge, que em sua curta vida de apenas 27 anos deixou contribuições marcantes nos campos da filosofia, da matemática e da teoria econômica. Na economia, uma de suas contribuições foi uma modelagem matemática que permitiu responder à pergunta: “Quanto a sociedade deve poupar para favorecer as próximas gerações?”. Quanto mais deixarmos de consumir no presente, mais investiremos elevando o produto, o consumo e o bem-estar das populações no futuro. Para responder qual é a distribuição ótima entre as gerações, os economistas contemporâneos incluem uma taxa de desconto para trazer a valor presente o consumo das gerações futuras. Taxas de desconto mais elevadas favorecem um consumo maior da geração presente, e planejadores que dão um peso elevado ao bem-estar das gerações futuras preferem taxas de desconto mais baixas. Ramsey tinha um profundo senso ético e grande apreço pelo bem-estar das próximas gerações, o que o levou a utilizar uma taxa de desconto nula, dando peso igual a todas as gerações.


Em um horizonte bem mais curto do que o de uma geração, a pandemia impõe aos governos uma escolha semelhante. A adoção do afastamento social poupa vidas à custa de uma recessão no presente, cujos efeitos são parcialmente atenuados por medidas que impeçam a quebra de empresas e compensem a queda de renda dos menos favorecidos, em troca de um crescimento mais vigoroso adiante. No outro extremo, o afastamento social é abolido na esperança de evitar uma recessão no presente, porém à custa de um enorme número de mortes e de menor crescimento futuro. Se o governante responsável pela decisão tiver respeito pelo futuro do país, decidirá como se tivesse uma taxa de desconto baixa ou mesmo nula, respeitando as recomendações dos cientistas e optando por um isolamento social mais rígido. Mas se o objetivo for manter sua popularidade elevada no curto prazo para favorecer sua reeleição, atirará às urtigas o futuro do país usando uma taxa de desconto muito alta.

Sempre acreditei que os estadistas têm taxas de desconto bem menores do que populistas, e minha convicção cresceu ainda mais ao ouvir o discurso de Boris Johnson quando deixou o hospital curado do coronavírus. Tendo inicialmente manifestado dúvidas com relação à eficácia do afastamento social e sido criticado fortemente por esse erro, não hesitou em curvar-se humildemente às evidências dos cientistas do Imperial College of London, voltando atrás em sua posição e decretando a continuidade do afastamento social em todo o território inglês. Como um excelente biógrafo de Churchill, não pode ser surpresa que tenha feito o discurso típico de um estadista, conclamando o povo à união na guerra contra o vírus. Boris Johnson viu a cara da morte e reduziu sua taxa de desconto para um nível muito mais baixo do que a de populistas de direita, dos quais Trump é um exemplo que é imitado por Bolsonaro.

Em um momento difícil como este, é natural que no Brasil haja divergências. Empresários que construíram suas empresas com o duro trabalho de décadas temem perdê-las ou a duras penas ter de reconstruí-las. Pessoas humildes em cujas casas pobres vivem inúmeros familiares perderam sua renda, passando a viver de transferências do governo. Nos dois casos, a tentação é atribuir a culpa ao distanciamento social e, quando cai o número de mortes, ambos lutam para que este acabe, sem se dar conta que a queda do número de mortes é a consequência do afastamento ocorrido anteriormente. A experiência do Japão e de Cingapura mostraram que é um erro abandonar precocemente a quarentena. Caberia ao governo explicar à sociedade a inevitabilidade da quarentena, trabalhando em um protocolo de saída que evite um aumento do contágio, e não se acovardando em tomar as medidas compensatórias que reduzam o custo durante o período de isolamento.

Mas não temos na Presidência um estadista, e sim um populista que, obcecado pelo objetivo de reeleger-se, tem uma taxa de desconto muito elevada, desprezando as consequências de seus atos sobre o futuro do País. Em vez de seguir o exemplo de Boris Johnson, reconhecendo humildemente seus erros e buscando unir os cidadãos, a intolerância e o radicalismo de Bolsonaro o levam a agredir todos os que divergem de suas ideias. Em vez de unir o País, ele o divide, com consequências muito negativas para o presente e para o futuro.

Viver na incerteza

Um vírus pôs a humanidade inteira em carne viva. O medo mora conosco, tomou o lugar do abraço. Um mundo imprevisível emergirá dessa tragédia, e nossa única certeza é a incerteza.

Hoje — e que dia é hoje, alguém sabe? — os referenciais que balizavam o cotidiano, a maneira como habitávamos o tempo e o espaço, se apagaram. A pandemia reverteu a flecha do tempo. A máquina do mundo parou. Petroleiros fantasmas estão parados no mar, cheios de um líquido que já não vale nada.
A casa é a fronteira da sobrevivência e uma exigência moral. Tenta-se manter uma rotina, memória esfumada de algo vivido em outra vida. O trauma deixará marcas. Esperemos que o confinamento físico tenha o dom de abrir os espíritos a mais humanidade.


Psicopatas ocupam a cena com sua covarde onipotência, acinte aos milhares de brasileiros doentes, quando liderança e competência são indispensáveis para bloquear o alastramento do mal. Com a palavra as instituições e os Poderes da democracia que juraram proteger a Constituição. Cabe-lhes impedir que continuem os inadmissíveis desvarios que ameaçam os vivos e desrespeitam os mortos.

A pandemia é uma desgraça sem precedentes. Contra ela os chefes de Estado que se respeitam tentam unir seus povos, multiplicar todos os recursos disponíveis. Convocam seus melhores quadros, mobilizando a inteligência coletiva de suas sociedades para socorrer os doentes. Todos, menos o do Brasil, imperdoável, que estressa o país nos dividindo, fabricando crises, cego aos que vão morrer sem socorro.

A hora é gravíssima. Não há espaço para mais nada que não seja dar o melhor de cada um de nós. Exemplar tem sido o trabalho heroico dos médicos e agentes de saúde e dos voluntários que se mobilizam para amparar os muitos que precisam de ajuda. Só isso deve nos preocupar e ocupar.
A pandemia tornou obsoletas questões que pareciam essenciais. Mudou as perguntas. E impôs a incerteza como regra do mundo. É com ela, e é doloroso, que doravante teremos que viver. Na travessia e no mundo de amanhã.